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sábado, 7 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23958: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965


Lisboa > Terreiro do Paço > 10 de Junho de 1965 > O Almirante Américo Tomás a condecorar o ten mil 'comando' Maurício Saraiva, comandante do Grupo de Comandos "Os Fantasmas", com a Medalha de Valor Militar com Palma, e entretanto pronovido a capitão. Branco, nascido em Angola, Saraiva, idolatrado por uns, odiado por outros, foi um "mal amado", diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez, foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1.º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de agosto de 1964... Integraria depois o o Gr Cmds "Os Fantasmas", de outubro de 1964 a maio de 1965. O seu último comandante de secção foi o fur mil 'comando' Joaquim Carlos Fereira Morais, natural de Lisboa, oriundo da CAÇ 412 / BCAÇ 512. Morreu na Op Ciaio. Foram também feridos, da sua secção, o Amadu Fajló e o Tomás Camará. Outro ferido do grupo foi o João Parreira. (*)


Guiné > Bissau > 11 de junho de 1965 > "Foto tirada em frente ao Hotel Portugal, num dia que nunca mais esqueço, e por várias razões (i) era o dia dos meus anos; (ii) fui a Bissau buscar o 2º sgt. José Cabedo e Lencastre que vinha para o Centro de Instrução de Comandos; (iii) foi um dia depois da condecoração e promoção (a capitão) do Saraiva; (iv) os sapatos de pala castanhos que calçava atravessaram algumas bolanhas; (v) de tarde saímos para instrução e à noite fui ao cinema UDIB ver o filme “Noites de Casablanca", com a Sara Montiel".


Guiné > Região do Oio >   Tita Sambo (Camjambari) > 1965 > O Grupo Cmds "Os Fantasmas". Final da operação Ebro, em 26 de março. Para completar os intervenientes da Op Ciao (6-7 de maio de 1965, e Catunco, Cacine), falta apenas a presença do cap art 'comando' Nuno Rubim que acompanhou o Grupo. Em pé: o Cmdt Grupo ten Saraiva, 5º da esq. (MS);  e eu o 9º (FP). O fur mil Joaquim Carlos Ferreira Morais )JM) está em frente do Saraiva e o soldado Amadú Dajló (AD) à minha frente.

Fotos (e legendas): © João Parreira (2006). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um precioso  excerto das memórias do Amadu Djaló (**), neste caso relativas ao tempo em que integrou o Gr Comandos "Os Fantasmas" (comandado pelo alf mil cmd Maurício Saraiva, entretanto promovido a tenente e depois capitão). 

Descreve aqui a última operação, a Op Ciao, que ele realizou (junto com outros camaradas com os fur mil Morais e João Parreira, o primeiro ferido mortalmemte, e o segundo também evacuado para o HM 241; o próprio Amadu é ferido nesta operaçao). Foi em 6 de maio de 1965,  no sector de Cacine; tratou-se de um golpe de mão contra um acampamento IN em Catunco,

Recorde-se, aqui o percurso anterior do então sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015):
(i) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite pelo alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano; (ii) requentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964; (iii) deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros; (iv) deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: "Os Camaleões", "Os Fantasmas" e "Os Panteras".

O Amadu passou a pertencer ao Grupo "Os Fantasmas" comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva. Logo no fim do curso, os três grupos participaram na primeira operação, a Op Confiança, realizada entre 25 de outubro e 4 de bovembro de 1964 no Oio,   na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. Muitos dos novos leitores do nosso blogue  estão agora a ter contacto com as memórias do Amadu Djaló.


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A leitura, mais atenta,  do livro continua a ser uma verdadeira surpresa para mim.   Nunca é demais sublinhar que  é um testemunho humano, singelo, de valor grande documental, e com muito interesse, do ponto de vista socioantropológico, para um melhor conhecimento do passado da Guiné-Bissau e em especial do período da guerra colonial. O Amadu Djaló esteve 12 anos, de 1962 a 1974, ao serviço do Exército Português. 

Como já tivemos ocasião de o dizer noutra ocasião, o título do livro pode parecer ter pouco a ver com o conteúdo. Terá sido, aliás, mais ditado pelo marketing, com o objectivo de vender, o que no caso do Amadu até era um objectivo relevante, sabendo-se que ele tinha 10% sobre o preço de capa e era um homem pobre e doente. (Infelizmente, não enriqueceu com o livro.) "Guineense, comando, português" foi  claramente uma concessão aos "brancos" ou "europeus" (como ele nos chamava, quase sempre), Mas ele sentia-se português e um verdadeiro comando, sem nunca, por outro lado, ter renegado a sua pátria de origem (onde está , de resto, seputaldo).

Se um homem é sempre ele próprio mais as suas circunstâncias (não podendo escapar à historicidade), o Amadú foi porventura uma espécie de Sancho Pança guineense, servindo diversos Dom Quixotes, do Mauricio Saraiva ao Antónioo Spínola, mas também poderia ter estado ao lado do 'Nino Vieira e do Amílcar Cabral, como ele próprio admitiu, quando a páginas 30/31 evocou  a tentativa de aliciamento, para ingressar nas hostes do PAIGC, em julho de 1961, por parte de Adulai Djá, um colega seu de Bissau"  (que, tendo militado nas fileiras do PAIGC, chegaria a ser 2º comandante da base principal do Morés; mais tarde morto num ataque de comandos helitransportados, em data não especificada pelo Amadu, p. 30, nota de rodapé).

O Amadú acabou por ir para a tropa portuguesa em 1962 ("tropa era uma obrigação"), depois de um série de peripécias que meteram o pai, os primos do Senegal (militares do Exército francês), o administrador de Bafatá, o tenente Carrasquinha, do BCAÇ 238 (que tinha um fraquinho pela prima, bonita, Aua Djaló)...  .

Tenho igualmente chamado a atenção  para o talento narrativo do Amadu. Como bom africano, ele era um homem da cultura oral e, logo, um grande contador de histórias. E essa oralidade, espontânea (mesmo em português que não era a sua língua materna), perpassa por todo o livro, graças ao talento de outro homem, o Virgínio Briote, o seu "editor literário" (Ou "copydesk"), à sua paciência, perserverança, bom senso, bom gosto, sentido de ética e camaradagem.

Voltamos aqui a ter, neste excerto, duas boas histórias:

 (i) uma, cómica, burlesca e divertida, na I parte (já em parte aqui reproduzida) (***), em que ele descreve as peripécias da sua (e do Tomás Camará) viagem de DO-27, de Bissau até Cufar e depois Cacine, pilotado por esse "glorioso maluco das máquinas voadoras", que já era então o fur pil Honório Brito da Costa, nascido em Cabo Verde: sobre o Honório (Srgt Pil Av) temos mais de 3 dezenas de referências no blogue; 

(ii) outra bem mais dramática, pungente, reveladora da grande coragem mas também da nobreza humana do Amadu, a última operação do Gr Cmd "Os Fantasmas", em que morre o seu comandante de secção, o fur mil Morais,  e ele próprio é ferido com mais camaradas (*).


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965 (pp. 123-130)

por AmaduDjaló

(i) Voando com o "maluco" do Honório até Cacine


Em Maio[1] de 1965, fomos para Cacine, com o objectivo de executar um golpe de mão a um acampamento em Catunco. Era a última operação do grupo “Os Fantasmas” e, por isso, o tenente [Maurício Saraiva] pôs-lhe o nome de “Ciao”.

