sábado, 11 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18914: Memória dos lugares (379): No restaurante e cervejaria Pelicano, à noite, acabado de desembarcar em Bissau, em 9 de novembro de 1970, ouvindo "embrulhar" lá longe, talvez Tite, talvez Fulacunda...(Hélder Sousa)



Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > Rua onde ficava a célebre cervejaria Solmar, aqui evocada pelo Hélder Sousa, acabado de chegar a Bissau, em 9 de novembro de 1970: "Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, a Solmar, o Solar do 10, a Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano"...

Foto: © Humberto Reis (2005). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné-Bissau >  Região de Bafatá > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro ?... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe... O que mudou na Guiné-Bissau, desde que o Hélder Sousa desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de Novembro de 1970 ?...

Foto: © Hugo Costa (2006). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada, amigo e grã-tabanqueiro  Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72), desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970 (, tendo partido de Lisboa ao findar dia 3). 

Apresentou-se no STM (Serviço de Transmissões Militares), em Santa Luzia, e depois foi dar uma volta para conhecer Bissau "by night"... São as primeiras impressões da cidade que ele relata aqui, telegraficamente (*).  É mais um contributo para a nossa "memória dos lugares" (**)... Curiosamente, do seu roteiro inicial de Bissau, "by night", não constava o Chez Toi..."Boite", "cabaret", "night club"...era a coqueluche de Bissau "by night", no início da década de 1970...Não havia cão nem gato que não conhecesse ou quisesse conhecer o "Chez Toi" onde "gajas brancas",,,


(...) O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, furriéis milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar, os quais estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) os quais arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha, que tinha estado numa Companhia de Caçadores Nativos [, CART 11,] e que estava agora destacado numa repartição qualquer do QG.

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências no Blogue mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970), lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de minicarros, muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse:


  • a Solmar;
  • o Solar do 10;
  • a Ronda;
  • o inevitável Café do Bento (5ª Rep.);
  • a casa das ostras na rua paralela à marginal;
  • o Pelicano.
Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha coca-cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba, diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade, coisa que mais tarde já não era assim, os nomes tinham depois uma identidade própria, acho mesmo que havia até uma como que espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuladdes de vida que lhes eram inerentes.

Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidaridade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constactar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietname com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso.

Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender uma fotos "de gaijas nuas". É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratavam de "gaijas" mas sim de "uma gaija", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade. (...)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2008 >  Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

(**) 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.

Guiné 61/74 - P18913: Os nossos seres, saberes e lazeres (279): De Aix-en-Provence até Marselha (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
À despedida de Nîmes, era inevitável contemplar esse fenómeno único que é Pont du Gard, um dos exemplos magnificentes do que foi o génio arquitetónico romano.
E partiu-se para a última etapa da viagem, Marselha, a cidade multicultural da França debruçada sobre o Mediterrâneo, cercada de parques naturais, presenteada por um dos portos históricos, aqui se cruzaram variadas civilizações, recordo que os sírio-libaneses que arribaram na Guiné, todos eles por aqui passaram antes rumar para África.
Chega-se à estação ferroviária e a arquitetura é também de estadão, sinais de riqueza aqui não faltam, mas aquele primeiro dia era mesmo para calcorrear o impressionante Porto Velho.
Foi muito compensador conhecer Marselha, final mais feliz para esta viagem à Provença dificilmente se podia arranjar.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (11)

Beja Santos

Ir a Pont du Gard estando em Nîmes é como passar por Roma e procurar ver o Papa. Apanha-se um autocarro de carreira, dá para apreciar as belezas da região de Uzès, vemos no percurso aldeias carregadas de caráter, à distância, nas colinas escarpadas, avistam-se igrejas e muralhas, houvesse tempo e percorria-se estes lugares patrimoniais com outros olhos, mas, tristemente, é visita de médico. Pont du Gard, Património da Humanidade, é mais um exemplo eloquente do génio da arquitetura romana, o que se está a ver é um aqueduto construído em 20 a.C. sob a égide de Agripino, genro de Augusto. Leia-se o que vem na brochura, quanto às suas impressionantes dimensões: atravessa o rio Gard com quase 49 metros de altura e 275 metros de comprimento, e temos a magnificência de três séries de arcos sobrepostos. Nenhuma abóbada da Idade Média apresenta um vão desta envergadura. Os arcos inferiores são compostos por blocos gigantescos, seguem-se blocos de pedra mais pequenos estabilizados por pedras de cantaria gigantescas, por aqui se passeia e desfruta uma panorâmica de estalo. Ponto final, regresso a Nîmes, nova viagem de comboio para a etapa final, Marselha.


Quando se fala em Marselha, ocorre imediatamente à mente o Porto Velho, buliçoso e portador de uma história de vários cruzamentos de civilização, tem o Norte de África ali ao pé, continua a atrair gente das antigas colónias. O currículo da cidade é enorme, está marcada pela Antiguidade Clássica, tem vestígios da cidade romana, as muralhas à volta do Porto Velho impressionam pela sua majestade, e quando se sai da estação ferroviária depara-se com esta escadaria a que não falta magnificência, dá passagem à famosa Canebière que liga ao Porto Velho. Por aqui vai o viandante mirando a arquitetura que assinala a prosperidade dos séculos XIX e XX, desce-se esta grandiosa avenida e vamos encontrando arquitetura sumptuosa, há sinais de riqueza contida, caso da Ópera, que data de 1924, em estilo Arte Déco. É inevitável, arruma-se a tralha onde se vai estadear por dois dias, corre-se apressadamente para o Porto Velho, enquanto há luz, dura e faz figura.






Uma inscrição em belo lampião atrai imediatamente a atenção. Neste preciso lugar foi assassinado o rei Alexandre I da Jugoslávia, em 9 de outubro de 1934, há filme e muitas imagens do que aqui se passou, o rei vinha em visita de Estado, tinha à espera um revolucionário búlgaro.


Chegou-se a Marselha com o céu um tanto enegrecido, desanuviou, o viandante anda agora prazenteiro no Velho Porto, aqui chegaram os gregos em 600 a.C. e durante toda a Antiguidade e Idade Média, Marselha desenvolveu-se na margem esquerda do Porto. Será preciso esperar por 1666 para que a cidade vá crescer no lado Sul. É um panorama ímpar com esta multidão de barcos, passeia-se calmamente a ver entradas e saídas de embarcações, segue-se atraído pelos fortes que fazem guarda ao Porto e que datam do século XVII.



Os fortes de S. Nicolau e S. João possuem esta grande dimensão e o de S. João é hoje uma casa de cultura, tem permanentemente exposições, é aqui que está implantado o Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, o Muceum. E assim finda uma tarde contemplativa, toca de rumar para o Porto Velho, há que desencantar uma caldeirada reconfortante, Marselha é terra da bouillabaisse, um bom tónico para o programa de amanhã, pela velha Marselha e subindo ao seu ponto mais alto, de onde se avistam cordilheiras de Alpes que avançam para o Mediterrâneo, que grande beleza panorâmica!



