Queridos amigos,
Na capa do livro do Amadú Djaló, à esquerda com a mão na pistola e olhando-nos sem pestanejar, está o tenente Zacarias Saiegh, que virá a ser fuzilado em finais de 1977 num complô ainda hoje mal contado.
Quando cheguei a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, ele era o comandante interino, o furriel mais antigo. Tivemos uma relação bastante tensa mas o respeito mútuo foi sempre mais forte.
Tenhamos orgulho pelo Virgínio e pelo caudal de imagens que o nosso blogue proporcionou a este relato pungente.
Um abraço do
Mário
Amadú Djaló a respirar no espelho de Virgínio Briote
por Beja Santos
“O meu primeiro objectivo foi perceber a escrita manual do Amadú e reescrevê-la para um português perceptível, respeitando o estilo de escrita do autor. Depois foram tardes a ler-lhe os textos, corrigir, acrescentar pormenores, cortar outros, pôr datas, nomes, locais, enquadrar as histórias, telefonar a camaradas, cruzar a informação, reavivar pormenores.
Não se trata de um trabalho exaustivo sobre os nossos anos na Guiné. Nem eu tenho arte nem o Amadú conta a sua história assim. Não há ficção, não se trata de um romance. A maior parte dos textos referem-se a contactos com o PAIGC, a combates com mortos e feridos, de um e outro lado”.
Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.
“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação.
Amadú torna-se condutor, vai para o Sul, a experiência não lhe deixou muitas saudades. Segue para Farim, naquele tempo grande parte das estradas ainda eram transitáveis, o PAIGC sentia imensas dificuldades em implantar-se, as autoridades senegalesas mediam a guerrilha com imensa desconfiança.
“Saí do local onde estavam 4 ou 5 feridos e o corpo de um soldado, para verificar o andamento dos trabalhos das macas e, momentos depois, começaram os rebentamentos [ida a Cumbamori, Senegal].
Foi um inferno. Ao primeiro estoiro ninguém pensou em mais nada senão em escapar dali. Eu corri para a frente, com 7 ou 8 soldados, armados de bazucas e RPG’s, para respondermos ao fogo. Todos dispararam a vez, outros duas vezes depois saíram dos locais, porque a posição deles estava denunciada quando fizeram fogo. Sabíamos isso da instrução.
Fiquei muito satisfeito com eles, porque foi com os disparos que fizeram que travámos a contra-ofensiva do PAIGC e dos páras senegaleses.
O tenente Jamanca estava à minha esquerda, sentado, com as pernas estendidas, encostado a uma pequena árvore, parecia exausto.
– Então, o que se está a passar? Perguntei.
– Amadú, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me! Mata-me, Amadú, mata-me!
– Tu não ficas, levamos-te de qualquer forma. Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!”
Amadú vai sendo promovido, a sua folha de serviços é notável. Vai seguidamente para a CCaç 21, percorre a Ponta do Inglês, Paunca, Pirada, Piche, Canquelifá. Estamos a viver o tufão que se estenderá até ao fim da guerra. A ofensiva do PAIGC é brutal, como Amadú descreve:
Amadú combate há praticamente 11 anos, perdeu família, amigos, inúmeros camaradas. Bateu todos os teatros de operações mais infernais. Deixa antever a evolução dos acontecimentos de 1973 para 1974. E um dia a guerra acaba, espera-o um calvário, a traição dos amigos, a perseguição. Será esse seguramente o material que Virgínio Briote, o diligente e discretíssimo Outro, terá entre mãos.
Venho publicamente expressar o meu júbilo pelo trabalho do Virgínio Briote. A Associação de Comandos incumbiu-o de uma tarefa espinhosa, o Virgínio revelou-se exemplar nesta metamorfose do apagamento em que o Outro deixa o palco iluminado a um Eu cheio de carácter, sereno, à espera que lhe façam justiça depois dos caminhos desavindos da guerra.
Enquanto lia e relia este relato inigualável recordei um retrato de genial artista surrealista, o belga René Magritte, intitulado A Invenção da Vida, datado de 1928. Alguém olha fixamente o espectador, parece pronto a desvelar o vulto encapuçado, a mostrar uma pessoa em corpo inteiro. Não sei porquê lembrei-me deste trabalho monumental do Virgínio, este corpo a corpo com o Amadú em que se inventou, a partir do maço informe dos dados, a vida de um combatente. Obrigado por tudo, Virgínio.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6689: Notas de leitura (125): O Lince de Có, de António Veríssimo (Mário Beja Santos)