1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2020:
Queridos amigos,
O assunto não é de sua menos importância, as estratégias de guerrilha, ao tempo em que foram desencadeadas pelos nacionalistas das colónias portuguesas, tinham como referência o Vietname, a Argélia, Cuba; havia o contexto ideológico, podemos falar nos fatores históricos destas lutas pela independência, o papel dos camponeses e agricultores sem terra, a organização da vanguarda ideológica mobilizadora e o imperativo da sua coesão, a ligação do guerrilheiro às populações. Quem conduzia essas lutas armadas tinha consciência de que o fim da II Guerra Mundial trouxera a rutura de equilíbrios, que houvera guerrilha na própria Europa, caso da Jugoslávia e da Albânia, e os impérios coloniais europeus estavam em desagregação. Havia que saber conduzir a guerra revolucionária, Guevara tornou-se uma referência, tal como Frantz Fanon. Acontece que Amílcar Cabral tinha uma tipologia sobre a condução da luta, a organização da guerrilha e as finalidades da luta de libertação um tanto distintas do que Guevara e Fanon propuseram. É a contextualização dessas concordâncias e divergências que aqui se ponderam para se avaliar como o pensamento revolucionário de Cabral se ajustou à realidade da luta que conduziu.
Um abraço do
Mário
Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1)
Mário Beja Santos
Para se situar o conceito de guerrilha preconizado por Guevara, e mais adiante pô-lo em confronto com a estratégia de Amílcar Cabral aplicada à Guiné, e tentar medir a distância que separou os modos de aplicação preconizados pelos dois revolucionários, é indispensável procurar enquadrar as condições de lugar em que ocorreu a revolução cubana e um pouco mais adiante se forjou a luta armada na Guiné colonial. O território cubano parecia adverso à guerrilha, o tempo era-lhe favorável, mudara a relação de forças à escala mundial no então designado “campo socialista”. Quando os EUA bloquearam Cuba, subtraindo-lhe energia, matérias-primas, peças de substituição para os tratores, trigo e sabão, a URSS estava em condições, mesmo que estivesse posto numa linha vermelha da chamada coexistência pacífica, de apoiar Cuba. Como escreveu Régis Debray, um acérrimo defensor da doutrina guevarista, e que a impulsionou com o conceito de foco, vivia-se um período fasto para o socialismo. A doutrina estalinista fora posta no sótão, não era imperioso a defesa do “socialismo num só país”, análise que bloqueara a generalidade dos partidos comunistas das Américas do Sul e Central. Nikita Kruschev abraçou as causas do Terceiro Mundo, estamos num período de afundamento dos sistemas coloniais, é o tempo de vitórias na Indochina e na Argélia, há ainda repercussões das conferências de Bandung e de Belgrado, o Sputnik e Gagarin eram vedetas – foi assim o período entre 1956 e 1962, a cisão entre a China e a URSS ainda não provocou mossas monumentais, o socialismo parece estar na ofensiva no mundo ocidental; Kennedy e o desastre da Baía dos Porcos não estavam esquecidos, este quadro idílico só se alterará com a crise dos mísseis, que custará a prazo o afastamento de Kruschev, mas a linha dita de apoio ao movimento revolucionário, a partir de Moscovo, a que se juntava o apoio do apoio incondicional de Pequim ao fim do colonialismo na Ásia e na África manter-se-á.
Guevara deixou um apreciável número de escritos, logo as recordações da guerra revolucionária, tinha a sua própria interpretação do que tinha sido a guerrilha em Cuba, desde o falhanço de Moncada, analisa toda a progressão da guerrilha de 1957 até à entrada em Havana em janeiro de 1959. E tece comentários que podem ser úteis para as concordâncias e divergências com a atuação de Amílcar Cabral. Ele cola a palavra guerrilheiro à luta cubana, a palavra guerrilheiro era símbolo de um desejo de liberdade, e apreciava a revolução cubana pela sua ação libertadora, propulsora da reforma agrária. O exército de guerrilha, exército popular por excelência, era constituído por indivíduos virtuosos, disciplinados, ágeis, física e mentalmente. O guerrilheiro deve procurar esgotar o inimigo, desmotivá-lo, fazê-lo perder a tranquilidade. Para que a tática resulte, o conhecimento do terreno deve ser perfeito, ter um conhecimento rigoroso da aproximação e da retirada, do esquema ofensivo e defensivo do inimigo. O guerrilheiro é um reformador social, pega nas armas contra a opressão, reclama uma pátria e a mudança de regime social e económico, é um intérprete das aspirações da grande massa camponesa.