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18896: Os nossos seres, saberes e lazeres (278): De Aix-en-Provence até Marselha (10) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18912: Estórias do Juvenal Amado (61): Um pouco de todos nós - "Difícil foi libertar-me do abraço", por Carlos Paz

CICA 4 - 8.º Pelotão - Com o Aspirante Pimenta e o Cabo Miliciano Picado


1. Em mensagem de 3 de Agosto de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta sob o pseudónimo de Carlos Paz.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

61 - UM POUCO DE TODOS NÓS

"DÍFICIL FOI LIBERTAR-ME DO ABRAÇO"

Um Conto por
Carlos Paz[1]

Movimentos ritmados, cadência entre a passada e a vara, picamos o chão à frente dos pés. O ar está seco, as botas levantam pequenas nuvens de pó, as gargantas suplicam por água, os sentidos ficam cada vez mais absortos, à medida que o cansaço provoca um tropel na marcha e a respiração cada vez mais audível. Ninguém fala, a mata cala-se à nossa passagem, só sinto um zumbido e o roçar da arma a tiracolo na anca, o calor faz-nos desfazer em suor que encharca o pescoço e a farda.
Quantos passos quantos compassos por hora, quantas gotas de suor se limpam com as costas da mão?
Só penso na hora do regresso, só quero descansar. Viro-me para trás, a fila alonga-se, os rostos ainda com barba mal semeada mas mesmo assim por barbear na sua quase maioria, estão deformados pelo esforço.
Quem nos reconheceria agora?
Quando pisámos o cais éramos praticamente crianças a boiar nos camuflados novos, agora passados nove meses, a cara tisnada, tensa e crespa, corpo dorido, olhos duros não parecemos os mesmos. O nosso aspecto acompanhou a degradação do camuflado, que está roto e com as cores desmaiadas.

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Quanto tempo passou na verdade? Aqueles momentos parecem tão longe.
Em pouco tempo percorremos o espaço entre os bailaricos, das festas, dos namoricos e a idade adulta. Uma cavalgada desenfreada em que galgámos os dias e as noites num salto no tempo. Aceitámos sem revolta ir combater numa terra estranha e que da qual, só conhecíamos o que aprendemos na escola e pouco ou nada nos lembrávamos.
Tudo se passou rapidamente no implacável contar das horas, dias e meses. Quase sem darmos por isso, passámos da vida despreocupada, do convívio com familiares e amigos, para um mundo diferente no clima, nos costumes e cheio de armadilhas, umas imaginárias e outras, bem reais como rapidamente constatamos.
Por vezes tanto se dá correr como saltar porque as curvas, as escorregadelas e as pedras do caminho, estão lá à nossa espera. Depois de escorregarmos pareceu-nos tão simples, ficamos a pensar como não antevimos o obstáculo, como não nos desviamos a tempo, porque aceitámos inexoravelmente que não havia outro caminho, não questionámos quem nos mandou naquela direcção. Costuma-se dizer que não vale a pena chorar sobre leite derramado e é uma grande verdade.
Difícil foi libertarmo-nos do abraço, do inevitável, enquanto num fio de voz murmurava baixinho: “Isabel não me esqueças mas ajuda-me a libertar-me deste abraço e ajuda-me despedir-me de ti”.


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Estações cheias, comboios apinhados de mancebos, fardas verdes, boinas castanhas, na sua esmagadora maioria destinos incertos, despejados em Sta. Apolónia, cais dos nossos medos. Com graçolas e risadas engana-se o aperto no peito e a ansiedade pelo passo seguinte.
No rio ali perto baloiçam navios e um deles abre os porões para nos engolir. Aperta-se a tenaz à nossa volta e para muitos a viagem vai ser uma descida aos infernos.
Só virão para cima às costas dos camaradas, tão doentes do enjoo, que facilmente se deixariam definhar e morrer naquele porão nauseabundo e fétido. Tudo ficou enevoado e esquecido, perante os dolosos incontroláveis arranques que vêm do fundo das suas entranhas e que lhes levam as últimas forças. Naquela atmosfera de humidade extrema e pegajosa, vomitam e urinam-se, sem forças para subir ao tombadilho onde instalaram as latrinas. Ninguém gosta de lembrar esses momentos em que o homem perde a dignidade e se dá ao abandono físico e anímico. Deixa-se de lutar, pois a cabeça não raciocina e o corpo deixa de ter vontade. A nossa juventude não merecia tal tratamento, tal falta de respeito, tanto desprezo.
Não enjoei mas estou com a cabeça levemente zonza pelo contínuo balançar do barco e o barulho em surdina dos motores, que se espalha pelo o porão abaixo do nível da água. Recordam-se os sorrisos e a trocas de olhares, as promessas mudas, o leve roçar dos corpos ao som da música, a respiração junto ao rosto que, tantas promessas encerram.

Ao largo da Madeira

A bordo do Angra do Heroísmo

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Hoje ansiamos pelo dia do correio, onde esperamos reviver os dias brilhantes de romance contido, dos beijos mais ao menos tímidos, por isso mais saborosos na maravilhosa descoberta um do outro.
Naquele dia encontrámo-nos. Um e outro tinham a certeza nos olhos daquele amor reprimido. Não é sexo mas entrega, é paixão incontrolável num acto tantas vezes desejado, mas mesmo assim assumido com atracção irreprimível de promessa e dos segredos por desvendar.
O desejo explode com as caricias e beijos, os seios crescem para serem afagados, as bocas entreabrem-se, línguas tocam-se as mãos percorrem cada centímetro dos corpos frementes. Nada é calculado nada é previamente estudado. A natureza, o desejo vibra não há reserva, há necessidade de consumar de ir na corrente que nos leva para um doce abismo. Um soluço agudo a dor que desaparece como a dúvida, já nada nos faz parar é o assomo que nos transcende, que nos transforma num só.
É a beleza do momento consumado, universo alinhado, é a natureza que comanda que dita as leis, as dos homens e de Deus, ficaram esquecidas, pois só há lugar para nós dois, que ficaremos ligados para sempre a este momento mágico.
Por fim descansamos abraçados com a respiração ofegante, a realidade e os sons voltam pouco e pouco. Há uma felicidade pela descoberta, há algum receio pela consequência, mas nada nos pode tirar o que acabamos de sentir e viver. Está tudo mais belo mais humano mais florido o nosso segredo é um elixir para os sentidos.
O lugar vai ser repositório dos nossos encontros, catedral dos nossos arrebatamentos e fortaleza do nosso amor. Não deixa de haver algo trágico e belo nos encontros e nas despedidas.
Depois acorda-se e é preciso encarar a vida, a dor e a separação que nos espera, como que à esquina, sem apelo sem queixume e sem justificação.
Era o dever, disseram.
O carteiro vai saber o nome do remetente de cor e salteado, tantas vezes escrito e lido. Vai fazer de arauto a cada nova carta e também vai reparar, no dia que não houver nenhuma.
O correio só sai duas vezes por semana e só nessa altura recebemos também as cartas dos nossos. Há um desfasamento de datas entre o seu recebimento e a resposta, o que por vezes confunde.
No meio da parada, sob Sol escaldante gritaram o meu nome e apressei-me a receber aquele envelope tão simples, mas que tem o teu cheiro, que foi tocado por ti e ao tocares-lhe, o transformaste num bem mais preciso que o ouro, mais resistente que os diamantes, água que transborda límpida e fresca, que sinto correr pelos meus sentidos, que me dá vida e transporta para fora dali onde o Mundo é porventura perfeito.

