1. Mensagem do nosso tertuliano e camarada Adriano Miranda Lima (Cor Inf Ref, que cumpriu as suas comissões de serviço em Angola e Moçambique), com data de 24 de Dezembro de 2013:
Amigo, agradeço e retribuo os votos natalícios e desejo a si e sua família, assim como a todos os tabanqueiros, um Santo Natal e um Feliz Ano Novo.
Escrevi nesta quadra um conto de natal inspirando-me no imaginário cabo-verdiano (nasci em Cabo Verde) e situando a mensagem natalícia nas pessoas humildes que, embora a sua condição, sentem-na com a mesma intensidade que o comum das pessoas. E em alguns casos a autenticidade se reforça na simplicidade dos sentimentos.
Cabo Verde tem também raízes guineenses na génese da sua população, embora da miscigenação étnico-cultural e da religião predominantemente católica tenha resultado uma fisionomia identitária muito própria. E é por isso que entendo que o conto interessará aos amigos tabanqueiros.
Grande Abraço
Adriano Lima
Foto de São Vicente - Cabo Verde. Com a devida vénia a TripAdvisor
UMA LUZ DE NATAL NO ALTO DO MONTE (1)
Conto de Natal, em homenagem à mulher anónima cabo-verdiana que ao longo dos tempos lutou arduamente para criar os seus filhos, e às vezes até netos, com honradez e dignidade
Nha Sabina, mulher de rija têmpera, tinha da vida uma experiência agridoce, na sua maneira peculiar de sofrer as agruras do quotidiano sem hipotecar todas as reservas do seu ânimo. Os seus cinquenta e cinco anos de idade ensinaram-lhe desde cedo que o poder da imaginação logra por vezes autênticos milagres no encontro de novos estímulos para a vida. Por vezes, bastava-lhe a simples contemplação das luzes que bruxuleiam à noite nos mastros das embarcações estrangeiras fundeadas na baía para logo sentir o palpitar do mundo que se abre para lá da imensidão líquida do oceano. E é quando lhe vêm à lembrança os filhos da terra que saíram para longe a bordo de vapores estrangeiros. Por onde andariam, que destino deram às suas vidas? Este e outros devaneios do género transformam-na, com frequência, em avatar da vida fervilhante das grandes cidades que uma ou outra vez viu estampadas em coloridos postais. Mas ela logo se devolve, satisfeita consigo própria e com o pouco que tem, à pobreza honrada do lugar em que exerce a soberania do seu viver. A sua pequena casa, modesta, fica naquela zona do Monte junto à Muralha
(2), permitindo-lhe um convívio permanente com a visão do mar. Não se poderá dizer que a sua habitação seja um tugúrio porque ela sabe mantê-la caiada e asseada, digna na elementaridade do seu recheio, e até mesmo o seu quintalinho atrás, palco da sua labuta diária, é um primor na arrumação do fogão de carvão de pedra, do pilão e do tambor de água de Madeiral.
Este dia é véspera de Natal e seria mais um igual aos outros, não fosse o sonho que ela vinha acalentando e que graças ao seu Deus queria ver realizado logo à noite. Como sempre, levantara-se aos primeiros alvores da madrugada para pilar o milho destinado aos bindes de cuscuz que garantem o seu sustento, mais o do seu netinho Daniel de seis anos. Afora isso, concorrem também para o seu magro orçamento familiar os pastéis de milho e peixe com malagueta que fornece à mercearia de
nho Ventura. Este, que aprecia o seu cuscuz, costuma exclamar mal ela franqueia a porta da mercearia segurando o recipiente com a ainda fumegante iguaria: "
Sabina, o aroma do teu cuscuz lembra-me sempre um campo de milho em flor". Esse piropo deixa-a feliz e satisfeita com o que faz.
Foi precisamente numa prateleira daquela mercearia que o sonho de Sabina começou a ganhar forma. Há muito que desejava ver-se livre daquela lamparina que mal lhe alumiava a casa à noite. Pensava ela:
“isto é coisa com fraco jeito, fumega exalando um cheiro que já não suporto, e ainda por cima não me dá aquela luz que entra pela alma dentro".
E por isso aquele candeeiro de vidro brilhante como cristal, exposto no estabelecimento de
nho Ventura, desafiou-a durante os últimos dois meses. Mulher de imaginação viva, seduzia-se com as figurinhas gravadas a estilete de aço no vidro do candeeiro, que no seu entender só podiam ser obra de mão carinhosa.
E foi assim que começara desde há algum tempo a amealhar um escudo hoje, outro amanhã, e por vezes valores mais avultados quando o dia lhe corria de melhor feição. Arranjara uma antiga lata de conserva com uma ranhura e dela fez o cofre que haveria de realizar o milagre do seu sonho natalício da noite. Mas não seria só isso. A Sabina queria dar um “bedje”
(3) de Natal ao seu Danielim, o neto cuja mãe a morte levou a seguir ao parto. Mãe solteira que foi da sua saudosa filha, passou a sê-lo também do seu netinho, com um desvelo extremo, prometendo criar e fazer dele um homem de bem, com a ajuda de Deus e do seu trabalho honesto.
