domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24780: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII: assalto, da 1ª CCmds Afriicanos, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor, ao irã da Caboiana, em outubro de 1972

 

Guiné > s/l > s/d [c. 1973/74] > Da esquerda para a direita, o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes, e maj inf 'cmd' Raul Folques: o primeiro foi supervisor do BCCmds da Guiné, e o segundo o seu último comandante (entre 28 de julho de 1973 a 30 de abril de 1974). O BCCmds da Guiné integrava, além das 1Ç, 2ª e 3ª CCmds Africanas, a a 35ª CCmds e a 38ª CCmds. Foto dublicada no livro do Amadu Djaló, na pág. 240 (não se indicando a sua origem, presumimos que seja do álbum do Virgínio Briote).
 

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra)M

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor.



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Cacheu / São Domingos (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor dos rios Cacheu e seus afluentes: Pequeno de São Domingos (margem norte); Caboi, Caboiana e Churro (margem sul), a montante da vila de Cacheu.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII:

A 1ª CCmds na mata de Caboiana, em outubro de 1972, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor (pp. 239-242)


A nossa 1ª CCmds, comandada pelo tenente Jamanca, recebeu a missão de ir à Caboiana. Havia informações sobre a chegada de mais pessoal do PAIGC, vindo do norte, incluindo cubanos. Acompanhava-nos, como supervisor[1], o capitão Matos Gomes.

Depois de termos passado a noite na mata, saímos cedo do local. Estávamos no fim da colheita de arroz e estávamos a progredir num campo de lavra, cautelosamente, quando subitamente ouvimos duas rajadas curtas, à frente da coluna. O meu grupo fechava a companhia.

Primeiro ficámos amarrados ao chão, depois eu e o meu guarda-costas chegámo-nos à frente, junto do capitão Matos Gomes. Nessa altura, o alferes Sada Candé vinha na nossa direcção, com uma arma na mão e a dizer:
 
− Matei-o! 

− Aonde ?  − perguntei. 

− Debaixo daquela palmeira − respondeu. 

Dirigi-me com todos os cuidados para lá e encontrei um guerrilheiro com a perna partida e os ossos à mostra.

Pouco passava das 15h00 e o Jamanca, depois de falar com o capitão Matos Gomes, pediu a evacuação do ferido do PAIGC.

Quando se estava a fazer a evacuação, caiu uma chuva de morteiros na zona do helicóptero, que atingiu o local onde estávamos e todos os oficiais, menos o capitão Matos Gomes[2] e alguns estilhaços furaram o helicóptero[3]. Ficámos numa situação complicada.

O 1º sargento Braima Baldé, que era o mais antigo, ficou a comandar a companhia. Fizemos novo pedido de evacuação, mas antes de chegarem os helis, a zona de onde estavam a sair as morteiradas foi bombardeada pelos Fiat[4]. 

A evacuação não foi fácil, mas conseguiram levantar rumo a Bissau. Entretanto já era muito tarde para continuarmos a andar, tínhamos perdido muito tempo. O céu estava coberto de nuvens escuras, os relâmpagos e os trovões começaram a surgir, uns atrás dos outros, não estávamos com muita sorte com o tempo, ou então estávamos, nunca se sabe.

A chuva veio de uma vez, caiu toda durante uns minutos, depois parou. Achámos melhor permanecer naquele local da mata[5], até de manhã.

De manhã muito cedo reiniciámos a marcha, com o grupo do Braima à frente, o capitão Matos Gomes[6] no meio e o meu atrás. Caminhámos até às dez horas, mais ou menos, quando vimos um carreiro muito utilizado.

Braima virou à esquerda. Eu estava no grupo da retaguarda e, quando cheguei ao tal carreiro, virei á esquerda também. Tirei a minha carta do bolso, e, sempre a andar, comecei a observar o mapa. Pareceu-me que devíamos ter voltado à direita.

Dirigi-me ao Capitão Matos Gomes.

− Meu capitão, é por aqui?

−  É o Braima que vai à frente! 

Mandou fazer um alto e seguimos os dois ao encontro do Braima.

−É por aqui?  
− perguntou o capitão.

− É por aqui!   
−  espondeu o Braima.

− Não é por aqui, é para o lado contrário 
−  respondi eu.

Ao capitão também lhe parecia que era para a 
direita[7] . Então, voltámos para trás e, a partir deste momento, eu e o capitão passámos para a frente, em direcção ao objectivo.

Progredimos sem qualquer problema, até ouvirmos uns rebentamentos, que nos obrigaram a abrandar a marcha, mas continuámos rumo ao objectivo, a tal mata das cerimónias, o Irã da Caboiana.

Entrámos por um lado e saímos pelo outro. Lá dentro, vimos centenas de garrafas vazias, algumas mesmo muito antigas. Naquele local faziam-se cerimónias, desde muito antes de nós nascermos[8].

A avioneta apareceu e o capitão[9] transmitiu por rádio que a missão estava cumprida e que estávamos dentro do objectivo. Da avioneta pediram para estendermos uma tela para nos localizarem. Então, o coronel Rafael Durão, que era o comandante do CAOP, mandou-nos afastar do local e que procurássemos uma zona para sermos recolhidos. 

Andámos sempre, junto a um rio, que era um afluente da margem esquerda do Cacheu, até que nos afastámos para um local onde fomos recuperados.
____________

Notas do autor ou do editor literário, VB

[1] Nota do editor: as Companhias de Comandos da Guiné tinham um supervisor, um capitão Comando europeu.

[2] Nota do editor: o capitão Matos Gomes, embora atingido na boca, assumiu o comando, dado o facto do tenente Jamanca se encontrar mais incapacitado.

[3] Nota do editor: o helicóptero foi atingido na fuselagem.

[4] Nota do editor: Fiats G.91, que bombardearam e metralharam, muito próximo das forças portuguesas, com grande precisão.

[5] Mata da Cobiana, uma zona húmida entre bolanhas, constituída por palmeiras e árvores de grande porte e tendo por baixo mata densa.

[6] O que restava de um grupo, cerca de 20 homens.

[7] Nós vínhamos a descer a Caboiana, de Norte para Sul., mais ou menos pelo meio. Para a esquerda ficava a bolanha. O Irã da Caboiana, que era o que procurávamos, deveria situar-se no centro, para a direita, era um palpite.

