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Bambadinca > Missirá > 1968 > Um grupo de soldados do Pel Caç Nat 52, em alegre convívio.
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Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006
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Mensagem de 3 de Outubro de 2006:
Caro Luís, aqui vai o meu contributo da semana para o folhetim que durará ainda 25 meses, com quatro edições mensais. Tenho tanta pena de ti como de mim: se é verdade que cai sobre mim o ónus da escrita (será que estou a escrever memórias forjadas ou um romance-documentário?) tu tens a pesada incumbência de ilustrar hipoteticas cem edições adiante. Escrever preso à cronologia de uma comissão de cerca de 26 meses passa por manter o auditório interessado com pessoas, situações, vivências, atmosferas que ultrapassam o evento traumático, embebendo a descrição muitas vezes no banal quotidiano. Eu já não estou em condições de voltar atrás, e tu és cúmplice nesta aventura de todo o terreno. E vamos agora ao meu baptismo de fogo.
Mário Beja Santos (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1):
Esta noite improvisa-se
por Beja Santos
Pelas 2:30 da madrugada de 6 de Setembro de 1968 conheci o meu baptismo de fogo. Estava na morança, deitado numa cama de ferro de corpo e meio que pertenceu a Armando Cortesão. Lia As Sandálias do Pescador de Morris West (era um autor de best-sellers publicados em Portugal pela Clássica Editora, de que o mais célebre foi O Advogado do Diabo), a história de um Papa que vinha da Rússia e que no final da história decide oferecer todos os bens da Igreja aos pobres de todo o mundo.
Capa do livro de Morris West, edição da Clássica Editora (colecção Orbe, nº 28; disponível a 6ª edição, 490 pp., no sítio Alfarrabista.com - Livros Usados, Livros Antigos).
Foto: ©
Alfarrabista.com (2006) (com a devida vénia...)
Estava na página 216 quando o primeiro rebentamento de canhão sem recuo veio cair nas traseiras do meu vizinho, o Padre Lánsana Soncó, com quem, dentro de dias, irei ter uma espinhosa discussão doutrinal acerca do Ramadão e da ira de Deus. Sentei-me tenso até que o estralejar das costureirinhas e o encadeamento de várias morteiradas me levou directamente para um abrigo onde, como em cinemascópio, as frestas central e laterais me permitiram ver alguma latitude da linha de fogo.
Os guerrilheiros apresentaram-se na clareira de Missirá com apreciável potencial de fogo incluindo canhão, morteiros, bazucas e armas automáticas. Os meus vizinhos civis e militares já lá estavam a foguear, e o primeiro entendimento passou por pedir ao Lânsana que não desfizesse o tecto com rajadas, a Quebá Sissé que tomasse conta da Breda, enquanto eu, Gibrilo Embaló, Albino Amadu Baldé e Madiu Colubali fazíamos fogo de G3, apoiados pelos condutores Quim e Setúbal que enchiam os carregadores.
Às tantas, lembrei-me que as funções de Comandante pediam-me um pouco que espingardar, e saí curvado dentro da neblina de pólvora que começava a encher o aquartelamento. Visualizar a situação não era díficil, com duas moranças transformadas em tochas, vi gente a funcionar no abrigo dos morteiros, o monumento no centro da parada onde hasteavamos a bandeira já atingido por uma canhoada, vi passar por mim como uma flecha Campino bazucando para a linha de fogo, depois Cherno Suane com o tubo e o prato do morteiro 60 e um colar de granadas ao peito, pedindo colaboração aos apontadores de dilagrama.
Para que a verdade se respeite, Saiegh galvanizava a resposta, o fogo era ensurdecedor, aprendi que a gritaria não deixa distinguir a coragem, o denodo, o sangue frio da pura histeria ou dos nervos descontrolados, à primeira leitura. Em vez de correr, preferi ir para o centro da parada e juntei-me aos atiradores do morteiro 81.
