"Livro de quem adivinha o tempo das coisas e que quer deixar, ainda, aos amigos algumas palavras. Pediu-me para o editar. Com um clique encontram as palavras e sei que lhe ouvem também a voz." (Margarida Miranda Monteiro, in Página do Facebook de Renato Monteiro, 23 de julho de 2021)
Dedicado ao neto, de 15 anos, Carlos Monteiro, filho do Daniel Monteiro, que de vez em quando perguntava ao avô porque é que ele não escrevia... Escreveu 31 poemas, escassos dias antes de morrer e pediu à sua mulher, Margarida (Guida, toda a vida) para mandar um exemplar a uma lista restrita de amigos...
Índice dos 31 poemas
"O comboio". o últmo poema (pág. 33): é mesmo um poema de despedida... sob a metáfora do comboio que chega e não chega, "muita terra, pouca ou nenhuma".
"Só", pág. 12. Sem nunca vir mencionada a palavra "morte", ao longo destes 31 poemas,
ela está todavia presente do princípio ao fim. É um homem, de um tremenda lucidez, que sabe vai morrer nos próximos dias, quando o coração parar de bater de vez... E sabe que o fim não tem retorno. E, pior que tudo, que é o ato mais solitário da vida.
"Veneno", pág. 4. O soro, o inútil soro, agora veneno, num corpo que não será múmia... Não há aqui autocomiseração, mas auto-ironia. Ácida.
"Sede", pág. 24. A metáfora da água que já não dessedenta...
"Coração", pág. 18. O coração já exterior ao corpo, sal-ti-tan-do
como um inútil boneco de corda.
"Bate bate bate", pág. 29...E que bate, já por nada nem ninguém.
"Arroz de cabidela", pág. 20. Uma metáfora cruel.
"Letras", pág. 23. A incomunicação total ou final.
"Guida, pág- 14. O último poema de amor. Guida, sempre, até sempre! Faz os tempos da guerra que lhe mandava cartas de amor/humor com recortes de letras de jornal...
"Liberdade", pág. 17. Ah! a liberdade de já não esperar coisa nenhuma!... A liberdade encerrada para balanço final, o do deve e haver da vida.
"Paragem", pág. 26. O tempo em que tudo pára, mas a paixão da fotografia,
essa, fica expressa em muitos álbuns, E a paixão da escrita, mesmo que não nos salve. Nada nos pode salvar quando chegarmos ao fim da picada.
"Tempo", pág. 3. O tempo sem mais tempo, o nada,
um relógio sem ponteiros.
1. O Renato Monteiro (1946-2021) (*) será sempre, para 0s nossos leitores, o misterioso "homem da piroga" cujo nome eu procurei durante várias décadas (, desde que, em Contuboel, em 18 de julho de 1969, eu parti para Bambadinca com os meus camaradas da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, e ele com os seus, os da CART 2479, futura CART 11, com destino a Nova Lamego).
O Monteiro (,aliás Renato), aqui na foto, com o Henriques (, aliás, Luís Graça), no rio Geba, em Contuboel, em junho/julho 1969... Não sei quem era o terceiro elemento da "tripulação", talvez o Cândido Cunha. Éramos três "desalinhados " do sistema, despejados sem saber como no Centro de Instrução Militar de Contuboel, em pleno "chão fula"...
Ao fundo, a ponte de madeira onde o Monteiro poderia ter morrido, sem também ninguém saber como, numa tarde de julho de 1969. Deu um mergulho, temerário, e ficou preso na represa, feita pela estacaria de madeira da ponte. Desensarilhou-se no último fôlego de vida. Uma cena dramática que eu nunca mais esquecerei na vida. Nascido à beira beira-mar, eu não sabia nadar, nem nunca mergulhei num rio ou braço de mar da Guiné (, por trauma da infância, provocada pela estúpida praxe do dia de São Bartolomeu, o 24 de agosto, em que os adultos batizavama os putos na água revolta e salgada do Atlântico).
Perdi-lhe o rasto em 18 de julho de 1969, mas não o rosto, durante 36 anos... Afinal,ele vivia a escassas centenas de metros da Escola Nacional de Saúde Pública, na Av Padre Cruz, onde eu tive um gabinete de trabalho desde 1985.
