sábado, 31 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20111: Os nossos seres, saberes e lazeres (351): Tavira, a encruzilhada de civilizações (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Regresso sempre a Tavira com curiosidade e nunca dali saio dececionado com aquele caleidoscópio cultural, os vestígios da Antiguidade bem prezados (intriga-me o que vai ser a pesquisa arqueológica do espaço romano de Balsa, ainda não percebi onde começa a fronteira da presença romana e acaba a fantasia), as belas igrejas, os passeios ao longo do Gilão, o espaço rural envolvente... E a Ria Formosa ali ao lado, e a sucessão de povoados, como Luz de Tavira, ainda a ecoar uma vida piscatória e aquele passado em que Tavira era inevitável ponto de passagem de e para as praças do Norte de África.
À falta de frase mais imaginativa, direi que Tavira propicia uma viagem que nunca acaba, tem tais e tantos atrativos que só apetece regressar.

Um abraço do
Mário


Tavira, a encruzilhada de civilizações (3)

Beja Santos

O viandante dá-se muito bem com a História, a urbanística, a arquitetura civil, militar e religiosa, é impressionante o diálogo de confluências que aqui se estabelecem, é o peso natural de uma região onde se imanam, com flagrante coexistência, civilização e cultura. Percorre-se esta zona do rio Gilão, aqui se está extasiado com o incêndio do poente, já se foi muitíssimo mais adiante junto de ruínas de uma fortaleza, outrora importante para prevenir incursões de um vizinho hostil, sabe-se lá se até de piratas magrebinos, por ali se passeia entre muralhas que parecem ossadas jurássicas depositadas no areal, produto do assoreamento, assim se entra na cidade para este céu limpo percorrido por um cometa de fogo.


Tavira é o ponto do Algarve que mais diálogo oferece sobre civilizações, é possível entrar numa pousada e descer ao passado a falar fenício ou romano, é verdade que não há mesquitas mas a cultura árabe deixou impressionantes marcas de água, é cidade de igrejas cheias de caráter, mosteiros e ermidas, imagens preciosas a distintos cultos a santos, e há até mesmo uma ponte que parece simbolizar a ponte dessas culturas, o rio atravessa a cidade e parece não chegar ao mar, pura ilusão, cidade caleidoscópica, possuidora de uma arquitetura civil cheia de requinte, cidade de escala humana, naquele casco histórico um arranha-céus seria clara monstruosidade.




Já se disse, e qualquer viandante o pode confirmar, a arquitetura civil tavirense tem património prodigioso, próprio de uma rica burguesia argentária ou rural, não esquecer as ricas pescarias e a indústria de conservas, um mundo agonizante a caminho da Ria Formosa. O Palácio da Galeria, o mesmo é dizer Museu Municipal foi restaurado a preceito, vale a pena quem o visita deliciar-se com os seus tetos pintados. Visitar a Igreja da Misericórdia é ser confrontado com azulejaria requintada, assim como não faltam vestígios flagrantes de fenícios ou árabes, medievos ou modernos, há barroco de alta qualidade, é tudo uma questão de pedir informações sobre as igrejas, que são muitas. O viandante bem procurou uma publicação sobre casas solarengas, nada encontrou, o que não diminuiu o prazer da deambulação.



Nos escaninhos da memória, o viandante recorda o seu primeiro passeio fora de Lisboa, tinha 7 anos, a mãe comprou bilhetes na Rodarte para ir ver as amendoeiras em flor. A memória reteve campos que pareciam floridos pelos flocos de neve, isto passou-se em 1952, havia então um Algarve de quintas e muitas pitas, carroças, uma agricultura de subsistência, vendiam-se na berma da estrada figos com amêndoa, e a fruta local. Um modo de viver que entrou em ebulição na década seguinte, com a enxurrada do turismo de massas e as empreitadas para gente altamente abonada, veio a descaraterização de Olhão, Albufeira e Quarteira. Há poetas como Nuno Júdice que cantam essa maldição.




Nos arredores de Tavira, encontrou-se um parque para piquenicar, falava-se em gamos e eles apareceram, não com pezinhos de lã mas com olhar desconfiado e por ali andaram a mordiscar, a criançada em alvoroço, os gamos não lhes deram troco, foram buscar comida um pouco mais longe. A viagem chegou ao seu termo, regressa-se a Tavira e de saco às costas parte-se para a estação da CP, antes porém colhem-se duas imagens de registo antigo, com imenso prazer, é indício seguro que se descobre sempre algo de cativante, são os tais atrativos que asseguram a vontade de regressar. Como vai acontecer.



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Notas do editor

Poste anterior de 24 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20090: Os nossos seres, saberes e lazeres (349): Tavira, a encruzilhada de civilizações (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20110: Os nossos seres, saberes e lazeres (350): a mítica estrada nacional, EN 304, em pleno Parque Natural do Alvão, entre Mondim de Basto e Vila Real... E finalmente conheci o "Ginho", "ao vivo e a cores", na sua terra natal, em terras de Basto, na "Casa do Lago"...(Luís Graça)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20110: Os nossos seres, saberes e lazeres (350): a mítica estrada nacional, EN 304, em pleno Parque Natural do Alvão, entre Mondim de Basto e Vila Real... E finalmente conheci o "Ginho", "ao vivo e a cores", na sua terra natal, em terras de Basto, na "Casa do Lago"...(Luís Graça)












Parque Natural do Alvão > A mítica EN 304, já hoje considerada como uma das mais belas da Europa, e o miradouro das Fisgas do Ermelho, uma das maiores cascatas europeias(, fora da Escandinávia e dos Alpes),  no rio Olo, afluente do


Vídeo (30'') Luís Graça (2019) > Miradouro das Figas do Ermelo, 
Parque Natural do Alvão,  Mondim de Basto


1. Obrigado, Luís Jales de Oliveira. Acabaste por ser tu a localizar-me, pelo telemóvel, estava eu no Castelo de Arnoia, no vizinho concelho de Celorico de Basto. O teu número de telemóvel, antigo, já não estava atribuído.

Tiveste depois a gentileza de ir ter comigo (e o meu grupo, a Alice, minha esposa, a Nitas e o Gusto, os meus cunhados e sócios da Quinta de Candoz)... Encontrámo-nos no Restaurante Esplanada Caso do Lago, em pleno centro de  Mondim de Basto. Tomámos o café juntos e selámos o nosso encontro, "ao vivo e a cores", com uma aguardente DOC Lourinhã!...

Ora, eu, de passagem pela tua terra, Mondim de Basto, queria apenas dar.te um "alfabravo" e "partir mantenhas"... 

Voltei, ontem, 5ª feira à noite, à Tabanca de Candoz, no Marco de Canaveses, depois de uma breve mas memorável viagem por terras de Basto, do Parque Natural do Alvão, e pela mítica estrada nacional nº 304... Viemos todos extasiados com a magia das tuas paisagens... incluindo as Fisgas de Ermelo (que revisitámos)... 

Agora percebo melhor donde te vem a inspiração poética... Mas Mondim de Basto é para se conhecer com tempo e vagar,segundo o teu sábio conselho... Prometo voltar... Afinal de contas, somos vizinhos. A tua generosidade e hospitalidade foram excessivas, dignas de um príncipe. E, como amor com amor se paga, espero por ti um dia deste, aqui, em Candoz, ou mais abaixo na Lourinhã, na Estremadura...