Ao rememorar os acontecimentos, verifico que 30 minutos de réplica, de reacção enérgica, não esgotam a energia, só senti a bruteza e o estupor do cansaço quando o fogo dos guerrilheiros se foi extinguindo e, tal como eu já tinha lido nos manuais, tiros isolados assinalaram a retirada. O fogo continuou da nossa parte, até igualmente se extinguir.
Pedi ao Saiegh e ao Ferreira, bem como ao Casanova, que chegara há dias, que fôssemos avaliar a situação dentro do quartel. Três moranças ficaram calcinadas, a enfermaria severamente atingida, uma das paredes do depósito de géneros esburacada, procurávamos vítimas entre civis e militares. Pedi um relatório ao Adão, o nosso enfermeiro:
- Ó meu Alferes, eu nunca vi uma coisa assim. Tenho ali sentado o Mamadu Djau que meteu dois tiros num pé. Diz que lhe dói um pouco, dá gargalhadas, já pus água oxigenada, venha ver, ele deve estar em estado de choque, o melhor é pedirmos uma evacuação ao amanhecer.
Lá fomos a um abrigo onde o nosso Djau, um gigante de mais de 1,90 m, fumava e conversava amenamente com outros soldados milícias, com um pé empapado em maços de algodão. Para que conste, o nosso Djau recusou tratamentos em Bissau, pôs-se de pé e pediu para ser visto pelo médico em Bambadinca, numa próxima oportunidade. Enquanto isto se passa, veio a chuva benfazeja, é bom não esquecer que estamos na época das chuvas e que os céus mitigam as calamidades destes fogos postos.
Uma flagelação, comecei a aprender, é primeiro este aperto no coração, depois aprende-se a ir direito ao essencial e responder ao alcance das nossas possibilidades. No rescaldo, se não houver mortos para chorar, como vai acontecer esta madrugada, vamos esgotar a última tensão nervosa com conversa fiada, aspectos anedóticos, previsões descabidas. Fica uma camisa pendurada numa porta reduzida a um passador; Cherno esgravata no solo molhado o prato do morteiro que se afundou com o coice; vou conversando com homens de cara chamuscada e pele queimada pelos cartuchos...
Pelas 5:30 da manhã, com os primeiros alvores, procede-se ao patrulhamento e também aqui a ajuda e a condução de Saiegh revelaram-se irrepreensíveis: explicam-me onde está o rodado do canhão, vejo os cartuchos vazios, seguimos o trilho por onde os rebeldes se internaram na mata, em Paté Gidé. Inevitavelmente, no regresso, começaram as especulações. Eu tinha avisado os furriéis que iríamos sair muito cedo para a zona de Mero, por ordem de Bambadinca. Aturdido pelo facto de alguns soldados me terem dito que tinham ouvido no mercado a notícia de iríamos cair de surpresa nessa povoação sobre a qual impendia a suspeita de colaboração com a guerrilha, suspendi sem data tal patrulhamento. A especulação era de quem intoxicara quem. O assunto deixou-me indiferente, eu já estava a deitar contas à vida quanto às reconstruções, registei os comportamentos valorosos, convidei toda a gente a descansarmos umas horas.
Deito-me, o sono não vem, aproveito para fazer o balanço deste mês caudaloso. Embarquei no Uíge com dois caixotes de dois metros de comprimentos por 80 de largura e 70 de altura. Caixotes com livros e discos que forçaram a risada de muita gente: era a bagagem de quem queria prolongar uma outra faceta da sua vida, continuar a devorar papel em companhia de sons melodiosos de música de ópera, sinfónica, de câmara, antiga e moderna; em Bissau comprei livros proibidos em Lisboa, discos do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira; tomei Missirá muito a sério, oiço, medito, procuro aperceber-me do papel da logística , acho que fiz uma boa aposta na instrução das crianças e dos soldados, penso o mesmo do plano de segurança de Missirá e Finete. A cooperação entre militares e civis reforça-se. A guerra não se ilude, oiço rebentamentos em Mansabá, mas também sons mais surdos, em distâncias mais longínquas.