[8] Era o Irã da Caboiana, um dos mais importantes, se não o mais importante da Guiné. Irã é um local onde adoram ídolos, dos que não acreditam em nenhum deus. Eles não adoram Deus, adoram deuses.

[9] Nota do editor: este relato do Amadu Djaló fala da progressão para Sul pelo centro da Caboiana, no primeiro dia. Como ele refere, capturaram um guerrilheiro ferido, e chamaram um heli para o evacuar. E quando estavam a proceder à evacuação, foram atacados violentamente. O  heli foi atingido, os feridos, entre os quais o Jamanca, saltaram para dentro dele, juntamente com a enfermeira paraquedista, mas o aparelho conseguiu levantar, em esforço e às abanadelas, em direcção a Canchungo. Apesar de ferido na boca, sem gravidade, o capitão Matos Gomes assumiu o comando das operações.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 9 de outubro de  2023 > Guiné 61/74 - P24739: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVI: Tocou tambor para Bubacar, em Porto Gole, Op Esmeralda Negra, 13-16 fev 1973

sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24779: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (12): Almocreves e ferradores, mais alcunhas e locais da Aldeia Nova de São Bento (José Saúde)



O candeeiro a petróleo


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.    


 Coisas & loisas do meu tempo de menino e moço


Camaradas,

Foi precisamente à luz de um candeeiro a petróleo que dei os meus primeiros passos de vida. Depois, veio o aprender de o a, e, i, o, u, e um pouco mais tarde a desejada bênção da luz elétrica. Tempos difíceis onde o trabalho, principalmente no campo, era o elemento mais certo para parte de uma comunidade cuja faina ao “sabor” das calamidades não se apresentava desrespeitada pelos magros tostões ganhos na base do suor derramado na imensidão da planície.

Fui uma das muitas crianças que se habituaram a conviver com as carências deparadas no dia-a-dia, porém, e afirmo-o seguramente, que jamais soube o que fora andar descalço, ou falhas alimentares em casa, vestindo sempre aprimoradas roupinhas e esse minino cresceu, fez-se homem e conheceu uma vida repleta de histórias, sendo também que existem outras estórias as quais não renegarei. Ah, também fui militar (Ranger) e conheci o conflito da Guiné.

Quando parti para a edição do livro “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, o 10º dos 11 já editados, admiti que a tarefa que me esperava assumia-se bastante difícil. Encarar e enquadrar no texto geral o fator da intemporalidade, de construções físicas francamente alteradas, por exemplo, ou trabalhar, com minuciosidade a exatidão das eras, das festas religiosas, da origem e evolução do povoado, do cante alentejano e dos seus ilustres cantadores, das festividades originárias de uma plebe que soube comer o pão que o diabo amassou, ou de gentes que sofreram os auspícios que o sistema político impunha, ou de lugares da minha aldeia que paulatinamente se foram transformando, ou ainda as profissões que se foram extinguindo, enfim, uma panóplia de recolha de informações que levaram dias, meses e anos a trabalhar.

Todavia, a obra que deixo ao povo, o meu, será, de certeza, uma mais valia que tem como princípio básico quem somos e de onde viemos. Há gráficos que falam da evolução populacional de entre outros temas que ficarão a posteridade, ou do fluxo de pessoas que procuraram outros destinos, nomeadamente Lisboa e seus arredores, ou da migração para países onde por lá fizeram as suas vidas, proporcionando a alguns ao seu solo sagrado, mas com outras condições de vida.      

A obra é feita de eloquentes factos que nos enchem de orgulho.  

(i) Almocreves    


Um almocreve de outros tempos

      

Os almocreves foram outrora pessoas que lidavam diariamente com animais, sendo os trabalhos no campo, uma das suas principais ocupações. Durante a idade média, até a tempos mais recentemente, os almocreves exerceram, também, a função de agentes intracomunitários, sendo indispensáveis no fornecimento de bens às comunidades que viviam dispersas pelas aldeias, vilas e cidades.

Em Aldeia Nova de São Bento os almocreves marcaram, na realidade, gerações. Foram homens cuja disponibilidade de esforços físicos fizeram parte do seu dia-a-dia. Distribuíam-se pelos lavradores da terra: os senhores Bártolo, Luís Madeira, família Barroso, Guanito, Luís de La Féria, Morgado, de entre outros, e por lá trabalhavam, mas sem folgas ou férias que se protelavam por anos consecutivos. Ou seja, trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol e sempre de cabeça erguida. Eram, no fundo, assalariados, mas com um trabalho fixo.

Claro que a jorna não faltava em casas que, à época, não se viam obrigadas a mendigarem, uma vez que o salário não faltava no final de mais uma semana de trabalho que nesses tempos marcavam o pagamento das respetivas jornas. Tanto mais que o almocreve trabalhava de segunda-feira até ao domingo, logo os tostões ganhos traduziam-se numa vida mais tranquila.

Sabia-se que as dívidas da semana feitas na mercearia seriam pagas com o recebimento do pré, isto é, logo na semana seguinte, o que proporcionava ao merceeiro confiança num freguês que não apresentava no seu livro de querelas a condição de mau devedor. Portanto, era um privilégio ser-se almocreve.

As funções de um almocreve dividiam-se consoantes as necessidades do lavrador. Ora era o lavrar da terra para mais um alqueve, ora era o rasgar de regos para as sementeiras, ou para transportar os cereais para as eiras onde as debulhadoras fixas se instalavam, ou transportar o pessoal que por altura da apanha da azeitona, ou das mondas e das ceifas seriam transportadas nos carros de bestas, ou, ainda, em pequenos trabalhos solicitados pelo patrão. Limpezas das cavalariças ou da mansão do seu proprietário, eram canseiras que o almocreve não escusava.

A azáfama dos almocreves pelas ruas da nossa aldeia era intensa. O transitar pelas artérias onde as calçadas em pedra suportavam as rodas dos carros que possuíam um aro em ferro, apresentavam-se propícias para estridentes sons que levavam, amiúde, à curiosidade de crianças que não evitavam saltar para a “arrebicha” de uma “viatura” que para eles, garotos, era simples delícias.

Recordo ver ranchos de pessoas transportadas em carros de animais a caminho dos seus locais de trabalho. Lembro, ainda, a atividade dos abegões em volta de um carro que por vezes tinha necessidade de uma revisão.