Em Brá tivemos a manhã para preparar tudo. Depois, fomos em viaturas para o aeroporto de Bissalanca, onde estavam quatro avionetas à nossa espera. O tenente dirigiu-se ao furriel Morais, que já tinha acabado o tempo de comissão e disse-lhe:

– Vocês esperam pelo Honório[2], que parece que ainda não está pronto.

– Meu tenente, eu não vou no avião do Honório! Custa-me muito faltar à operação, mas eu não vou! – disse eu.

O Tomás Camará disse também que, com o Honório, não ia.

Então, o tenente disse que as avionetas que os iam levar,  regressavam para depois levar o resto do grupo. Visto que um dos pilotos concordou, eu e o Tomás Camará ficámos a aguardar.

As três avionetas levantaram com o pessoal e, passados dez minutos vimos o furriel Honório a dirigir-se para a sua Dornier. Virou-se para nós e disse:

–Vamos?

O furriel Morais e um soldado europeu foram ter com ele.

– Só vão vocês os dois?

– É, eles dizem que não vão na sua avioneta!

– Mas, porque não?

Saiu da avioneta e dirigiu-se para nós. Cumprimentou-nos e perguntou:

– Por que é que vocês não querem ir comigo?

Olhámos para o lado, nenhum de nós deu resposta. Ele disse:

  É pá, isso é uma grande vergonha para nós! Eu sou preto, levo brancos, que têm confiança em mim e vocês, que são meus patrícios, não querem ir na minha avioneta? Vamos embora, pá, não há problemas!

–  Eu não gosto de manobras no ar e o Tomás também não!

 
–  Eu não faço nenhum tipo de manobras!

Depois, pegou nos nossos equipamentos e disse:

– Vamos embora!

Não havia outra maneira. Muito contrariados, embarcámos na avioneta. Tomou altura, virou para sul e o voo correu muito bem até ao campo de Cufar. Aí, o Honório viu um homem a andar sozinho, apontou-lhe o dedo e disse alto:

– Vou assustá-lo.

Aí, eu já não sabia onde me meter. Ele baixou a avioneta e passou por cima do homem, que continuou a andar com calma.

– Ai, ele não fugiu?!...  Então, vou-lhe acertar com a asa da avioneta! 

E baixou outra vez e ainda mais, parecia que ia aterrar ali. O homem viu aquilo, que não era nada normal, e saltou para junto de uma árvore. Mas agora, para retomar altura,  é que me parecia mesmo muito difícil.

Ao homem, a árvore tinha-lhe salvo a vida e a nós, pouco faltou para perdermos as nossas. A partir deste incidente, nenhum de nós abriu mais a boca, até chegarmos a Cacine.

Esta pequena vila fica junto ao rio. O piloto parou o motor e mergulhou, mergulhou. Só víamos água à nossa frente. Naquela altura, eu disse para comigo, "até aqui foi brincadeira, mas agora ele não vai poder controlar a avioneta e vamos morrer todos". Era só água que eu estava a ver, tapei a cara para não ver mais nada e gritei com força. Ouvi o Tomás também aos gritos.

De um momento para o outro, senti o estômago na boca, o avião estava a levantar, outra vez, a pique. Mesmo assim, vi os mangueiros bem perto e, logo depois, entrou directo na pista e aterrou.

Saltou cá para fora, abriu a porta a cada um de nós e, quando, sem qualquer tipo de fala, lhe virámos costas, ele apalpou-me o rabo e cheirou a mão, para saber se eu tinha borrado as calças.

Mesmo na pista, estava uma coluna à nossa espera, que nos transportou para Cameconde.



Guiné > Mapa geral da província ( 1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Cameconde, a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine...  
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Cameconde não tinha tabanca, só quartel. Os únicos vizinhos da tropa eram do PAIGC. Os nossos militares mal podiam sair do arame farpado. Aquele local foi um castigo doloroso para quem cumpriu lá a comissão.

Cameconde fica num cruzamento. Para entrar em Cacine tem que se passar por Cameconde, venha de onde se vier. As fronteiras são em Sangonhá, Cacoca, Camissorã e Banire, este por via marítima. A estrada continua até Cassacá e Campeane. É um cruzamento que separa tudo.

Chegámos depois do almoço e ficámos a descansar até às 17h00, mais ou menos. O tenente chamou-me e levou-me junto do guia, que era nalu.

Perguntou-lhe se tinha coragem para nos levar ao acampamento. Se não tivesse, mandava vir outro guia, amanhã, de Cacine. Mas o guia, à nossa frente, assegurou que não era preciso vir mais ninguém, que ele nos levava até ao acampamento da guerrilha. Enquanto o tenente ia falando com ele e fazendo perguntas, nós ficámos a aguardar a hora de saída.


(ii) A morte do furriel Morais, meu comandante de secção

Por volta das 20h00, começámos a sair, rumo a Catunco Nalu, com a missão de executar um golpe de mão ao acampamento.

Saímos à nossa moda, como era costume, com muito cuidado e sempre no maior silêncio. Alguns minutos depois, saiu um pelotão de periquitos, pertencente à companhia de Cameconde. Fomos sempre ao lado da estrada de Cacine a Camissorã, que atravessa Cameconde, até Catunco. No cruzamento deixámos o pelotão para trás, com a missão de fazer a segurança do local e aguardar a nossa retirada.

Entrámos na direita e, a partir daqui, o guia ficou fora do nosso controlo. Já não andava mais. O tenente bem insistia e chegou a dar-lhe com a coronha da arma na cabeça, mas nada dava resultado. Rastejava um pouco e parava, levava uma coronhada, rastejava e parava outra vez. Assim, fomos andando até chegarmos a um local cheio de mangueiros, dos dois lados da picada. O local era muito escuro e o guia continuava a atrasar-nos. Não sabíamos onde o sentinela estava.

Logo que saímos da escuridão das sombras dos mangueiros, uma rajada, à minha esquerda, cortou o silêncio. Aterrámos no chão, primeiro, depois, aos gritos de "Comandos ao ataque", arrancámos na direcção de onde partiram os tiros, pensando que era o local do acampamento. Era apenas o posto da sentinela. O acampamento ficava um pouco afastado e, mais para a esquerda, viemos a saber pouco depois. Abrimos fogo e lançamos granadas incendiárias. Barracas não vimos nenhuma, o que ouvimos logo foram tiros, vindos do lado esquerdo.

Corremos nessa direcção e encontrámos uma horta, com barracas. Começámos a revistá-las e fomos encontrando equipamentos e bagagens.

Retirámos um pouco na direcção do cruzamento e, passados alguns minutos, o tenente Saraiva perguntou-me se eu tinha ouvido uma metralhadora pesada a cantar. Eu tinha ouvido muitos tiros, só não sabia se alguns eram de metralhadora pesada. Ele, então, perguntou ao furriel Morais a mesma coisa. Que não sabia se eram de metralhadora pesada, foi a mesma resposta.

E o tenente a dizer-lhe:

– Pois eu ouvi perfeitamente. Pega no guia, vai lá com o Amadú, leva duas equipas e vão vasculhar toda a área. De certeza que vão encontrar qualquer coisa interessante.

O furriel Morais e eu levantámo-nos.

– O guia para quê? Estamos a ver as barracas a arder!

Iniciámos a marcha em direcção das barracas, mas a perguntar a mim próprio, porque razão o comandante do grupo não vinha connosco. Ainda não eram 24h00 quando lá chegámos pela primeira vez, agora já eram quase 2h00 da madrugada.

A progressão até ao acampamento não teve problemas e, quando lá chegámos,  começámos outra vez a vasculhar tudo. Eu com uma lanterna na mão à procura da tal arma pesada. O furriel Morais perguntou se eu já tinha visto alguma coisa. Não, não tinha ainda visto nada.

O furriel dirigiu-se na minha direcção. O local onde eu estava tinha ídolos [3] e deuses e ele esteve naquele local ainda um bocado de tempo, sempre à procura de qualquer coisa interessante até que me disse:

– Amadú, temos que sair daqui!

Dirigimo-nos para o local onde estavam os restantes elementos. Vimos o 1º cabo Cruz com uma jarra na mão e a bater com ela no pé de uma árvore de cola, pam, pam, pam…

Eu pensei, bom, ele está a fazer este barulho para a guerrilha saber o local onde estamos. Só podia ser para essa finalidade, tanto barulho!

O Tomás Camará disse-me que o cabo Cruz lha tinha tirado, para a destruir. Daqui resultou uma discussão entre nós, dentro do acampamento, que só não deu mais barulho porque o furriel Morais pôs o pessoal na ordem.

Entretanto, as barracas ardiam com toda a força e o furriel deu ordem para sairmos do local. Perguntei-lhe qual era a equipa que ia à frente.

– É a nossa 
– disse.

Foi a última coisa que o furriel Morais disse. Mal dei o primeiro passo, uma granada de RPG [4] explodiu à nossa frente e atingiu quase todo o pessoal. O furriel Morais teve morte instantânea. Logo a seguir ao rebentamento da granada, sucedeu-se o tiroteio, que durou alguns minutos. Ninguém levantava a cabeça. Quando o fogo abrandou, já todos tínhamos pensado o mesmo, para onde, por onde, como e quando sair dali.

Entre nós estava uma grande árvore, que nós na Guiné chamamos poilão [5]. Tinha raízes de fora, com grandes lombas, eram tão grandes que podiam abrigar um bigrupo. Meti-me, deitado, numa das lombas e estava a sentir qualquer coisa a escorrer pelas minhas costas. Desabotoei o dólmen, meti a mão até à anca e pareceu-me que era sangue.

Ao mesmo tempo senti que o meu ombro esquerdo estava a doer. Cuspi na mão e tentei ver a cor do cuspo. Se fosse sangue era mau sinal, podia ter sido atingido nos pulmões ou até no coração. Não era sangue, fiquei mais tranquilo. Se a ferida é fatal, a gente nem sente.

Mas eu estava a ouvir gemidos de companheiros. Um chamava pela mãe e eu cheguei-me a ele. Que estava ferido, eu também estava e o Tomás Camará andava com as pernas abertas, a dizer que o furriel estava morto,  e que, como era agora o comandante, ia pedir apoio pelo rádio. Tomás comunicou com o tenente Saraiva, que lhe perguntou se nós não podíamos regressar pelos nossos próprios meios.

– Tenente, nós éramos onze! Há muitos feridos e um está morto! 

O tenente ainda insistiu:

– Então vocês não podem sair daí, nem se podem mexer?!

Nesse momento ouviam-se gritos de um companheiro ferido. Mas outros, gritavam alto para o PAIGC ouvir:

– Venham ter connosco aqui, pá! Estamos aqui à vossa espera!

Estes gritos serviram de incentivo. Outros começaram também a recuperar o ânimo.

Entretanto, uma secção do pelotão, que estava com a missão de nos apoiar e recolher, meteu pés ao caminho, para nos ajudar a recolher o morto e o ferido que não podia estar de pé. O único que não foi ferido foi o cabo Cruz. Dos outros, dez tinham sido atingidos, um deles mortalmente. Mas saímos dali, mal ou bem, a arrastarmo-nos como pudemos até ao cruzamento.

Ficámos a aguardar a chegada da manhã, para procedermos às evacuações. O corpo do furriel Morais esteve ali ao nosso lado, deitado e bem caladinho, num silêncio de quem nunca mais voltará. Nasceu em Portugal e veio acabar a vida neste lugar de Catunco, no sul da Guiné, em 7 de maio de 1965.

Os militares que cumpriram a comissão em Cameconde foram muito sacrificados. Estavam ali para segurança da pequena vila de Cacine. Como já disse, para entrar em Cacine, venha-se de onde vier, tem que se passar por Cameconde. E para sair é pelo mesmo cruzamento. De Cameconde para Cacine vira-se para norte. De qualquer parte que se venha, a entrada é a mesma e a saída na direcção do sul, é também a mesma. 

Em Cameconde há uma picada que liga Cacine a Camissorã, continua-se sempre para sul até chegarmos a Camissorã. Quando se chega a Cameconde, há uma estrada principal, que fica a leste, que leva a Bafatá, Enchudé, Catió, Empada, Bedanda, Quebo. Para qualquer lado que se queira ir a saída é a mesma e para oeste tem muitas tabancas, de que eu só conheço Banire, Cassacá e Campeane. Dos outros nomes, não me lembro.

Portanto, para cumprir o serviço militar em Cameconde, era como quem pegava arma e entrava na mata para atacar os acampamentos da guerrilha. Todas as horas de todos os dias eram perigosas aqui. E só passava o perigo quando se ficava longe de Cameconde. Enquanto aqui estivesse, o militar não podia sair do arame, porque a partir de 20 a 50 metros podia ser morto ou raptado pelo PAIGC.

De manhã, a avioneta pediu que indicássemos a nossa posição. O tenente mandou estender telas, a avioneta localizou-nos e, poucos minutos depois, chegou o helicóptero acompanhado de bombardeiros T-6.

O tenente indicou a posição onde podiam bombardear. Durante a noite, o PAIGC não esteve quieto, foi fazendo fogo sobre nós. Mas depois dos bombardeamentos, o tiroteio acabou. Os helis [6] puderam assim pousar com segurança. Um foi para Bissau com um ferido e o corpo do furriel Morais, eu e o Tomás Camará fomos noutro para Cacine, onde recebemos os primeiros socorros de um médico da Marinha. Estivemos deitados na enfermaria, até que chegou a coluna que nos transportou para a pista. Fomos recolhidos por avionetas e ainda não era meio-dia estávamos em Bissau.

Esta foi a “Ciao”, a última operação dos “Fantasmas”. Eu e o Tomás resolvemos abandonar os comandos. Entregámos as armas e os equipamentos e regressámos à CCS do QG.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
_____________

Notas do autor e/ou do editor literário (VB);

[1] Nota do editor: 6 maio 1965.

[2] Furriel Piloto Aviador.

[3] Chifres, bonecos de pau, garrafas.