Estou obcecado pelas obras, por conhecer o terreno circunvizinho, já esclareci dentro de mim próprio que os patrulhamentos a Mato de Cão são só uma das faces da moeda. A mata fascina-me, logo o primeiro patrulhamento na Aldeia de Cuor com as suas ruínas monumentais de construções que quiseram rivalizar com Bambadinca me deixaram a vista assombrada, como se eu estivesse a contactar uma civilização perdida. Os rebeldes deixaram panfletos na fonte. Este quartel é muito especial, estes soldados que ripostaram tão determinados ao fogo rebelde estão-se nas tintas para os esquemas e rituais da ordem unida e do
esquerda volver!; Mamadu Camará entrou-me na morança e perguntou-me se eu lhe podia vender um par de sapatos castanhos. Levou-os ofertados, andou-os a exibir com um rádio estridente nos braços.
Perdi a noção dos dias úteis e do fim de semana. Tomo a noção de que as minhas epístolas mandadas para Portugal são relatos minuciosos onde falo de tesouras corta-arame, sacos de cimento, tijolos de adobe, material de restauração e escolar, abate de material desaparecido ou inútil, autos de averiguações... mergulhei num universo insólito, felizmente o conteúdo daqueles dois caixotes faz a ponte com o mundo donde provenho.
Fiz amizade com Mazaqueu, um sobrinho de Quebá Soncó, um menino doente com dois olhos que parecem faúlhas e em permanente rodopio (perguntei há dias a Abudu Soncó se se lembrava dele, já que têm uma idade próxima e com o ar mais natural do mundo ele disse-me que o Mazaqueu trabalha em Portugal e que vai organizar um encontro). Passo próximo do professor que fui buscar ao Bambadincazinho e oiço as crianças a soletrar:
casa, pai, manga, arroz, corcodilo... à noite sento-me com dois furriéis e organizamos o dia seguinte.
Assim como chove abundantemente, logo o céu descarregado se inunda de estrelas e a sombra da floresta ergue-se como um fabuloso cenário de teatro de ópera. Escrevo aos amigos e peço que me mandem jornais e revistas com mais notícias sobre a invasão da Checoslováquia. A leitura da poesia de Herberto Helder confirma-me um dos maiores nomes da literatura portuguesa de todos os tempos:
"As crianças falam até ao fim de cada palavra. A morte das crianças é uam fogueira ao lado direito de Deus, fogueira onde Deus aquece as mãos. Aprenderei no sono as submersas crianças mudas, envoltas no sangue. As crianças param no meio das folhas. Destroem o jardim numérico. As crianças ultrapassam a idade que as ultrapassa a elas. As crianças são o instante onde as liras e os dedos são uma única rosa".
Comovo-me e limpo as lágrimas. Aprendo que comandar é estar só, é responder inteiramente pelo que se sabe e até pelo pensamento e os actos alheios. Comandar, nestas circunstâncias, é resistir imperativamente ao desânimo e estimular os camaradas a inventar uma vida melhor com a parcimónia dos meios.
Em Missirá e Finete há carpintaria, há cal e cimento, tapam-se buracos, protegem-se os combustíveis, fazem-se
conferências de imprensa para comentar as novas casas de banho para militares e civis. Há adobe fresco, grandes troncos de palmeira dão vigas para novos cavalos de frisa e novos abrigos. Por vezes a chuva inclemente e tropical desfaz o adobe. Mas tudo recomeça.
Verei três vezes Missirá arder e reconstruir-se. Vou habituar-me ao som das picaretas, aos ruídos fabris, ao trabalho dos trolhas, a ver passar a tinta de água, as lixas, os pincéis, o novo mobiliário. É então, enquanto agradeço a Deus a energia indómita, a saúde e o amor pelos homens que adormeço exausto. O homem que vai acordar dentro em pouco vai desafiar o terror com contraterror. Pacientemente, vai esperar, emboscar, à procura de um frente a frente. E antes do Natal virão as dores das primeiras mortes saídas da sua arma.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 4 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa