O Victor reproduziu, no seu blogue (Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009 > 718 "A retirada de Guileje: um erro de 'casting', o comandante do COP 5"), o primeiro texto do António Matos, P3737, de 14 de Janeiro...Na introdução, o Victor Barata escreve o seguinte: "Não querendo menosprezar a opinião de cada um (julgo que para isto ainda existe democracia em Portugal...), não posso deixar de realçar aquela que na realidade classifico da mais íntegra visão dos factos relacionados com o tema, emitida pelo meu ilustre companheiro com quem partilhei algumas horas de voo nos ceús da Guiné: António Matos" (...).
Mensagem de António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res
[Subtítulos do editor vb]
Foi preciso ter sido acordado pelo livro do Cor Coutinho e Lima A retirada do Guileje, para vencer a inércia e escrever dois artigos sobre a Guiné (*).
(i) A às vezes esquecida e injustiçada Força Aérea Portuguesa (FAP) na Guiné
Não que essa vontade não se tivesse já manifestado anteriormente e por várias vezes, quase sempre por ver com que indiferença a Força Aérea é retratada, como se não existisse, como se servisse apenas para missões de apoio logístico/sanitário, para levar uns abastecimentos aqui e recolher os feridos e doentes acolá (alguns em estado grave, outros nem tanto).
E, no entanto, num cem (com c) número de vezes foi ela o fio da balança que significou a diferença entre o desastre e a segurança das forças terrestres.
Com excepção a um ou outro artigo onde se refere muito ao de leve o apoio da FAP a esta ou aquela operação, o que é comum encontrar são comentários do tipo “a aviação amordaçada”, “os aviões deixaram de voar”, “ já não nos apoiam”, “actuação interdita”...
E no entanto, nunca a FAP voou tanto como no período Abril-Setembro de 1973, por muitos reconhecido como o período mais violento da guerra da Guiné.
Faço aqui um parentesis para esclarecer que, como havia o boato de que a FAP não voava por causa do Strella, dava-nos um certo gozo passar a raspar sobre os telhados do QG e cidade de Bissau a 450 nós (850 km/h). Esta brincadeira só terminou quando foram fazer queixinhas ao Gen Spínola.
(ii) A Op Ametista Real
Exemplo da indiferença sobre o papel que a FAP desempenhou está bem patente num artigo do Gen Almeida Bruno sobre a operação Ametista Real, publicado neste blogue em 16 Agosto 2005, segundo as suas próprias palavras, “a operação de maior envergadura daquele tipo, fora do território nacional” (**).
No seu texto, há apenas um parágrafo onde a FAP é referida, e que diz:
“A Força Aérea iniciou um pesado bombardeamento, a que se seguiu o assalto. Um pouco à sorte, já que não se sabia onde ficava a base. E a sorte foi decisiva”.
Fica um pouco a incerteza de quem precisava da sorte, se a FAP, se as forças de assalto, se todos nós.
Fala no “posto de comando aéreo” onde as decisões são do comandante da operação e o piloto apenas faz de “condutor da avioneta”. (Não me lembro que tal posto de comando tenha existido). A pergunta para a qual não tenho resposta é a de saber, a haver, quem estava nesse posto de comando aéreo dado que o Ten Cor Bruno, o Maj Folques, os Cap Matos Gomes e António Ramos estavam no chão.
E termina a descrição da operação referindo sobre a retirada que “Foi um movimento lento, interrompido por vários e violentos combates, até que, pelas quatro da tarde, o inimigo abandonou o terreno”. Só, sem mais.
O leitor desprevenido ficará com a ideia que a FAP fez o bombardeamento inicial e com isso terminou a sua actuação. Nada mais errado.
Vamos aos factos:
No briefing feito na véspera, na sala de operações da Base de Bissalanca, o Ten Cor Bruno afirma que, o que precisa da FAP é o bombardeamento inicial e o manter-se em alerta durante o resto do dia para um eventual mas remoto pedido de apoio.
Afirma igualmente que não deixam nada nem ninguém em território inimigo, a haver mortos, “trazem-nos às costas”.
Na cabeça deste Tenente aviador, já um pouco cafrealizado (12 meses de comissão), o pensamento deixa escapar um “Manga di ronco próprio”, antecipando desde logo que irá ter uma tarde repousada.
À alvorada do dia seguinte descolam de Bissau 6 FIAT-G91, (como disse num outro texto, só existiam 6 pilotos de Fiat), cada um com 2 bombas de 750 libras. Após a descolagem, um dos FIAT-G91 (o meu amigo Pipoca) entra em rota de colisão com um jagudi, daí resultando numa falha parcial do motor, pelo que o piloto aborta a missão, volta para Bissau, larga as bombas em segurança no rio Geba e aterra de imediato na Base de Bissalanca; os restantes 5 prosseguem a missão conforme o planeado.
O bombardeamento em Cumbamori é executado com precisão, acertando nos paióis do PAIGC; para descobrir o objectivo as forças terrestres já não precisam de sorte, só têm que seguir as colunas de fumo.
Uma vez de volta e aterrados em Bissau, os pilotos de FIAT-G91 entram em alerta (significa ter os aviões armados e prontos a descolar até ao máximo de 10 minutos após o pedido de apoio).
Nada acontece até às 13 horas (verificou-se à posteriori que esta calmia se deveu ao facto dos paióis irem explodindo, um após o outro, o que impossibilitou movimentos terrestres, nossos e do IN).
Ao início da tarde dá-se o primeiro pedido de apoio, a que se sucede um segundo, um terceiro, ..., pedidos que se vão “sucedendo sucessivamente sem cessar”. As nossas tropas estão em retirada para o Guidage.
A situação no chão torna-se critica ao ponto do Maj Folques, entretanto ferido, nos dizer no rádio “Ó Tigres, não se vão embora que estes ... querem deixar-me aqui sozinho”.
Os pilotos já não descansam entre voos, limitam-se a sair de um avião e a entrar noutro entretanto preparado; na tentativa de acelerar a prontidão dos aviões, os mecânicos carregam as bombas à força de braço (cada bomba de 750 libras pesa uns 370 kilos).
Ao fim da tarde e com a capacidade da FAP a esgotar-se, uma parelha de FIAT-G91 ao entrar em contacto com a tropa em retirada, recebe a informação de que estão a ser fortemente alvejados “da orla da mata”.
Ora, observando de cima o local onde se desenrolam os combates, o terreno é do tipo savana, nas redondezas apenas existe uma única mata, do comprimento de um campo de futebol e talvez metade da sua largura.
É aí que os FIAT-G91 largam 4 bombas de 750 libras. De imediato o ataque às nossas forças termina.
Tem razão o Gen Bruno quando diz que “às quatro da tarde o inimigo abandonou o terreno”, não disse foi o porquê.
(iii) O ataque a Bissau... e uma noite de riso
Outro ponto em que se enganou foi na data da operação, 19 Maio e não 20 como refere; a 20 e no rescaldo da operação, a FAP foi, desta vez, chamada a proteger as “barcoletas” da Marinha no rio Cacheu (os marinheiros que desculpem o termo, mas era assim que as chamávamos).
À noite, em Bissau, as conversas são em voz baixa, quase sussurradas. Perguntámos o que aconteceu:
- Bissau foi atacada esta manhã, grandes rebentamentos que ecoaram por toda a cidade.
Quase de imediato o mistério é-nos desvendado; tinham sido as bombas do avião que nessa manhã chocara com o jagudi que, apesar de largadas no rio Geba com as respectivas cavilhas de segurança, tinham mesmo assim explodido, acordando o pessoal de Bissau e arredores, oficiais do QG incluídos.
Claro que não os desapontámos, se diziam que era ataque, é porque era mesmo (também sabíamos construir os nossos boatos).
Nessa noite muito nos rimos à volta de uma garrafa de whisky.
A operação Ametista Real foi um marco importante na história da Guiné.
Pelo que fizeram, o TenCor Bruno, o Maj Folques, os meus amigos Matos Gomes e António Ramos (infelizmente já desaparecido), bem como os Comandos Africanos, merecem ser recordados (***).
Não pretendo negar uma das missões importantes que a FAP deve desempenhar (apoiar as forças que estão no terreno).
Custa-me que o esforço dos que lá do alto, quase como anjos da guarda, deram e dão para apoiar as tropas terrestres, raramente sejam referido e muito menos reconhecido.
Em 10 meses (de Abril 73 e Janeiro de 74) e em apoio às forças terrestres a Força Aérea perdeu 8 aviões, com 4 pilotos mortos em combate.
Também merece ser lembrada.
António Martins de Matos
__________
Notas de vb:
(*) Vd. postes de
14 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)
17 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3752: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (13): A missão de apoio aéreo de 21 de Maio de 1973 (António Martins Matos)
(**) Vd. poste de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973)
[Texto de 1995, retirado de Autores vários: Os Últimos Guerreiros do Império. Lisboa: Edições Erasmos. 1995. 72-75.]
Vd. também poste de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVI: Salgueiro Maia e os seus bravos da CCAV 3420 (Guidage, Maio/Junho de 1973) (José Afonso)
(***) Vd ainda os postes de:
26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1316: A participação dos paraquedistas na Operação Ametista Real: assalto à base de Kumbamory, Senegal (Victor Tavares, CCP 121)
29 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1222: Lembrar ao Matos Gomes que a 38ª CCmds foi a primeira romper o cerco a Guidaje (A. Mendes)
28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais (Alves de Jesus)