[4] Nota do editor: RPG ou la
nça-granadas-foguete. A abreviatura deve-se à expressão russa “lançador de granada anti-tanque portátil” (Ruchnoi Protivotankovye Granatamyot)

[5] Árvore grande, majestosa, muito frequente na Guiné. Aproveitamos a madeira para fazer canoas. Para os que adoram deuses é uma árvore sagrada, protege as tabancas, é morada tradicional de espíritos e local de cerimónias.

[6] Allouette II.
___________

Notas do editor:

(**) Último poste da série > 3 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23942: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVI: Op Faena e Açor, abril de 1965, no sector de Buba

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11139: Memória dos lugares (217): Cameconde, Cacoca, Sangonhá e Ganturé, em 1968, ao tempo da CART 1692 (António J. Pereira da Costa)

Foto nº 1 - Guiné-Bissau > Região de Tombali > Setor de Cacine >  Cacoca > CART 1692 (1968/69) > " Um do nossos condutores, o  António Andrade Júnior,  que, por opção, 'viviam'  em Cameconde. O outro era o Alcides Pereira de Lima (Unimog 404), de quem não sabemos nada".(*) 

A CART 640, a que se refere o monumento, foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o TO da Guiné em 25/2/1964 e regressou em 27/1/66. Passou por Bissau, Farim, Sangonha, Cacoca e Bissau. Comandante(s): Cap art Carlos Alberto Matos Gueifão; e cap art José Eduardo Martinho  Garcia Leandro.


Foto (e legenda): © António J. Pereira da Costa (2013). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


 1. O nosso camarada António José Pereira da Costa (Cor art ref, ex-alferes de art na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; e ex-cap e cmdt das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74). descreveu assim estes três sítios, com o rigor do geógrafo e o sentimento do etnógrafo:

(i) Só tenho fotos de Cacine e de Cameconde (*). A Ganturé nunca fui. A Sangonhá umas três ou quatro vezes e duas a Gadamael.

Tenho fotos de uma coluna ao limite do sector na estrada Cameconde-Sangonhá, quando fomos levantar três abatizes que o IN ali colocou. Em 26 de outubro de 1968 realizámos uma coluna pela estrada Cameconde - Ganturé para retirar três abatizes que o IN tinha colocado (um mangueiro e dois bisslões) e oito minas PMD - 6. Uma rebentou na roda traseira de um Unimog 404,  a penúltima viatura da coluna.

Foto nº 2

Numa das fotos [, nº 2,]   estou eu junto à traseira do Unimog no momento em que mudava o pneu.

Foto nº 3

Noutra foto [, nº 3]: eu, o João Almeida, encostados à Daimler do Pel Rec, e à direita da foto, o soldado Lameira que já nos deixou. Dos outros não me recordo do nome.


Foto nº 4

O João Almeida (o "Alce") levanta uma mina PMD-6 que estava logo ali. [, Foto nº 4].


Fotos do álbum do António J. Pereira da Costa, que era na CCaltura alferes QP da CART 1692/BART 1914 (Cacine, Cameconde, Sangonhá e Cacoca, 1967/69).

Fotos (e legendas): © António J. Pereira da Costa (2013). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


(ii) Afinal tenho esta foto de um elemento da CArt 1692 em Cacoca [ Foto nº 1].  É o António Andrade Júnior, um dos condutores que, por opção, "viviam" em Cameconde. O outro era o Alcides Pereira de Lima (Unimog 404), de quem não sabemos nada.

Este também tinha a seu cargo a manutenção do motor da luz em Cameconde. Tinha por alcunha "O Cauteleiro", tal como seu pai a tivera. Os filhos dele já foram a um encontro da CArt para conhecerem os camaradas do pai que faleceu cedo.

[Informação fornecida por email em 21/2/2013]

(iii) Memória de Cacoca (**)

(...) Em 1968, Cacoca era um daqueles lugares onde parecia não haver guerra. Dependente da Companhia sediada em Sangonhá, era um destacamento de nível Gr Comb, resumindo-se a uma pequena tabanca com pouco mais de duzentos habitantes.

O quartel era um pequeno recinto, quase um quintal, com uma vivenda de alvenaria, tipo colonial, ao centro. Nessa vivenda tinha funcionado uma daquelas lojas que só existiam ou ainda existem em África. Um daqueles estabelecimentos onde era possível comprar livros do Erskine Caldwel ou pregos de meia-galeota; garrafas de vinho verde ou pilhas para lanterna; panos com que as mulheres se cobriam ou tabaco americano que não se encontrava em Lisboa, enfim tudo ou quase tudo...

A loja ou “cantina” pertencera a um comerciante europeu a quem chamavam o Toneca e que, naquela altura, já só tinha estabelecimento em Cacine, onde vivia sem família, encarnando a figura do “lançado” no sertão. Tinha tido mais uma loja em Sangonhá, da qual se desfizera, e outra em Campeane que fora saqueada, logo no início da guerra. 

O Toneca era um homem só, longe dos seus que, ao que parece, andavam ali por Leiria. Aviava-nos com uma lenta eficácia, desencantando o que lhe pedíamos nas prateleiras junto ao tecto, ou no mais recôndito da arrecadação. Raramente falhava. À noite, a loja era um misto de tasca e café, onde se podia “meter uns copos”, ao balcão, ou tomar ar, em duas ou três mesas colocadas no alpendre. Um daqueles alpendres elevados e altos, tão frequentes, circundando as casas de um só piso. Assim teria sido também a loja de Cacoca que agora era uma instalação multiusos, misto de alojamento para pessoal, posto de socorros, posto de rádio, talvez depósito de géneros... etc., etc... e etc...

Não tenho memória de que tenha sido atacada com armas pesadas ou “ao arame”, com armas ligeiras, embora se situasse a cerca de 2 km da fronteira. Nunca mais esquecerei o meu primeiro contacto com essa casa onde, quando entrei para falar com o alferes que comandava o destacamento, se ouvia, num gira-discos a pilhas, o Gianny Morandi a cantar (bem alto) o “Non son degno di te”. 

A “máquina de fazer barulho” pertencia ao cabo maqueiro que, momentos depois discorria, em voz bastante alta, sobre os "Operacionais”, como ele, versus os “CêCê-Ésses”, que eram os outros. Via-se claramente que era um operacional pelo modo expedito como remendara um rasgão enorme nos fundilhos das calças do camuflado, recorrendo a um emplastro de adesivo daqueles com orifícios circulares, para a pele respirar... Expedientes de campanha ou o velho “desenrascanço dos portugueses”,  sempre presente aqui, ali ou em qualquer outro lado.

Quem viesse de Cacine, ao chegar ao “Cruzamento”, virava à direita e seguia paralelamente a uma pista de aterragem de terra batida (pouco operativa, na altura). O terreno era aberto e deixava ver, ao longe, a vivenda, emergindo da tabanca, cujos telhados de capim e cibe formavam uma espécie de arranjo floral de plantas secas à volta de uma flor ainda com viço. À direita e à esquerda a vegetação era densa, com todos os tons do espectro do verde, mas onde surgiam outros tons: de cinzento, de castanho e – para quem olhasse com vagar e detalhe – em salpicos mal semeados, de vermelho e amarelo.

A CArt 1692, à qual eu agora pertencia, guarnecia Cacine, mas antes tinha andado pelo sector de Sangonhá e Cacoca, e o Duarte – alferes da minha companhia, ex-seminarista como outros houve – assegurava que por ali era possível caçar pombos verdes e outras bichezas comestíveis que se manifestavam com certa abundância.

