sábado, 8 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24208: Armamento do PAIGC (1): As polémicas viaturas blindadas BRDM-2 que teriam sido utilizadas contra Copá (7/1/1974) e Bedanda (31/3/1974)

Foto nº 1A


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > "Viatura blindada,  de fabrico russo, que terá sido usado pelo PAIGC em 1974 contra Bedanda e Copá" (*).  A legenda é lacónica, o Patrício Ribeir0 deixou aos nossos especialistas de armamento a responsabilidade de identificar as peças museológicas... Podemos acrescentar que, salvo melhor opinião, esta viatura, da antiga União Soviética (1964), é conhecida pela designação BRDM-2 , mas também GAZ-41-08 e ainda BRT 40PB, BRT 40P-2.

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Foto nº 2 > Guiné > s/l > s/d (c. 1973/74) > "Guerrilheiros deslocando-se num carro blindado, Guiné-Bissau" (que não parece, vista da traseira, ser uma BRDM-2)

Foto do acervo documental de Mário Pinto de Andrade (1928-1990), dossiê do Arquivo e Biblioteca da Fundação Mário Soares. Estas viaturas, oriundas da base de Kandiafara, a sul de Guileje, na vizinha Guiné-Conacri, já estavam em em 1973 devidamente identificadas e referenciadas pelas autoridades militares portuguesas, contituindo um perigo potencial para as guarnições fronteiriças, tais como Guileje, Gadamael, Bedanda, Cacine ou Aldeia Formosa. É impossível, porém. saber se a viatura da foto está em território da então província portuguesa da Guiné ou em território da Guiné-Conacri. Ou se se trata apenas dc uma imagem de propaganda.

Foto (e legenda): Cortesia de © Fundação Mário Soares (2009). Direitos reservados



Foto nº 3 > Guiné  > Região de  Gabu > Bajocunda (ou Pirada?) > Pós-25 de Abril de 1974 >  "Esta viatura de origem russa é igual às três que atacavam Copá em Janeiro/Fevereiro de 74. É uma BRDM-2". 

Comentário de Amílcar Ventura ( ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323(Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74), natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde 9 de maio de 2009; publicou a foto acima na nossa  na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, em 6/4/2023, 10;53.

Foto (e legenda): © Amílcar Ventura (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Foto nº 4 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Bajocunda (ou Pirada ?) > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Encontro das Altas Chefias de Pirada depois do 25 de Abril [de 1974]". (**) Não dá para perceber de que tipo de viatura se trata (BRDM-1 ou 2).

Foto (e legenda): © Amílcar Ventura (2009). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Publicámos há dias uma imagem de uma viatura blindada, existente no Museu Militar da Amura ("Museu Militar da Luta de Libertação Nacional") (vd. Foto nº 1, acima).  

E essa foto é a mesma que vai abrir este série sobre o armamento do PAIGC.  A existência ou não de "viaturas blindadas" ao serviço do PAIGC já deu origem aqui a alguma polémica (***)... O António Martins de Matos deu o  mote: "quem os viu de ver e não de ouvir?" (***). O António Graça de Abreu, nas suas memórias da Guiné,  dissse que sim, que já em 31 de março de 1974, foram utilizadas "viaturas blindadas" contra Bedanda (****), o que o alf mil António Rodrigues, da CCAÇ 5, vem confirmar, embora se refira a uma versão, a BTR 152, de que nunca ouvimos falar.

Os "bravos de Copá" já antes, em 7 de janeiro de 1974, tiveram que defrontar a BRDM-2, uma viatura blindada anfíbia, de reconhecimento e patrulhamento, de 7 toneladas, e uma tripulação de 4 elementos, estando equipada com duas metralhadoras (uma pesada, de 14,5 mm, e uma ligeira, de 7,62 mm).

Tanto em Copá como em Bedanda, a sua estreia parece terá sido desastrosa, para o lado do PAIGC.  Em Copá, morreu o Mamadú Cassamá, confirma o Bobo Keita (ou Queita), o "chfe dos blindados" ou "tanques anfíbios"(sic)...  Depois do 25 de Abril de 1974, o PAIGC passeou algumas destes "brinquedos" na fronteira Norte (Bajocunda, Pirada), conforme se pode ver nas fostos do Amílcar Ventura (Fotos nºs 3 e 4) (**).

Ficamos na dúvida sobre o "dono" das viaturas, o PAIGC ou o Sékou Touré...  E continmuamos a ter dúvidas sobre o tipo de viaturas, usadas contra Copá e Bedanda: BRDM.1 ou BRDM-2 ?

2. Em tempos escrevemos o seguinte comentário no poste P9375 (****), e não o vamos rever mesmo em face das fotos acima publicadas (a nº 1 é de facto de uma BRDM-2, mas não sabemos se é uma oferta da Guiné-Conacri para o museu militar da Amura...):

No Arquivo Amílcar Cabral, tratado e disponiblizado para o grande público pela Fundação Mário Sores, no portal Casa Comum, não há qualquer referência a viaturas blindadas entregues pelos russos no porto de Conacri... Estamos a falar de 10 mil documentos, que abrange todo o período da guerra de "libertação"...

Até finais de 1971, a ex-União Soviética só fornecia armas automáticas, RPG 7, munições, fardamento, medicamentos e coisas assim... E mesmo assim era preciso negociar com o "ciumento" Sekou Touré... que não perdoava a Amílcar Cabral o crescente prestígio e protaganismo a nível internacional e o leque de alianças e apoios (que ia da Suécia à China)...

Felizmente para nós, parte do armamento e das munições deviam ser "obsoletos"... São os próprios e "insuspeitos" cubanos que dizem que 40% das granadas lançadas contra Copá em janeiro de 1974 não rebentavam!... (As culpas tanto podiam ser dos fabricantes como, mais provável, das condições de transporte, armazenamento e operação).

BRDM-2 para o Amílcar Cabral? Devem ser fantasias dos burocratas da 2ª Rep, para justificar o seu ordenado ao fim do mês e as horas de tédio (e de algum cagufe) passadas em Bissau... A gente sabe como funcionava a nossa "inteligentsia" na Guiné, incluindo os "broncos" da PIDE/DGS... que tinham a 4.ª classe mal tirada...

O PAIGC nunca teve, ao que parece, este tipo de veículos... Os russos terão oferecido, em 1969, 10 BRDM-1 (5 toneladas e meia + 4 tripulantes e depósito de 150 litros de gasolina)... "Sucata" que o Sekou Touré poderá ter disponibilizado, depois da morte de Amílcar Cabral, aos homens do PAIGC... que ele precisava de controlar... Mas aquela viatura devia gastar 100 aos 100 !...

Como é que vocês queriam vê-la a passar o "arco de triunfo" em Bissau? Ou a passar a ferro as 3 fiadas de arame farpado de Jemberém?

Quanto às BRMD-2 (versão posterior, melhorada, 7 a 8 toneldadas!), era muito menos provável que os guerrilheiros do PAIGC alguma vez lhes tenham posto a vista em cima... a não ser, já reformados, em 1998, quando a Ucrânia ofereceu à Guiné-Bissau quatro veículos desses, se calhar a cair de pobres... Que até a caridade tem um preço!