O Danielim, de seis anos de idade, vinha, pois, olhando embevecido, desde há tempos, para os carrinhos de arame que saíam das mãos habilidosas de
nho Sarafe Funileiro. Com formato de automóvel ou de camioneta, aqueles carrinhos eram um deslumbre para a meninada e até os mais velhos se quedavam a admirar a perfeição da sua construção. Reduzidos a arame vulgar, de espessura variável com a natureza de cada um dos seus componentes, pareciam quase transparentes na sua vaga substância material, e a funcionalidade das suas rodas de uma circunferência precisa, com o respectivo mecanismo articulado de direcção, emprestava ao brinquedo a aparência de um estranho e enorme insecto animado. Pois, o Danielim ia ter logo à noite um “bedje” de Natal que ia regalá-lo...
Quando o Sol se pôs, a Sabina já estava em casa a esfregar as mãos de contente por ter realizado um dia de venda lucrosa. Compôs a sua mesa com especial esmero e nela dispôs os ingredientes da ceia natalícia, não coisa de gente rica, mas algo sempre melhor e mais composto do que no comum dos dias. Depois, quando já escurecia, foi buscar o candeeiro dias antes comprado a
nho Ventura, seu “bedje” de Natal. Atestou-o de petróleo, aguardou que a torcida se embebesse do combustível, nivelou-a o suficiente, riscou um fósforo e chegou-lhe a chama. O compartimento foi subitamente inundado de uma luminosidade nunca antes vista na sua casa de único compartimento. Ela elevou a torcida ainda um pouco mais, na ânsia de atingir o máximo da incandescência, e de repente todo o interior da habitação pareceu ganhar tons caleidoscópicos, realçando-se os pormenores antes ocultados pela luz baça da antiga lamparina. Convidou a sua amiga e vizinha Josefa, viúva e a viver só, para a ceia. E a Josefa teve logo este espontâneo desabafo, mal entrou:
“Sabina, isto hoje está outra coisa, mulher. É como se a luz deste candeeiro lavasse e renovasse tudo, incluindo os nossos corações”. A Sabina não coube em si de contente com o reparo da sua amiga.
Cearam e conversaram longamente sobre o seu passado de raparigas novas, relembrando a dureza da vida de “mulher fêmea” em Cabo Verde, com as suas artimanhas e traições, mas também com as ilusões que se douram e renovam com a luz do sol nascente de cada dia. A cumplicidade entre a duas mulheres prosseguiu noite dentro até que o Danielim começou a dar sinais de sono. Foi quando a Sabina lhe fez a surpresa com o seu “bedje” de Natal, que o petiz não esperava dado o sigilo bem guardado. O menino deu um pulo de satisfação e fez-se logo
chofer exímio da sua viatura, pois já se tinha habilitado com carta de condução mediante a simples observação do que vira fazer a um outro menino dono de idêntico produto saído das mãos de
nho Sarafo. Começou a rodar o volante em curvas e mais curvas no chão da habitação, buzinando vez por outra: aguuuga, aguuuga. Radiante com a felicidade do seu neto, a Sabina a esmo foi observando as curvas que o brinquedo ia delineando nas suas mãos, umas mais largas e outras mais apertadas. E então comentou para a Josefa:
“Vê tu, amiga, que a vida das pessoas é feita de curvas e mais curvas, como as que faz este carrinho de arame; tanto vale ser pobre ou rico, que a vida é, assim mesmo, feita de curvas, mas convenhamos que as do pobre são as que riscam mais fundo e deixam marcas inapagáveis”. A Josefa concordou, conhecedora das divagações do espírito da sua amiga, que muitas vezes não conseguia decifrar.
Horas depois, o Danielim já dormia o sono da inocência e a sua amiga se tinha despedido. Lá fora silenciaram-se finalmente os ruídos da noite festiva, sempre mais pródiga de eflúvios do que o normal, mas para os lados da Praça Estrela ainda se ouvia estalejar um ou outro foguete natalício. Sabina ficou acordada mais algum tempo, sozinha com os seus pensamentos, inalando sofregamente a luz do seu novo candeeiro, sentindo um renovo de alma, como que banhada por outra luz, a luz divina.
Tomar, Dezembro de 2013
Adriano Miranda Lima
(1) - A palavra Monte reveste aqui um duplo significado, simultâneamente real e metafórico. É que, para quem não saiba, Monte era, ao tempo recuado em que se quer situar este conto, um bairro periférico e pobre do Mindelo, e a designação se deve ao facto de ser uma zona de cota alta relativamente ao núcleo original da cidade.
(2) - Muralha foi o nome por que ficou conhecida a parte do lugar do Monte separada das antigas instalações da Companhia Miller’s por uma encosta alta e abrupta cuja consolidação foi solucionada com a construção de uma enorme parede.
(3) - “Bedje” é o termo em crioulo de S. Vicente com o significado de prenda.
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Nota do editor
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Guiné 63/74 - P12500: Conto de Natal (17): O Natal em Brunhoso, Mogadouro