A população de Cacoca dava-se bem com os soldados e parecia haver uma certa amizade entre os jovens militares e os habitantes, independentemente das suas idades. Fiquei com a ideia de que a população colaborava na vivência da tropa de modo espontâneo e franco. A actividade operacional resumia-se a garantir a possibilidade de comunicar com a sede da Companhia. (...)


Segundo o nosso camarada Nuno Rubim, parece que também houve uma guarnição militar, nossa, em Gadamael Fronteira. E sobre Ganturé (não confundir com Ganturé, no Rio Cacheu), ele diz-nos que esteve lá iinstalado um Pel Rec ou um Gr Comb desde fev/Mmar 1964 até jul 69, pelo menos. Sangonhá terá sido abandonado, por decisão do Com-Chefe, em meados ou em finais de 1968, tal como Cacoca, segundo informação do António J. Pereira da Costa.




Guiné > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael -Porto > s/d > Vista aérea do destacamento e da sua pista de aviação. Este destacamento deverá ter sido abandonado pelas NT em finais de 1968 (O destacamento de Mejo foi evacuado em 28 de Janeiro de 1969, na mesma data de Gandembel e de Balana.  Em 6 de Janeiro de 1969, o PAIGC lançou um poderoso ataque contra Ganturé, a partir de Sangonhá. A FAP ripostou, provocando 36 mortos e muitos mortos. Foto de autor desconhecido. Álbum fotográfico Guiledje Virtual, do nossos parceiro guineense, a ONG AD - Acção para o Desenvolvimento.

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento  (2007). [Editada por L.G.].


(iv) O abandono de Cacoca e Sangonhá (**)

(...) A chegada do General Spínola à Guiné alterou profundamente a condução da guerra e as visitas que realizou a todos os aquartelamentos, por diminutos que fossem, ouvindo os “residentes”, como nunca tinham sido ouvidos, causaram boa impressão, embora constituíssem, para quem expunha os problemas, como que uma espécie de exame prático das soluções adoptadas.

Havia chegado há pouco tempo quando foi a Cacine e eu assisti a uma conversa com o capitão Veiga da Fonseca em que pretendeu saber, naquele sector, quais as posições que deveriam ser abandonadas, se pretendesse recuperar tropa “de quadrícula” para dispor de mais unidades “de intervenção”. 

O nosso Batalhão – o BArt 1896 – tinha, então, seis Companhias no terreno – Cacine e Cameconde, Sangonhá e Cacoca, Gadamael e Ganturé, Guileje, Mejo e Gadembel e Ponte do Balana (acabados de construir) – e, obviamente, a CCS sediada em Buba. O capitão respondeu-lhe que, para não perder o controlo da estrada para Guileje e depois Mejo, não deveria abandonar nenhuma posição, mas se a ideia era aquela, então que abandonasse Cacoca e Sangonhá. 

A decisão veio alguns dias depois e passámos a “fazer sector” com a unidade de Gadamael. Os quartéis de Cacoca e Sangonhá foram simplesmente abandonados e a população aceitou bem a decisão (pareceu-me, pelo menos,) e repartiu-se, segundo as suas afinidades e desejos, entre Gadamael e Cacine, o que levou à realização de mais de 30 colunas em 20 dias, com as viaturas ajoujadas de carga e passageiros. Transportámos tudo o que se podia mover. Com os homens, mulheres e crianças, seguiram as mobílias, as roupas e os alimentos, os animais domésticos e até os telhados das casas (capim e as rachas de cibe). Uma autêntica migração realizada prioritariamente para Cacine, onde havia mais recursos, espaço e melhor protecção contra as actividades dos guerrilheiros. 

(...) Por volta de Março ou Abril de 1968, começámos a abrir à esquerda da estrada, como quem vai para Cameconde, uma área desmatada, com cerca de 50 metros de largura destinada a evitar que o inimigo conseguisse instalar-se a curta distância da estrada. Já tinha havido e voltou a haver, depois da nossa saída, emboscadas às colunas que iam de Cacine a Cameconde.

Aqueles 8 quilómetros de estrada eram diariamente percorridos: todas as manhãs e nos dois sentidos, por um pelotão de milícia, e pela coluna auto que saía e retornava a Cacine, sem horários marcados. A população colaborava diariamente, com mais ou menos vontade, nos trabalhos de desmatação com o objectivo de criar uma área de terreno cultivável e sob a vigilância de um grupo de combate, lá ia, formada em linha, cortando e abatendo tudo o que fosse vegetação. (..:) 

O mais insólito sucedeu no dia em que fomos atacados da ponta Cabascane. Devido às suas luzes, Cacine referenciava-se bem de longe e os serventes do PAIGC estavam inspirados, naquele fim de tarde. Por isso, algumas morteiradas caíram dentro do quartel. A flagelação teve lugar imediatamente antes do jantar, na altura em que, na varanda da vivenda que servia de messe, estávamos a apanhar fresco e beber um aperitivo. Cada um fugiu para o seu sítio e o gravador Akai do capitão continuou a tocar indiferente à flagelação. Era um gravador de fitas, com duas colunas grandes que davam um som óptimo (para o tempo). A mesa onde comíamos estava colocada a um canto da casa (um sítio bastante seguro) e o PIDE, sem lugar definido em caso de ataque, acabou por entrar em casa e esconder-se debaixo da mesa. Dali gritava para que alguém lhe “apagasse a música”. Porém, ninguém voltou atrás para essa tarefa. Depois do ataque, ao jantar, explicava que “não se deve brincar com a providência” e que aquela música, no meio das explosões, o enervara sobremaneira. Daí a sua respiração ainda resfolegante...

(...) As casas para a população de Cacoca e Sangonhá foram construídas, na área da antiga “Missão do Sono”, então desactivada pela erradicação da doença. O auxílio muito empenhado do pessoal da companhia foi essencial e foi a primeira vez que vi casas cuja construção começou pelo telhado. Tudo começava com a construção de uma estrutura que suportava o telhado. Depois, este ia sendo construído e coberto de capim. Por fim, eram as paredes que resultavam de um espécie de rede de paus mais curtos e espetados no solo que faziam ângulos de rectos com outros mais compridos dispostos na horizontal. No recticulado que assim se formava iam sendo colocadas, pela face interior, “chapadas” de lama que, secando, iam constituindo as paredes das habitações. (...)

O quartel de Cacoca ficou incluído no nosso sector e, de vez em quando íamos para aqueles lados. Até para que o IN não o tomasse como seu. Como era um ponto bem marcado no terreno e observável desde “o cruzamento” utilizámo-lo uma vez numa regulação de precisão de fogos de artilharia, com observação terrestre. (...)


Guiné > Região de Tombali > Sangonhá > CCAÇ 1621 (1966/68) > 1968 > Picada de Sangonhá para Cacine. A CCAÇ 1621, que esteve antes em Cufar e Cachil, terminou a sua comissão em Sangonhá, em 1968. O aquartelamento de Sangonhá deve ter sido abandonado pelas NT em meados ou em finais de 1968. Os guerrilheiros do PAIGC fora, massacrados pela FAP,  em 6 de Janeiro de 1969, quando atacavam Ganturé, a partir da antiga pista de Sangonhá. Terão tido 36 mortos, e muitos feridos.(***).