Angola teve 50, mas já em plena guerra da chamada "2.ª independência"...

O BRMD-2 era um "besta" de 7 a 8 toneladas, com uma tripulação de 4 elementos (condutor, operador de rádio e observador, comandante e apontador de metralhadora pesada...) e um depósito de 290 litros de gasolina, 5,75 metros de comprido... Onde é que o PAIGC tinha gente com unhas para manobrar um "anfíbio" destes? E sobretudo logística? E depois era um alvo fácil para a nossa aviação...

(...) O BRDM-2 (Boyevaya Razvedyvatelnaya Dozornaya Mashina, Боевая Разведывательная Дозорная Машина, literally "Combat Reconnaissance/Patrol Vehicle"[5]) is an amphibious armoured patrol car used by Russia and the former Soviet Union. It was also known under the designations BTR-40PB, BTR-40P-2 and GAZ 41-08. This vehicle, like many other Soviet designs, has been exported extensively and is in use in at least 38 countries. It was intended to replace the earlier BRDM-1, compared to which it had improved amphibious capabilities and better armament. (...)

18 de julho de 2016 às 14:59
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 5 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24200: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (34): Visita ao "Museu Militar da Luta de Libertação Nacional", na fortaleza da Amura


(***) Vd. postes de: 

16 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)


(***) Vd. poste de 16 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)

(****) Vd. poste de 20 de  janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9375: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (5): ): "Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda [, em 31 de março de 1974]"...

(Comentário de António Rodrigues:).

Caros camaradas: 
Estava colocado em Bedanda aquando do ataque com viaturas blindadas, onde era alferes miliciano.

As viaturas com que fomos atacados eram as BTR 152 (soviéticas), equipadas com metralhadoras.

A sua quase entrada no perímetro deveu-se ao facto de elas terem atacado a partir da zona onde se situavam as tabancas da população civil e isso impedir que quer as "Bazookas" quer os canhões sem recuo não poderem ripostar.

Abraços, António Rodrigues | 25 de novembro de 2012 às 17:25

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24207: Fotos à procura de... uma legenda (173): O Ramadão de 1971 na tabanca de Saliquinhedim (K3) (José Carvalho, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 20 de Fevereiro de 2023:

Caríssimos Luís Graça e Carlos Vinhal

Formulo votos de boa saúde.

Decorrendo o Ramadão, lembrei-me que no meu baú das memórias da nossa Guiné, existiam diapositivos sobre este período, celebrado pelos povos muçulmanos.

Estas fotos foram tiradas em Saliquinhedim (K3) no ano de 1971.

Na altura e mesmo agora os meus conhecimentos sobre o Ramadão são muito escassos, pelo que a sequência das fotos é perfeitamente intuitiva.

Assim, envio-vos estas fotos para se entenderem que se revela interessante a sua publicação, até com eventuais acréscimos de comentários de entendidos no assunto, fica à vossa consideração.

Desejo-vos uma Boa Páscoa.

Abraço,
José Carvalho


Foto 1
Foto 2
Foto 3
Foto 4
Foto 5
Foto 6
Foto 7
Foto 8
Foto 8A

********************

Comentário do editor:

Talvez o nosso amigo Cherno Baldé, especialista em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau, nos possa legendar as fotos quanto aos momentos de oração aqui retratados, especialmente o momento da foto 8A.

Fotos: © José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24185: Fotos à procura de...uma legenda (172): Ainda a tragédia do Quirafo, de 17 de abril de 1972: comparando as fotos da GMC destruída, de 2005 (Paulo / João Santiago) e de 2010 (Rogério Paupério / José António Sousa)

Guiné 61/74 - P24206: Estórias cabralianas (95): O meu amigo 'comando' Barbosa Henriques (1937 - 2007): "Bons tempos, Cabral, consigo ia ficando maluco!"... "E eu ia ficando comando!"... (Jorge Cabral)


1. Há muito que o cor art 'comando' ref Octávio Emanuel Barbosa Henriques nos deixou. Nasceu na ilha do Fogo, Cabo Verde, em 1938) e morreu em Lisboa em 2007, aos 69 anos. 

 O Virgínio Briote conheceu-o na Academia Militar. Eu e o "alfero Cabral" acabámos por o conhecer na Guiné e conviver com ele (o Cabral muito mais do que eu) durante a fase de instrução e formação da 1ª CCmds Africanos (de dezembro de 1969 a junho de 1970) em Fá Mandinga, a escassos quilómetros de Bambadinca.

O portal UTW - Ultramar Terra Web - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar publicou, na altura da sua morte, o seu CV militar detalhado:

(i) depois de ter frequentadio o curso de comandos no CIOE de Lamego (abr/mai 1968), foi mobilizdao para o CTIG;

(ii) foi um dos quatro capitães que passaram pela CCAÇ 2316 (1968/69) como comandantes; esteve em Guileje (de setembro de 1968 a julho de 1969);

(iii)  em agosto de 1969  regressou à metrópole, ao CIOE, para ser de novo mobilizado para a Guiné, em dezembro de 1969: será sentão o instrutor da 1ª CCmds Africanos;

(iv) em agosto de 1970, assume o comando da 27ª CCmds até final de 1971.

O nosso saudoso amigo e camarada Amadu Djaló (1940-2015), nas suas memórias (publicadas em 2010) por cima da carismáica figura do instrutor da 1ª CCmds Africanos. Achamos que o Barbosa Henriques merece ser aqui, mais uma vez, recordado.

2. Foi nesse breve lapso de tempo (1º semestre de 1970) que eu conhecio o cap art 'comando' Barbosa Henriques. Dele deixei um esboço de retrato-robô (*)

(...) É a ele, muito provavelmente, que se refere o Carlos França, ao evocar a figura do capitão pretoriano, arrancado às páginas de clássicos romances de guerra como os de Jean Lartéguy. 

(...) O capitão 'omando'  Barbosa era, para mim, a personificação do profissionalismo militar, cada vez mais raro naquelas paragens: um tipo espartano, frio, calculista, distante, seco de palavras mas formalmente correcto… Imaginava-o programado até ao mais ínfimo dos gestos, saído da linha de montagem de fábricas de militares como as de West Point! A ele se atribuía, justa ou injustamente, a afirmação tão sintomática quanto estereotipada de que uma 'instrução de comandos sem uma boa meia-dúzia de mortos não era instrução de comandos nem era nada'.

E, no entanto, por detrás daquela máscara impassível de duro e daquele comportamento quase robotizado que me causava simultaneamente atracção e repulsa, havia um homem de carne e osso, tímido e sentimental, tão só como nós, capaz de deixar trair as suas emoções, e de falar de outras coisas bem mais comezinhas e menos metafísicas do que a arte da guerra. Ou não fora ele de origem cabo-verdiana (...)

Chegámos a conversar, em grupo, com alguma descontracção e civilidade, entre dois copos de uísque e o 'All you need is love' dos Beatles, como música de fundo, no bar do quartel de Fá Mandinga, enquanto lá fora os seus rapazes, sedentos de aventura e de emoções fortes, preparavam um 'festival de fogo de artifício'  como recepção ao periquito do alferes miliciano médico que acabava de chegar à companhia (... diga-se de passagem que nunca convivi com o médico dos comandos, nem me lembro do seu nome). (...)


3. Com muito mais humor,  vivacidade e propriedade do que eu, o Jorge Cabral (ex-alf mil art, comandante do Pel Caç Nat 63)  já aqui embrou a sua figura: foi de resto seu amigo e cúmplice das noites de Lisboa, no regresso da Guiné, nomeadamente em 1972. 

O texto, que se reproduz a seguir, sem ter sido escrito propositadamente para a série "Estórias cabralianas", bem pode figurar como a nº 95 (**). É também uma homenagem do nosso blogue a ambos, dois homens que, apesar de tudo aquilo que os podia separar, conseguiram  construir uma base sólida para uma amizade e uma camaradagem que perdurou para além das contingèncias das suas vidas, pessoais, profissionais e militares.


O meu amigo Barbosa Henriques (1938-2007)

por Jorge Cabral (1944-2021)



Confesso que, quando em janeiro de 1970 me informaram que os Comandos Africanos vinham completar a instrução em Fá [destacamento à guarda do Pel Caç Nat 63], não fiquei nada satisfeito. 

Ali me encontrava desde julho de 1969, com os meus soldados e famílias, vivendo uma pacífica rotina, só de quando em quando interrompida, com a chamada para alguma operação para os lados de Xime ou de Mansambo.

Em fevereiro, e após a Engenharia ter preparado as instalações, chegaram os Comandos Africanos, e conheci o capitão Barbosa Henriques. Talvez porque os contrários se atraem, logo entre nós se estabeleceu uma relação cordial que veio dar lugar a uma verdadeira amizade.

Comandante do Destacamento, dependendo apenas de Bambadinca  [BCAÇ 2842, 1968/70], não alterei em nada a minha forma de estar, continuando a andar semi-vestido, e a passar longo tempo na Tabanca, mas não hesitei em oferecer toda a colaboração, tendo até ajudado na instrução e servido de cripto.

Como Comando-Instrutor, o capitão Barbosa Henriques era duro, severo, espartano, quase um centurião. Teve porém sensibilidade para me compreender, apreciando e mesmo alinhando, nalgumas loucuras, daquele estranho alferes. Sei que, estando em Bolama, ainda falava do Cabral, e da declaração de Amor à D. Rosa, que eu diante dele recitei no Café das Libanesas, em Bafatá (1).

Nos anos de 72 e 73, em Lisboa, convivemos, frequentando o Parque Mayer, suas Revistas e Coristas. Calculem que até me quis convencer a meter o chico, para ser seu adjunto no Forte das Raposeiras, pois ambos pertencíamos à Arma de Artilharia. 

Creio que a última vez que o vi, foi em meados dos anos 80, quando almoçámos no Quartel onde estava colocado. Tinha boa memória, e recordou aquela vez que me havia pedido para
fazer tiro de metralhadora a roçar a cabeça dos instruendos, e eu disparei tão alto que matei oito vacas na Tabanca de Biana.

− Bons tempos,  Cabral, consigo ia ficando maluco!  −   disse-me então.
− E eu ia ficando comando!   −  retorqui ao meu único amigo capitão.

Fora de Lisboa, não pude comparecer no funeral, mas a sua morte entristeceu-me, e é com saudade que lembro o capitão Barbosa Henriques, meu Amigo.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor:



(...) Entre os meus militares metropolitanos, há o homem mais habilidoso que conheci, o Monteiro. Foi ele que construiu o forno e desmontou e montou o gerador. Ora uma vez, ainda em Fá, olhando as minhas unhas dos pés, chamou-me:
– Oh, Meu Alferes, olhe-me essas enxadas! Venha cá! (...)

Guiné 61/74 - P24205: Notas de leitura (1570): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Fausto Duarte recebera em 1934 o 1.º prémio de Literatura Colonial, com este romance A Revolta! obteve o 2.º prémio em 1942. Agradece ao Brigadeiro Carvalho de Viegas, antigo governador da Guiné a sugestão de pôr em romance a vida do régulo do Gabú, Monjur Embaló, um fiel acompanhante da potência colonial durante muitos anos, oficial de segunda linha. Chamemos-lhe romance histórico, de facto existiu o posto militar de Geba e Monjur acabou por cair na desgraça de um administrador de Bafatá que determinou, seguramente com o beneplácito do governador, que o imenso regulado do Gabú fosse retalhado. Fausto Duarte garante que todos estes personagens existiram, pode-se especular quem era o tenente de Geba (Marques Geraldes?) e o administrador de Bafatá (Calvet de Magalhães?), mas pouco importa, este romance histórico já devia ter sido reeditado há muito tempo, dá-nos um quadro notável, aos olhos de um funcionário colonial, de diálogos entre guineenses, nomeadamente conversação Fula, como se poderá ver neste texto, descreve-se um presídio, a constituição da força militar do mesmo, seguramente que o autor não anda longe da verdade. A força militar de Geba, veremos mais adiante, vai ajudar o régulo Monjur, teremos páginas preciosas de descrição. No termo da obra, assistir-se-á ao inesquecível enterro de Monjur, um bravo guerreiro que acabou cilindrado por uma nova lógica de dividir para reinar que se instituíra na administração colonial.

Um abraço do
Mário



O drama do régulo Monjur num belo romance de Fausto Duarte (1)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte é um nome incontornável na cultura guineense. Cabo-verdiano por nascimento, ganhou as suas habilitações em topografia no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, aparece na Guiné associado à demarcação de fronteiras e mais tarde entra na administração local, revelou-se um divulgador de méritos excecionais, um colaborador profícuo do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, colaborador regular do Boletim Cultural, autor de dois anuários (1946-1948) de irrecusável importância e autor de três romances passados na Guiné, dois deles já aqui alvo de recensão, caso de Auá e de O Negro sem Alma.

"A Revolta!" foi galardoada com o 2.º prémio do Concurso de Literatura Colonial (1942), Fausto Duarte deu o romance por concluído em maio de 1942, foi publicado no Porto em 1945. A trama anda à volta do prestigioso régulo Monjur, um régulo Fula que prestou relevantes serviços à Administração Colonial Portuguesa em termos de campanhas de ocupação, era a figura mais respeitada do Gabú, será enredado numa teia de invejas por régulos menores que ansiavam ver o seu poder diminuído e encontrou pela frente um administrador de Bafatá que lhe retirou o poder. O seu funeral terá sido um acontecimento ímpar em todo o Gabú, morrera o homem, ficara o mito.

Tudo começa com o preparativo de armar uma cilada a Monjur, vamos conhecendo os conspiradores e alguém que vem de longe e que observa que algo de grave se está a passar, um aliado de Monjur, Suleimane Gadiri. O conspirador Alarba Seilu e o sacerdote Ibraima Dara, e seus aliados, preparam um ataque ao posto de Geba. Muitos desconfiam de Suleimane, ele revela-se um excecional contador de histórias que fascinam as crianças que o escutam. Aproveitando a noite, Suleimane escapa-se, prosseguem maratona a caminho do Forte de Geba. Fausto Duarte disserta sobre soldados, missionários e negociantes, a presença dos brancos e tem um acorde sobre os valores da colonização, escreve:
“Raros são aqueles que ao topar as ruínas de antigos presídios, pedras soltas afogadas por plantas bravias e às quais a patine do tempo deu o seu quê de recolhimento e tristeza, evocam os martírios e heroísmos que elas presenciaram. Porque imaginações ardentes fizeram de África desde cedo um continente de mistérios, rico de tudo quanto a Europa carecia, não houve enseada, embocadura de rio ou ponta de terra saliente no recorte do Litoral que não fossem esquadrinhadas. Foi esta a primeira fase do contacto”.

E, mais adiante:
“Verdade era que no fundo de todo o colono desembarcado na Guiné havia um aventureiro por ser esta terra temida entre todas as outras, mal afamada, o inferno de África, só boa para degredados. Porque escasseavam voluntários, muito contribuíram para a vitória do homem sobre a Natureza, fechada, hostil e inóspita, a condenação em pena maior e a repressão da vadiagem em Cabo Verde e na Metrópole. O mal insidioso estava em toda a parte, sobretudo no que era mais necessário à vida: o ar e a água. O ar dos aquartelamentos pobres e dos casebres de taipa que vinha varrido dos pântanos, e a água leitosa, salobra, tirada dos poços. Só a deportação ou a cobiça do lucro rápido podia explicar o desejo mórbido de viver nesses povoados. Em vagas sucessivas, criminosos, vadios e agitadores expulsos do reino como anarquistas confessos aportavam à Guiné nos porões sujos de brigues e escunas, para preencherem os claros, ficando célebre a carga humana da corveta ‘Duque da Terceira’ por ter sido dizimada poucos dias depois do seu desembarque, vítima de acessos fulminantes de biliosas e outras doentes palustres, de prática diária, que aterrorizavam a colónia”.

E estamos no posto militar de Geba, comandado pelo tenente Amílcar Teles. Fausto Duarte que já fez uma apresentação do que era um presídio, dá-nos agora um retrato do capital humano:
“Europeus, a quem aqueles climas afogueados limavam a saúde e consumiam a energia, eram imagens grotescas de homens que tinham sido; cabo-verdianos, engoiados, perfis crioulos em cujos olhos a saudade tinha plantado a lembrança permanente das ilhas esfumadas na distância; gentes importadas dos litorais de Angola e Moçambique que viviam na incerteza de voltar a ver um dia libatas e sanzalas; macaístas e timorenses, de olhos oblíquos, que deixaram nas populações mestiças vestígios indeléveis da sua passagem; Mandingas e Fulas, guerreiros de profissão, constituindo a tropa de 2.ª linha. Era heterogénea a guarnição do posto. Se algumas praças se tinham oferecido para servir nas guarnições ultramarinas, o maior número pertencia na verdade do batalhão disciplinar sabiamente composto por soldados e graduados que os conselhos de guerra da metrópole ou das possessões coloniais tinham condenado à deportação militar”.

Neste posto militar entra velozmente o fugitivo Suleimane Gadiri que explica que veio de Sare Bane, informa que Alarba Seilu prepara-se para fazer guerra ao régulo Monjur em Coiada. Fausto Duarte aproveita igualmente a oportunidade para nos dar um retrato do que era o posto militar de Geba, estão naquele momento a entrar alguns fascinas que tinham ido ao mato buscar lenha, outros traziam água de um poço a uma légua de distância, onde era menos salobra. “Duas metralhadoras Nordenfeld, já avariadas, ladeavam a entrada. A casa do comando era de adobe, coberta a zinco e dividida em três compartimentos. Dois deles eram ocupados pelo oficial, o comandante do posto, e o terceiro servia de secretaria. Dali partia tudo o que interessava à administração dos territórios sob a jurisdição dos bancos. O tenente recebia os régulos, derimia as questões entre indígenas. A palavra ‘Comando’ exercia no indígena uma singular influência. Se ela chegava aos ouvidos de gente desavinda, logo os ânimos se apaziguavam. O ‘Comando’ significava segurança, tranquilidade nas aldeias e nas veredas que se cruzam pelos matos”.

Fausto Duarte dá-nos também um quadro rápido da vila de Geba bem perto do posto militar. E voltamos à conversa entre Suleimane e o tenente, quem vem pedir ajuda à potência colonial lembra que Monjur é um amigo fiel dos portugueses, paga impostos, Alarba Seilu é um pérfido rebelde, juntou muita gente de regulados do Leste, tem dois mil cavaleiros. O tenente isola-se, quer tomar a melhor decisão e Fausto Duarte volta à carga para dissertar sobre o islamismo da Guiné, sabe que Monjur é filho de Alfa Bacar Guidali, o fundador do regulado. E depois de muito meditar, o oficial ordena os preparativos, conversa com os sargentos, a força fica organizada.

E descobre-se que Suleimane Gadiri volta a desaparecer, é o momento apropriado para Fausto Duarte revelar o êxtase que lhe provoca a luxuriante vegetação da Guiné, Suleimane Gadiri vai em fuga, observa as planícies, os cursos de água, a linha do horizonte, o afogueado do nascer do dia:
“Os contornos da vegetação alta foram-se precisando. A luz vinda do clarão que de rebate incendiou os longes varreu a névoa baixa, espessa, que ao rés da terra lembrava novelos brancos de neve. O domínio da terra ia pertencer ao sol e toda a natureza se lhe entregava inteiramente com voluptuoso prazer. Um frémito de asas seguido de alegre chilreada anunciou a manhã.
São então animais espantadiços, prontos no vento, de talhe esbelto e pernas nervosas, metidos nos refolhos do mato, se aventuraram a procurar nos espaços cobertos de capim a liberdade de movimentos. A luz fora-se tornando cada vez mais intensa, e, em tanta maneira, que dali a pouco a terra já parecia crestada. Árvores louçãs, de grande porte, cujos troncos desapareciam sob o estreito abraço de cipós flexíveis e coleantes, serpenteando por entre a ramagem alta como que em busca de claridade, acusavam a influência regeneradora cacimba, fonte de vida da vegetação africana. As aves vão acudindo ao chamamento de macacos gageiros, de ar trocista, que fazem baloiço dos ramos mais dobradiços e parecem fugir às leis de gravitação, descendo e subindo com incrível destreza pelas gavinhas de trepadeiras que recordam pelo aspeto cordas grossas caídas dos mastros de uma embarcação”
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(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24192: Notas de leitura (1569): "Jasmim", de Amadú Dafé; Manufatura, 2020 - A identidade, a multiculturalidade, o transcendente (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24204: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIII: Na 1ª CCmds Africanos em 1970: de Fá Mandinga a Bajocunda, Pirada e Senegal, respondendo ao terror do PAIGC


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > CIM Fá Mandinga > 1ª CCmds Africanos > 1970 > Recrutas do curso de Comandos. Soldados Quintino Gomes (morto em combate, em 1973), o 1º da esquerda,  e Abdulai Djaló Cula, o último, à direita. Foto de Amadu Djaló, reproduzida na pág. na 158.


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > CIM Fá Mandinga > 1ª CCmds Africanos > 1970 > Grupo de 26: d
a esquerda para a direita: 



(i) o 1º, Abdulai Djaló Cula (A); furriel José Mendonça (o nosso 1º morto, mina A/P, Ponta do Inglês, Xime) (B); José Vieira (morto em Cumbamori), Op Amestista Real, 19/5/1973) (C);  ao meio de boina o 2º sargento Carolino Barbosa (fuzilado pelo PAIGC) (D) e furriéis Júlio César Sá Nogueira (D) e Mário Teixeira (E) (ambos à direita, fuzilados em Conakry, grupo do Tenente Januário,  na sequência da Op Mar Verde, novembro de 1970). 

(ii) De joelhos, Laurindo Ribeiro (G), Mamo Djana (H) (morto em emboscada na estrada entre Pirada e Bajocunda), o 3º homem, soldado Nicolau Cabral (I) (morto em Bajocunda), entre outros que não consigo identificar. Foto do autor, reproduzida na pág. 159. 

[Edição e legenda complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2023]



Guiné >Zona leste > Região de Gabu > Vista aérea de Bajocunda. Foto cedida por 
Amílcar Ventura, ex-Furriel Mil. Mec., Bajocunda, 1973/74, e reproduzida na pág. 161.


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


[Floto à direita > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal.

 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIII:  
 
 
Na 1º CCmds Africanos em 1970: de Fá Mandinga a Bajocunda, Pirada e Senegal, respondendo ao terror do PAIGC (8pp. 158-165) 


Em fevereiro [1] de 1970 estávamos em Fá Mandinga. Depois de três dias a preparar o terreno, começámos o curso. Na primeira parte houve vários feridos, foram eliminados vários, a maior parte por falta de capacidade física.

 Finalmente arrancámos para a parte da formação dos grupos, a que se seguiu o treino operacional.

Aqui já tivemos dois mortos, o furriel José Mendonça e o soldado Nicolau Cabral. O furriel[2] pisou uma mina anti-pessoal e ficou cortado em dois. Os membros inferiores nunca apareceram.

Numa das primeiras saídas, entre 25 e 26 de Junho de 1970, numa emboscada em Sare Aliu, junto à linha da fronteira na área de Bajocunda, o soldado Nicolau[3] foi satisfazer as necessidades e não avisou ninguém. Era uma noite escura e quando regressava para junto do grupo perdeu a orientação e entrou pelo outro lado da emboscada. Ninguém o reconheceu, nem deu tempo para fazer perguntas.

Num desses dias, em Dinga Bantaguel, o nosso grupo, comandado pelo alferes Tomás Camará, viu um rapaz a caminhar na nossa direcção, debaixo de um sol ardente, acompanhado de vários cães. Nós estávamos dispersos, com alguns sentados à sombra de uma árvore grande, a manjanja, que dava boa sombra.

Costuma ser junto a estas árvores que, na Guiné, o pessoal da tabanca se junta na hora de mais calor. Todos os dias, os homens grandes da tabanca encontram-se ali[4] e, por vezes, mandam vir o almoço e comem todos juntos.

Mal o rapaz, de cerca de vinte anos, chegou, o comandante do grupo começou a interrogá-lo. Eu estava sentado, um pouco afastado, mas a ouvir a conversa. Quando o rapaz se estava despedir, o Tomás Camará disse-lhe para passar a noite connosco, que amanhã íamos para Bajocunda em viaturas[5], mas o rapaz respondeu que não podia. Então, o Tomás disse-lhe que podia ir à vida dele. Nessa altura, levantei-me e disse para trazerem uma corda. Chamei o rapaz.
 
− Olha, anda cá.

Mandei-o encostar-se a um pequeno mangueiro e amarrei-o com a corda.

− Ficas aqui, amarrado, durante a noite. Se formos atacados,  és morto. Ou então, dizes a verdade toda. Se ninguém nos atacar, desamarramos-te e ninguém te faz mal. E, de manhã, podes ir para o Senegal, ou então vais connosco para Bajocunda, se quiseres.

Ele disse que ia dizer a verdade. Que tinha vindo com a guerrilha até à fronteira e que eles o mandaram vir cá saber em que tabanca a tropa estava, para terem informações correctas. Mandei desamarrá-lo.

Ficámos à espera, mas já tínhamos a certeza que iríamos ter visitas essa noite, só não sabíamos qual seria o resultado, mas ataque não ia faltar.

Por volta da 01h00 da madrugada, o Tomás Camará estava a falar em voz alta e um grupo do PAIGC progrediu até de onde vinha a voz, com a intenção de nos atacar. Eu, que era o 2º comandante do grupo e que tinha a responsabilidade de montar a segurança, montei 4 postos: na saída para Bajocunda, na saída para Canquelifá, na saída para a fronteira e na saída para a fonte. A 5ª equipa ficou ao pé do comandante.

O pessoal do PAIGC que vinha da fronteira, entrou na tabanca e orientados pela voz alta do nosso comandante,começaram a progredir nessa direcção. Um soldado nosso viu um homem para aí a cinco metros e disparou uma rajada. Eu e o Tomás corremos para a frente, mas a guerra acabou depressa. Ficou o corpo no local, ao lado de um RPG 2.

De manhã enterrámo-lo e fomos a Panaghar, uma tabanca no Senegal, recolher dois homens do nosso território, que estavam lá refugiados. Tínhamos ouvido dizer que havia gente da Guiné refugiada naquela tabanca do Senegal. E fomos tentar saber por que é que a população estava toda a fugir para lá. Disseram-nos que o pessoal do PAIGC os tinham ameaçado de que deviam abandonar as tabancas. 

A partir dessa altura deixámos de montar a segurança às tabancas que ficavam na linha de fronteira porque estavam completamente mobilizadas pelo PAIGC. E as tabancas que não tinham aderido ao PAIGC começaram a aparecer queimadas.

Encontrávamo-nos Bajocunda[6] quando chegou uma mensagem urgente para nos deslocarmos a Pirada[7]. Preparámos a coluna e partimos sem demora. Quando lá chegámos encontrámos o comandante Calvão[8] na entrada do aquartelamento, à nossa espera.

Deu ordens para virarmos as viaturas para a pista e para nos reunirmos com ele, que tinha uma missão para nós. O comandante chamou os quadros da companhia, afastámo-nos dos soldados e dispusemo-nos em círculo, com o comandante no meio. Disse que havia necessidade de queimar as tabancas de Sare Bocar, de Sinchã Sore e de Perim, todas dentro do Senegal. Sare Bocar ficava mais próxima de Paunca[9] e nós devíamos começar por aí, onde nas proximidades havia um acampamento do PAIGC e depois marchávamos para Sinchã Sore e Perim.

Na reunião com o comandante ficou assente que se algum dos nossos morresse lá, tirávamos-lhe a arma, o equipamento e farda e deixávamos o corpo. Se houvesse algum ferido grave, procedíamos da mesma forma, deixávamos o moribundo nu. Foi por este motivo que o comandante nos tinha mandado ir com ele para longe do resto do pessoal

Era uma decisão muito dura, mas para a tropa Comando nada podia ser duro e a nossa função era cumprirmos, fosse qual fosse o fardo.

Quando estávamos reunidos na pista com o comandante aproximou-se de nós uma carrinha com um homem branco, chamado Mário Soares[10], ainda com sabão da barba na cara. Este Mário Soares era um comerciante que nos dava informações e havia quem dissesse que também as dava ao PAIGC. Vinha acompanhado por um homem negro, senegalês, que trazia uma informação. Que nessa manhã uma companhia do PAIGC tinha entrado no nosso território e, que nesta altura, devia estar na ponte[11]. 

O capitão João Bacar Jaló pediu logo ao comandante Calvão que autorizasse que a 1ª CCmds patrulhasse a zona até à ponte. Mas o comandante não esteve de acordo, que quem ia tratar do assunto iam ser os homens do batalhão[12].

Enquanto estávamos em reunião com o comandante, ele chamou o capitão da companhia[13] aquartelada em Pirada e deu-lhe instruções para mandar patrulhar até à zona da ponte. Momentos depois, ouvimo-los a regressar, dizendo que tinham patrulhado a estrada até à ponte e que não tinham encontrado nada. Ficámos a olhar uns para os outros, admirados com tanta rapidez.

Quando nos estávamos a preparar para a saída, estava a chegar um grupo da nossa Companhia, comandada pelo tenente Januário, com uma coluna de viaturas civis, carregadas com géneros. Saudámo-nos, mas não houve tempo para muitos cumprimentos. Eles seguiram para Bajocunda e nós para a fronteira com o Senegal. Quando a coluna deles[14] chegou à zona da ponte, caíram numa emboscada no pontão do Maul-Jaubé, no itinerário de Pirada a Tabassi. Estávamos nós ainda junto ao arame farpado, quando ouvimos o tiroteio e os estrondos dos rebentamentos. Sigam aos vossos destinos, foi a ordem que recebemos do batalhão.


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Carta de Pirada (1957) > Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Pirada, Tabassi e Bajocunda, e já no Senegal as tabancas de Perim e Sinchã Sari. Pirada estava nas proximidades do marco fromnteiriço 69.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

 
Pirada ficava a pouco mais de um quilómetro da fronteira com o Senegal. As tabancas de Perim, a nem um quilómetro, Sinchã Sore [gralha ?, na carta de Pirada está grafado o topónimo  Sinchã Sari] a pouco mais de dois da linha da fronteira e Sare Bocar a pouco mais de cinco.

Guinjé > Bissau > 10 de junho de 1967 > O Abdulai Jamanca, então 1º Cabo, a ser condecorado. Foto reproduzida na pág. 161.

Fomos a corta mato, sem qualquer problema e entrámos pela tabanca de Sare Bocar. Era mais ou menos meia-noite quando o Alferes Jamanca bateu à porta de uma casa. Saiu um homem.

   Onde é a casa do chefe da tabanca?  − perguntou o alferes.

O homem apontou para uma casa e o Jamanca disse para vir connosco. Acordado o chefe da tabanca, cumprimentaram-se e o João Bacar Jaló, o comandante da nossa companhia, disse ao Jamanca para ele dizer ao chefe da tabanca que dissesse à população que retirasse todos os seus haveres, porque a tabanca ia ser incendiada.

Três ou quatro homens da tabanca acordaram e juntaram-se ao chefe da tabanca. Este, depois de ouvir o Jamanca, perguntou:

− Mas de onde vocês vieram?

− Guiné Portuguesa  − respondeu o João Bacar.

O chefe da tabanca, que só via africanos à sua volta, pensou que éramos do PAIGC.

− Mas vocês estão enganados. Isto aqui é Senegal!

− Nós somos obrigados a queimar as vossas tabancas porque o PAIGC sai daqui e vai ao nosso território queimar as nossas tabancas e depois volta para aqui respondeu o Jamanca.

Depressa os residentes da tabanca começaram a retirar as suas coisas, enquanto os soldados começavam a chegar fogo às casas.

Quando o primeiro soldado ateou o lume, um morador, surpreendido, gritou:

− Mas é verdade, isto não é brincadeira!

A certa altura, a situação parecia ter tomado conta dos soldados que, entusiasmados, pareciam não querer sair dali. O alferes Justo conseguiu pôr ordem, avisando-os que se algum deles ficasse ferido havia ordem para lhe tirar a arma, equipamento e farda e deixá-lo no local. 

Acalmaram rapidamente e seguimos para a Sinchã Sore, onde a acção se repetiu, praticamente da mesma forma. E quando o dia[15] já estava a nascer chegámos a Perim e a única diferença foi ser já de dia. Estas duas tabancas eram de menor dimensão e arderam quase na totalidade. Depois retirámos, sem incidentes na direcção de Pirada, utilizando o carreiro.

A partir desta data, confirmou-se mais tarde, as nossas tabancas na zona da fronteira deixaram de ser queimadas pelo PAIGC e nós passámos a proceder da mesma forma, também deixámos de importunar as tabancas do Senegal.

Quando entrámos em Pirada, o comandante Calvão estava à nossa espera. Depois de ouvir as nossas notícias, meteu-se numa avioneta e foi fazer um voo de reconhecimento para ver os resultados. Só a primeira tabanca, a de Sare Bocar não tinha ardido completamente, mas mais de metade tinha ficado em cinzas.

Nesta altura soubemos o resultado da emboscada ao nosso grupo que, no dia anterior, escoltava viaturas civis. Tinha tido dois mortos, um cabo miliciano[16] e um soldado[17]. O cabo miliciano tinha acabado a escola de rádio telegrafista e tinha sido colocado na 1ª CCmds Africanos. Nem se chegou a apresentar ao comandante da companhia, morreu no caminho. Na emboscada morreram ainda dois civis, um condutor chamado Fernandes[18], residente em Bafatá,  e um ajudante[19]. Depois destas notícias, regressámos a Bajocunda, onde a nossa companhia estava sedeada.

Corremos aquela área toda, todos os dias um grupo nosso saía para a mata das zona da fronteira.

(Continua)

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Notas do autor ou do editor:

[1] Nota do editor: em 11 Fevereiro 1970.

[2] Nota do editor: em 18 Junho de 1970

[3] Nota do editor: Soldado Nicolau Tomás Cabral.

[4] A este local, onde se concentra a população, os Mandingas chamam bantaba e os Fulas Banta.

[5] Nota do editor: da CArt 2438, comandada pelo Cap Art Veiga Vaz e a pouco mais de um mês do termo da respectiva comissão; em Bajocunda estava instalado, desde 27 Junho 1970, o COT1 (Comando Operacional Transitório 1), comandado pelo Major Inf Nuno Valdez dos Santos, então recém-criado “com a finalidade de fazer face a uma intensificação da actividade inimiga sobre a região de Pirada/Bajocunda (...) e ficando na dependência do Comandante do Agrupamento 2957”, sediado em Bafatá sob o comando do Coronel Art Neves Cardoso.

[6] Nota do editor: em 04 Julho de 1970

[7] Nota do editor: desde 17 Março 1970, sede da CCaç 2571.

[8] Comandante Alpoim Calvão.

[9] Nota do editor: desde 23 Junho 1970, guarnecida com 3 pelotões da CCaç 2658 e 3 pelotões “Fulas” da CArt 11/CTIG.

[10] Nota do editor: Mário Rodrigues Soares instalou-se na Guiné em 1948 e montou no posto fronteiriço de Pirada um estabelecimento comercial ligado à “Casa Gouveia”. Em Setembro de 1974, em risco de ser fuzilado pelo PAIGC, conseguiu escapar e chegar a Lisboa, onde ficou detido 45 dias em Caxias. Morreu em Abril de 1995.

[11] Nota do editor: sobre o rio Mael-Jaubé, quase paralelo à fronteira desde Pirada a Oribodé, para leste.

[12] Nota do editor: BArt 2857.

[13] Nota do editor: CCaç 2571.

[14] Nota do editor: da CArt 2438, instalada em Bajocunda

[15] Nota do editor: 5 Julho de 1970.

[16] Nota do editor: Cabo Mil Julião Albano Cabral.

[17] Nota do editor: Soldado José Augusto Maru Djaná.

[18] Nota do editor: Rufino Gomes Fernandes.

[19] Nota do editor: Mamadu Bobo Jaló, residente em Nova Lamego.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24203: Blogoterapia (311): A sombra do jagudi (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

A SOMBRA DO JAGUDI

adão cruz

Acordei com um sol baço, esfreguei os olhos, espreguicei-me a todo o comprimento dos braços e bocejei a toda a largura da boca. Na rede mosquiteira, um grande insecto, enredado nas malhas, desesperava por se libertar, arrancando das asas um zumbido estridente de raiva e de agonia. Ainda ensonado, achei que era eu próprio a libertar-me da prisão onde me enfiaram.

Só tinha adormecido pela madrugada, com um peso no peito e um amargo na boca, deixado pela repetida leitura da carta da mãe da Sónia.

A Sónia vivia na África do Sul. Conheci-a em Lisboa, onde ela passava as férias com os pais, que eram amigos da família do meu colega Carvalho Santos. Era uma lindíssima miúda de vinte anos, cheia de sol e futuro. Com ela convivi durante os dias que precederam o meu embarque para a guerra da Guiné e o regresso da Sónia à África do Sul. O tempo suficiente para que dentro de nós se criasse uma linda relação e uma promessa de correspondência futura.

Entra a Guiné e a África do Sul, trocámos tantas cartas quantas o tempo e a distância o permitiram. Todas levavam e traziam as mais bonitas palavras que cada um de nós tinha dentro de si. Mas este fio de água cristalina que tão bem refrescava o calor da Guiné, subitamente secou. Durou metade da guerra. De um momento para o outro, as cartas deixaram de aparecer, como se no céu as estrelas se apagassem. A última que recebi foi da mãe da Sónia, dizendo que a filha morrera, vítima de um cancro da medula. Nunca de tal coisa a Sónia me falara. Nunca as suas cartas se escureceram. O estrondo que senti dentro do peito não foi menor do que o duma bazuca. Fugi para o meu quarto e encolhi-me até onde as carnes se dobraram. Dentro da carta vinha um pequenino alfinete de ouro, “a singela joia de que ela mais gostava” e que ainda guardo… mas não sei onde.

(Jagudi era o nome dos abutres, na Guiné)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

Guiné 61/74 - P24202: Manuscrito(s) (Luís Graça) (221): Boas e santas Páscoas, nós por cá... todos bem!

 

Quinta de Candoz > s/d > Visita do compasso pascal...


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 30 x 40 cm. S/ título

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


A Páscoa em Candoz: 
no tempo em que ainda estávamos todos vivos, 
e felizes, e de boa saúde
 

À Nitas (que era a deusa do lar  
e a oficiante da liturgia de Candoz);

À Joana (que hoje faz anos, e que desde pequenina gostava 
de brincar com a fada Oriana em Candoz);

À Chita (que é a mãe da Joana,  a "alma gémea" da Nitas 
e a minha feiticeira  de Candoz);

Ao Gusto (que há 49 anos, em 6/4/1974, se casava com a sua "Nita"
 e que, por amor, se tornou o senhor "engenheiro" de Candoz, 
agora inconsolado e inconsolável com a perda 
daquela que era "mais de metade" do seu ser)

 

Quinta de Candoz > c. 1999 >Os manos e sócios, da esquerda para a direita: Chita (Alice), Nitas (Ana) (1947-2023), Zé e Rosa


Era  domingo de Páscoa na aldeia. 
Fazia frio mas o sol estava esplêndido. 
Era um daqueles dias 
em que a gente  se reconciliava  com a vida. 
Nem que fosse por uns breves instantes. 
Com a vida, mas não necessariamente 
com o mundo. 
Como o Eça e o seu príncipe Jacinto, 
em Tormes, ali ao lado, 
do outro lado do vale,
à volta de um copo de vinho verde, branco,
 de umas cebolinhas do talho 
com presunto ou salpicão.
(Não havia favas, em Candoz, 
havia as ervilhas de quebrar.)

A manhã, primaveril, trazia-te 
os sons, as cores e os cheiros do campo.
Um outro campo que não o mesmo 
da tua infância da Estremadura. 
Descobriste, tarde, esta parte 
do Portugal sacroprofano
que era mais pagão, celta, visigótico e românico 
do que fenício, romano, judeu, mouro ou gótico.

Um citadino, como tu, não sabia 
o que era isso de ouvir, 
logo pela manhã, 
os galos a cantar nos seus galinheiros. 
Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. 
Ou observar os melros de bico amarelo 
pousados nas videiras 
que desabrochavam, em gamões.


Quinta de Candoz > s/d > O pôr do sol nos montes (aqui chamam montes aos pinhais, onde outroram cresciam carvalhos e castanheiros)


Um citadino como tu 
não tinha o privilégio de ouvir falar dos gaviões 
nem das suas frágeis presas. 
Nem sabia por que autoestradas andavam 
as toupeiras, os ouriços-caixeiros 
e as raposas deste país. 
Nem por que razão falavam alto e bom som 
aquelas gentes de além-Douro. 
Nem o seu gosto desmedido pelo fogo 
que ribombava como o trovão.

Nos campos de erva, de diferentes tonalidades de verde,
eram  visíveis as partes  cortadas para as ovelhas, 
entáo recolhidas nas cortes, 
à medida que os gamões das videiras 
cresciam a olhos vistos.

Na grande matança da Páscoa, 
o inocente que era sacrificado, 
era o cordeiro, o anho
o ex-libris da gastronomia da região. 
Já fumegabvam as chaminés 
enquanto ao longe se ouvia
o estralejar dos foguetes. 
O compasso pascal andava por aí, 
alvoraçado como a canalha
já vinha no Alto, já chegava ao Cruzeiro, 
com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e estradões
e exorcizando os medos ancestrais.

In hoc signo vinces
Com este sinal vencerás. 
Desde Constantino, o Imperador, 
que a cruz marcava a vida dos servos da gleba 
e depois os cabaneiros, os rendeiros e os camponeses,  
do nascer ao morrer. 

 Levava dois dias a percorrer a freguesia. 
A cruz, o Cristo pregado na cruz, 
o compasso, 
os homens da opa vermelha 
e o menino da sineta, 
de sobrepeliz branca como o anjo. 
Pouco mais de mil almas 
e algumas escassas centenas de fogos, 
dispersos, a visitar:
"Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!", 
proclamava o homem da opa vermelha, 
o mordomo da festa sacroprofana,
que fazia as vezes do padre.