“10 de Outubro 1972
Jorge meu amor
Espero que estejas bem de saúde, que eu cá vou andando com muitas saudades e à espera do passar dos dias em que te voltarei a abraçar, a beijar e tornarmo-nos um só novamente repetidamente. Até durmo com a tua fotografia a que dou mil beijos logo de manhã. Bem sei que é preciso ter paciência mas o desejo de te ter, faz os dias dolorosos que não vejo o fim deste castigo.
Meu querido são tantas saudades tuas que até doem. Ontem recebi várias cartas tuas pois o correio anda com atrasos.
Entre a fábrica e os afazeres em casa, só fica para mim o tempo em que leio e releio as tuas cartas. A tua recordação mantém-me os dias. Gostei de saber que não vais mais para o mato e que ficas impedido no quartel, só não percebi bem porquê e a fazer o que vais fazer.
Os teus colegas perguntam-me por ti sempre.
Ouvi dizer que que José António também vai para aí. Se for verdade vou-lhe pedir que te leve alguma coisa de que precises".


A caixa vai enchendo com as cartas, aerogramas e fotos. Todos guardam ciosamente o seu correio e é doloso quando a má sorte bate à porta de algum camarada. Ao juntarmos os seus pertences, a sua correspondência recebida em que as ultimas cartas já não terão resposta. “Meu querido
Nas últimas fotos que enviaste, vi que deixaste crescer o bigode e gosto de te ver com ele, mas não gostei de ter ver agarrado à rapariga negra. Vê lá como te comportas e não mandes mais fotos dessas. As minhas colegas gozam comigo e dizem que tu andas para aí só metido com essas mulheres”
.
Como viveremos depois de passar pelo que vimos e as provas a que fomos submetidos? A mentira de que está tudo bem, que não vamos mais para o mato, é recorrente para sossegar os nossos entes queridos.
Não há impedimentos para tantos, assim, só nos livramos das colunas e patrulhas quando estamos doentes.
Alguma coisa secou em nós só se mantém viva a esperança do regresso, mas como ainda falta tanto não se pensa muito nisso. Dizem, que o verdadeiro medo começa quando se acredita que estamos prestes a deixar para trás aqueles caminhos. Aí pensamos duas vezes no que vamos fazer e onde nos vamos meter.
Isabel meu amor, o que eu não daria para estar contigo, abraçar-te, sentir as tuas mãos, cheirar o teu cabelo, fazermos amor e esquecer tudo ao nosso redor. Por vezes julgo ouvir-te, sinto a tua cara molhada contra a minha na hora da despedida, a tua recordação é como um bálsamo que me acompanha a todas as horas, quando estou acordado penso em ti e quando durmo só quero sonhar contigo.
“- Jorge meu amor aqui as notícias não são boas sobre o que se passa aí, mas tu dizes que está tudo bem e não sei em que acreditar. Se correres perigo diz-me por favor.”
A caminhada parece não ter fim, o calor cada vez aperta mais. Por fim há ordem de parar e descansar, mas não abandonamos a picada uma vez que é perigoso sairmos dela. As armadilhas são um tormento.
Troco um lata de corned beeff por uma de cavala em óleo com o Lopes. A carne em pasta enlatada dá-me vómitos. O Sol a pique, por isso só existe sombra fora do caminho debaixo de umas árvores, mas quem é que se arrisca a ir para lá?

"- Jorge ontem estive com a tua mãe, que se queixou de não escreveres. Quase tive acanhamento de lhe dizer que recebo carta tua, uma por cada dia. Por um lado esconder-lhe isso, seria preocupá-la mais, assim sabe por mim que tu estás bem.”

Falámos pouco pois mantivemos as distâncias da marcha.
- O que ia agora era uma cervejinha fresca - murmura alguém que no fundo diz o que todos pensamos.
Foi breve o descanso, há que retomar a marcha, cada vez mais perigosa pois há muito deixámos zona mais ao menos segura e encontrar alguém será com certeza hostil. Volto a pensar na casa, lembro os sítios e as pessoas, as mesas de refeições onde estão os meus pais e irmãos, a Isabel a sair da fábrica com o seu passo rápido, jovem e sensual e eu que tudo fazia para me encontrar com ela. Parecia impossível que ela para mim olhasse, que finalmente correspondesse aos meus sentimentos.

- “Tenho tantas saudades que até doem, sonho com os teus beijos e quando estamos juntos. Acordo de noite com pesadelos em que não voltas para mim, por favor diz-me que me amas e que nunca me deixarás”

******

É de esperar sempre o pior, mas quando acontece é um choque, a dúvida e terror instala-se, o bafo da explosão chega até mim. Mergulhamos em busca de protecção com terra a cair por cima de nós, alucinados de arma pronta. O coração bate desordenadamente ameaça sair-me pela boca. Ouvem-se gritos que abafam o estrondo da explosão, rasgam o silêncio em que o eco se vai desvanecendo. Momento mil vezes temido acontece sempre quando nunca se espera e nunca se está preparado para isso. Nada será igual daí em diante. Este momento lembra-nos que podia ser qualquer um de nós. Gritos e mais gritos misturam-se com o medo o calor e suor. Cheira a pólvora e sangue.
Pisou uma mina. Está sem pernas. Já deixou de gritar e nada podemos fazer por ele a não ser lembrá-lo, até que o tempo esmoreça o seu rosto quase irreconhecível, a sua farda em farrapos, a sua cama vazia, a última cerveja bebida o cigarro que ardeu até queimar os dedos. Quantos mais terão de morrer?
O Santos morreu, mas ninguém morre de imediato para toda a gente ao mesmo tempo. Neste momento só morreu para nós, daqui a umas horas, a notícia da sua morte atravessará o oceano, atingirá a sua aldeia os seus pais, mulher, amigos e conhecidos. Até lá o Santos estará vivo. Está em contagem decrescente até que o eco da sua morte se junte com a notícia do facto consumado.
A mulher, talvez ainda esteja a escrever a derradeira carta que porá na caixa do correio. Esta viajará milhares de quilómetros sem encontrar destinatário, voltará pois às mãos dela que a receberá de volta mais dia, menos dia, pois o tempo deixou de ser importante. Olhará para ela e a dor atingirá mais um degrau e a certeza cavará um buraco no seu peito, a lágrimas rolarão como ácido a queimar as faces, o grito de animal ferido partirá para o vazio que sente. Depois, abraçará o filho de ambos e deixará que o seu calor e a doce respiração faça amainar a sua dor.
Suamos em bica, as moscas e mosquitos fazem nuvem sobre nós, despejo um pouco de água sobre a cabeça com o cantil. Está quente mas mesmo assim tenho que a poupar, pois só teremos água quando regressarmos. A mata agiganta-se ameaçadora, parece que nos vai engolir a qualquer momento sem que possamos fazer algo para o impedir.
A mala com os pertences dele será enviada à família.
O corpié, o serviço de chá e o robe chinês, comprado no “Libanês”, para os dias felizes, serão os bens materiais a que se juntarão as cartas da mulher as fotos dela e do filho que ele só conhecia por elas, que cuidadosamente exibia em cima do armário improvisado ao lado da espingarda, cartucheiras e granadas de mão.
Estava tudo igual como estava ontem e anteontem em perfeito estado, ele é que já não serve, como escreve o poeta[2]. Fazia parte do plano dele para o seu futuro agora perdido irremediavelmente.

[2] - Fernando Pessoa no poema “O Menino de Sua Mãe”

Dirão as velhas da aldeia na sua simplicidade que não tem remédio, remediado está, que foi o destino, ou a vontade de Deus, que no fundo acaba por ter as costas largas para servir de ónus para todas as culpas, que resultam da estupidez humana.
O cemitério será local de visita semanal. Ele na sua inocência brincará à volta das campas, quando a mãe ali for depositar flores e cuidar da última morada do marido. Dir-lhe-ão que o pai foi para o céu e seus olhitos responderão com a incompreensão da inocência.

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É o quinto morto. Vêm-me à lembrança os outros quatro. O primeiro de acidente, os outros três ceifados num ataque com morteiros ao destacamento.
Também eles tinham muitas cartas começadas por meu amor.
A galeria de rostos cresce, morre-se naqueles sítios perdidos quase sem nome, o local só perdurará na nossa memória e a certeza de que nada ali vale um pingo das nossas lágrimas, nem do nosso sangue.
Cresce com a dor e esgotamento físico.
Tento dormir, a mata tem barulhos próprios que parecem passos, perigos iminentes, rastejantes e sombras que estão à espreita. Estou alagado em suor, mas sei que vou ter frio sobre a madrugada, ponho o pano de tenda e o mosquiteiro por cima da cabeça e das costas para ficar mais confortável e em vão tento dormir. O amanhecer traz a luz que afasta as sombras fantasmagóricas, que parecem espiarem-nos durante toda a noite mal dormida e a certeza de outro dia a caminhar sob Sol escaldante.
Vamos regressar ao destacamento pois já ali não estamos a fazer nada. O rebentamento da mina denunciou-nos e perdeu-se o efeito surpreso da operação. O que estamos aqui a fazer tão longe de casa?
Faltam 16 meses, bebo água que refrescou durante a noite e como a ração de combate sem prazer. É hora de voltar a caminhar, não interessa para onde. É penoso voltar a caminhar sem saber bem onde pôr os pés. Se caminhasse para regressar aos teus braços até voaria.
As viaturas com escolta vêm ao nosso encontro, e é com algum regozijo que nos afastamos dali. A natureza cumprirá o seu designo de apagar rapidamente os vestígios que a tragédia deixou no local. Se alguma coisa fizesse sentido, ali e em muitos lugares da Guiné, nasceriam flores ou ervas cor de sangue.
Lá na terra, a família e amigos podiam pôr flores ou ergueriam mesmo pequeno monumento, onde se podia pôr uma vela a arder, mas aqui, o momento ficará para sempre na memória de quem o viveu.
Finalmente acendo um Português Suave, aspiro fundo o fumo e o cheiro a gasolina do isqueiro, e solto grossa coluna de fumo. Sinto uma leve tontura e, ao dar-me tosse, lembro-me das ordens do médico para deixar os cigarros, pois tenho os brônquios em mau estado, mas quem se preocupa com o perigo do tabaco, quando corre tantos perigos todos os dias?

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No destacamento as conversas são parcas. A morte do camarada pesa no pensamento de todos. Bebe-se o que há, é preciso ficar dormente e assim conseguir dormir, esquecer, distanciarmo-nos do doloroso momento, do cheiro do estrondo e do medo. O tempo dele a sua recordação, pouco a pouco, dará lugar ao nosso tempo e esse, trará uma forma de esquecimento ainda parcial, ainda assim latente.
O último aerograma que a Isabel me mandou está ali aberto, está inalterável, nada mudou no que lá está escrito e nada mudaria, se o morto fosse eu.
Deito olhar às linhas escritas, não me confortam como seria natural. Há demasiado horror nas pernas decepadas, no rosto há tantas interrogações, há tanta dor e ansiedade, sentimo-nos impotentes para mudar o que se quer que seja. Tento dormir mas vai ser sempre em sobressalto. Os tiros que as sentinelas dão, quando vêm alguma coisa a mexer na escuridão da orla da mata, ou simplesmente para espantar o sono, fazem-me sentir menos só naquele momento.
O que é feito da aventura, da vontade de conhecer outras paragens? Não sabíamos que o preço seria tão alto, que demoraria o resto da vida a pagar.

Dulombi - Monumento de homenagem aos Mortos

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Meu amor, quando regressar caminharemos na areia molhada, sentar-nos-emos a ver o mar, sentiremos o nevoeiro a envolver-nos e propagar o ruído dos comboios a quilómetros de distância, o cheiro das ervas molhadas, ouviremos de madrugada os homens que partem para azáfama dos campos, os cães a responderem uns aos outros, as sirenes das fábricas, todos estes ruídos insignificantes do dia-a-dia, são o ruído que a paz tem e serão música para os nossos ouvidos. Este pensamento aviva-me as saudades, pudesse eu deitar-me nos teus braços e chorar os dias e as noites longe de ti, talvez esta dor desaparecesse e eu fosse finalmente salvo.

-“Meu querido. 
Por hoje é tudo. 
Recebe mil beijos com muita saudade desta que te ama mais que tudo, e conta os dias e horas para ter novamente junto de mim. 
Recebe muitos beijos 
Sempre tua 
Isabel” 

[1] - Pseudónimo de Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18884: Estórias do Juvenal Amado (60): O azar das margaridas

Guiné 61/74 - P18911: Notas de leitura (1090): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46) (Mário Beja Santos)

Bolama, vestígios do quartel-general, fotografia de Francisco Nogueira, retirada, com a devida vénia, do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2018

Queridos amigos,
O que temos hoje a oferecer para leitura é variado. Antes de mais, nesta década de 1920 foram lançados empreendimentos que não chegaram a bom porto, expetativas não faltavam, corria a fama que as terras da Guiné eram luxuriantes, de Norte a Sul. Não é por acaso que se inicia a exposição com os belos propósitos da Companhia de Fomento Nacional, investiu-se muito e correu tudo mal, irá a seguir a Sociedade Agrícola do Gambiel. Fala-se também da Companhia Estrela Farim e das imensas propriedades que Vítor Gomes Pereira desbaratou. E há cenas de intriga, com veneno à mistura, do gerente de Bolama, já em contencioso com Bissau e a dizer cobras e lagartos de Velez Caroço.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