Almocreves, uma profissão que, entretanto, se esfumou no tempo!

(ii) Ferradores

     O mestre Gregório


Conheci-o com tenra idade! Homem educado, amigo, sábio na sua arte e sempre afável para com o próximo, o mestre Gregório vestia, diariamente, o habitual fato-macaco (azul) e ei-lo a cruzar as ruas entre a sua casa no Largo da Igreja e a sua oficina, situada defronte à Sociedade 5 de Outubro.

Naquele espaço, fértil em amizades, o mestre Gregório trabalhava minuciosamente as ferraduras para o gado equídeo e para os asininos. Ou seja, ali se juntavam, mulas, machos, cavalos, éguas, burros e burras. Todos estes animais tinham ferraduras apropriadas para os seus cascos.

Contava o povo que, em tempos muito recuados, as sobras dos cascos dos animais eram triviais pitéus para a presença de lobos na aldeia, ouvindo-se os seus uivos ao longo da noite e a plebe assustava-se. Os ferradores, nessas eras, possuíam uma abastada agenda diária de trabalho, dado que a tração animal era, afinal, a única força motora para trabalhar a terra. Neste contexto, ao final do dia não sobrava tempo para uma atempada varredela aos restos dos cascos que por lá ficavam. Tanto mais que a luz elétrica nas ruas era, nesses recuados tempos, vã.

O mestre Gregório fez, na verdade, escola numa arte que sempre o motivou. O ferrar implicava o arrancar de velhas ferraduras e de cravos já gastos pelo muito andamento do gado por caminhos velhos e estradas pulverizadas com pedras.

Do mestre Gregório guardo excelentes recordações. Revejo-o no seu dócil manusear de ferramentas literalmente úteis à sua profissão; da preparação dos cascos dos animais; da turquês para o arrancar dos cravos; do martelo para os cravar; da lima que alisava esses mesmos cascos; o avental para colocar as patas dos animais nas suas pernas; a feitura das ferraduras num lume feito na oficina com carvão de pedra, como na altura se dizia, e com pura veracidade; o trabalhar os moldes; o curvar do ferro na bigorna e tudo à base do fogo; enfim, uma profissão que paulatinamente se foi perdendo no tempo.

Resta relembrar e trazer a público a profissão de ferreiro onde a nossa aldeia foi abundante, existindo vários ferradores que quase não davam mãos a medir para satisfazer as solicitações agregadas à imensa quantidade de animais então existentes. A aldeia e a serra, repleta de famílias, foram assíduos fregueses destas oficinas.

Hoje, as máquinas agrícolas ultrapassaram a força animal de antigamente. Os ferreiros foram substituídos pelas oficinas. Fica, porém, a certeza que o mestre Gregório foi um conterrâneo que deixou história como ferrador na nossa terra.

Ferrador, uma profissão que se conservou ao largo de anos!



Jana trabalhando a arte de ferrador


A profissão de ferrador conservou-se ao longo do tempo em Aldeia Nova. A geração Mira Monge, o João, o Manuel e o Lourenço, um homem que, entretanto, se instalou em Vale de Vargo, foram irmãos que deram continuidade ao ofício e que se entregaram à tarefa com uma enorme determinação. A oficina localizava-se no Largo dos Madalenos, sendo propriedade do João e do Manuel e teve como seu sucessor o Jana, como o povo o conhecia, mas sendo o seu nome próprio João.      

O Jana, para além da sua profissão, a de ferrador, foi um excelente cantador do cante alentejano, pertencendo, inclusive, ao Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. Recordo visitá-lo e vê-lo entregue à arte em moldar e trabalhar o ferro e de onde saíam as ferraduras para “calçar” as bestas.
      


 (iii)   Mote para as alcunhas na aldeia 

 Os nomes da minha Aldeia
Há nomes mesmo engraçados
Desde o Porca Chupadiça
Ao Manel Esfrangalhado
O Safarreta, o Catarro,
O Bento em Crendo, o Falcato,
Eu vi o Manel Macaco
Rir do António Chaparro
Por vezes quando me agarro
Recordar é uma teia
O Zé Engancha, o Enleia,
João Bufa, Esgaravana,
Peido, Peidinho e Peidana,
Os nomes da minha Aldeia.
Rei-Varrasco, Escalfa Cães,
O Sacadiço e o Farupa,
Catrapingas, Catraputa,
Sete e Meio e Dois Tostões,
Alho Bufo e Zé Rações,
O Gadelha e o Pelado,
O Beija-a-Poia, o Cagádo,
Facadas e Saltaréu,
Canivete e Faquineu,
Há nomes mesmo engraçados.
Gato Cravo e Paneirinho,
O Zé da Mona, o Garrocho,
O Galdrapas, o Carocho
O Chorrilho e o Chibinho,
O Tigre e o Carapezinho,
O Carola e o Belicha,
Meia-Nalga, Chico Espicha,
O Estrafique, o Biscoito,
Pé-Leve e Luís Dezoito,
Há o Porca Chupadiça.
Pata Curta, Nabo Seco,
Cu de Chumbo, Coradinhas.
O Mil Kilos, o Carinhas,
O Caga Azeite, e o Carapeto,
Cacetadas, Carapeto,
Rasga-a-Manta e Cu Suado,
Zé do Saco e Saramago,
O Mau Bofe e o Cachola,
O Nariz D’Aço, o Engrolo,
Mais o Manel Esfrangalhado 

Autor
Francisco Rafael Rodrigues,
Por alcunha o Carinhas


(iv) Locais de Aldeia Nova de São Bento

MOTE 

Anda tudo em alvoroço
P`ras bandas da varandinha
Porque o monte do Encalho
Namora o Monte da Vinha 

Está à rasca o Carrasquinho
Com a Tapada do Facho
E até a Horta de Baixo
Discutiu com os Alpendrinhos
O Outeiro do Almeirinho
Guerreou com Vale Pedrouços
Vai p`rá farra o Monte Poço
Ao sopapo e aos bofetões
Avança o Poço dos Cães
Anda tudo em Alvoroço 

Há cacetada bravia
Lá p`rós lados da Charneca
O Carapetal aperta
Com o Poço do Tio Matias
Até mesmo na Vigia
Há quem diga que a Laginha
Anda louca embeiçadinha
Pelo Monte do Africano
Pandemónio Franciscano
P`rás bandas varandinha 

Lá na nora do Malquarto
Todos vivem numa fona
Madalenos e Atafona
Não falam do Bairro Alto
A Vareta deu um salto
Fugiu com o Monte dos Talhos
Os Alpendres não quer ralhos
Que a Fonte-Branca incomoda
De mini-saia a Abóbada
Vai ao Monte do Encalho 

Va haver um casamento
Porque há muito que ela chora
A Horta das Pegas namora
Com o Moinho de Vento
O Poça de Lobo atento
Diz para a Horta de Cima
A Cova do Homem é minha
Crespo, Vale Covo e João Gago,
Pias, Ficalho e Vale Vargo
Namora o Monte da Vinha

Autor
Francisco Rafael Rodrigues, 
Por alcunha o Carinhas (16/7/1983) 


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Texto e fotos: © José Saúde (2023).