O tempo foi curto. Fiquei feliz por te conhecer pessoalmente, para mais na terra que tanto amas e que cantas como ninguém. A Alice e os meus cunhados não sabem, também,  como agradecer-te os teus mimos. Mas eles também são do Norte e sabem como receber, como as gentes de Basto. Afinal, vocês todos filhos do vale do Tâmega.

Fico feliz também por saber que ajudaste a travar o crime lesa-Tãmega, o nosso vale do Tâmega que, com o vale do Sousa, foi o berço deste terrunho  a que chamamos Portugal, crime esse que se perfilava, como uma espada de Dâmocles,  com a planeada construção da barragem de Fridão... 

Saúde e, longa vida para ti e os teus ... Tens aqui algumas das muitas  fotos que tirei.

PS - Força para o teu livro sobre a Guiné!...Haveremos de encontrar editor!...


2. Nota do editor:

Já em tempos aqui escrevemos, soltas as amarras de editor (*): há terras do Portugal profundo que tem a sorte de ter o seu poeta, o seu cantor, o seu músico, o seu pintor, o seu fotógrafo... Mondim de Basto, ou melhor, as Terras de Basto, têm o privilégio de, a par da beleza telúrica, da tradição histórica, do património cultural e da riqueza gastronómica,  poderem orgulhar-se da voz que as canta. Se uma imagem vale mil palavras, um poema é um caleidoscópio. Não há fotografia que substitua um poema.

Luís Jales de Oliveira,  carinhosamente tratado por "Ginho",  filho de Mondim de Basto, nosso camarada, membro da nossa Tabanca Grande, foi fur mil trms inf, Agrup Trms de Bissau e CCAÇ 20 (Bissau e Gadamael Porto, 1972/74).  E é, sem favor, o  autor  de um dos mais belos poemas, que eu tenho lido, sobre a a Guiné e a guerra colonial, der ressonância bíblica:  "Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém (Gadamael Porto, Guiné, 1973)" (*).

Destaque igualmente para o seu livro de poemas, mais recente,  "Corre-me um Rio no Peito" [ed. de autor, 2010, Mondim de Basto, 72 pp. ], que merece uma leitura, pausada e saboreada,  à beira do rio Tâmega, em Momdim de Basto, ou em Amarante ou em Canavezes... Tem um outro mais antigo,  Basto (poemas). [Mondim de Basto], edição de autor, 1995, 49 pp.], de que já reproduzimos alguns excertos (**).

Faltava-me, entretanto, conhecer o "Ginho", em carne e osso, ou seja, ao vivo e a cores... Por sorte, e quase por acaso, proporcionou-se, ontem, quinta feira, dia 29, esse tão desejado encontro... Estando eu na Tabanca de Candoz,  a 60 km de distância, fomos dar um dos nossos passeios de um dia a terras de Basto, eu, a Alice e os meus cunhados e sócios da Quinta de Candoz.  Sen programa rígido, a ideia era dar um passeio pela parte antiga de Mondim de Basto, almoçar por ali e visitar as Fisgas de Ermelo... Por razões de saúde, não nos convinha fazer grandes caminhadas...

Lá localizei o "Ginho" (ou melhor, foi ele que deu conta da minha presença nas terras de Basto de que ele é o "príncipe")...Ora não se entra impunemente aqui... Porquê ?... Porque, apesar do "túnel", o nosso "príncipe" avisa,  em tom intimista: “Para cá do Marão mandam cá os que cá estão,/ Que até aqui Basto eu!” (Luís Jales Oliveira, In Basto (poemas), 1995, p. 15).

Embora ele me tratasse, principescamente, como "comandante", eu tive que baixar a bolinha... E,  à despedida,  lá bebemos um "Lourinhã ( a "Casa do Lago" tem uma fantástica garrafeira!...e o dono é confrade da Alice, ou seja, irmão da Colegiada de Nossa Senhora da Anunciação da Lourinhã).

Bebemos um "Lourinhã" à vida, à saúde, à camaradagem à Guiné, a Mondim de Basto, a Candoz, à Lourinhã... E com a promessa de voltarmos, se possível na Noite de Romeiros de Santiago, em 24 de julho, hoje  o principal cartaz das Festas do Concelho de Mondim de Basto. O "Ginho" muito contribuir, enquanto antigo assessor cultural da presidência da câmara municipal, para a reabilitação e dinamização desta tradição ancestral. (***)


Mondim de Basto > Restaurante Esplanada Casa do Lago > 29 de agosto de 2019 >  Luís Jales de Oliveira, o representante da Tabanca Grande em terras de Basto...


Mondim de Basto > Restaurante Esplanda Casa do Lago > 29 de agosto de 2019 > A Alice e o Luís Jales Oliveira, carinhosamente tratado por toda a gente como "Ginho".


Mondim de Basto > 29 de agosto de 2019 > Junto ao monumento aos combatentes do ultramar >  Da esquerda para a direita, Nitas, Luís Graça, "Ginho" [Luís Jales de Oliveira] e Alice



Mondim de Basto > 29 de agosto de 2019 > Junto ao monumento aos combatentes do ultramar >  Da esquerda para a direita, Nitas, Guisto, "Ginho" [Luís Jales de Oliveira] e Alice

Fotos (e legendas): © Luís Graça  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P20109: Notas de leitura (1213): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (21) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Conheci finalmente o bardo, fomos almoçar borrego e bebemos uma boa pinga, bom pão molhado em azeite e azeitonas saborosíssimas. Já nos tratamos pelo nome próprio, trocamos presentes, os dele necessariamente mais valiosos, são fotografias, imagens de jornais de caserna. Pedi-lhe encarecidamente que notificasse os camaradas do BCAV 490 do que aqui se passa, congeminei este tipo de divulgação da sua "Missão Cumprida" para pormos a nossa sala de conversa a funcionar em pleno, gente de todas as comissões a contar histórias parecidas, prevalecendo, claro está, os testemunhos que vierem do BCAV 490. O bardo e eu agradecemos que haja muitas interferências, comentários e adição de todos os materiais da época. Valeu?

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (21)

Beja Santos

“António Roque fugiu
ao fazer a retirada.
Na mata de Uncomené,
esta coisa amargurada.

A 487 em Caiar
ia tudo patrulhando,
algum gado apanhando
para fome não passar.
Neste sítio não houve azar
mas mais tarde surgiu.
Para a mata se partiu,
havendo muitas aflições
e, acabando as munições,
António Roque fugiu.

Morreu um cabo e um soldado
da 1.º Companhia
quando o 2.º pelotão seguia
para dentro do mato cerrado.
Passou-se um mau bocado
havendo muita rajada.
O Fitas, bom camarada,
a muito se aventurou
e um tiro na barriga levou,
ao fazer a retirada.

O comandante do Pelotão
era o sr. Alferes Menezes.
Ele recomendou muitas vezes
para não perderem reação.
Apesar de muita aflição
lutaram sempre com fé.
O amigo Henrique José
é que passou muita dor:
morreu ele e o condutor
na mata de Uncomené.

O Comandante do Batalhão
neste ataque ficou ciente:
foi talvez o mais valente
de toda a operação.
Quiseram apanhar à mão
a nossa rapaziada,
jogaram muita catanada
ao chegarem à nossa beira,
pois não esquece pela vida inteira
esta coisa amargurada.”

