Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de Ataúro. Independente desde 2002, esteve sob a brutal ocupação da Indonésia durante 24 nos.
Nota de leitura > Marisa Ramos Gonçalves:
«A ilha-prisão de Ataúro durante a ocupação indonésia de Timor-Leste: histórias de encarceramento, resistência e legados contemporâneos»
e-cadernos CES [Online], 37 | 2022, posto online no dia 02 novembro 2022, consultado o 18 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/eces/7084; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.7084
A Marisa Ramos Gonçalves é investigadora do CES - Centro de Estudos Sociais | Universidade de Coimbra | marisagoncalves@ces.uc.pt
Fez o seu doutoramento, em 2016, na Universidade de Wollongong, Wollongong, Australia. (Título: “Intergenerational Perceptions of Human Rights in Timor-Leste: Memory, Kultura and Modernity” (Perceções Intergeracionais de Direitos Humanos em Timor Leste: Memória, Cultura e Modernidade). Tese de Doutoramento em Filosofia, Faculty of Law, Humanities and the Arts, School of Humanities and Social Inquiry, University of Wollongong, Wollongong, Australia.)
I. Da leitura deste artigo, interessa-nos, no âmbito do nosso blogue, destacar as referências, que ainda são muito escassas, a esta antiga colónia portuguesa que foi Timor. E mais ainda, Timor como lugar de desterro e encarceramento, desde o séc. XVIII (quando há notícias dos primeiros desterrados, se bem que nenhum ainda fosse europeu).
Muitos portugueses sabem da brutal invasão, ocupação e anexação de Timor Leste com a consequente tentativa de genocídio do povo maubere, em finais de 1975, tornando-se o território na 27ª província da Indonésia.
Mas muitos desconhecem que "durante o período colonial indonésio" (sic), "os colonizadores usaram a ilha para confinar as famílias de membros da resistência em campos de concentração abertos, mas com vigilância militar apertada. Estima-se que, entre 1980 e 1987, tenham sido presos cerca de 6000 timorenses, tendo algumas pessoas morrido devido à fome e má-nutrição."
Por outro lado, mesmo habituados, desde os bancos da escola, a repetir "ad nauseam" que vivíamos num Portugal, que ia "do Minho a Timor", nós sabíamos muito pouco (e continuamos a não saber) da história e da geografia de Timor e da presença histórica dos portugueses naquela ilha do sudoeste asiático, de resto escassa até ao séc. XIX, circunscrita a alguns pontos no litoral e sobretudo à ação de missionários e militares.
Este artigo centra-se neste período da invasão, ocupação e anexação indonésai (1975-1999), sobre o qual vamos passar por alto (o leitor interessado tem acesso ao artigo completo) , bem como sobre a parte teórica ( "estado da arte sobre o tema", a colónia penal como sistema carcerário ou concentracionário e as memórias das suas vítimas ), a parte metodológoca (utilização dos testemunhos das vítimas do conflito e entrevistas de história oral) bem como a bibliografia.
Interessa-nos recuar até Ataúro do tempo dos portugueses, e nomeadamente nos anos 20/30 do séc. XX.
Vamos citar algumas excertos, mais extensos, e elaborar uma primeira nota de leitura deste artigo, dispensando as referências bibliográficas, dada as limitações de espaço num blogue como este, dirigido não a académicos e especialistas mas a antigos combatentes das guerras coloniais.
II. Vejamos o resumo do artigo:
(...) "A ilha de Ataúro, situada a norte da capital de Timor-Leste, funcionou como ilha-prisão durante o período colonial português e, de forma mais intensa, a partir dos anos vinte do século passado.
"Durante o período colonial indonésio (1975-1999), os colonizadores usaram a ilha para confinar famílias de membros da resistência em campos de concentração abertos, onde centenas de pessoas morreram devido à fome e má-nutrição.
"Partindo de uma análise de entrevistas e de material de arquivo sobre as/os antigas/os deportadas/os em Ataúro no período indonésio, este artigo conclui sobre a relevância da preservação das histórias orais sobre as/os prisioneiras/os, bem como da memorialização das histórias desta ilha.
"O texto reflete, igualmente, sobre memórias e legados coloniais, partindo da observação de que algumas ilhas da região do Pacífico permanecem territórios considerados depósitos e locais de detenção de pessoas que fogem à repressão e violência de regimes ditatoriais e coloniais." (...)