___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

Guiné 61/74 - P24778: Os nossos seres, saberes e lazeres (596): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (125): Em Leiria, pedindo muita desculpa por lhe ignorar os tesouros (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Não era uma visita de médico, mas havia as limitações de um curto fim de semana, ia-se um tanto às cegas, houve uma adorável viagem de comboio, saciou-se a fome numa viagem de comboio pela linha Oeste, o que permite seguir o itinerário dos arrabaldes lisboetas, os sucessivos tecidos do chão saloio, pôr os olhos na fecundidade do solo desse Oeste que dá boas frutas e legumes, e depois a paisagem de pinhal, incêndios recentes trouxeram a praga do eucalipto, estranha-se a inércia das autoridades em consentirem em tal atentado. Este segundo dia foi preenchido com algumas visitas de estalo, como aqui se mostra, desde uma exposição de Sofia Areal, o Centro de Diálogo Intercultural e Religioso, a grandessíssima surpresa que é o Museu de Leiria e, não menos deslumbrante, o moinho de papel, marcado pelo trabalho do arquiteto Siza Vieira. E a seu tempo aqui se voltará, em romagem ao castelo medieval e arredores.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (125):
Em Leiria, pedindo muita desculpa por lhe ignorar os tesouros (2)

Mário Beja Santos

Neste segundo e último dia de estadia em Leiria, tendo verificado à noitinha do primeiro que há um verdadeiro estendal de património entre o castelo medieval e o rio Lis, impõem-se opções drásticas, ser comedido no deambular pelo casco histórico, e selecionar com rigor os lugares a visitar. Começa-se pela antiga delegação do Banco de Portugal, obra do arquiteto luso-suíço Ernesto Korrodi, uma mistura de classicismo romântico e do despertar da Arte Nova, temos agora no seu interior, muitíssimo bem intervencionado, um espaço expositivo digno de visitas, verificara logo no primeiro dia a ver ali uma exposição de Sofia Areal, santa do meu culto, não quis perder a oportunidade de a visitar, gosto muito da dialética que ela sabe impor entre formas e luz, cores fosforescentes onde não falta o negro, onde é permanente a relação entre o desenho e a pintura, é no uso do papel que ela é mestre a fazer despontar energias primordiais e a combinação do gestual com o orgânico. A exposição incluía, aliás, um elucidativo vídeo do seu trabalho em estúdio, onde se releva a natureza deste relacionamento e até uma certa escrita automática que evoca o surrealismo. Há artistas de quem podemos dizer que fazemos o reconhecimento ao primeiro olhar, tal como há outros de quem adivinhamos a parentela das escolas, dos ensinamentos obtidos, das analogias com o mestre. Sofia Areal é completamente singular, iridescente, tumultuosa, problemática. Aqui a saúdo nestas três imagens.

Está decidido: um pouco de passeio, à laia de despedida, o castelo de Leiria, o Museu da Imagem em Movimento ficarão para segundas núpcias, agora vou caminhar para o Centro de Diálogo Intercultural de Leiria, procuro estar atento aos pormenores, acho esta ligação na rua do Arco um verdadeiro achado.
Pormenor da rua do Arco

Este Centro de Diálogo Intercultural pretende interpretar a presença ao longo dos séculos de três importantes religiões em Leiria, o catolicismo, o judaísmo e o islamismo, está sediado na Igreja da Misericórdia, edifício muito bem restaurado, painéis elucidativos do que timbra qualquer uma destas três religiões do Livro, belas imagens, etc. Visto o interior do edifício sentei-me para contemplar melhor o trabalho do altar-mor e do teto. Aqui fica o registo em duas imagens.
Nova etapa, a Igreja de Santo Agostinho e o seu Convento onde se encontra o Museu de Leiria que tem claustro de planta quadrangular. Oferecem-me uma pequena brochura onde se esclarece que este museu ficou a deve a sua concretização aos esforços persistentes de Tito Lacher (1865-1932), que levou á criação do Museu Regional de Obras de Arte, Arqueologia e Numismática de Leiria. Em 2006, iniciou-se o processo de restauro do Convento de Santo Agostinho, monumento construído a partir de 1577 (a igreja) e 1570 (o complexo conventual), é aqui que habita o Museu de Leiria. O programa museológico abrange, para além do acervo do antigo museu, as coleções artísticas municipais e a reserva arqueológica. É um museu que se organiza em dois espaços expositivos: no primeiro, uma exposição de longa duração, que faz uma leitura geral da História do território, e o segundo é reservado a exposições temporárias que permitem aprofundar temáticas e coleções específicas.
Entrada do Museu de Leiria, uma instituição cultural recheada de prémios
Claustro quadrangular do Convento de Santo Agostinho/Museu de Leiria

Passo pela arqueologia como cão por vinha vindimada, embora, confesso, rendido ao excecional trabalho museológico e museográfico, mas isto de ossadas, pedras e moedas romanas tenho tido a dita de conhecer com uma certa quilometragem. Detive-me diante de duas obras soberbas de pintura, uma festa de aldeia, tipicamente flamenga, obra que saiu da oficina de Dirk Bouts, o que me maravilha é a organização do espaço, uma festa morada, há para ali regozijos e dança, gente enfastiada ou com muito álcool na cabeça e fora deste compartimento, onde há mesmo marcas da natureza, estende-se até ao infinito a paisagem, indiferente à folia que decorre no espaço compartimentado, e as cores são soberbas. A outra prende-se com um motivo tipicamente religioso, é atribuída ao pai de Josefa de Óbidos, está marcada por uma candura esplendorosa, o Menino Jesus afinal também se magoava e não havia qualquer motivo para esconder aquela reação tão própria dos homens, a manifestação da dor.
Menino Jesus do Espinho, atribuído a Baltazar Gomes Figueira, c. 1640-1650