********************

É dever aqui ajuntar memórias de outros que andaram pela batalha do Como. Há tudo a ganhar em ler o testemunho de António Rebelo Heliodoro, fez parte do DFE8, comandado por Alpoim Calvão. Tem um antes e um depois do Como, é leitura tão emocionante que aqui se cita algum do antes e depois, conforme aparece na obra "Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial", de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011:

“Fomos recebidos em Bissau por uma banda de música. Depois de deixarmos as coisas no destacamento, andámos a ver a cidade. Eram os primeiros dias de novembro de 1963. Mas não tivemos muito tempo para passear: deram-nos logo a missão de libertar a aldeia de Darsalame, que tinha sido tomado pelos ‘turras’. Era para ser uma operação de três dias. Durou oito. Passámos o rio Geba, entrámos no Corubal e chegámos a terra nas Lanchas de Desembarque Médio (LDM). Foi a primeira vez que entrei em ação. A tensão era enorme porque não sabíamos o que ia acontecer. Nunca nos explicaram o que era a guerra. Nem no curso de Fuzileiros Especiais.

O destacamento tinha 78 homens e éramos liderados pelo Comandante Alpoim Calvão. Desembarcámos num palmeiral, sofremos logo uma emboscada. A noite estava a aproximar-se quando caímos noutra emboscada, numa passagem que dava acesso à tabanca. Estava tudo destruído e não havia população. O Alpoim Calvão foi o primeiro a ser atingido por um tiro que lhe furou o camuflado e acertou de raspão nas costas. Eu é que o levantei. Combatemos. Mais à frente um rapaz foi ferido na cabeça e levado para a lancha.

Conseguimos entrar na tabanca e içámos a Bandeira Portuguesa. Depois passámos lá a noite, encostados às bananeiras a aguentar o cacimbo. Ao todo, estivemos lá oito dias e o inimigo acabou por se afastar. Recebemos ordens para regressar a Bissau. Foi um batismo a sério.

No início de 1964 fomos chamados para a Operação Tridente. Alguns destacamentos tinham a missão de tomar as ilhas de Caiar e de Catunco. A nossa era o centro do Como. Fomos acompanhados pelo Batalhão de Cavalaria 490, por uma companhia de Para-quedistas e outra de Comandos. Desembarcámos de madrugada. Estávamos a contar com uma grande receção, mas não aconteceu nada. Chegámos ao centro da ilha e içámos a bandeira. Mas na segunda noite começámos a levar porrada. Na manhã do terceiro dia o Comandante Calvão foi ao mato com duas secções. Estivemos 2 horas e 45 a combater o inimigo. Contámos uns 100 homens que nos atacaram com o fogo cruzado. Saímos da tabanca de S. Nicolau com duas baixas. Foram os primeiros fuzileiros mortos em combate. Não sabemos se lhes provocámos baixas.

Numa altura em que o Comandante Calvão foi à fragata Nuno Tristão receber ordens, começámos a ser bombardeados. Estivemos ali duas semanas naquele impasse. Não havia comida e ao fim de oito dias tivemos de ir cortar carne do gado que tinha sido abatido quando lá chegámos. O fundo dos cantis trazia um pequeno tacho onde fazíamos uma sopa em pouco tempo. Bebíamos a água das poças onde andavam os porcos. Era só meter um comprimido lá para dentro para a desinfetar. Algumas semanas depois foi montada uma base logística numa praia. Estava lá uma Companhia de Comando e Serviços a fazer comida e havia tendas de medicina. Ficávamos lá dois dias a descansar e depois voltávamos ao mato. Sempre por charcos e pela selva. Nunca pela estrada. À noite o Destroyer ia lá bombardear.

Andávamos por ali quando uma das companhias foi atacada e perdeu-se no mato. O oficial deles foi pedir ao Comandante Calvão que os fosse buscar. E nós fomos. Percorremos a mata toda e conseguimos reunir os homens, que tinham fugido cada um para o seu lado. Só ficaram lá dois que tinham sido mortos e armadilhados. Quando os puxámos, por acaso, a cavilha da granada ficou presa na terra e não rebentou. Foi um dia de glória. Por causa disso o meu Destacamento foi condecorado com uma Cruz de Guerra.

Depois voltámos aos combates. Lutei debaixo das bombas de napalm que eram lançadas por aviões que vinham do Sal para queimar a mata. Nós estávamos entrincheirados lá em baixo e sentíamos as pernadas das árvores a cair. Estremecia tudo. Foi dramático. Cheguei a pedir a Nossa Senhora de Fátima para aquilo passar. Quando contei isto, chamaram-me mentiroso. Mas eu digo aquilo que vi e por que passei. Nunca me vou esquecer disso, enquanto for vivo. Foram 72 dias e 72 noites.

Regressámos a Bissau com os mortos, fizeram-se os funerais e passado um tempo estava noutra operação na mata de Cacine. Nos dois anos em que estive na Guiné participei em 109 ações de fogo. Foram horas e horas de patrulhamento. Até que em julho de 1964 fomos acompanhar o batismo do Destacamento de Fuzileiros Especiais 10 na Operação Túlipa. Tratámos de tudo em três dias e quando nos preparávamos para regressar, ficámos sobre fogo inimigo. Um avião nosso sobrevoou a tabanca onde estávamos e começou a descarregar bombas em cima de nós. Nesse dia 17 sofremos 4 mortos e 42 feridos. Eu fui um deles. Fiquei com estilhaços nos braços, nas pernas e na cabeça – além dos problemas nos ouvidos. O sangue escorria-me. Fui evacuado para Cacine e no outro dia fui levado para Bissau. Assim que fiquei melhor regressei ao ativo. Eram precisos homens. Dos 74 operacionais iniciais ficámos com 18.”

(continua)

Imagens cedidas pelo Santos Andrade, fotografias tiradas na Ilha do Como e em Bissau, 1963-1964


Imagens das duas primeiras páginas do n.º 3, do boletim Sempre em Frente, do BCAV 490, 8 de Agosto de 1965.
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Notas do editor

Poste anterior de 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20108: Vemos, ouvimos e lemos..., e não podemos ignorar (1): Carta aberta ao presidente da república do Senegal: os dramáticos efeitos das barragens senegalesas de Niandouba e de Anambé, construídas na bacia do rio Kayanga / Xaianga / Geba, que vêm privando a Guiné-Bissau de valiosos recursos hídricos desde 1984 (Umaro Djau)



Fotograma do vídeo Rio Kayanga / Geba (apresentação em crioulo, por Umaro Djau) (13' 48'')






Capa da página Rio Geba, criada por Umaro Djau com o objetivo de divulgar, assinar e partilhar a carta aberta ao presidente do Senegal





I. Do cidadão guineense Umaro Djau, nascido em Pirada, jornalista,  ativista social, recebemos a seguinte mensagem; 

Assunto: Carta Aberta ao Presidente da República do Senegal, Macky Sall

Sirvo-nos da presente nota para vos informar sobre uma Carta Aberta que dirigi à Sua Excelência, o Presidente da República do Senegal, Sr. Macky Sall.

A referida carta aberta debruça-se sobre os efeitos das barragens senegalesas de Niandouba e de Anambé que vêm privando a Guiné-Bissau de valiosos recursos hídricos desde 1984.

A carta aberta foi traduzida para duas outras línguas internacionais, nomeadamente o inglês e o Francês (em anexo).

Sem mais assuntos no momento, subscrevo-me com a mais elevada estima e consideração.