Guevara pronuncia-se igualmente sobre o método guerrilheiro, lembra a diversidade de aplicações na Ásia, na África e nas Américas, discreteia se o método da guerrilha é a única fórmula para a tomada do poder em toda a América e põe uma questão muito dura se a revolução cubana poderá sobreviver se o movimento revolucionário não se expandir pelas Américas. Na esteira de outras correntes revolucionárias, refere a necessidade da classe operária, observa que a América vivia num estado de equilíbrio instável entre a ditadura das oligarquias e a pressão popular. Tanto ele como Régis Debray não esconderão a sua profunda desilusão com o comportamento seguidor do estalinismo da generalidade dos partidos comunistas das Américas. Vaticina uma luta longa e sangrenta no continente americano, haverá numerosas frentes, custará muitas vidas. Está plenamente convicto da vitória, as burguesias nacionais estavam mancomunadas com o imperialismo. Em dado passo, Guevara dá o parecer que o crescimento do mercado comum europeu iria acarretar o desenvolvimento de contradições fundamentais, acentuar mesmo a eclosão da luta americana, e refere que há já indícios seguros na Venezuela, Guatemala, Colômbia, Peru e Equador. Curiosamente, não fala na Bolívia, em cuja guerrilha se inseriu, em 1965, e onde foi assassinado, dois anos depois.
Guevara sentia-se na obrigação de procurar sistematizar a experiência cubana e o processo revolucionário cubano, definindo o cânon do guerrilheiro e a estratégia de guerrilha. Em tudo quanto escrevia deixava claro que a revolução cubana era o simples prelúdio da onda revolucionária que iria varrer todo o continente latino-americano. Dava como certo e seguro que as forças seculares podiam ganhar uma guerra de guerrilhas contra um exército institucional; que nem sempre se podem esperar todas as condições para a revolução, poderá ser imperativo criar um foco insurrecional e o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo. Nunca perde de vista a crítica à inoperância dos partidos comunistas e depois detalha o princípio, o desenvolvimento e o fim da guerra de guerrilhas: “No início há um grupo mais ou menos armado, mais ou menos homogéneo, que se dedica quase exclusivamente a esconder-se nos lugares mais agrestes, mantendo raros contatos com os camponeses, esse núcleo de guerrilheiros pode viver isolado, embrenhado na mata, mas a luta não pode avançar sem o apoio dos camponeses, daí o papel determinante do trabalho político”. E enfatiza de novo o guerrilheiro como um reformador social. Nos seus escritos, Guevara não ignora a existência de contradições na massa dos agricultores e camponeses, a propriedade da terra, a existência de oligarcas possuidores de grandes propriedades, o que gera aproximações interclassistas e interdependências que podem fazer hesitar a massa de agricultores e camponeses em aderir à guerrilha.
Também os seus escritos fazem uma clara apologia ao internacionalismo, e observa que o imperialismo é um sistema mundial, a última etapa do capitalismo, por isso é preciso derrotá-lo numa grande confrontação mundial. Todos os estudiosos do guevarismo não iludem que Che tinha plena consciência que a revolução cubana não poderia permanecer isolada. O seu confronto com os partidos comunistas latino-americanos foi extremamente duro. Ainda preponderava a sombra de Estaline que dava como seguro que os países latino-americanos pelo seu atraso precisavam de modelos de governação de unidade nacional, Guevara achava-os cristalizados, totalmente incapazes de detonar focos insurrecionais, por estrita obediência a um princípio estalinista que já estava no caixote do lixo da História. Guevara também não iludia o princípio marxista do proletariado, respondendo que o camponês era o verdadeiro agente revolucionário, o que contrariava o que Marx dissera, que o camponês constituía uma “massa de produtores não envolvidos diretamente na luta entre capital e trabalho”. Guevara reconhecia as diferenças existentes sobretudo naqueles países com grandes centros urbanos, como era o caso do Brasil, da Argentina, Chile e Uruguai. Mas Guevara não aceitava a necessidade de haver guerras de guerrilha diferenciadas, postulava que a influência ideológica dos centros urbanos inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente, isto para regressar à ideia de que se devia contar com uma guerrilha de camponeses.
Como é evidente, Guevara cometeu inúmeros erros de apreciação da realidade socioeconómica e cultural dos países latino-americanos, esteve no Congo a procurar estimular focos insurrecionais, foi um fracasso total, encontrou-se em Conacri com Amílcar Cabral, não há documentação de Cabral sobre tudo o que se passou nesse encontro, mas que teve resultados promissores. Primeiro, Guevara considerou Cabral o único dirigente revolucionário com consistência e linha organizativa bem delineada. Cabral pediu apoio a Cuba e recebeu. Em 1966, em janeiro, na cidade de Havana, Amílcar Cabral exporá as linhas norteadoras do movimento revolucionário que dirige, incomodará muita gente quanto ao conceito de luta de classes e ao significado do proletariado. Fidel Castro admirou a ousadia da exposição de Cabral. Passeiam-se por Cuba, garante-lhe mais apoio. Será em Cuba que se irão formar os cabo-verdianos que era suposto promoverem a luta armada no arquipélago. Tal não aconteceu, mas esse grupo cabo-verdiano irá ser determinante em território guineense.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23840: Notas de leitura (1527): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte VI: 25 de Abril ? 25 de Novembro ? E descolonização ? Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é. A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade" (VPV)