A década de 1920 vê surgir alguns empreendimentos agrícolas que se julgavam ter futuro. Não acontecerá assim, darão todos com os burrinhos na água, a despeito de muitas expetativas. Logo a Companhia de Fomento Nacional, em Aldeia do Cuor, ocupando em parte os regulados de Cuor, Joladu e Mansomini. Na resposta dada em 16 de Fevereiro de 1923 ao gerente do BNU em Bissau, tudo são promessas, veja-se o que se conjeturava a partir de um farto documento enviado da sede, Rua Augusta, 176, 2º, Lisboa:
“A linha de confluência entre as terras altas e as lalas que pelo exame da planta da concessão facilmente se verifica ser extensíssima e quase sempre guarnecida de palmeiras de Dendém em povoamentos mais ou menos densos, devendo o seu número subir alguns milhões, constituindo uma grande riqueza a explorar.
As suas instalações em Aldeia, na margem do rio Geba, com dois portos para embarque e desembarque, cobertas de telha, possuindo instalação eléctrica, cobrem já uma grande superfície (e descrevem-se as construções). Estas construções todas indispensáveis para a vida da exploração representam muitas centenas da exploração de metros quadrados de alvenaria, muitos metros cúbicos de madeiramentos e milhares de telhas e não se levantavam hoje se não com muitas centenas de contos.
Devemos ainda mencionar 9 quilómetros de estradas de penetração, não contado com os 20 ultimamente construídos pela circunscrição (de Bafatá) assim como 20 quilómetros de caminhos diversos e ainda duas pontes lançadas sobre o rio Gambiel que permitem a sua travessia por todos os nossos mecanismos de lavoura e transporte”.

Segue-se ainda uma descrição minuciosa do que já está cultivado. Não foi um êxito, tempos depois o empreendimento passou a ter outra designação, Sociedade Agrícola do Gambiel.

Outra empresa que parecia votada ao sucesso era a Companhia Estrela Farim, o seu diretor dirigia-se ao governador de BNU nestes termos em 9 de Março de 1924:
“A Companhia Estrela Farim possui na Guiné Portuguesa uma das mais vastas e belas propriedades, 25 mil hectares ocupando cerca de 12 quilómetros da margem do rio Cacheu, acessível a embarcações de 3 mil toneladas.
Esta propriedade acha-se no começo de exploração agrícola e possui instalações e maquinismos adquiridos no valor de cerca de 700 contos.
Tem a companhia os seus estudos feitos para uma exploração susceptível de larguíssimo desenvolvimento futuro, compreende duas culturas principais e o aproveitamento dos palmares existentes de muito mais de um milhão de palmeiras de coconote, cujos frutos os indígenas trarão à permuta desde que se encontrem quem lhes forneça artigos apropriados às suas necessidades de consumo. As duas culturas principais serão o gergelim e o tabaco.
Para realizar este trabalho a companhia carece do auxílio do BNU, precisa de um crédito contracorrente prestado em dinheiro em notas da Província da Guiné, constituído pelas seguintes importâncias: até 31 de Março do corrente, 50 contos; e em cada um dos meses subsequentes 20 contos, num total de 230 contos”.

Encontrar-se-á em diferentes relatórios a verberação, tanto de Bolama como em Bissau, de que estas empresas eram mal geridas, mal planeadas, nunca se visualizava uma relação efetiva com os agricultores locais, sempre ciosos por agricultar as suas coisas, remunerando mal e sem nunca oferecer contrapartidas sociais. Um poderoso empresário do Sul, Vítor Gomes Pereira, dissipará o seu capital, milhares e milhares de hectares das suas terras passarão para a posse do BNU.

Estamos agora em 1925 e surgem sinais claros de arrufos entre Bolama e Bissau, nunca mais se extinguirão até ao momento em que a filial de Bolama desaparecer. Vejamos uma queixa de Bolama enviada para Lisboa em 6 de Julho de 1925:
“Pedimos há tempo à agência de Bissau para nos comprar ali uma porção de sacos; estes sacos destinavam-se ao embarque da mancarra do nosso cliente Vítor Gomes Pereira, que nos está consignada a mancarra.
A agência de Bissau, quando nos enviou o documento do custo dos sacos, incluiu no mesmo uma comissão de 1% para si.
Baseado no artigo 312 do Regulamento das Dependências, reclamámos contra aquela comissão, mas aquela agência, com o fundamento em que os sacos não eram para uso próprio desta filial mas sim para um cliente, insistiu naquela exigência, não só naquela compra como em outras que lhe se seguiram.
Pondo de parte a alegação de que os sacos não eram para uso da filial, alegação que não merece contestação, resta o muito trabalho que causa a compra dos sacos. Não compreendemos como aquele serviço possa causar muito trabalho, quando ele pode ser feito tão simplesmente mandando um contínuo ou praticante às casas que costumam vender aquele artigo, perguntar se o tem e quanto custa e depois em face das informações dizerem: mandem tantos sacos. O embarque dos mesmos também não demanda muito trabalho, nem a interferência de nenhum empregado superior, pois se resume a saber quando vêm uma lancha para Bolama e mandar pôr a bordo dessa lancha os referidos sacos.
Seja, porém, como for, o que é certo é que o artigo 312 do Regulamento é taxativo e bem explícito, não fazendo referência alguma ao maior ou menor trabalho que os serviços recíprocos possam ocasionar, e tanto assim que aquela agência, em anos anteriores, já nos tem prestado iguais serviços sem reclamação da comissão.
A termos de pagar aquela comissão, não é lícito carregarmos ao cliente duas comissões, uma para esta filial e outra para a agência de Bissau, temos de chegar à conclusão que esta filial terá de trabalhar gratuitamente em serviços dos seus clientes, para ir dar interesses à agência de Bissau.
O nosso colega, em face da nossa insistente reclamação, propôs agora que aquela comissão seja dividida pelas duas dependências e sugere-nos que, caso não estejamos de acordo, para apresentarmos a nossa reclamação perante V. Exas., o que nós vimos fazer, não tanto pela importância daquelas comissões, que é relativamente diminuta, mas como uma questão de princípio a estabelecer para outros negócios de, porventura, maior importância”.

Logo Lisboa respondeu: “O número 312 do Regulamento é muito claro e terminante: o serviço prestado pelas dependências entre si é gratuito. Isto mesmo dissemos a Bissau”. Mas as tensões jamais serão aplacadas.

Data de 16 de Novembro de 1926 um documento enviado por Bolama a Lisboa sobre a situação da colónia, o Governador Velez Caroço está na berlinda:
“Como alguns jornais de Lisboa iniciaram ultimamente uma campanha contra o governador da Guiné, parece-nos oportuno informar V. Exas, imparcialmente, do que aqui se está passando.
Desde há meses a esta parte que se vem notando nesta colónia um movimento de desagrado à administração do Governador Velez Caroço.
Rompeu hostilidades, ostensivamente, o Capitão de Engenharia João Pedro da Costa com um relatório dirigido ao ministro das Colónias, verberando a administração do governador, que classifica de perdulária.
Este relatório foi organizado um tanto levianamente, ressentindo-se falta de provas jurídicas, e não sortiu o efeito que o autor desejava: uma sindicância àquilo a que o governador chama a sua obra. Dizem-nos que o governador facilmente destruiu as acusações que lhe foram feitas. O certo, porém, é que o Capitão João Pedro da Costa não foi até hoje castigado militarmente por ter acusado um seu superior sem o ter feito pelas vias competentes.
Pouco depois era o Engenheiro Costa secundado na campanha pela Associação Comercial de Bissau, elegendo como seu representante para o Conselho Legislativo o Dr. Alçada Padez, advogado naquela cidade e particular amigo do Engenheiro João Pedro da Costa.
Passaram então a revestir certo interesse para o público as sessões do conselho legislativo, onde o Dr. Padez entrou em franca oposição, comentando, por vezes acaloradamente, a administração do governo da Guiné.
Entretanto o governador seguiu para Lisboa. Dá-se a revolta militar e o governador embarca apressadamente para o seu posto.
Como todos contavam que o governador pedisse a demissão, a pouco e pouco foram perdendo o medo que ele inspirava e por todas as esquinas eram comentadas desfavoravelmente tanto a administração dos dinheiros públicos como a sua adesão ao governo militar”.