Umaro Djau, MA.
Strategic Communications Specialist | Journalist & Producer | Political Analyst & Commentator
Skype: umaro.djau

Mobile: +1-404-723-7225 (USA) | +245-96-520-5911 (Guinea-Bissau)
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/umarodjau/



II. Carta Aberta ao Presidente da República do Senegal, Macky Sall, por Umaro Djau

Agosto de 2019

A Sua Excelência
O Presidente da República do Senegal
Macky Sall

Senhor Presidente,

Chamo-me Umaro Djau e sou natural da Guiné-Bissau. Começo parabenizando-lhe, do fundo do meu coração, pela sua releição para um segundo mandato, no escrutínio de Fevereiro passado.

Estou a escrever-lhe para partilhar as minhas preocupações sobre os efeitos das barragens de Niandouba (de regulação) e de Anambé (de confluência), construídas na bacia hidrográfica do
Kayanga/Geba, da qual, a maior parte (65%) está localizada na Guiné-Bissau. De facto, o Geba, a parte jusante dessa mesma bacia, é o maior rio da Guiné-Bissau.

As barragens citadas, particularmente a de Anambé, localizada entre as áreas de Kolda e Velingara – apenas 20 quilômetros da fronteira com a Guiné-Bissau - vêm privando o meu país de valiosos recursos hídricos desde 1984, aquando da sua construção na confluência entre os rios Anambé e Kayanga. Reconhece-se, no entanto, a diminuição da pluviosidade na região, nos últimos anos, como sendo um dos factores adicionais na redução dos caudais do leito principal da bacia e dos seus afluentes.

Nenhum outro lugar mostra as consequências dessas ações (no lado guineense) mais do que os rios Bidigor, Campossa e Gambiel, todos tributários/afluentes do rio Geba/Kayanga. Assim que a estação seca começa (em Novembro), esses rios secam muito rapidamente, devido a uma diminuição drástica do caudal de água da parte montante do rio, no território senegalês. Esse fraco e debilitante fluxo de água está a afetar de forma grave e diretamente mais de meio milhão de pessoas nas regiões rurais de Gabú, Bafatá e Oio, de acordo com dados divulgados em 2009.

Hoje, um número superior de pessoas estará a ser afetado. Com base em dados disponíveis (e situações visíveis), permita-me, Senhor Presidente, citar algumas das consequências das barragens construídas no seu território:

• Alterações hidrológicas profundas na parte jusante do rio Kayanga/Geba, com a diminuição dos níveis de água na Guiné-Bissau;

• Morte lenta dos afluentes do Kayanga/Geba: Bidigor, Campossa e Gambiel;

• Escassez dramática de água que é a fonte da vida e responsável pela sobrevivência da humanidade e dos ecossistemas;

• Um impacto negativo nas atividades das populações, incluindo a interrupção da agricultura, pecuária (animais de pasto, especialmente gado) e caça;

• Degradação ambiental em geral devido a uma redução drástica da flora (perda de biodiversidade na vegetação) e fauna aquática e terrestre;

• Empobrecimento do solo, a deterioração das margens dos rios e o aumento da salinização, especialmente nas áreas costeiras da Guiné-Bissau;

• Aumento da profundidade de captação nos poços artesianos de águas subterrâneas devido ao abaixamento do nível estático dos lençóis freáticos;

• Efeitos sociais irreparáveis com a deslocação indiscriminada dos guineenses em busca de outros locais e regiões com cursos de água mais acessíveis, ou seja, a incrementação da transumância.

Sr. Presidente, é compreensível o facto do Senegal não querer desperdiçar os valiosos recursos
hídricos que atravessam o seu território (a montante) e que eventualmente não estariam a ser utilizados pela Guiné-Bissau (a jusante). Também estou informalmente ciente de que, através da
SODAGRI (Sociedade para o Desenvolvimento Agrícola e Industrial no Senegal), o seu país teria eventualmente entrado em contato com as autoridades da Guiné-Bissau nos anos 1970/80 para mantê-las a par do que pretendia fazer, ou seja, os estudos iniciais e as diferentes fases de implementação dos projectos das referidas barragens.

Sem o pleno conhecimento dos factos que cercam esse período e as respectivas concertações, a
fraqueza institucional da Guiné-Bissau é, todavia, bem documentada e conhecida entre os seus
parceiros regionais, nomeadamente as frequentes crises domésticas, a falta de recursos financeiros, a limitação no tocante ao conhecimento especializado, assim como a falta da capacidade técnica, sobretudo na primeira década após a sua independência. Todos esses obstáculos contribuíram certamente (e muito) para um comportamento pouco ou não responsivo por parte do Estado guineense.

Independentemente do que possa ter acontecido naquela época, compreendo a necessidade do Senegal de sustentar as necessidades agrícolas da sua população do sul, através da agricultura
irrigada , nomeadamente o cultivo do arroz, a prática da horticultura e a conservação da água. Assim, as barragens foram construídas e têm beneficiado grandemente o seu país, o Senegal, através de projetos nacionais ambiciosos destinados a reforçar os meios de subsistência do seu povo (a produção de energia elétrica, a captação e a acumulação de água para a agricultura, a pesca, a piscicultura, a horticultura, a pecuária, etc.).

Devo confessar que, da última vez que passei pelas áreas de Tabendo e Kounkane, fiquei encantado com a sua paisagem. A ponte de Kounkane e os seus arredores estão repletos de água proveniente do reservatório de Waima que já mudou todo o ecossistema local, criando oportunidades económicas substanciais nessas áreas. Waima e outros dois reservatórios (Niandouba e Confluência Anambé) são tidos como depósitos essenciais de todas as águas da bacia, estimadas em mais de 130 milhões de metros cúbicos.

Sr. Presidente, a bacia hidrográfica Kayanga/Geba é um curso de água transfronteiriço que nasce nas montanhas de Fouta Djalon, perto da aldeia de Labé, na República da Guiné-Conacri. Este curso natural de água atravessa o território do Senegal, antes de se desembocar na vila de Xime (perto de Bambadinca, na Guiné-Bissau), onde Kayanga/Geba se cruza com o rio Koliba/Corubal.

Durante séculos, os nossos ancestrais comuns - das terras altas de Fouta Djalon (Guiné-Conacri) ao sul do Senegal e até à Guiné-Bissau - compartilharam e desfrutaram pacificamente desses recursos cruciais hídricos fornecidos por este rio de cerca de 550 quilômetros em extensão.

O mesmo senso comum, as mesmas relações e os mesmos princípios ancestrais não regulamentados levaram à coexistência pacífica entre os nossos povos, superando todos os obstáculos de comunicação, nas eras de impérios e doutras chefias que reinaram por muitos séculos, em toda a nossa Costa Ocidental da África.

Para preservar ainda mais o compromisso ancestral entre países - agora na era da regulamentação
e de interesses nacionais – a Organização para a Valorização do Rio Gâmbia (OMVG) nasceu em
1978 com os objetivos de promover e coordenar ações conjuntas, por forma a garantir o uso racional e durável dos recursos dessa importante Bacia Hidrgráfica, com realce para os domínios de conservação e de desenvolvimento, realçando especificamente os componentes de “estudos, planeamento e infraestrutura, agricultura e ambiente, bem como outras tarefas de desenvolvimento dos recursos dos rios Gâmbia, Kayanga-Geba e Koliba-Corubal nos territórios dos estados membros”,  nomeadamente a Gâmbia, o Senegal, a Guiné-Conacri e a Guiné-Bissau, tendo este último se juntado ao grupo em 1983.

É importante salientar que o Rio Kayanga/Geba já ganhou um estatuto internacional e todas as suas obrigações legais estão em vigor e sob à gestão da OMVG, sublinhando, neste particular, a existência de uma Convenção para a gestão desta Bacia já aprovada no Conselho de Ministros da organização, faltando apenas a sua promulgação pelos Chefes de Estado.