Dentro do museu decorria uma exposição intitulada CORPVS, Arte e Património Eucarísticos na diocese de Leiria-Fátima, exibindo uma série de testemunhos materiais que traduzem a forma de pensar a Eucaristia em cada tempo, o que permite ao visitante observar cálices, patenas, casulas, dalmáticas, castiçais, lampadários e até uma espetacular custódia do século XVIII.
Custódia do século XVIII

No final da visita, ainda deu para apreciar, dentro da temática religiosa, arte plástica como esta Última Ceia, um modernismo um tanto ingénuo, com originalidade de uma pose para a fotografia, ou uma cena teatral, porventura um relevo destinado para templo religioso. Tocou-me profundamente.
A Última Ceia

Vamos agora ao último itinerário do dia, um fabuloso moinho do papel, um dos ícones patrimoniais de Leiria. Equipamento reabilitado pelo arquiteto Siza Vieira, é um dos ex-libris da história da indústria leiriense. 1411 consagra o início da história do moinho do papel de Leiria, numa época em que a indústria da moagem era determinante para o desenvolvimento económico, este moinho é um dos primeiros na Península Ibérica. Nas margens do rio Lis, o moinho destaca-se pelas estruturas dos antigos rodízios que submergem no edifício, e pelas grandes azenhas que sublimam a imagem de uma indústria artesanal de outrora. No interior, vivencia-se o processo tradicional de produção de papel, em que os visitantes podem participar, e de moagem de cereais. No final, o visitante pode comprar as farinhas produzidas com a energia do rio.
É admirável este complexo museológico e a museografia é irrepreensível pelo caráter pedagógico que revela a todo o momento, ora vejam.

Está na hora de regressar, na vinda tomou-se o comboio de Entrecampos até Leiria, uns abordáveis cinco euros e satisfez-se um antigo desejo de voltar a andar de comboio pela linha do Oeste. Regressa-se de autocarro, com uma certa tristeza, não houvesse afazeres inadiáveis, era certo e seguro que se subia ao castelo. Mas há mais marés que marinheiros e a vontade de regressar é irreprimível.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24756: Os nossos seres, saberes e lazeres (595): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (124): Em Leiria, pedindo muita desculpa por lhe ignorar os tesouros (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24777: Manuscrito(s) (Luís Graça) (239): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VI: no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios" (Padre Manuel Vieira Aguiar, 1947)


Contracapa do livro de Padre Manuel Vieira de Aguiar - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp.




Uma das raras imagens do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. Fonte: Aguiar, 1947, op. cit., pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)


1. O Zé do Telhado (ou melhor,  a sua memória popular) calhou-me... "em herança". Tendo casado em Candoz, a escassos quilómetros de Fandinhães (terra da minha sogra, Maria Ferreira), na serra de Montedeiras, e a 5 minutos de carro da Casa do Carrapatelo na margem direito do rio Douro (o mais célebre dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852), tinha que me interessar pelas "lendas e narrativas" que sobre esta personagem oitocentista se contavam, ainda nos anos 70 do séc. XX.


Andava há anos para ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890). Só agora tive tempo e pachorra para o fazer. (E também só há uns anos conheci a casa-museu do Camilo, em São Miguel de Seide, V. N. Famalicão)

E, atrás do Camilo, vieram outros autores, não muitos, dos que tèm escrito sobre o banditismo no séc. XIX, em geral, e o Zé do Telhado, em particular.

Também, por "herança", veio-me parar às mãos o livro cuja contracapa se reproduz acima, da autoria do padre Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp). Está completo (falta-lhe a capa), mas em muito mau estado, muito manuseado, a precisar de ser restaurado e reencadernado.

O autor, Manuel Vieira de Aguiar, na altura era professor do ensino liceal, sendo irmão do padre Agostinho de Aguiar. ( Este foi pároco da freguesia de Paredes de Viadores, a que pertence Candoz, e também ele conterrâneo e condiscípulo do meu sogro, ao tempo da escola primária, e amigo da família Ferreira Carneiro, para cujos convívios costumava ser convidado: Já faleceu há já  uns largos anos; era natural de Mondim, uma lugar perto de Candoz, e a sua família foi um alforge de padres e freiras.)

O livro tem interesse documental, como monografia do concelho do Marco de Canaveses e as suas trinta e duas freguesias (na altura), incluindo Paredes de Viadores. Destaque também para as 75 gravuras (reproduçóes fotográficas), que ilustram o livro, e que são valiosas para o estudo etnográfico das gentes daquela terra do Vale de Tàmega, uma das tábuas do berço onde nasceu Portugal.

A I parte do livro  é dedicada à história dos concelhos, entretanto extintos em meados do séc. XIX, que deram origem ao atual concelho de Marco de Canaveses (Bem-Viver, Canaveses, Soalhães, Alpendurada, Santa Cruz de Riba Tàmega e Porto Carreiro) e ainda aos diversos coutos que existiam dentro do território do concelho, cinco privados (Alpendurada, Tabuado,Burgo de Entre-Ambos-os-Rios, Tuías, Vila Boa do Bispo) ou e 1 real (Vila Boa de Quires), Fala-se ainda de duas beetrias do Reino, Canaveses e Paços de Gaiolo (pp. 55-154).

Já agora, defina-se, muito sumariamente, esta terminologia, menos familiar ao leitor:

(i) beetria , segundo o dicionario, é uma  localidade medieval que gozava o direito  de eleger os seus senhores, um privilégio raro:
(ii) couto era "uma determinada zona de terra, limitada por autoridade real, com certos privilégios, isenções, justiça própria, pagando determninadas pensões aos senhorios diretos" (op, cit., pág. 117).

Havia os coutos privados (dos conventos e da nobreza) e os reais (estes também chamados "coutos de homiziados", ou sejam, de fugitivos à justiça: na prática, era um instrumento de "colonização interna", ficando situados  de preferência nas regiões fronteiriças; os criminosos encontravam ali protecçáo e guarida, com exceçáo para traidores, regecidas e hereges...); foram extintos em 1790.

A II parte do livro é dedicada à "história, demografia e corografia de cada uma das freguesias do a
tual concelho" (pp. 155-360),

E a III (e última) parte é sobre "o folclore em Marco de Canaveses" (pp.361-435): vida rural, com destaque para os trabalhos agrícolas (arranca do linho, espadeladas, malhas, vindimas, esfolhadas), folclore, romarias, serões, festas, bailados populares, superstições, janeiras e reis, carnaval, clamores e pregões, alminhas e cruzeiros, etc.

Na entrada sobre a freguesia de Penha Longa, o autor dedica 13 páginas (pp. 252-265) ao Zé do Telhado e o assalto ao Carrapatelo (passados 70 anos sobre a morte do assaltante e 85 sobre o assalto).

Socorre-se, no essencial, sobre fontes já nossas conhecidas, com destaque para o Camilo "Memórias do Cárcere), Eduardo Noronha ("Zé do Telhado"), Sousa Costa (" Grandes dramas judiciários"), Pinho Leal (" Portugal Antigo e Moderno"), e António Cabral ("Perfil de Camilo").

Antes de apresentar um resumo da vida do Zé Telhado, como militar e depois como bandoleiro, o autor descreve-o nestes termos:

"Alto, gordo, de agradãvel apresentação, génio indomável e fartas barbas, eis o temível capitão de bandidos, que, durante cerca de 10 anos, espalhou o terror do saque e do sangue em terras de Entre-Douro e Minho" (pãg. 252).

O tom é "hagiográfico": afinal trata-se de saber por que é que "os nobres e os ricos lhe davam guarida e proteção"... Já o povo tinha por ele "uma certa estima que, avolumada pela tradição, se transfornou, mais tarde, em admiração profunda" (sic) (pág, 252).

O autor resume o porquê em duas linhas: Porque se dizia que José do Telhado: 

(i) "cumpria sempre a sua palavra; 

(ii) "dívida contraída, na hora marcada se saldava"; 

e (iii) "distribuía pelos pobres o fruto das suas rapinas aos ricos"...

A sua vida "épica e aventurosa", resumida pelo autor (e que inclui o episódio da  da Guerra da Patuleia em que o José Teixeira da Silva conquista a medalha da "Torre e Espada") vai acabar em 1859, quando é preso... 

Vai acabar ou é apenas interrompida... Porque, na verdade, qual Fénix Renascida, há um Zé do Telhado II, em África, onde acaba por morrer, prematuramente,  em 1875, e do qual sabemos pouco, embora saibamos que a sua memória ainda hoje é lá recordada e respeitada... De facto, ao ser desterrado para a Angola, numa época em que ainda era escassa a presença portuguesa (uns poucos de milhares, na sua grande maioria desterrados), o Zé do Telhado torna-se um  dos seus seus primeiros povoadores e colonizadores.


2. Citemos então o autor, o padre Manuel Vieira de Aguiar, conterrâneo do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), nascido portanto em Paredes de Viadores, Marco de Canaveses: 

(...) Por fim, cansado de desgostos, resolveu embarcar para o Brasil. A bordo já da barca Oliveira foi preso por iniciativa de Adriano José de Carvalho e Melo, ex-comissário da polícia do Porto [. Foi também Deputado da Nação e Governador Civil de Bragaça, nota de rodapé, pág. 260], e naquela data administrador do jovem, concelho do Marco de Canaveses, o qual soube soube do paradeiro do famoso facínora, por indicações de José Morgado, agora a ferros.

Conduzido à cadeia da Relação do Porto, ali respondeu por tentar fugir para o estrangeiro, sem a documentação precisa. É entregue depois ao Tribunal do Marco, onde corre o processo do crime de Carrapatelo, é é transferido da cadeia do Porto para a do Pisão, em Canaveses.

O seu companheiro de clausura, que também aguarda julgamento pelo crime de adultério com Ana Plácido, o insigne escritor Camilo Castelo Branco, atendendo à sua pobreza e amizade, conseguiu-lhe para defensor o seu próprio advogado, Dr. Marcelino de Matos, que gratuitamente lhe presta os seus serviços.

E em 25 de abril de 1861, realiza-se na casa da Quinta, freguesia de Tuias, um notável julgamento em que José do Telhado é condenado a degredo perpétuo e trabalhos públicos em África. Mais tarde, mediante recurso, foi a sentença reduzida pela Relação do Porto a simples degredo.

Na selva africana continua porém a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios. No exílio, longe da terra natal e da família, a estrela cintilante, tão nimbada de luz que por vezes nuvens negras envolveram, de novo surgia na sua velhice alquebrada. E assim, lá longe. no olvídio de tantos que o temeram e respeitaram, se findou esse bravo, de sentimentos generosos, que foi grande mesmo no crime.

É assim o destino de alguns homens tatuados com o sinete do génio!....

José Teixeira da Silva tinha qualidades como várias vezes demonstrou, de aguerrido, fidelíssimo soldado. Se, do regresso das lutas partidárias, mãos amigas o tivessem auxiliado, teria sido um homem de bem, honestíssimo. Se nas sendas tortuosas, nubladas da existência, alguém orientasse a sua juventude, tão inclinada à epopeia, ao maravilhoso, teria sido um chefe invencível, talvez mais dominador que Napoleão Bonaparte, mais temido que Júlio César, mais intrépido que Alexandre Magno.

Assim, abandonado às suas próprias forças, sem o amparo carinhoso da avara família humana, foi o que foi − um misto formidável de glória e infâmia, de grandeza e baixeza, de epopeias e tragédias. (pp. 260-262).


Não deixa de ser surpreendente este retrato, feito por um homem, sacerdote católico, que escreve em meados dos anos 40, no auge do Estado Novo. Já agora, não é de ignorar esta dedicatória do livro:  "ao Instituto para a Alta Cultura, Secretariado Nacional de Informação, Câmara Municiapl de Marco de Canavese e Junta da Província do Douro Litoral, que se dignaram patrocinar esta obra, a gratidáo reconhecida do autor"... 

Em 1945, recorde-se, tinha chegado aos écrãs das salas de cinema em Portugal, o filme de longa metragem, "Zé do Telhado", realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo romàntico e popular ator Virgílio Teixeira, no papel principal. Um verdadeiro "western à portuguesa", disponível no You Tube, em versão integral, aqui (com a duração de cerca 86 minutos).

Um Zé do Telhado, vítima das "circunstâncias histórias" (as lutas fratricidas dos portugueses, na época do liberalismo), e de algum modo "reabilitado" pela História, também convinha à propaganda de um Estado Novo, "antidemoliberal": no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua (...) a realizar proezas", isto é, "subjuga os pretos (sic), funda prósperas roças, dirige negócios" (a expressão é de Manuel de Aguiar).

(Continua)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24776: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (4): Qaqortoq, uma pequena vila piscatória de 3 três mil habitantes, agosto de 2023 (António Graça de Abreu)


Foto nº 26


Foto nº 27


Foto nº 28


Foto nº 29


Foto nº 30


Foto nº 31


Foto nº 32


Qaqortoq, Gronelândia, agosto de 2023


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2023). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (4): Qaqortoq, uma pequena vila piscatória de 3 três mil habitantes

por António Graça de Abreu (*)


A vilazinha gronelandesa, com apenas 3.050 habitantes, chama-se Qaqortoq, nome não fácil de memorizar apesar de contar apenas três sílabas (Foto nº 26). Situa-se no extremo sul da Gronelândia, na margem direita de mais um fiorde, a uns seis quilómetros do mar. Como não tem cais de acostagem para grandes navios como o “Poesia”, da MSC, estacionamos o barcalhão a uns dois quilómetros do pequeno porto e tomamos três lanchas, as baleeiras do navio em serviço para a ligação a terra.

Qaqortoq, que em dinamarquês se assume como Julianehab, foi um dos primeiros lugares da Gronelândia a ser povoado por vikings no século X. Depois vieram os esquimós-inuites, os noruegueses e os dinamarqueses. 

Protegido dos ventos, porto de pescadores e caçadores de focas (Fotos nº 29 e 30) desempenhou o seu papel na pequena economia gronelandesa, assumindo-se hoje como o quarto maior aglomerado populacional do país. Vi chegar do mar, onde ainda pululam icebergues, duas ou três traineiras carregadas de salmões, enormes, fresquíssimos. Um caçador de focas, com duas espingardas a tiracolo, regressava também da sua jornada num glaciar próximo. 

Qaqortoq vive muito do negócio de transformação da pele de foca em casacos, luvas, botas, sapatos, algo proibido no Canadá e nos Estados Unidos da América. Não há proibição na Europa e os pobres animais que me dizem não estar em extinção, são por aqui impiedosamente abatidos.

Entretanto, porque Qaqortoq -- um dos lugares menos poluídos do mundo --, se transformou também num destino turístico, uma senhora esquimó, com quem meti conversa, fala-me na chegada de 35 navios de cruzeiro por ano. (Fotos nºs 31 e  e 32).

Não será muita gente, mas o turismo terá algum significado na vida económica da terra que cresce, em presépio, subindo por duas encostas, para norte e para sul, com as casinhas pintadas nas cores fortes comuns a toda a Gronelândia. Duas igrejas protestantes, três ou quatro supermercados bem abastecidos, um hotel com bom aspecto, mas com quartos nada baratos, tudo acima dos 250 euros por noite e o aviso cá fora de que lá dentro não há hi-fi para turistas de passagem.

Um campo de futebol com relvado sintético e informam-me que os qaqortoquianos são bons de bola, já foram campeões da Gronelândia por quatro vezes. Grande futebol se jogará por aqui! (Foto nº 27)

Por cima da vila, encravado entre montanhas de pedra, existe o grande lago Tasersuaq (Foto nº 28) que congela no Inverno e é óptimo para patinagem. Logo ao lado fica a zona onde se faz ski durante parte do ano. Agora as pistas encontram-se cobertas de vegetação, mas a partir de Outubro tudo estará atapetado com neve e gelo.

Caminho junto ao mar. Os pescadores aproveitam a placidez do Verão, com o Atlântico Norte azul e calmo, consertando os barcos, preparando redes e anzóis para novas pescarias. O sossego do dia, onze graus de temperatura, o silêncio avassalador envolvendo tudo.

Na pesquisa da Gronelândia na Net, encontro um poeta Gronelandês que creio ser um dos mais famosos autores do país. Chama-se Aqqaluk Lynge, nasceu em 1947 e tem um
poema que fala em caçar animais. Traduzi do inglês, assim:

Ouvir os mais velhos

Caçadores de gansos, um encontro na terra.
Ele diz: “Hoje é domingo,
ninguém deve dar um tiro.”
Assim falam os mais velhos
e nós ouvimos os mais velhos,
às vezes.

Vem um bando de gansos,
lutando contra o vento.
Ele pega na espingarda e dispara,
um ganso cai,
os outros continuam voando.
Sim, hoje é domingo.

Um bando de perdizes brancas
salta em círculos, à nossa volta,
não fazem nenhum ruído.
“Têm medo”, diz a pessoa mais velha,
“as corujas saíram para caçar,
as perdizes procuram a protecção dos homens,
nós não as caçamos.”
É o que dizem os mais velhos,
e nós ouvimos os mais velhos,
às vezes.


António Graça de Abreu
_____________________

António Graça de Abreu:

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; 

(ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 5/2/2007; 

(iii) tem c. 330 referências no blogue; 

(iv) é escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); 

(v) no nosso blogue, é autor de diversas séries:

  • Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo;
  • Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (em coautoria com Constantino Ferreira);
  • Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983";
  • Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias;
  • Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74)

(Revisão / fixação de texto / negritos, e edição e numeração de fotos, para publicação deste poste no blogue: LG)

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de outubro de  2023 > Guine 61/74 - P24732: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (3): Nuuk, a minúscula capital da maior ilha do mundo, agosto de 2023 (António Graça de Abreu)

Guiné 61/74 - P24775: Notas de leitura (1626):"Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização", por Pedro Rabaçal; Marcador Editora (Editorial Presença), 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de uma iniciativa de divulgação, abarca a presença portuguesa em vários continentes, o capítulo dedicado à Guiné afigura-se-nos no essencial correto, menos correto o capítulo que dedica a descolonização, a bibliografia apresentada é muito precária e alguns dislates não impedem de considerar que a obra cumpre a sua função meramente expositiva e didática.