O gerente de Bolama tudo vai comentando sobre estes confrontos, quem é quem no baluarte da oposição, em que constituem os ataques aos Caroços, pai e filho, um governador, outro Secretário dos Negócios Indígenas e Comandante da Polícia. A campanha “anti-carocista” atinge o auge, mas o gerente de Bissau não deixa de dizer que parece que o atual ministro das colónias mantém por tudo quanto se está passando na Guiné um desprezo superior, e lança o seu veneno:
“Nas repartições públicas nada se faz. Em Bolama sente-se uma atmosfera densa de terror. As perseguições aos funcionários que não votaram com o governador não se fizeram esperar. Inventam-se intentonas. Houve tropas de prevenção, com metralhadoras e tudo. Quase se não respira.
Não nos move a mais leve animosidade contra o senhor Governador Velez Caroço, com quem mantemos amistosas relações pessoais, mas não podemos, imparcialmente deixar de reconhecer que não são sem fundamento a maioria das acusações que lhe fazem.
Há esbanjamentos, há imoralidades e o orçamento é uma ficção”.

(Continua)





Reproduz-se na íntegra a troca de correspondência a propósito de um acontecimento embaraçante para o BNU da Guiné: a República da Guiné aparecia com uma moeda nova, estava estabelecido o caos nos mercados do interior, que valor se podia atribuir ao franco guineense? Era esta a pergunta-chave, para qual não se encontrava resposta, houve que proceder a consultas. Era esta a primeira grande dor de cabeça que vinha do regime de Sékou Touré
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Notas do editor:

Poste anterior de 3 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.













Desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Afinal, em que é que ficamos ? "Nazareno", casa de fados e restaurante (em 1968) ? "Chez Toi", pensão, restaurante e "boite"  (em 1970/71) ? "Gato Negro", de novo casa de fados  (em 1973) ? (*)

O Carlos Vinhal (ex-Fur Mil Art e Minas e Armadilhas da CART 2732 (Mansabá,1970/72),  nosso coeditor, tinhs guardado, no seu "baú",  esta precioso documento a que já tinha feito referência num poste de há 12 anos atrás (**)-

Na altura, no início  de 1971, o Chez Toi era pensão, restaurante e "boite"... O Carlos mandou-nos também  outros documentos, dizendo:

(...) Luís: Junto envio uma factura referente à estadia de dois dias no Hotel Portugal, onde estive na companhia dos camaradas Furriel de Alimentação Costa e Cabo Maciel. Como te deves lembrar, podíamos ser muito ricos, que mesmo assim nos estava interdito o acesso ao Grande Hotel, onde só podiam ficar Oficiais (por mais labregos que fossem) e civis. Nós, os furrielitos, praças e demais maltrapilhos estávamos confinados ao melhor que havia, nomeadamente o Hotel Portugal ou o Chez-Toi.

A propósito do ChezToi, eles tinham um desdobrável, do qual junto parte, que sucessivamente ia aparecendo: Abra com cuidado, Desdobre de vagar e leia com atenção, Vá..., comer..., no..., CHEZ TOI... Especialidade em Cachupa Rica, etc. (...) 

Ora a cachupa é um prato típico cabo-verdiano... Será que a gerência era cabo-verdiana ?

Em 1968/70, o Carlos Pimheiro diz-nos que a casa de fados Nazareno foi  "mais tarde rebatizada de Chez Toi" (***).

O Tó Zé Pereira da Costa, na altura capitão de artilharia, garante que "o Chez Toi chamava-se Gato Negro em 1973"... E acrescenta: "Era a mesma coisa, mas com nome mais pomposo. Até tinha uma fadista que cantava axim, mas tirando isso era uma casa muito respeitável" (***)

No logue Lamparam III, editado pelo nosso amigo e grã-tabanqueiro da primeira hora, Leopoldo Amado,  também enocntrámos uma referência a um guitarrista, guineense,  Zeca Fernandes, que animava as noites de gala do Chez Toi, considerado " um dos primeiros Night Club de Bissau" (****)

2. Destaque, por fim, para o testemunho do nosso camarada Paulo Santiago, ex-comandante do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Bambadinca, 1970/72) ("Uma ida ao Pilão"), para quem o "Chez Toi", em 1972, era um "cabaret chungoso", equivalente hoje a "um bar de alterne":


(...) Foi aí por volta de 30 ou 31 de Março de 1972 que os acontecimentos se passaram. Estava eu em Bissau, de passagem, para mais um mês de férias na Metrópole, embarcava no avião da TAP em 2 de Abril.

O NRP Orion (...)  foi onde jantei naquela noite, a convite do Comandante Rita, sendo também convidado o ten RN [reserva naval] Alves da Silva, conhecido entre nós pelo petit-nom de Eduardinho. Não me lembro da ementa, mas foi excelentemente acompanhada pelos belíssimos néctares existentes na garrafeira daquele navio.

O [alf mil ] Martins Julião estava em Bissau a chefiar a comissão liquidatária da CCAÇ 2701 [, Saltinho, 1970/72]: sabendo que me encontrava a bordo da Orion, apareceu no fim de jantar, ainda a tempo de beber uns uísques.

Por volta da meia-noite, ou ainda mais tarde, resolvemos ir ao Chez Toi, um cabaré chungoso, o que se chama agora casa de alterne. 

Apanhámos um táxi no porto e lá seguímos para a má vida. O Rita, como habitualmente, ainda poderia beber mais uma garrafa nas calmas, eu, o Alves da Silva e o Julião já estávamos um pouco mal tratados. O cabaré estava repleto, já não cabia mais ninguém. Convencemos o empregado a trazer-nos uma Old Parr, mais quatro copos e ali ficámos encostados ao muro a dar conta da garrafa.

Subitamente chega um carro em alta velocidade, Peugeot 404 preto, que faz uma travagem maluca ali em frente, e donde sai o Cap Tomás, ajudante [de campo] do Caco [, gen Spínola]. Vinha bastante encharcado, mas deitou a mão à nossa garrafa bebendo uma boa golada. A única pessoa que ele conhecia bem era o Rita. Queria ir para as gaijas, não sei fazer o quê, naquele estado. Convenceu o Comandante e lá entrámos os quatro para o 404, era o carro da D. Helena [Spínola], onde o único meio sóbrio era o meu amigo Rita." (...).

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(....) Mais tarde, um encontro fortuito ou o retomar de uma velha amizade, viria a ligar o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, considerado na época um bom guitarrista, dava noites musicais de gala no Chez Toi , um dos primeiros Night Club de Bissau. 

Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão. Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo “Roda Livre” e ao conjunto musical “Sweet Fanda”. Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho que brota de um lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe defrontaram. (...)

(ªªªªª) Vd. poste de 24 de novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: NPR Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

Guiné 61/74 - P18909: Parabéns a você (1478): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 1972/74) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)



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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18906: Parabéns a você (1477): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18908: Estórias de Bissau (20): A cidade onde vivi 25 meses, em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)... [Afinal o "Chez Toi" era a antiga casa de fados "Nazareno"...]

1. Texto (e fotos) de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro* (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2011 (, já publicado sob o poste P8138) (*).
O Carlos Pinheiro tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue e conheceu Bissau como poucos de nós, já que lá viveu 25 meses... Colocado no QG, nas horas também dava uma ajuda no estabelecimento do o seu parente, Costa Pinheiro, estabelecido em Bissau desde os princípios dos anos 50. A casa Costa Pinheiro era uma das boas casas comerciais de Bissau. Achamos oportuno revisitar a cidade de Bissau dos anos de 1968/70 (**)


A Cidade de Bissau em 68/70

Texto e fotos de Carlos Pinheiro

A esta distância no tempo, recordar a cidade de Bissau onde passei mais de 25 meses da minha vida, obrigatoriamente e sem alternativa de escolha, não é fácil, mesmo assim é bom recordar Bissau, para que a memória não esqueça e para que outros possam também recordar e testemunhar.

Bissau era uma cidade simpática onde havia um pouco de tudo e acima de tudo muita tropa, muitos militares em movimento, a chegar, a partir e a estar. Não era uma grande metrópole mas tinha infra-estruturas que uma cidade de província, na Metrópole de então, não tinha, não podia ter e nem tinha que ter. 

Tinha por exemplo um Aeroporto, na Bissalanca, que é certo se confundia de algum modo com a BA 12, já que as pistas eram as mesmas e, aliás, o Boeing da TAP só lá ia uma ou duas vezes por semana, levar de regresso combatentes que tinham vindo de férias, buscar outros em sentido contrário e acima de tudo levar e trazer correio tão indispensável para o apoio moral das tropas e especialmente dos seus familiares cá na santa terrinha. 

Na maior parte do tempo eram os FIAT G91, os T6 e os DO27, para além de outros meios aéreos, os únicos a utilizar as pistas quando eram lançadas Operações onde o apoio aéreo tinha uma preponderância mais que evidente.

E, claro, também era dali que saíam os helicópteros, os Alouette III, para as Operações, mas acima de tudo para fazer as evacuações dos doentes e dos feridos

Tinha também um porto de mar, que por acaso era no rio Geba onde, por vezes, os barcos maiores, o Uíge ou o Niassa, não atracavam.

Mas barcos como o Rita Maria, o Ana Mafalda, o Alfredo da Silva, o Manuel Alfredo, todos da Sociedade Geral, da CUF, esses porque eram mais pequenos, atracavam. Também o Carvalho Araújo, penso que dos Carregadores Açorianos, nos seus últimos tempos de vida, também ali atracava. Mas era um porto com poucas condições. Este último barco, porque tinha pouca autonomia, tinha que ir, na viagem de ida, a S. Vicente, Cabo Verde, meter água e nafta e no regresso, era no Funchal que atestava.

Tinha ainda outro porto, este mais de pesca, o Pidjiguiti, tristemente célebre pelos massacres que precederam a guerra da independência.

Mas tinha o Palácio do Governador, tinha a Associação Comercial, tinha algumas casas apalaçadas de arquitectura tipicamente colonial, tinha um cinema, a UDIB tinha dois campos de futebol, o campo da UDIB e o Estádio dos Cajueiros,  à Ajuda, tinha um comércio florescente, especialmente dominado pelos libaneses, onde tudo se vendia desde o alfinete ao camião, tudo importado, principalmente do Japão, mas também dos States, da Inglaterra, da Escócia, da Itália, da Holanda, da Checoslováquia, da França, etc., e naturalmente da Metrópole.

E Bissau tinha algumas casas que toda a malta conhecia pois era lá que convivia, que matava saudades e acima de tudo matava a fome e a sede. 

Logo à saída do QG havia o Santos, a que simplesmente, mas com muito carinho, chamávamos o “Enfarta Brutos”, onde se comia, talvez a maior febra de Bissau. Parecia que tinha as orelhas de fora do prato, tal era a sua dimensão. Mas as batatas fritas a acompanhar também mereciam respeito. Quanto à cerveja, ela era igual em todo o lado, desde que estivesse bem fresca e isso às vezes conseguia-se e muita até era da Manutenção Militar.

Mas lá em baixo, na cidade, tínhamos outras casas emblemáticas. Tínhamos a Solmar, que não tinha nada a ver com a outra de Lisboa, mas que já era um bom restaurante que também vendia muita cerveja para acompanhar as ostras e o camarão.

Tínhamos o Solar do 10, casa mais pequena mas mais requintada, onde por vezes à noite se cantava o fado depois de uma jantarada ou ceia.

Tínhamos o Zé da Amura onde se comiam uns chispes que iam para lá enlatados não sei de onde, mas que, à falta de melhor, eram apreciados.

Tínhamos, na Praça Honório Barreto, o Internacional, o Portugal e o Chave de Ouro, tudo cafés/cervejarias mas também onde se comiam umas febras ou uns bifes, quando havia.

Mas na Avenida principal [ , a Av da República], que ía do porto ao Palácio do Governo, também havia o Bento, café e esplanada característica da cidade a que vulgarmente nós, os militares, chamávamos de “5ª Rep.” já que o Quartel-general só tinha 4 Rep, 4 Repartições.

Para a malta, ali era portanto a 5ª repartição onde quem chegava do mato se encontrava com os residentes, onde se trocavam informações e onde, se dizia, que essas informações vadiavam ali dum lado para o outro do conflito. Ao lado do Bento,  mais para o interior, era a Bolola, onde esteve o Serviço de Material, depois transferido para Brá, e onde era o Cemitério que ainda guarda os restos mortais de muitos camaradas nossos.

Nessa avenida estavam talvez as maiores casas comerciais. Por exemplo a Casa Gouveia, da CUF, que vendia ali de tudo e que tudo comprava o que os naturais produziam, principalmente a mancarra (2), o Banco Nacional Ultramarino, o banco emissor da Província, o Cinema UDIB e ao lado uma boa gelataria, mais acima, a Pastelaria, Padaria e Gelataria Império, assim baptizada por estar já na Praça do Império onde se situava o Palácio do Governo e  a Associação Comercial.

Também era nessa Avenida que estava a Sé Catedral, templo de linhas tão simples quanto austeras.

A caminho de Brá e da SACOR, havia um local chamado Benfica onde havia um café com o mesmo nome e onde se apanhavam os transportes para os vários quartéis daquela zona como eram o Hospital Militar 241, o Batalhão de Engenharia 447, os Comandos, os Adidos e mais à frente a BA 12 e o BCP 12 [, em Bissalanca]..