Sr. Presidente, embora eu lhe esteja a lembrar detalhadamente sobre alguns princípios legais baseados em convenções, acordos, e declarações internacionais e regionais, deixe-me também afirmar que não sou um advogado e nem estou a tentar produzir um argumento legal contra o seu país nas suas decisões soberanas. Mas, permita-me informar-lhe que hoje, os nossos dois países podem confiar em várias diretrizes e estruturas institucionais nacionais, regionais e internacionais que podem servir de guia para a produção de melhores e mais adaptadas medidas e políticas no tocante às águas transfronteiriças, a saber:

1. Declaração de Madrid sobre o Regulamento Internacional relativa à Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (1911) adverte contra alterações unilaterais dos fluxos de rios e lagos - contíguos ou sucessivos - sem o consentimento de um Estado co-ribeirinho. Essa Declaração recomenda a criação de comissões conjuntas de água.

2. A Declaração de Montevidéu (1933) argumenta que nenhum estado pode, sem o consentimento do outro Estado ribeirinho, introduzir em cursos de água de caráter internacional quaisquer alterações que possam ser prejudiciais aos outros Estados interessados, mesmo para os efeitos da exploração industrial ou agrícola (artigo 2).

3. As Regras de Helsínquia (1966) recomendam o equilíbrio entre as necessidades variantes (económicas e sociais) e as demandas das nações fronteiriças, aplicando o princípio de “uma parcela razoável e equitativa” nos usos benéficos das águas de uma bacia de drenagem internacional, excepto onde existem outros acordos (Capítulo 2, Artigo 4, 5), sem causar danos substanciais a um estado de co-bacia.

4. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos Não Navegacionais dos Cursos de Água Internacionais - adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1997 e que entrou em vigor em 17 de Agosto de 2014 - defende os princípios fundamentais de “utilização equitativa e razoável” e a “obrigação de não causar danos significativos”. Esta Convenção foi ratificada pela Guiné-Bissau desde o ano de 2010.

Como podemos concluir, muitas dessas regras, declarações e convenções recomendam uma forma “razoável e equitativa” de usar as águas transfronteiriças e obrigam as partes a evitar a alteração dos fluxos naturais dos cursos de água, cujas ações podem levar a “danos significativos” num dos países.

Apesar de toda a minha explicação, factos e argumentos até aqui apresentados, o objetivo desta carta não é culpar o Senegal por ter optado pelas políticas que considera corretas para o seu povo, mas sim fazer com que a Sua Excelência esteja consciente sobre os efeitos dramáticos dessas medidas (as barragens de Niandouba e Anambé) sobre o povo da Guiné-Bissau.

Sr. Presidente, nasci em Pirada, uma pequena vila perto da fronteira entre a Guiné-Bissau e o Senegal. Na verdade, quando era criança, o meu pai ocasionalmente me levava para as localidades vizinhas de Nianao e Wassadou, para o mercado semanal, conhecido por "Lumos". Durante a minha infância, confesso que não via muita diferença entre os dois lados da fronteira, devido à minha inocência da criança. De facto, as proximidades e as semelhanças geográficas, sociais, étnicas e culturais fazem com que as localidades fronteiriças do Senegal e da Guiné-Bissau sejam difíceis de diferenciar e dividir.

E ainda durante essa época - no final dos anos 1970 e início dos anos 80 - pequenos agricultores
e pastores de gado na região de Gabú costumavam contar com as dádivas do rio e dos riachos que desciam da fronteira norte pelo país adentro. Os campos de arroz, ou seja as “bolanhas”, permaneciam verdes o ano inteiro, cheios de vida e de esperança. A abundância em água satisfazia quase todas as necessidades, de homens e animais.

Infelizmente, os corredores da água e outras reservas hidrográficas já se evaporaram há muito tempo devido, em parte, às barragens construídas no Senegal. Estou, todavia, ciente doutras condições climáticas e humanas que têm tido impactos negativos em toda a região do Sahel, mas todas as áreas transfronteiriças da Guiné-Bissau estariam significativamente melhores em termos hidrográficos, se o seu país gentilmente mantivesse a circulação regular da água doce de montante para a parte jusante, através do Rio Kayanga/Geba.

Sr. Presidente,

Como a Sua Excelência deve saber, grande parte do mundo depende da água dos rios que percorre de uma nação para outra. Por exemplo, o vital recurso hídrico do Senegal, o rio com o mesmo nome, nasce das maravilhas de Semefe e Bafing (na Guiné-Conacri e no Mali, respectivamente) com as bênçãos dos rios Faleme (também da Guiné-Conacri) e do Gorgol (Mauritânia). Seria desconcertante para o seu país se as necessidades humanas nesses três países os obrigasse a mudar os cursos daqueles fluxos naturais de água, assim como os seus padrões geológicos. Do mesmo modo, o próprio Rio Gâmbia,  o fulcro do projecto OMVG, nasce nas montanhas de Fouta Djalon, percorrendo uns 1.200 quilómetros de distância.

No mundo de hoje, equilibrar as necessidades económicas e humanas é um dos grandes desafios
- seja na África ou noutros lugares. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO), existem mais de 3.600 tratados relacionados com os recursos hídricos
internacionais e que incluem os aspectos da navegação, da demarcação de fronteiras, do uso, do
desenvolvimento, da proteção e conservação de recursos naturais.

Outros dados indicam que também existem mais de 260 bacias hidrográficas (entre rios e lagos)
transfronteiriças no mundo e elas cobrem quase a metade da superfície terrestre. Em quase todas as circunstâncias, os países a montante têm o dever moral e ético de partilhar os recursos hídricos
com os seus vizinhos a jusante. De facto, há muitos exemplos interessantes, encorajadores e inspiradores dessas práticas em todo o mundo. Aqui passo a transcrever alguns deles:

• Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã têm compartilhado o Rio Mekong desde 1957, mesmo durante a Guerra do Vietnã;

• Israel e a Jordânia têm compartilhado o Rio Jordão desde 1955, mesmo sob constantes ameaças de conflito regional;

• Índia e o Paquistão têm compartilhado o Rio Indo, apesar das duas guerras entre os dois países;

• Mais de 160 milhões de pessoas de pelo menos 10 países africanos têm compartilhado o Rio Nilo, assim como outras cinco bacias - Congo, Níger, Nilo, Zambeze, etc.;

• Rio Danúbio ainda serve mais de 10 nações da Europa Central e Oriental;

• Rio Colorado é uma fonte vital de água para mais de 40 milhões de pessoas, tanto nos Estados Unidos como no México.