Foto (e legendas): ©  Hugo Moura Ferreira  (2006). Todos os direitos reservados [Edição: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11133: Memória dos lugares (215): Cameconde (António J. Pereira da Costa, CART 1962, 1968/69) / Manuel Ribeiro , CART 6552/72, 1973/74, a companhia do célebre Lemos, do FC Porto que marcou 4 golos ao Benfica, em 31/1/1971)

(**) Reprodução parcial do poste de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6614: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (3): Gente de Cacoca e outros

(***) Vd. postes de:

 25 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2579: Álbum Fotográfico do Hugo Moura Ferreira (3): Em Sangonhá, a sul de Gadamael, com a CCAÇ 1621 (1968)

(...) Depois de estar em Cufar e Cachil, a CCAÇ1621 foi terminar a comissão em Sangonhá, que ficava a sul de Gadamael-Porto. O aquartelamento (e a tabanca) terá sido abandonado pelas NT em finais de 1968.

Fotos que foram cedidas por antigos camaradas de armas ao Hugo Moura Ferreira , entre eles o ex-Fur Mil Correia Pinto, e que nos foram enviadas em Julho de 2006, na sequência do Convívio anual do pessoal da CCAÇ 1621, em 2 de Julho de 2006.

O Hugo esteve na Guiné de Novembro de 1966 a Novembro de 1968, como Alf Mil Inf, primeiro na CCAÇ 1621, em Cufar e Cachil (de Novembro de 1966 a Junho de 1967), e depois na CCAÇ 6, em Bedanda (de Julho de 1967 a Julho de 1968). O Hugo já não acompanhoua a companhia, com destino a Sangonhá, por ter sido transferido para Bedanda (CCAÇ 6 - antiga 4ª Companhia de Caçadores) . A grande maioria do pessoal desta unidade era do Minho e Trás-os-Montes. O Hugo esteve pela primeira vez com eles, no convívio de 2 de Julho de 2006 . (,,,)

23 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)

(,,,) No dia 6 de Janeiro de 1969, cerca das 8 horas da manhã as forças do PAIGC, estacionadas na antiga pista do quartel abandonado de Sangonhá, iniciaram um ataque bastante cerrado com armas pesadas ao Destacamento de Ganturé, tendo caído algumas granadas no interior do mesmo.

O pessoal do destacamento [de Ganturé] respondeu com morteiro 81 e 60, mas o ataque continuava. Então pediram apoio a Gadamael, que reagiu com mesmo tipo de armamento e, se a memória não me falha, também com o obus 8,8 [, ou peça de artilharia 11,4 ?].
Mesmo assim a festa não parava e então pediu-se o apoio aéreo, que surgiu, composto por dois Fiat. Pediram-nos a localização provável de onde estávamos a ser atacados, e que sinalizámos com granadas de fumo, disparadas pelo morteiro 81. Dirigiram-se para essa zona e de imediato começámos a ouvir rajadas - eram de anti-aérea - e nós perguntámos aos pilotos se eram eles que estavam a fazer fogo, tendo-nos respondido que não! Então numa conversa entre ambos os pilotos, ouvimos um deles dizer ao outro "senti qualquer coisa no meu aparelho"! E comunicaram-nos que iam regressar a Bissau.

Passado algum tempo regressaram 4 Fiat e mais tarde 2 T-6 e uma DO [- Dornier 27]. Entraram pelo lado de Cacine e de imediato iniciaram o lançamento de bombas, cuja explosão era perfeitamente audível e sentida através de fortes tremores do solo. (Estávamos a uma distância de cerca de 6/8 Kms em linha recta).

A operação terminou cerca das 13 horas. Na tentativa de sabermos exctamente o que tinha acontecido, eu e o Rodrigues (ex-Alferes Miliciano) reunimos um grupo razoável de voluntários, e pedimos ao Capitão para nos deslocarmos ao local, mas a nossa pretensão não teve acolhimento. Apanhámos um grande balde de água fria!

Somente no dia 9 [de Janeiro de 1969, três dias depois], com apoio aéreo, é que fomos ao local. No percurso encontrámos carretéis de fio telefónico com uma extensão de cerca de 4/5 kms, abrigos individuais ao lado da estrada, e, na antiga pista [ de Sangonhá], armas destruídas e pedaços de corpos de negros e brancos e 13 sepulturas. Uns dias depois tivemos a informação de 36 mortos confirmados e muitos feridos.

O aspecto do local era medonho! A terra, cuja cor natural é avermelhada, tinha a cor cinza! O intenso cheiro a putrefacção! Os abutres (jagudis) às dezenas! As árvores queimadas! Enfim. (...).

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18272: Memória dos lugares (373): Cacine, 1967 (Manuel Cibrão Guimarães, ex-fur mil, CCAÇ 1620, Bissau, Cameconde, Cacine, Sangonhá, Cacoca, Cachil e Bolama, 1966/68)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cacine > CCAÇ 1620 > 1967>  O fur mil Manuel Cibrão Guimarães, frente à "capela militar de N: sra. de Fátima", construída ao tempo da CART 496, em 13/5/1964 e provavelmente completada pela CCAÇ 799, um anjo depois (10/6/1965)... O Cibrão Guimarães está vestida com uma "sabadora" (peça principal do traje masculino dos muçulmanos) e um gorro, fula, na cabeça... A peça do vestuário tem a particularidade de ser feita com sacos de farinha de panificação (, "ofício" a que sempre esteve ligado: o pai era industrial de panificação; e ele daria continuidade ao negócio até se reformar; natural de Avintes, Vila Nova de Gaia, mora em Rio Tinto, Gondomar; é pai de duas filhas, a esposa, licenciada em farmácia e professsora do ensino secundário, também está reformada).


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cacine > CCAÇ 1620 > 1967>  Da esquerda para a direita, o Cibrão Guimarães, um furriel do BENG 447 e o vagomestre da CCAÇ 1620, o António Santos,


 Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cacine > CCAÇ 1620 > 1967>   Em primeiro plano,  um furriel da "psico" (de óculos), e no lado direito,  de barbas, sem óculos, mais outro furriel, seguido do sargento Moreira (de costas), o Manuel Cibrão Guimarães (em terceiro lugar) e,por fim, o furriel Valente... Do lado esquerdo da mesa, estão outros sargentos e furriéis, incluindo o António Santos, vagomestre, de barbas.



 Foto nº 3 A > Guiné > Região de Tombali > Cacine > CCAÇ 1620 > 1967>    Mesa de furriéis milicianos e sargentos QP... O Manuel Cibrão Guimarães, de bigode,  é o segundo a contar do fim, do lado direito da foto...


 Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cacine > CCAÇ 1620 > 1967> Cerimónia religiosa, com homens grandes e população. Ao centro, em primeiro plano, o "mauro", de turbante e vestes pretas.



 Foto nº 4A>  Guiné > Região de Tombali > Cacine > CCAÇ 1620 > 1967> Cerimónia religiosa, com homens grandes e população. O Manuel Cibrão Guimarães está por detrás do "mauro", de camuflado, e bigode.