Em frente o vale e a montanha. 
A linha do Douro.
O rio Douro ao fundo. 
Pacificado,
onde já não chegava o sável e a lampreia,
nem o barco rabelo com o néctar dos deuses.

Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever 
A cidade e as serras.
Havia ainda um mundo a desmoronar-se. 
E testemunhas vivas desse mundo. 
O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres 
que decidiram trocar o arado
e as juntas de bois
e a rega do milho
pela linha de montagem automóvel 
ou pelos chantiers da construção civil 
nos arredores de Paris
ou pelas as fábricas do Porto.


Quinta de Candoz > s/d > A preparação do anho... Ainda a Maria da Graça (1922-2014) (à esquerda) era viva... Veio do Sul em visita aos do Norte. A meio a Alice (Chita) e, à sua esquerda, a cunhada Maria (Mi).


Já havia a barragem do Carrapatelo, 
e as suas eclusas,
as antenas das telecomunicações 
e os moínhos eólicos no alto das serras. 
E o Mercedes de matrícula K.
E o alcatrão. 
E os telemóveis.
E as casas do granito 
arrancado às pedreiras de Alpendorada.
O progresso cobrava o seu preço,
a globalização também. 
Estradas e estradões tinham esventrado 
o cenário bucólico 
que outrora escondia a miséria dos casebres 
dos cabaneirosos mais pobres dos pobres. 

O Zé do Telhado já há muito que morrera, 
desterrado em Angola, 
mas ainda continuava vivo 
nos telhas vãs da memória
das gentes dos vales do Sousa e Tamega
Os netos dos antigos senhores, os fidalgos
proprietários agrícolas absentistas 
do Porto e da Foz do Douro, 
recuperavam as casas dos caseiros 
e faziam delas a sua casa de campo. 
Com piscina e court de ténis. 

O povoamento continuava disperso 
pelo verde e pelos socalcos. 
Os montes estavam carecas 
depois das últimas décadas de incêndios. 
Já há muito que regressara
o último soldado das colónias 
e se escrevera o último aerograma
a dar conta do fim do Império.
Os brasileiros tinham dado lugar 
aos franceses.
E o Porto ali tão perto. 
Cada vez mais perto 
com as autoestradas, as IP e as IC  do país motorizado.

Um mundo quase perfeito, visto da janela do teu quarto. 
Domingo de Páscoa, de manhã. 
Faltavm-lhe só, porventura, os camponeses, 
que morreram. 
E os que emigraram. 
E os que não voltaram. 
E os soldados que morreram, de morte matada,
nas guerras do passado.
E os que morreram, mal haviam nascido. 
Que as famílias eram numerosas 
mas a mortalidade infantil altíssima. 

Passavas os olhos 
pelas paredes da casa, de grosso granito. 
Já tinham albergado 
sete, oito ou mais gerações, 
que os seus registos só iam até 1820. 
Não era nada, se quando sabias  
que os australopitecos, teus antepassados, 
tinham evoluído há 5 milhões de anos, 
200 mil gerações atrás.


Quinta de Candoz > s/d > O fogo, depois do recolher do compasso pascal


No virar do milénio, 
na madrugada do século XXI, 
Cristo continuaria a ressuscitar 
todos os anos, pela Páscoa, 
no Entre-Douro e Minho da tua aldeia
E os cristãos poderiam ver abalada a sua fé,
mas  continuariam a reunir-se 
em casa uns dos outros 
para comer o agnus Dei com arroz de forno. 
E para celebrar o milagre da vida, 
a vitória da vida sobre a morte.

Há quinhentos anos que se deitavam foguetes 
nas vilas e aldeias do teu Portugal sacroprofano. 
Não sabias nada da história do fogo de artifício, 
sabias apenas que viera da velha China 
com as naus quinhentistas. 
Para celebrar a ressurreição de Cristo, 
ou mais prosaicamente para fazer a festa. 
Que era a vitória sobre o trabalho, 
tripaliu(m) que matava a gente. 
E para marcar o tempo, o fluir do tempo, 
o solstício do inverno e do verão, 
a inexorável usura do tempo.

E todos os anos pela Páscoa, 
tu, descendente de austrapolitecos, 
assistias da tua varanda de granito 
à alegria infantil
 dos camponeses durienses, mortos há muito, 
face à orgia de fogo que assinalava, 
em cada freguesia, 
o recolher do compasso pascal. 

Da tua janela vias o mundo 
ou uma parte dele, mesmo ínfíma:
Paredes de Viadores, Mesquinhata, 
Santa Leocádia, Grilo,
Porto Antigo, Paços de Gaiolo... 
Estes nomes, medievos, passariam a ser-te familiares. 
E as serras à volta do teu presépio: 
Montemuro, Aboboreira 
e, mais ao longe, Gralheira, Meadas, Marão, 
separadas pelo vale do Douro... 
Em 2004, os de Paços 
é que lançaram o fogo mais vistoso:
"Dois mil contos de réis!"!,  
diziam as gentes da terra, 
ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, 
dos milhões de euros do novo Brasil da Europa. 
Capricharam, os de Paços de Gaiolo, 
mas também era verdade 
que eles tinhamo dobro dos fogos 
da tua adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.


Quinta de Candoz > s/d > Azevinho


Da janela do quarto da aldeia 
que tu também havias feito tua, 
só não podias ver o mar. 
E fazia-te falta o mar, confessavas.
O mar.
A maresia. 
O azul. 
O rugir do grande oceano Atlântico.
E o pôr do sol no mar. 
Na exacta e nítida linha do horizonte. 
E a silhueta do cabo Carvoeiro 
e das Ilhas das Berlengas.

Ah!, quanto falta nos fazia o mar, 
ó Sofia, deusa grega antiga.
Mas a hora não pensar nele, no mar. 
Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. 
Naqueles domingos de Páscoa de Candoz , 
se te era legítimo ter um pensamento,
de admiração e agradecimento, 
ele ía direitinho para os antepassados 
que desbravaram Candoz 
e ergueram solcalcos e muros de pedra
em antigos montes de carvalho e castanheiro
sem esquecer os teus australopitecos 
que nunca terão chegado a estas terras  
de Candoz e de Fandinhães, 
parte do concelho, extinto em 1836, 
a que os antigos, pobres diabos, 
chamavam Bem Viver.

Da janela do teu quarto, 
com o Porto Antigo ao fundo,
na albufeira do Carrapatelo,
e enquanto aguardavas o compasso pascal, 
gritavas ao mundo dos vivos e dos mortos:
"Boas e Santas Páscoas. Nós por cá..., todos bem!"


Texto e créditos fotográficos: © Luís Graça (2023)

Texto poétixo de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacroprofano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!

Texto profundamente revisto e melhorado nesta data, 6/4/2023 (em que a minha querida Joana faz 45 anos, às dez e trinta da manhã; e a nossa Nitas deixou a Terra da Alegria há duas semanas:  faria hoje precisamente 49 anos de casada com o homem da sua vida, o Gusto, meu "mano", o "engenheiro" da Quinta de Candoz).
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