Mas havia outros estabelecimentos dignos de recordação. A casa de fados Nazareno, mais tarde rebaptizada de Chez Toi, a Meta com as suas pistas de automóveis eléctricos, e como novidade também apareceu naquela altura O Pelicano, café-restaurante construído pelo Governo e explorado por privados, com uma belíssima vista sobre o Geba e avenida marginal.

Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão [ou Pilão], estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.

Era uma avenida nova, como se fosse uma circular urbana onde as boas vivendas também começaram a aparecer.

No princípio da Avenida que ia para Santa Luzia, antes de se chegar ao Hospital Civil, estava o Grande Hotel, nome pomposo do melhor estabelecimento hoteleiro da cidade. O resto era pensões, algumas de quinta escolha.

Mas o comércio de Bissau não era constituído só por cafés, restaurantes e tascas. Havia de tudo. E há nomes que não se esquecem. Para além da Casa Gouveia, o maior empório daquele então Província Ultramarina, como então se dizia, a Casa Pintosinho, a Taufik Saad, a Costa Pinheiro, e muitas outras vendiam de tudo, são nomes que ficaram para sempre na memória.

Havia, claro, várias casas de fotografia, como por exemplo a Agfa perto da Amura, que ganhavam muito dinheiro na medida em que era raro o militar que não tivesse comprado a sua Fujica, Pentax, Nicon, etc., a que davam muito uso. Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves.

Era assim Bissau naquela época.

Carlos Pinheiro
 [, Torres Novas,]
16.04.11


2.  Comentário do nosso editor LG:

Recorde-se aqui a "dica" sobre a localização do Chez Toi, dada em tempos pelo nosso amigo Nelson Herbert, jornalista guineense que foi para a América, onde trabalhou na VOA - Voice of America:  era na mesma rua onde ele vivia, e onde ele e os putos seus amigos brincavam com o seu "primeiro carro de rolamentos" (sic), utiliziando para o efeito o "declive que ia dos serviços metereológicos/Boite Cabaret Chez Toi... no cimo da então nossa rua, Engenheiro Sá Carneiro [, subsecretário de Estado das Colónias, que visitou a Guiné em 1947, ao tempo do Sarmento Rodrigue]"... Essa rua era "a mesma da Praça Honório Barreto, do Hotel Portugal, do Café Universal, do Restaurante ou Pensão Ronda... já agora que ia dar ao cemitério, passando lateralmente pelo hospital" e indo dar "à messe dos Sargentos [da Força Aérea]"...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de abril de 2011 >  Guiné 63/74 - P8138: Memória dos lugares (152): A cidade de Bissau em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)

(**)  Último poste da série > 9 de agosto de  2018 > Guiné 61/74 - P18907: Estórias de Bissau (19): O Pilão e o Chez Toi que eu conheci... (António Ramalho)... Comentários de Valdemar Queiroz, Virgílio Teixeira, Costa Abreu e Juvenal Amado sobre o primeiro "night club" que abriu na capital guineense...

Guiné 61/74 - P18907: Estórias de Bissau (19): O Pilão e o Chez Toi que eu conheci... (António Ramalho)... Comentários de Valdemar Queiroz, Virgílio Teixeira, Costa Abreu e Juvenal Amado sobre o primeiro "night club" que abriu na capital guineense...

1. Mensagem de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, membro da Tabanca Grande, com o nº 757:

Data: 4 de agosto de 2018 às 10:58
Assunto: O Pilão e o Chez Toi!

Caro Luís, bom dia!

Cada dia,  o bloque que, em boa hora criaste,  me enriquece pela qualidade e conteúdos nele inseridos, fazendo-me recordar temas que o tempo não conseguiu apagar sendo  interessante motivares a sua lembrança. Relembro alguns factos:

(i) Foi no Pilão que pratiquei o meu "primeiro acto social" aquando da minha chegada a Bissau, levado por um célebre taxista, João Kabala!

Foi lindíssimo, pele sedosa...  memórias que guardo com muita graça já que nos preliminares do encontro a avó se retirou da sala de estar,  levando consigo... o penico!

(ii) No Chez Toi, versão francesa, Gato Preto,  versão guineense, há um pormenor que ainda hoje me arrepia,  que era o facto das raparigas ficarem "encurraladas" na cave durante o dia, uma tristeza!

Todavia nunca assisti a cenas desagradáveis como a que referes (*).

Era um pequenino oásis onde nas poucas vindas a Bissau nos esquecíamos do resto...

Tinha um camarada de Engenharia que tudo fez para conseguir retirar uma daquelas raparigas daquele degredo para irem almoçar... Fartou-se de namorar, nunca o conseguiu. Tinha um vestido lindíssimo em seda para lhe oferecer no dia do repasto, mesmo assim teve dificuldade em fazê-lo chegar à destinatária!

(iii) Uma noite, em Lisboa, fomos tomar um copo à Tágide, ironias do destino, reencontrou-a lá!... Estás a imaginar a cena?!... Foi uma festa, até as paredes abanaram, e a Ponte Salazar também, naquele tempo, presumo eu!

Um forte abraço para ti, extensivo a todos os camaradas da Guiné.
António Fernando Rouqueiro Ramalho


2. Comentários ao poste P18895 (*)

(...) Excelente narrativa, até parece que estamos a ver um filme em que é abordado toda a envolvência histórica daquele tempo, incluindo a zaragata e apenas faltou saber como estava vestido o tipo com o bioxene. Excelente guião para um filme. 

Interessante também é eu ter estado por várias vezes em Bissau, duas vezes para vir de férias, uma para entregar material usado e outra a aguardar transporte para Nova Lamego depois de estar internado no Hospital devido a uma grave infeção numa perna, e não conhecer a Chez Toi e agora não me lembrar de sequer ouvir falar. Ficava sempre numa Pensão, na rua do Serviço de Meteorologia, em que tudo era da tropa e até faltava a almofada da cama. (...)


(ii) Virgílio Teixeira:

(...) Eu que já disse que conhecia tudo, e volto a dizer o mesmo, no Pilão em particular, dada a minha facilidade e autonomia de transporte aliada à minha loucura, não sei mesmo onde ficava, ou se já existia no meu tempo [1967/69] o Chez Toi. Não estamos a confundir com 'A Meta' ? (...)

(...) Ando a marrar no Chez Toi, se ele existia no meu tempo eu tinha de conhecê-lo. Em que ano/mês terá sido aberta esta Boite? (...)


(iii) Juvenal Amado:

(...) O meu amigo de infância e dos bailaricos José António prestava serviço na companhia de Transportes de Bissau. Quando fui de férias, o meu amigo conseguiu arranjar um beliche na sua camarata e assim demos uma volta pela a noite de Bissau e passamos à porta do Chez Toi. Não entrei e as estórias que contavam sobre o estabelecimento eram repletas peripécias. Dizíamos por graça que estava para chegar a rendição, para as que lá estavam, no próximo navio. (...)


(iv) Júlio Costa Abreu:

(...) Lembro-me bem do Chez Toi. O dono/gerente era empregado da casa Pintozinho e estava amigado com uma cabo-verdiana do Pilão. Quanto à Meta,  era do Geraldes, dono da casa de fotografia que ficava na mesma rua do Chez Toi e era casado com a Natália que tinha uma pensão junto a casa da fotografia. (...)
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