Fotos (e legendas): © Manuel Cibrão Guimarães (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Manuel Cibrão Guimarães:
natural de Avintes, V. N. Gaia,
 vive em Rio Tinto, Gondomar
1. Continuação da publicação de uma seleção de fotos do
 álbum do nosso grã-tabanqueiro nº 766, Manuel Cibrão Guimarães, ex-fur mil, da CCAÇ 1620 (Bissau, Cameconde, Cacine, Sangonhá, Cacoca, Cachil e Bolama, 1966/68). (*)


Antes de ir para o Cachil (em março de 1968), a CCAÇ 1620 tinha assumido, em 5 de janeiro de 1967, a responsabilidade do subsetor de Cameconde, rendendo, por troca, a CCAÇ 799 (Cacine e Cameconde, 1965/67), e passando a integrar o dispositivo  e manobra do BCAÇ 1861 e depois do BART 1896.

É nessa altura que a CCAÇ 1620 tem um pelotão destacado em Cacine. E o Manuel Cibrão Guimarães estevelá, como as fotos documentam...

Em 1 de agosto de 1967, por rotação com a CART 1692,  a CCAÇ 1620,assumiu a responsabilidade do subsector de Sangonhá, com um pelotão destacado em Cacoca, mantendo-se no mesmo sector do BART 1896.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19115: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (5): José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70)


Guiné > Região de Tombali  > Cameconde > 1969 > Oficiais e sargentos: o primeiro da esquerda é o José Diniz Sousa e Faro, fur mil art, do 7º Pel Art;  à sua direita, em primeiro plano, o alferes médico; sentado à direita deste, o J. A. F. Chaves e depois o R. Carvalho, de costas: de pé, na outra ponta da mesa, o J. Lopes.  Cameconde era a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine..

Foto de cronologia da página do Facebook do Dinis Souza e Faro, que nasceu em Goa, em 21 de dezembro de 1945. Vive em Carcavelos. É membro da Magnífica Tabanca da Linha e da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário ao poste P19106 (*)

Autor: José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70) (*)

Ter uma "cunha" não é sinónimo de boa vida, no meu caso concreto na Tropa. Eis o meu Fado:

Os meus familiares, quer maternos, quer paternos,  são militares e uma mãe que se preze zela pela sua cria.

Em Abril de 67 estou na Recruta, no CSM [Curso de Sargentos Milicianos], nas Caldas da Raínha. Passado uma semana sou chamado ao Cmdt da 5ªCompª, onde sou informado que o meu primo Capitão pede ao seu camarada para ser exigente comigo para que possa honrar a tradição da Família... Era uma forma subtil de "Cunha". 


Pois bem, o efeito foi ao contrário passei a ser perseguido, pelo Alferes e pelos Cabos Milicianos. Era tudo a dobrar.
Fui para a especialidade de Artilharia de Campanha que na altura ninguém sabia o que era. Junho de 67 Vendas Novas. 

As dificuldades era iguais para todos, pois os Oficiais do Comando responsáveis pelo curso não faziam distinções. No meu pelotão de obuses havia de tudo, ricos, remediados e pobres. Mas eram os pobres que recebiam bons enchidos das suas terras.

Em Abril de 68 fui mobilizado para a Guiné, não disse nada a ninguém. Num jantar, um outro primo, Major, que estava Caxias nos Serviços Mecanográficos,  perguntou-me se gostava da especialidade e que poderia ficar descansado que se fosse para o Ultramar iria para uma cidade. 

A minha resposta foi curta e grossa. Então vá dizer isso ao Governador da Guiné que requisitou os Artilheiros e os Obuses todos. É provável que a cunha tenha funcionado pois fui e vim sem nenhumas mazelas e uma mão cheia de camaradas para o resto da vida, sobretudo os: Os Bandalhos, Magnífica Tabanca da Linha e Tabanca Grande. 

Forte abraço para todos. (***)

J.D.S.FARO
68/70.
___________

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14974: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (4): Cacine

1. Parte IV de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (4)

Cacine

Tinha um pequeno porto que já não me lembro a função dele pois as LGD’s faziam o seu descarregamento na praia.

O interior do quartel era composto duma avenida ladeada de palmeiras que incutia um ambiente próprio de zona equatorial. Desde a margem do rio até à saída do quartel, desembocando na aldeia, o panorama arborizado inspirava-nos de modo a abstrairmo-nos do monstro que era a guerra. Para além das palmeiras havia muitas árvores de fruta, bananeiras, mangueiras, laranjeiras e muitas outras. O nosso quartel era um lugar aprazível e a restrição de entrada do pessoal da tabanca não era rigoroso pois por volta das 16 horas lembro-me de lhes comprar mancarra (amendoim) do qual fazia o meu lanche acompanhado com uma cerveja. Nos dias de batuque na tabanca também íamos ver e tomar parte. Havia um comerciante que abastecia a população e até onde se ia muitas vezes. O administrador do posto, um cabo-verdiano, fazia parte do convívio e lembro-me que no fim da comissão nos preparou umas boas refeições de frango de caril. Ele vivia com a mulher.

O nosso convívio com a malta do pelotão era intrínseco criando-se uma forte amizade baseada nas circunstâncias da guerra e onde os longos convívios faziam brotar uma certa espiritualidade de onde nascia o saber ouvir o outro desfilando na memória do tempo rasgos de facetas de vidas duras passadas na terra de origem. Os problemas individuais desfilavam como contos de histórias e uma vez foi a sério e chegou longe demais. A namorada escreveu a informar que o namoro acabara. Longe, isolado, sem nada poder participar e ouvir directamente o que se passava a imaginação alcançava situações à maneira dele e foi de tal ordem que se abordou da beira rio e desvairado começou a disparar a G3. Já não me lembro quem foi ter com ele onde o imprevisto poderia acontecer mas que resultou em bem.


Cacine era o local onde se passava cerca de dois anos envolvidos na mística da guerra. Os nossos aposentos deviam ser precários que nem me lembro como estávamos acomodados. Todos os meses fazíamos rotação entre Cameconde e Cacine. Por isso devíamos andar sempre com a roupa atrás de nós.


O desporto era sempre um motivo para estarmos activos e o futebol era o que era mais requerido por todos. Um desporto barato porque são muitos atrás de uma bola cujo preço a dividir pelos que jogam e a sua duração dá como resultado uns tostões a cada um.


Formar equipas não era difícil entre mais de meia centena de pessoas porque a outra estava noutro lado. A disputa entre sectores era aliciante. E depois de um bom desafio de futebol um bom banho de água tirada por uma bomba sabia bem. O balneário era público feito de bidões enchidos a partir dum Unimog. Cada sector tinha o seu balneário.


De Fevereiro ao Natal de setenta o tempo passou-se. A alternância entre Cacine e Cameconde dava para variar um pouco. Quem estava em Cacine fazia os patrulhamentos até Cameconde e quem estava em Cameconde fazia-os para além em direcção à fronteira com a Guiné Konacry. A alimentação constava muitas vezes de peixe pescado na zona ou de carne arranjada por caçadores locais e até de elementos da milícia. Eram alturas de convívio em que faziam parte o comerciante local assim como o PIDE.