E aqui fica também o índice do artigo (com os respetivos links), para o leitor que tiver mais tempo e vagar:
Introdução
III. Insularidade e desterro
A autora começa por lembrar que a "insularidade", ao longo do tempo e nos mais diversos lugares, tem sido um "meio de confinamento natural", adoptado por regimes ditatoriais e coloniais, para deportar e banir inimigos políticos, muitas vezes "sem direito a julgamento ou condenação formal!"...Mas também presos de delito comum.
Os desterrados (muito mais homens do que mulheres) eram, além disso, uma preciosa fonte de mão-de-obra nas colónias, em todos os impérios coloniais, a começar pelo Britânico.
No nosso caso, "Timor-Leste integrou, desde o século XVIII, o sistema carcerário do império português" (a par das ilhas atlânticas, bem como Angola e Moçambique): para lá, eram enviados militares e civis, opositores políticos, mas também prisioneiros de delito comum ("deportados sociais)".
A ilha de Ataúro fez parte deste sistema carcerário durante os vários períodos coloniais: português (1702-1975), indonésio (1975-1999), sem esquecer o curto mas não não menos brutal período de ocupação japonesa (1942-1945).
(...) "A ilha de Ataúro funcionou como ilha-prisão, em particular nos anos vinte e trinta do século XX, quando foi usada como local de deportação de opositores políticos e prisoneiros de delito comum, denominados deportados sociais" (...)
Ataúro, sendo uma ilha, a norte de Dili, separada por 25 km de mar, não precisava de arame farpado nem muros. Era difícil, ou quase impossível, escapar.
Na segunda parte do artigo, a autora apresenta uma sucinta introdução histórica da colónia penal de Timor , durante o século XX, "em particular os campos de internamento de deportados políticos e sociais provenientes da metrópole e de outros locais do império, na ilha de Ataúro e no enclave de Oécussi."
Mas o objetivo principal do artigo é mostrar "a relevância da memorialização das histórias da ilha de Ataúro, através da preservação das narrativas orais" quer dos prisioneiros quer dos seus habitantes.
Os vários impérios europeus fizeram dessas ilhas (em geral tropicais ou subtropicais) lugares de desterrro e encarceramento:
- a França criou as ilhas-prisão da Nova Caledónia, da Cayennne ou Ilha do Diabo na Guiana, das ilhas Reunião e Côn So’n no Vietname;
- a Grã-Bretanha fez uso da Tasmânia, na Austrália;
- a Holanda, da ilha Nusakambangan nas Índias Orientais Holandesas, atual Indonésia...
Havia várias tipologias destes lugares:
- colónias penais,
- colonatos,
- entrepostos,
- colónias agrícolas, etc.
No arquipélago dos Bijagós, havia por exemplo a colónia penal e agrícola da Ilha da Galinhas, criada em 1934 (ou pelo menos já existente nessa data), Em Cabo Verde, foi criado o "campo penal" do Tarrafal (1936-1957), reaberto depois como "campo de trabalho" de Chão Bom (1961-1974) ...
A investigadora debruça-se depois sobre a ilha-prisão de Ataúro como local de deportação e degredo no século XX, e nomeadamente nas décadas de 1920 e 1930, periodo sobre o qual há "mais dados e estudos académicos".
Ficamos a saber que Timor só obteve o estatuto de distrito autónomo em 1896: dependia originalmente do Estado da Índia (Goa) e, posteriormente, de Macau.
Situado na periferia do império, no sudoeste asiático, era visto "como um espaço insular e longínquo da metrópole e de outros centros administrativos do império, como Goa e Macau".
Ser desterrado para Timor era, pois, uma condenação pesadíssima, tanto para civis como para militares.
Em 1897 já existia uma cadeia civil, na comarca de Díli, para presos não- indígenas. Dezasseis anos depois, em 1913, foi criado o Depósito dos Degredados de Timor, que recebia maioritariamente macaenses, que vão representar uma importante força de mão-de-obra.
Em 1927, existiam três estabelecimentos prisionais: o depósito de degredadas de Aileu, a colónial penal de Taibesse e a Cadeia da Comarca, em Díli, para além de três presídios militares (Aipelo, Batugadé e Baucau) e os “campos de concentração” de Ataúro e Oécussi.