Um abraço do
Mário



Portugueses em África: uma breve história da nossa presença na Guiné

Mário Beja Santos

A
obra intitula-se Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização, por Pedro Rabaçal, Marcador Editora (Editorial Presença), 2017. É uma obra de divulgação por alguém que tem no seu currículo o gosto por investigar, veja-se os títulos do que já publicou na Marcador Editora: 100 heróis e vilões que fizeram a História de Portugal; Imperadores Romanos, a vida de 30 Césares; Os grandes ditadores da História; 100 datas que fizeram a História de Portugal. Abarcando todas as parcelas do Império Português, ao longo de cerca de 150 anos, seleciona-se o que sobre a Guiné escreveu.

Tem um capítulo autónomo intitulado Guiné, a rebelde. Inevitavelmente fala nos lançados e tangomaus, no Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Alvares de Almada, nos piratas e presídios, na edificação da fortaleza de Cacheu, no enorme refluxo marcado pela Dinastia Filipina e a tentativa, após a Restauração, para melhorar a presença portuguesa; dá-nos um breve quadro da missionação e dos seus magros resultados; estamos chegados ao tráfico negreiro, a par do assédio francês e britânico, dá conta de que altas figuras da mestiçagem prosperavam com o comércio negreiro, caso de Caetano Nosolini e a sua mulher Aurélia Correia, e faz uma exposição digna de destaque:
“A atividade negreira de Caetano Nosolini correspondia à maioria da média anual de 2000 negros vendidos a Cuba. Enquanto não eram vendidos, trabalhavam nas suas plantações de café, amendoim, arroz, milho. As acusações e protestos contra Nosolini não passaram de uma brisa aquando das suas nomeações para governador interino da Guiné. Uma delas era a do homicídio do capitão mercador francês Dumaige, seguida da sua prisão e absolvição. A anulação da indemnização não teve efeito, dado a marinha francesa ter confiscado várias toneladas de mercadorias de Nosolini, sob a ameaça do uso da força.

O combate ao tráfico de negreiros significou o fim da prosperidade mercantil da Guiné no início do século XIX. As reduzidas guarnições locais passaram a ser pagas em géneros, como panos e barras de ferro, remunerações cuja a modéstia e lentidão despertavam frequentes atos de indisciplina. O hábito de enviar degredados merece ser exemplificado pelo caso do capitão-mor Manuel Pinto Gouveia, nomeado em 1905 e acompanhado de uma guarnição de 150 criminosos.
Um rival e concorrente de Nosolini, o também negreiro Joaquim António de Matos, não soube reconverter-se a novas atividades com a abolição da escravatura. E os negócios não lhe correram bem, como quando a Royal Navy destruiu o seu estabelecimento na ilha das Galinhas e libertou os escravos, em 1842”.


O autor debruça-se sobre os assédios francês e britânico, prossegue com os confrontos entre português e autóctones e o papel exercido por Honório Pereira Barreto. São referenciados vários desastres, como Bolor (1878) e a derrota de 15 de janeiro de 1886, num afluente do Rio Grande de Buba. Trata-se de um período de enorme instabilidade, em que os residentes dentro de Bissau vivem na maior das inseguranças. Mas tentou-se a expansão militar, sempre com enormes dificuldades e assim se chegou à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. A narrativa destaca as campanhas do capitão Teixeira Pinto, as violências do seu braço direito, Abdul Indjai e entramos num capítulo sobre a modernização da economia. Extinta a escravatura, a agricultura e a exploração madeireira passaram a ser as principais riquezas da Guiné, alargou-se a relação dos produtos de exportação, chegou-se ao século XX com o comércio externo nas mãos de sete casas comerciais (três francesas, uma franco-britânica, uma alemã e uma belga, e uma única portuguesa). Somente 18% do comércio externo da Guiné era realizado com Portugal (isto de 1909 até 1913), o controlo português surgiu em 1927 com a criação da CUF.

O autor refere a questão das grandes carências, da divisão entre civilizados, assimilados e indígenas, o período de transformações trazidos por Sarmento Rodrigues. E procede a uma inflexão, dedica um capítulo às rebeldias guineenses e às respetivas operações ditas de pacificação que culminam com a rendição da ilha de Canhabaque em fevereiro de 1936.

Inevitavelmente que irá falar da Guiné no capítulo dedicado à Guerra Colonial, há poucas novidades: o início de guerra em janeiro de 1963, a Operação Tridente, a natureza dos armamentos das tropas portugueses e guineenses, a chegada dos técnicos cubanos em 1965, as tentativas de Spínola em reverter os avanços do PAIGC, as ofensivas diplomáticas de Amílcar Cabral, os desastres da Operação Mar Verde, como Sékou Touré se aproveitou desta operação para proceder a uma nova purga sangrenta na República de Conacri; e temos a questão cabo-verdiana como um dos motores do assassinato de Amílcar Cabral mas o autor não perde a oportunidade para referir outros hipotéticos responsáveis.

Faz perguntas:
“O que o Estado Novo tencionava ao ajudar membros do PAIGC a tomar o poder dentro do partido? Fazê-lo mudar de lado? Uma simples aliança temporária contra o inimigo comum? Quem sabe, enfraquecer e dividir o PAIGC, o que soa mais provável. Porém, a eliminação de Amílcar Cabral acabou por não dar em nada.
Uma vez decapitado, o PAIGC deixou crescer outra cabeça dirigente, como uma hidra, e os respetivos combatentes lutaram com a maior firmeza, ansiosos por vingar a morte do líder. O escândalo internacional perante a morte de um famoso e respeitado não foi de certeza uma vitória diplomática para Portugal. O crime não serviu de nada ao Estado Novo nem ao colonialismo português. Amílcar Cabral era um homem, mas nenhuma bala podia eliminar as suas ideias”
.

Trata-se, pois, de um livro de divulgação, dá-se como certos elementos altamente discutíveis e jamais comprovados, é mais uma obra a juntar aos extenso reportório de tantos outros títulos orientados pelo prazer de fazer histórias breves do Império Português.

Cerimónia em frente do Palácio do Governador, Bolama, década de 1930
____________

Notas do editor

Último poste da série de 16 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24762: Notas de leitura (1625): "Militar(es) Forçado(s), por Maximino R. Costa; edição de autor, 2017 (Mário Beja Santos)