Reencontrámo-nos, uma ou outra vez, telefonávamos com alguma regularidade (três ou quatro vezes por ano...), trouxe-o para o blogue (não sem alguma resistência da sua parte...) mas perdi a oportunidade soberana de o levar à Lourinhã, para beber um copo, a ele e à sua Guida, com o Mar do Cerro à nossa frente.
Reencontrámo-nos, uma ou outra vez, telefonávamos com alguma regularidade (três ou quatro vezes por ano...), trouxe-o para o blogue (não sem alguma resistência da sua parte...) mas perdi a oportunidade soberana de o levar à Lourinhã, para beber um copo, a ele e à sua Guida, com o Mar do Cerro à nossa frente.
A doença (uma temível DPOC) e a morte, no "annus horribilis" de 2021, em 9 de julho, trocou-nos as voltas... Tendo-me recusado a dizer-lhe "adeus, descansa em paz" (a fórmula ritual do noticiário necrológico), disse-lhe apenas "Até um dia qualquer, meu bom amigo e camarada, num reencontro imediato do 3º grau, na nossa ou noutra galáxia"...
Foi homem e artista de múltiplos olhares e "fotografares" (, feliz títuo de um dos seus blogues): as gentes e as paisagens do Bairro da Graça (onde mora a minha netinha) ao Cabo Carvoeiro, da Trafaria a Cascais, da Quinta Grande a Vila Franca de Xira, do Algarve ao Alentejo, dos ciganos aos cabo-verdianos, dos pescadores do Tejo aos putos da rua, do pessoal das "barracas" aos operários da Lisnave, aos velhos, aos cidadãos anónimos, aos estrangeiros, afinal, "nós outros" (outro feliz título de outro dos teus blogues)...
Deu rosto a muita gente sem rosto, sem voz, sem história, e mais mundo haveria para fotografar se não fora tão curta e ingrata a vida, em plena pandemia... Chorei a sua perda e voltei a emocionar-me quando a Margarida Monteiro, a Guida, me telefonou a pedir a minha morada: o Renato deixou, por imprimir, uma espécie de testamemto poético, febrilmente escrito na noite de 3 para 4 de julho. (**)
Em 22 de agosto, escrevi à Guida por mensagem do telemóvel:
"Querida amiga, recebi o livrinho e já o li e reli. Pungente. Um grande documento humano e uma pequena grande obra-prima da poesia em português.Vou ver se consigo por estes dias publicar uma nota de leitura no blogue. Obrigado por tudo. Abraço para os teus homens. Chicoração para ti. Dorme bem. Luís."
E a 2 de setembro, mandei-lhe nova mensagem:
(...) "Tenho pena de não ter convivido com o Renato e na prática não te ter conhecido na vida dele. Ainda me chegou a manifestar o seu desejo de eu lhe escrever um texto para um álbum fotográfico. A vida, afinal, é tão curta para as nossas agendas e sonhos. Nunca fui a uma exposição dele!!!... Ofereceu-me um dos seus álbuns. Manda o livro ao Valdemar Queiroz. "(...)
Li e reli o livrinho, "O tempo das coisas". Em cada um dos poemas, fiz uma anotação a lápis, com a avalição numa escala de um (*) a cinco (*****). A seleção que fiz a acima é dos poemas de que mais gostei, numa primeira leitura. E inseri-os por uma ordem que é mais lógica do que que cronológica. (»»»)
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Notas do editor:
(*) Vd, poste de 10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22360: In Memoriam (397): Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), ex-fur mil, CART 2439 / CART 11 (Contuboel e Piche, 1969), e CART 2520 (Xime e Enxalé, 1969/70)... "Morreu o meu querido amigo, no passado dia 7... Escrevo a notícia a chorar" (Valdemar Queiroz)
(*) Vd, poste de 10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22360: In Memoriam (397): Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), ex-fur mil, CART 2439 / CART 11 (Contuboel e Piche, 1969), e CART 2520 (Xime e Enxalé, 1969/70)... "Morreu o meu querido amigo, no passado dia 7... Escrevo a notícia a chorar" (Valdemar Queiroz)