No período de 1927-1931, os deportados portugueses distribuíam-se por várias colónias do império:
- S. Tomé e Príncipe (29),
- Guiné-Bissau (46).
- Angola (456),
- Cabo Verde (334),
- Timor (500)
(...) Na ilha de Ataúro e no enclave de Oécussi, os denominados 'campos de concentração', foram considerados 'locais malditos', onde os prisioneiros estavam expostos às chuvas e temperaturas elevadas, com dietas pobres, muitos morrendo de malária e desnutrição" (...)
Entre 1927 e 1933, e na sequências das revoltas contra a Ditadura Militar e o Estado Novo, chegaram ao território timorense algumas centenas de jovens, socialistas, comunistas e anarcossindicalistas, acusados de serem os principais instigadores e participantes no atentado ao comandante da polícia de Lisboa, João Maria Ferreira do Amaral (1876-1931), alguns por alegadamente pertencerem à rede bombista "Legião Vermelha", e outros na sequência do movimento revolucionário de 26 de agosto de 1931.
Sabe-se, oor outras fontes, que no ano de 1927, a população europeia de Timor era de 11 ocidentais estrangeiros e 378 portugueses, grande parte funcionários estatais, ou elementos das missões católicas, além de 155 naturais originários de outras colónias.
Ora entre 1927 e 1933, terão passado por Timor cerca de 600 deportados, quase o dobro da população civil europeia ali residente.
Houve, entretanto, uma amnistia política geral, em 1932, para os vários deportados políticos nas diferentes colónis. A maioria dos prisoneiros em Timor regressou à metrópole, mas outros puderam ficar em liberdade no território.
De fora ficou uma lista dos 50 prisioneiros considerados “mais perigosos”, bem como os "deportados sociais" (presos de delito comum).
(...) "110 homens deportados originalmente em 1927 ficaram dispersos pelo território, constituindo famílias das quais descendem várias figuras da elite política atual de Timor-Leste.(...)
A ilha de Ataúro continuou a servir de prisão depois da ocupação japonesa de Timor, no pós-guerra. Os presos passaram a ser os timorenses que colaboraram com os ocupantes.
A talhe de foice refira-se, por fim, que durante a ocupação indonésia de Timor-Leste " estima-se que entre 100 000-200 000 timorenses tenham perdido a sua vida em resultado do conflito e das políticas repressivas da administração militar indonésia, marcada por massacres, assassinatos de membros da resistência militar e civil, práticas planeadas de deslocação forçada e fome das populações, prisões arbitrárias e tortura." (...)
Como é dos manuais da guerra contra-subversiva, o governo de Suharto , através do seu exército invasor e ocupante, procurou retirar o apoio que a população dava às FALINTIL – Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, a resistir nas zonas montanhosas, para isso criando "campos de trânsito e internamento para essa população". E, entre outras medidas repressivas, proibiu o uso da língua portuguesa. (**)
O maior destes campos era o da ilha de Ataúro. (A ilha tem 25 km de extensão por 9 km de largura, cerca 117 km² de superfície, e uma população atualmwnte à volta de 10 mil habitantes.)
Para saber mais ler: A ilha-prisão de Ataúro no período da ocupação Indonésia ____________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 26 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25448: Notas de leitura (1685): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (22) (Mário Beja Santos)
(**) "Os 24 anos da ocupação indonésia tornaram o bahasa a língua do ensino e da administração. O português foi banido, e a forma de resistir à total aculturação foi desenvolver a mais disseminada das línguas locais, o tétum. Fê-lo, principalmente, a Igreja Católica, que assumiu o protagonismo da resistência cultural e simbólica.'
"Chegada a independência, há uma geração (todas as pessoas com menos de 30 anos, o que constitui a esmagadora maioria da população) que não fala português. Aprendeu bahasa Indonésia e inglês como segunda língua e fala tétum em casa, além de alguma outra língua timorense, como o fataluco ou o baiqueno. É a chamada geração 'Tim-Tim, do nome Timor-Timur, que os indonésios davam à sua 27.ª província." (...)
in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/portugues-tetum-ou-tetugues/1178 [consultado em 27-04-2024]