Sr. Presidente,

Reconheço ser difícil conseguir um consenso global sobre os problemas da água no mundo, mas gostaria de lhe pedir respeitosamente que considere as seguintes observações e recomendações de muitos especialistas da Guiné-Bissau e internacionais com os quais abordei as minhas preocupações:

• O Senegal deve estabelecer uma regra do jogo justa em relação ao nosso curso de água comum, o que levaria à partilha dos seus benefícios para um desenvolvimento sustentável em ambos os países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem capacitar a sua Comissão Conjunta de Gestão de Recursos Hídricos, através da Comissão Hidrológica, para se reunir periodicamente para avaliar o comportamento da bacia Kayanga/Geba, bem como para testemunhar as descargas e represas periódicas das águas para garantir o seu fluxo apropriado de um lado para o outro, o que não acontece desde o ano 1998. As tais descargas regulares e suficientes da parte superior da bacia podem permitir a recuperação de alguns afluentes, bem como recarregar as águas subterrâneas, fontes de abastecimento de água para a população local nos dois países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem envidar esforços para mitigar os impactos negativos mencionados anteriormente, através de atividades de reflorestamento, recuperação de terras e formação pública sobre questões ambientais;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem reconhecer que revisões periódicas são necessárias para sustentar o curso de água, protegendo assim os ecossistemas e atendendo às necessidades humanas e um equilíbrio justo entre os dois países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem rever todas as disposições existentes sobre o monitoramento, a avaliação, a execução, a pesquisa e o desenvolvimento, o intercâmbio e o acesso à informação para uma partilha mais equitativa e adequada do rio Kayanga/Geba e as suas bacias;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem conduzir mais consultas para encontrar um quadro aceitável no âmbito da OMVG ou bilateralmente para implementar mecanismos que levem à cooperação através da celebração de acordos específicos e/ou criação doutros órgãos conjuntos.

Sr. Presidente,

Já deve estar claro para a Sua Excelência de que acredito piamente em princípios como a “partilha justa” de recursos. Nesse sentido, estou particularmente atraído por uma iniciativa específica da ONU conhecida como "Águas Compartilhadas, Oportunidades Compartilhadas". Esta iniciativa defende a ideia de que “fomentar as oportunidades de cooperação na gestão transfronteiriça da água pode ajudar a construir o respeito mútuo, a compreensão e a confiança entre países e promover a paz, segurança e o crescimento económico sustentável”.

De facto, o respeito mútuo, a compreensão e a confiança podem e servir-nos-ão bem, pois o Senegal e a Guiné-Bissau têm certamente procurado assegurar e construir um futuro melhor para os seus cidadãos que estão ansiosos em permanecer bons e indivisíveis vizinhos hoje e nos séculos vindouros.

Assim, compartilhar amigavelmente os recursos que nos foram dados pelo poder divino seria o
primeiro passo em direção a esse objetivo. Na verdade, a promoção do uso equitativo desses recursos hídricos comuns ajudaria a sustentar o nosso clima regional, combater a pobreza e estimular o desenvolvimento económico em ambos os países.

Sr. Presidente, estou esperançoso de que possa haver um futuro para o Rio Geba se o seu país, o
Senegal, puder gentilmente e regularmente ter em mente que doutro lado da sua fronteira, há um
vizinho que está igualmente carenciado e sedento pelo curso de água do Kayanga. Seria desnecessário lhe reiterar que este recurso hídrico transfronteiriço é também a nossa herança
comum que devemos todos valorizar, compartilhar, cuidar e preservar.

Sr. Presidente,

Reconhecendo que as barragens aqui mencionadas alteraram dramática e negativamente os modos de vida da população na Guiné-Bissau, é necessária uma forte vontade política para forjar uma compreensão mútua e cooperação entre o Senegal e a Guiné-Bissau, no quadro propício da OMVG, em prol de uma partilha consistente e fidedigna de benefícios num futuro próximo.

Sr. Presidente,

Embora eu não represente o Governo da Guiné-Bissau, gostaria de ter a oportunidade de me encontrar com a Sua Excelência para discutir esta questão vital. Mais importante ainda, encorajaria a Sua Excelência para se aproximar das autoridades da Guiné-Bissau para discutir as medidas urgentes que são necessárias para começar a abordar as questões e as preocupações expostas nesta carta aberta, podendo posteriormente com as autoridades que envolvem os dois estados, mandatar os peritos especializados em matéria de hidrologia, meio ambiente e desenvolvimento durável, a elaboração de uma proposta técnica concreta e viável, que poderia servir de roteiro para a atenuação da situação vigente.

Sr. Presidente,

Hoje, pela importância e valor dos recursos hídricos na luta contra a pobreza e como uma garantia de
tranquilidade e paz social no mundo, é aconselhável institucionalizar a hidrodiplomacia e a
hidrossegurança, como abordagens apropriadas para resolver a escassez de água e conflitos hídricos,
através da cooperação, gestão e desenvolvimento sustentável, como recomendado pelas muitas iniciativas globais e regionais, nomeadamente o Fórum Mundial da Água de Brasília, Brasil (Março de 2017).

E, por outro lado, se a Sua Excelência também achar necessário, por favor, não hesite em entrar
em contato comigo pelo telefone +1-404-723-7225 ou através do meu e-mail pessoal:
umarodjau@gmail.com.

Obrigado, Sr. Presidente, por ter reservado este valioso tempo para ler esta carta aberta que destaca uma questão de extrema importância para as populações da Guiné-Bissau, na medida em que tentam lidar com os dramáticos efeitos das barragens de Niandouba e Anambé no Rio Kayanga/Geba, ações que acabaram por influenciar negativamente os afluentes Bidigor, Campossa e Gambiel.

Que Allah/Deus lhe proteja e lhe dê forças e coragem para continuar a servir não só o Senegal, mas também toda a humanidade, a começar pela própria sub-região.

Sinceramente,
Umaro Djau

Um obrigado especial para as seguintes individualidades:
Eng. Inussa Baldé e Eng. Justino Vieira

Com o conhecimento das seguintes instituições e dignitários:
Presidente da República da Guiné-Bissau, José Mário Vaz
Presidente da Assembleia Nacional Popular, Cipriano Cassamá
Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, Aristides Gomes
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, Suzi Barbosa
Ministro dos Recursos Naturais e Energia, Issufo Baldé
Bancada Parlamentar do PAIGC na ANP
Bancada Parlamentar do MADEM G-15 na ANP
Bancada Parlamentar do PRS na ANP
Bancada Parlamentar da APU-PDGB na ANP
Partido União para a Mudança, UM
Partido da Nova Democracia, PND
Embaixada da República do Senegal na Guiné-Bissau
Embaixada da Guiné-Bissau no Senegal
Secretário-geral das Nações Unidas
Assembleia Geral das Nações Unidas
Missão Permanente

III.  Nota do editor:

Declaração de interesses:

(i) parafraseando a nossa grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, há realidadades que "não podemos ignorar", sobretudo depois de  "vermos, ouvirmos e lermos"... 

(ii) esta carta aberta do guineense Umaro Djau, filho do Gabú, e de que certamente por lapso não foi dado conhecimento ao Governo Português, à CPLP e à União Europeia, merece o devido destaque no nosso blogue, até por todas as razões e mais uma, de natureza afetiva: muitos de nós conhecemos o leste da Guiné-Bissau, as regiões de Bafatá e de Gabú, antes e depois da independência, e  o passado, o presente e o futuro dos nossos amigos da Guiné-Bissau não nos são indiferentes: de resto, só há uma terra, uma casa comum da humanidade, e a hidrossegurança é um requisito fundamental para a paz e o desenvolvimento;

(iii) o rio Geba (ou Xaianga, segundo a preciosa cartografia militar portuguesa) também é meu, também é nosso; temos cerca de 90 referências no nosso blogue a este rio que tanto amámos e odiámos durante a guerra colonial (1961/74);

(iv) o documento parece-nos bem elaborado, do ponto de vista técnico, e escrito em bom português, tendo tido a colaboração de especialistas guineenses em recursos hídricos  e geologia, como o engº Inussa Baldé, quadro superior do Ministério de Recursos Naturais, engº Justino Vieira, antigo secretário-geral da Organização para a Valorização do Rio Gâmbia (OMVG), ou Orlando Cristiniano da Silva, geólogo guineense com residência no Brasil:

(v) não discutimos aqui questões como a oportunidade da sua divulgação que alguns  vão querer associar ao recente lançamento, na Guiné-Bissau,  de um novo partido, o Movimento Guineense para o Desenvolvimento (MGD), fundado e liderado por Umaro Djau;  julgamos que esta causa é transversal, e deve mobilizar todos os guineenses e todos os seus amigos e os seus vizinhos;

(vi) depois de ler este notável documento, eu não posso assobiar para o lado e dizer que, de acordo com as nossas regras editoriais, o nosso blogue não se pode imiscuir nos assuntos de Estado e na atualidade política e social;

(vii) Umaro Djau é um conhecido jornalista, que se formou, viveu e trabalhou  nos Estados Unidos;

(viii)  o editor do blogue não conhece o Umaro Djau, tendo no entanto recebido deste,  em 13 de fevereiro de 2007,  no seu endereço pessoal, a seguinte mensagem:  (,,,)" Chamo-me Umaro Djau e fiquei deveras surpreendido com o seu maravilhoso blog. Sou guineense e Jornalista. Resido nos EUA há mais de 11 anos. Trabalho para a cadeia da TV mundial, CNN. Gostaria de poder corresponder consigo".

(ix) o nosso coeditor Carlos Vinhal convidou-o, em 2008,  para integrar a Tabanca Grande, convite que não teve resposta até hoje (*).

(x) apoio a petição mas não consigo assinar, devido a erro informático... LG
__________

Nota do editor

Guiné 61/74 - P20107: Lições de artilharia para os infantes (7): Tal como o Strela reduziu a liberdade do nosso movimento aéreo, o radar de localização de armas (vulgo contra-morteiro) teria congelado a artilharia do PAIGC... (Morais da Silva / António J. Pereira da Costa / Luís Graça / Manuel Luís Lomba)


Peça de artilharia 130 mm M-46, de fabrico soviético (ano de introdução: 1954). Este tipo de armamento foi usado pelo PAIGC contra Guileje em maio de 1973, a partir do território da Guiné-Conacri. O seu alcance (máximo) é de 22,5 km.

Fonte: Wikipedia (em finlandês) (2007) (com a devida vénia...)



1. Teceram-se, aqui no blogue, recentemente,  uma série de comentários, interessantes, sobre a artilharia na Guiné, na sequência da publicação uma comunicação, já antiga (2013), mas inédita, do comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva (*). Esse documento chegou-nos pela mão de Coutinho e Lima.

Seria uma pena "perder" esses comentários, deixando-no no limbo da caixa de comentários... O poste que se segue, é uma seleção desses comentários,  e insere-se na série "Lições de artilharia para os infantes" (**)


Morais da Silva (***):


[...] A narrativa artilheira deste senhor [, Osvaldo Lopes da Silva,]  é uma salgalhada sem ponta por onde pegar. "Calcula" coordenadas geográficas de que locais? Das posições? Para quê se não as tem do objectivo pois procurou obter orientação azimutal via clarões das bocas de fogo de Guilege?!

 Ligou as posições com uma poligonal?! Como assim? Como define azimutes sem linha de vista? Como calcula distâncias? A passo, a corta-mato?! E como orienta a caminhada? Ou também calculou latitudes e longitudes? Apurou a posição relativa das bocas de fogo de Guilege! Para quê? Fazer de cada uma um objectivo?!

Enfim, basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante.
O que certamente aconteceu foi ajustar fogos com observação avançada consentida pelo "recolhimento" das NT. Assim aconteceu em Fevereiro de 71, em Gadamael, mas felizmente os intervenientes na observação e no cálculo eram analfabetos na direcção do tiro. Tomadas medidas de interdição nunca mais o conseguiram fazer passando a executar fogos escalonados em alcance (tiro rolante). 

Na Guiné, as artilharias das NT e do IN eram baratas tontas que actuavam por "intuição" a partir do som e do conhecimento do terreno (quem o conhecia a palmo). Muitas vezes pedi ao meu Cmdt-Chefe que me arranjasse um radar contra-morteiro e o problema da artilharia IN era assunto arrumado. Infelizmente nunca recebi o "presente".
[...]

Manuel Luis Lomba:


[...] O Coronel Coutinho e Lima continua activista em defesa da sua honra, por ter decidido - em desobediência, o que não será displicente - a retirada de Guileje. Como sei, por experiência própria, o que é a viver horas, dias, semanas e meses sob as ameaças em permanências das granadas vindas do céu pelas armas de tiro curvo, estou convencido e respeito a sua honestidade.

A retirada de Guileje é facto acontecimental, como a caixa de Pandora do colapso militar de Portugal na Guiné. E não me escuso ao reparo de que o Coronel Correia de Campos  procedeu em Guidaje exactamente ao contrário de Coutinho e Lima,  o que faz outras ilações...

O virtuoso "militante armado" do PAIGC,  dr. Osvaldo Lopes da Silva [OLS], patrono do aeroporto internacional do Sal, sempre falou com sobranceria, pelos seus talentos militares, ante o 'Nino' Vieira, os seus pares e ante a oficialidade portuguesa politicante correcta.

Não obstante o reconhecimento de "olho e ouvido" junto ao arame farpado dos alvos da sua poderosa e destruidora artilharia ter sido feito por cubano, ele foi tão derrotado em Guileje quanto o Manecas dos Santos em Guidaje. 

A infantaria do PAIGC não conquistou nem uma nem outra posição.  A Artilharia não ganha batalhas; todas as guerras são ganhas pela Infantaria - a arma mais viril de todos os exércitos (ainda não havia a "igualdade de género").

OLS diz que a transferência dos bombardeamentos de Guileje para Gadamael foi um erro (do seu par Pedro Pires), que deveria ser sobre Aldeia Formosa (Quebo). Pois, pois. Ele mandaria as bojardas lá de longe, mas o 'Nino' recusaria investir a sua infantaria a essa distância da fronteira.

Com a não ocupação de Guileje e o fracasso de Gadamael, o PAIGC trouxe à evidência a fragilidade concepcional táctico-estratégica da Spinolândia. Se o General Spínola, quando foi e fugiu de Gadamael no seu helicóptero, empurrado pelo Coronel Rafael Durão, tivesse pegado naquela briosa e valente malta e fosse reocupar Guileje - talvez a história e a situação da Guiné tivesse sido outra.

O texto de OLS é bem elaborado. Entre outras falácias, respigo esta: se o poderio do PAIGC e da sua artilharia era capaz de conquistar qualquer ponto da Guiné, por que é que a operação Amílcar Cabral incidiu apenas sobre guarnições fronteiriças ?  Onde estava a sua ocupação do terreno? [...]



Tabanca Grande Luís Graça:

[...] Parece que não é só o Euromilhões que cria "excêntricos", a guerra também. A guerra e a guerrilha e a contra-guerrilha, e muitas outras atividades humanas, da política ao desporto, da arte à cultura...

A "guerra da Guiné" foi fértil em mitos, de um lado e do outro... Limitando.me aos "operacionais", podíamos citar, de cor, o 'Nino' Vieira (comandante de região), o Osvaldo Lopes da Silva (artilharia), o Manecas Santos (Strela), do lado do PAIGC; Alpoim Calvão, Marcelino da Mata, sargento aviador Honório, do lado das NT... Sem esquecer, o "capitão-diabo", o Teixeira Pinto das "campanhas de pacificação" (1913-1915).

Não fui artilheiro, fui infante, mas gosto de ouvir as lições dos artilheiros para os infantes... Afinal, a guerra é uma arte e uma ciência... Ou é mais arte do que ciência ?

PS - Os académicos também têm culpa na criação de alguns destes mitos... Como vivem, uma boa parte deles, nas "redomas de vidro dos laboratórios sociais", desatam às vezes a falar do sexo dos anjos... Foi por isso que Bizâncio perdeu a guerra contra os otomanos. [...]




António J. Pereira da Costa
 [,de alcunha,  PK]:

António [Carlos Morais da Silva], venho só recordar-te que os radares contra-morteiro, que já existiam no nosso tempo e poderiam ser comprados no "mercado local", a dinheiro, claro, nunca estiveram nas perspectivas dos nossos bem-amados chefes, mentores, motores e garantes ideológicos.

Eles não acreditavam naquela traquineta que o Exército tinha deixado de usar, mas que os exércitos estrangeiros e fabricantes produziam. E a tua extinta DAA ia por essa ideia, lembras-te?

A compra de uma dessas traquinetas, como calculas, arrastar-se-ia no tempo entre subornos, consultas ao mercado e pareceres "técnicos". Daí que a necessidade imediata não seria satisfeita.  Além disso era necessário preparar pessoal para operar e isso, como sabes era cá um dificuldade que nem imaginas...

Por outro lado, a guerra tinha de ser barata e um radar contra-morteiro ou um referenciador pelo som ou pela luz (que também tinham existido) custava os olhos da cara ao erário público. Só o pessoal era (talvez) barato e podia ser rapidamente(?) substituído.

Por acaso, recentemente, descobri que desde os turnos de 1970/71 o pessoal tinha começado a ser artigo crítico, "mas isso são outras lendas, outros mitos e, seguramente outros caminhos da História".
 


Morais da Silva:

Caro PK: na EPA [, Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas,] lembro-me de ter visto o material que referes mas nunca operamos com ele. Apareceu por cá graças ao levantamento da divisão SHAPE. Nunca consegui saber porquê não se adquiriu o radar contra-morteiro que pedi, insistentemente, e que teria permitido congelar a ameaça da artilharia do PAIGC sobre as unidades de fronteira na Guiné. "Malhas que o Império tece".[...]



António J. Pereira da Costa: 


[...] Na EPA, até havia folhetos na Secção Técnica (lembras-te?) sobre esse aparelho... E não era só para ti. As companhias deveriam ter uma traquineta daquelas e devidamente melhorada. Mas não era necessário! 

Os Paigêcês  atacavam sempre da "bolanha do costume" os nossos quartéis instalados em localidades que vinham no mapa e estavam bem iluminadas, e a malta respondia com brevidade e na direcção devida. Se eles estavam inspirados era uma chatice: caiam todas lá dentro. Se tinham feito uma daquelas preparações topográficas que ouviste descrever,  ´távamos safos. O resto era com Jesus Cristo.

Já em 1968, Cameconde foi atacada com Mort 120 mm. Ninguém sabia o que era e todos perguntámos a todos donde vinha, até que houve uma que acertou primeiro numa árvore e explodiu quase à superfície do solo. Já se justificava, portanto,  a distribuição de um aparelho daqueles, só que...


Seria boa ideia termos algo que localizasse as "saídas", mas como não davam, era a olhómetro mão-travessa, como dizia o "Americano" dos motores...[...]

Morais da Silva:


[...] O que me continua a incomodar é não perceber como gente inteligente permitiu que a nossa artilharia na Guiné actuasse como uma "barata tonta".

Notar que o radar, que insistentemente pedi, não só detecta a origem da trajectória dos fogos IN como permite a observação electrónica e consequente ajustamento dos fogos amigos. 

Tal como o Strela reduziu a liberdade do nosso movimento aéreo,  o radar de localização de armas (vulgo contra-morteiro) teria congelado a artilharia do PAIGC.[...]

______________


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."



(***) Último poste da série > 10 de junho de  2012 > Guiné 63/74 - P10019: Lições de artilharia para os infantes (6): O obus 14 de Bedanda em tiro direto... (C. Martins / Rui Santos)

Vd postes anteriores:

17 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9915: Lições de artilharia para os infantes (5): Quando o oficial de dia fez um levantamento de rancho... (C. Martins, Cmdt do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

4 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9852: Lições de artilharia para os infantes (4): O que era uma bateria (ou bataria)... (C. Martins, Cmdt do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

16 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9496: Lições de artilharia para os infantes (3): Fazer a rotação, de 180º, do obus 14, para apoiar Jemberém (C. Martins, CMDT do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

15 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7791: Lições de artilharia para os infantes (2): O artilheiro Doutor, Mansambo, CART 2339, 1968/69 (Torcato Mendonça)

14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7782: Lições de artilharia para os infantes (1): Como era feito o tiro de obus 14 (C. Martins, ex-Alf Mil, Pel Art, Gamadael)


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20106: Bombolom XXIII (Paulo Salgado): Primeira Guerra e Guerra Colonial

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro "Milando ou Andanças por África", com data de 22 de Agosto de 2019:

Meus Camaradas do Blogue,
No meu livro Milando ou Andanças por África, tive oportunidade de falar de um combatente da Primeira Grande Guerra – homem que conheci nos meus tempos de pré-adolescência e que me encheu a alma de histórias fantásticas, decerto verdadeiras, ainda que narradas após mais de cinquenta anos…

Aí vai um pedaço da narrativa do velho Ti Brasas (nome fictício do combatente, pedreiro era…):

Paulo Salgado


O Bombolom IV - Primeira Guerra e Guerra Colonial
 

De MILANDO OU ANDANÇAS POR ÁFRICA

Da Quarta Andança – O Pedreiro

Sentados no muro da propriedade, chamada Pombal, ancião e jovem em amena cavaqueira, um revivendo o passado, emocionado, outro, embebecido com a narrativa.

- Conte lá, Ti Brasas, como foi a viagem e a chegada a Moçambique para combater no norte contra os alemães durante a Primeira Grande Guerra – pediu Pedro.

E o bom velho recordou, indo buscar lá bem atrás as lembranças:
- O barco Moçambique ia atafulhado de militares, nos porões fedorentos, nos deques sebentos, ao relento, espalhados por todos os lados, dormindo mal, comendo mal, deitando o que o corpo não quer ao mar, uma imundície e uma sujeira espalhada pelo navio, obedecendo a graduados de fortes bigodes, imponentes nas suas fardas, estou a vê-los, Pedro, descansando no último convés, à sombra de guarda-sóis, perto da ponte de comando, e a dar ordens a uma confusão de mais de mil homens. Quando passámos o equador, eu pensava que era uma linha traçada a negro, e era, pois negros eram os dias de caloraça e de humidade, sem condições para nos banharmos, e as necessidades era de rabo para o mar e com água do mar lavávamos as nalgas, sem fruta, sem comida que se visse, só desespero, só pequenas lutas nos porões e nos conveses por um lugar melhor para pernoita. Como me lembrava dos melões da Vilariça, das laranjas do Pocinho, das uvas códegas do Larinho, de um cadorno de pão com linguiça, de um ou dois ou três copos de tinto, ali só um caldo deslavado e batatas cozidas com pele e migadas por um azeite mal rançoso!

Onde é que vimos alho semelhante? Ah, no velho Carvalho Araújo, de 1970… transportador de carne para canhão, como o Moçambique de 1914…

"Carvalho Araújo" - Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18845: Bombolom III (Paulo Salgado) (3): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)