Ao longo do ano e conforme a estação sabia bem fazer as refeições ao ar livre debaixo duma boa sombra. A companhia dividida em quatro pelotões de 25 soldados entre os quais 12 cabos, 12 furriéis e 4 alferes juntava-lhe o pelotão das Daimlers. Sargentos havia 3. O capitão era o Magalhães. O nosso capitão foi do melhor que se pode arranjar no exército português. Fomos e voltamos todos e nesta pequena frase está tudo resumido.



Já não me lembro bem quando tirei as minhas primeiras férias as quais foram passadas em S. Miguel. Apanhava-se a avioneta para Bissau e daqui um avião da TAP para Lisboa e depois S. Miguel. Pormenores já não me lembro. Não me recordo por exemplo o preço da avioneta para Bissau nem a passagem para Lisboa e S. Miguel. Sei que ganhava naquela altura cerca de sete mil escudos. Transferia cinco mil para os Açores dos quais dava mil aos meus pais. Ficava com dois mil para as minhas despesas. Tinha que pagar a lavadeira, as bebidas fora das refeições, a mancarra e sei lá que mais. Fui duas vezes para Bissau através dum artigo do RDM que me dava 5 dias indo para o hotel que já nem sei o nome. Em Bissau percorríamos a cidade entrando nas esplanadas onde a cerveja era servida com um prato de sobremesa com camarões. À noite o serão era passado num quartel onde se jogava o bingo. Havia bons prémios tais como frigoríficos.

Passar a tropa no mato ou na retaguarda fazia a diferença. Neste contexto os nossos miolos começavam a fazer muitas perguntas. O por quê disto assim! Com que direito a situação desta guerra gerava um conjunto onde muitos seres humanos se debatiam consigo próprios a respeito da sua existência e para que servia ela. Defender a pátria ou interesses de alguns que se serviam da pátria para fins obscuros que no fundo não passava de dinheiro e bem estar à custa da vida de seres humanos. Olhando a história ela está eivada de guerras e o homem não aprende a viver sem ela. É a lei da selva, a lei do mais forte, os que não têm consciência, sobrepondo-se aos que a têm. Espero bem que um dia os dirigentes políticos sejam obrigados a passar por uma instituição religiosa para formarem a sua consciência para não ouvirmos de muitos políticos que têm a consciência tranquila quando o mais comum dos cidadãos sabe que é exactamente o contrário. Esta relatividade tem que ser bem definida. Deve ser proibido países serem governados por um Hitler, por toda a espécie de ditadores mesmo por um Bush.

Mas voltemos a Cacine para falar dum pelotão de milícias. Era uma tropa civil que na Guiné servia para fazer a picada dos caminhos e trilhos por ode se passava. Eram detectores de minas. Por acaso enquanto estive nesta guerra não me lembro de alguma mina ter sido despoletada. Dos 23 meses que ali estivemos, estive dois de férias e dois a tapar buracos em outras duas companhias. Mas neste pelotão havia de tudo um pouco. Havia os revoltados mais conscientes da situação que chegavam ao ponto de serem vergastados por lutarem por uma justa causa mas que na altura ponham em risco a sua sociedade. Era a ditadura. Os chefes da tabanca sabiam com quem estavam a lidar e colocar em risco de vida uma população ou alguns deles era periclitante sair fora da visão Salazarista. Sei dum caso em que foi bem vergastado. No entanto havia outros tipos de seres humanos e deixei bons amigos sendo um deles o Salifo Dabó.


Era um meio de subsistência ser-se integrado nesta tropa civil porque nunca soube como se vivia em lugares destes sem uma agricultura. Uma vez dei comigo num terreno onde estava a trabalhar um nativo tentando retirar alguma coisa da terra depois de fazer uma queimada. Um terreno cheio de tocas de árvores queimadas. Ele estava irritado e zangado. Mais para os arredores e mais longe dos espaços da tropa havia aquilo que antigamente parecia terrenos de muita fruta.

A milícia era um pelotão de nativos que por eles iam passando as mais diversas companhias e certamente já cansados de andarem a repetir a mesma lição dezenas de vezes.


 A população vivia em palhotas no aldeamento ao lado do quartel, para o interior do terreno. O contacto é coisa que se vai fazendo e adquirindo no bom ou mau sentido consoante a mensagem que transmitimos. Muito longe da mentalidade objectiva do tempo estava eu, formado numa congregação religiosa, transmitindo uma sã cordialidade de modo a conseguir um bom relacionamento com as pessoas. Não foi fácil nem possível, tirando algumas excepções. O diálogo era sempre à base da desconfiança. Os mais velhos e responsáveis pela população, os religiosos e homens do povo, esquivavam-se e normalmente não apareciam. Falar com eles era pior que ter uma audiência com o presidente da república. Por isso, fora desse ciclo mas certamente com a prevenção deles, apareciam as crianças e jovens. Em todas as situações do planeta as crianças são sempre as mais espontâneas e certamente por isso as que mais sofrem.

Esta “bajuda”, termo para rapariga ou menina, era filha dum milícia que lavava a minha roupa.

Algumas mulheres dos milícias apareciam com as suas crianças às costas. Fui nomeado para estar à frente deste grupo apesar de não ter isso muito em conta pois eles tinham o seu dirigente.


O meu amigo Salifo Dabó com a sua irmã

O meu amigo Salifo Dabó, um milícia e três bajudas


Makissa, uma criança filha dum milícia, penso que pai da moça que me lavava a roupa, já não me lembro, e que dediquei muita da minha atenção. Com autorização do capitão e dos pais levava-a para o quartel onde a mimava com o que havia de comestíveis, chocolates, e bebidas gasosas etc. A transpiração era um dos cuidados a ter. Dava-lhe banho, levava-a para a messe dos oficiais e estava connosco parte da tarde.

Hoje pergunto onde estará essa criança. Será que é viva? Sabe-se que após a independência foram mortos, por vingança, muitos dos milícias espalhados por toda a Guiné. Se alguém souber do paradeiro da Makissa, eu gostaria de saber.



Outra coisa curiosa que aconteceu em Cacine foi a visita duns jornalistas, penso que alemães, acompanhados por uma patente militar e sempre debaixo de olho e que me entrevistaram com uma série de perguntas que já nem me lembro sobre a situação da guerra. A Makissa estava comigo nesses momentos. Outra situação que gostaria de saber por onde anda a reportagem desses jornalistas.

Estávamos a esfregar as mãos de contentes porque estava a chegar o fim da comissão quando nos aparece um major com um plano maquiavélico para fazermos uma operação bem para o interior e para sul. Foi coisa que ainda não nos tinha acontecido. Não nos queriam deixar sair de Cacine sem um rebuçado destes. Todo o aparato foi montado e não sei quantos pelotões saíram mato dentro com um esquema que o capitão tinha em seu poder. Pormenores não me lembro mas certamente comunicados a nós sem fazer a mínima ideia da realidade do terreno. Alguém sabia o caminho e como tal lá nos embrenhamos por atalhos durante horas. A dada altura chamaram-se lá da frente com mensagem passada ao de trás. Era uma mina anti pessoal que era preciso desmontar. Lembro-me de ter nas minhas mãos o detonador. A dada altura paramos. Uma avioneta percorreu o espaço por cima de nós. Mais tarde resolveram ir buscar-nos de batelão. A maré já estava vazia e foi longe que nos deixaram entrando lodo dentro, patinhando, de modo a chegarmos ao quartel.


Texto e fotos: © Tibério Borges

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine