sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Prossegue a batalha do Como, é óbvio que o bardo dá prioridade à sua gente mas a operação teve farto envolvimento, foram de primordial importância tanto as forças navais como os meios aéreos. Neste episódio se releva a singularidade do diário de Armor Pires Mota, tem páginas comoventes, importa não esquecer que foram escritas em cima dos acontecimentos, é de questionar a fibra deste homem, as suas orações tocantes, o sofrimento compartilhado, o horror que viu, como aqui descreve.
E volta-se a falar de Alpoim Calvão e das forças navais, há que dar o seu a seu dono, no termo desta operação o Coronel Fernando Cavaleiro percorrerá a pé toda a ilha, era vitória de pouca dura, sina da guerra de guerrilhas, setenta dias de duros combates.
O bardo, como veremos, ainda tem muito a contar sobre a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (19)

Beja Santos

“Quando a gente cá chegou
junto ao Batalhão lutavam
as tropas desembarcadas.
Bons serviços prestavam.

Muito fogo teve de atirar
a 2.ª Companhia
porque aquela patifaria
custava a recuar.
Depois de a Cauane chegar
a luta continuou.
Debaixo do fogo se trabalhou
para construir os abrigos.
Eram muitos os inimigos,
quando a gente cá chegou.

Algum tempo se passou
e em Catunco tudo normal:
com ordem do Sr. Cap. Cabral
a Ilha se patrulhou.
Um pretinho se apanhou
e para mascote o levavam.
Quando um dia caminhavam
apanhou-se um dos bandoleiros
e em todo o lado os fuzileiros
junto ao Batalhão lutavam.

Em Caiar se encontrava
o Alferes de Artilharia
que com boa pontaria
nos malvados acertava,
de noite ou de dia jogava
uma porção de granadas.
Media bem as coordenadas
não atingindo as Companhias.
E decorreram 70 dias
as tropas desembarcadas.

O pelotão dos paraquedistas
encontraram alguns bandos
junto aos homens dos comandos
que também deram nas vistas.
Mataram muitos terroristas
e alguns vivos apanhavam.
Um dia à praia chegavam
com prisioneiros na mão
e durante toda a operação
bons serviços prestavam.”

********************

É o momento propício para se dar voz a quem sobre esta batalha escreveu em forma de diário. “Tarrafo”, de Armor Pires Mota, é uma das obras incontornáveis da literatura da guerra da Guiné. O livro foi alvo da censura, retirado do mercado livreiro, reeditado mais tarde. É um legado de páginas densas, emocionantes, temos aqui a guerra em direto que o Alferes de Cavalaria enviava em forma de crónicas para o Jornal da Bairrada.
É um testemunho sem paralelo sobre a Batalha do Como:
“Atravessámos o riacho e o tarrafo, de saco às costas, muito a custo, curvados e encobertos pela vegetação, quase impotentes e amachucados porque a viagem fora penosa, difícil. E debaixo de fogo intenso, a rastejarmos, entrámos no objectivo… Sinto-me em baixo. A alma pesa-me como chumbo. E causa-me calafrios a morte daquele dois moços que ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés, por algum motivo religioso. De resto, levaram-lhes tudo. Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos e pelos rasgões, espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. Não quero que ninguém fique com a impressão de que este diário é pura ficção nem, tão pouco, que me mascarem de valente. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim”.

O autor reza o terço quando rebenta a fuzilaria, estão metidos num cerco em ferradura, o ataque é repelido, renasce a atmosfera de silêncio enquanto um vento húmido traz o cheiro horrível da carne a apodrecer algures, entrecortado pelos estrondos da artilharia. É uma batalha como não haverá igual, em tudo o que se passou na Guiné, tomam-se posições, por vezes recua-se, derrubam-se acampamentos, há rompantes desse combate que ganham uma dimensão apocalíptica, vive-se permanentemente à espera de um contra-ataque, como Armor Pires Mota escreve:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. Há refeições em branco, porque não apetece senão a paz, o regresso. Uma grande parte da tropa está já inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na tropa, na guerra”. 
 E é neste diário emocionante que no dia 1 de março de 1964, Armor Pires Mota faz uma oração como não vi escrita outra igual:
“Só Tu sabes, Senhor, a minha hora.
Mas tenho medo porque sou homem e tenho o destino de mãos vazias.
Que as minhas mãos não façam correr sangue inocente, mas que não sejam cobardes se for preciso castigar, matar ou morrer.
Mas tenho medo, Senhor!
Tu bem sabes que eu tenho uma mãe que chora e reza a minha ausência e que a saudade chora dentro de mim como uma criança longe dos braços maternos.
Tu sabes que eu tenho sonhos de ouro e espero de olhos azuis no futuro.
Tu sabes que eu tenho um amor na vida de mãos cheias de primavera e cabelo preto, da candidez dos lírios. E Tu bem sabes como dói cair uma rosa no chão só porque não choveu…
E só Tu sabes o segredo da noite: para a vida?, para a morte?
A hora é de luta para vencer ou morrer.
Mas tenho medo sem ser cobarde e tremo todo como cana agitada ao vento.
Espero em Ti.”

A batalha parece interminável, sangrenta, com casas de mato a arder, paraquedistas perdidos, um certo caos nas ordens e contraordens.
O autor escreve nova página do diário:
“Tivemos missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quanto ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e as derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva… Deus desceu à guerra para a paz”.

O diário de Armor Pires Mota não finda aqui, quando saem da Ilha do Como ruma para Jumbembem, de outras coisas falará.

Retornemos a “Alpoim Calvão, Honra e Dever”, e ao mês de fevereiro, as forças do PAIGC continuam a oferecer feroz oposição, o DFE8 não tem descanso e a 27 desse mês este DFE e o DFE7 embarcam com destino a Cachil, trabalhando em conjunto pela primeira vez na Tridente.
Vai prosseguir o relato dos acontecimentos:
“Chegaram à cambança do Brandão pelas duas da manhã, quedando-se aquartelados pouco depois no estacionamento de Cachil. Mas é curto o descanso, pois às 4h30 é dada a alvorada e uma hora mais tarde inicia-se o movimento simultâneo das duas unidades, seguindo o DFE7 pela orla este da mata grande de Cachil e o DFE8 pela orla oeste. Chegados ao limite sul, o DFE7 entra em contacto pelo fogo com o inimigo, enquanto o DFE8 permanece sem ser detectado. O DFE7 manobra então de modo a ocupar um esporão mais a sul, enquanto os F-86 da Força Aérea bombardeiam o tarrafo e a orla da mata de Cassaca onde o inimigo se continua a manifestar com alguma violência.
As secções avançadas entram em contacto com o inimigo que, tento retirado aquando o ataque aéreo, voltara às suas posições e esbarrara com o fogo dos dois destacamentos, responsável pelo abate de alguns guerrilheiros e pela apreensão de material de guerra. Em estreita colaboração, as restantes secções de fuzileiros ocupam a orla norte da mata de Cassaca, enquanto a retaguarda é protegida por um grupo de combate da CCAÇ 557 e uma secção do DFE2. O DFE8 assume depois a vanguarda e progride a oeste da picada, em direção a Cassaca, onde já estão instaladas a CCAV 487 e o grupo de Comandos. Juntas as forças, inicia-se o regresso a Cauane, progredindo na vanguarda o DFE8, seguido pelo DFE7, pelo grupo de Comandos e pela CCAV 487. O inimigo não se torna a manifestar.

Alpoim Calvão não mostra grandes preocupações quanto à sua defesa pessoal. Usualmente armava de G3, mas muitas vezes optava por levar apenas uma pistola-metralhadora UZI, ou até mesmo uma simples pistola, e não costumava carregar com muitas munições. Entendia que a missão de um comandante não era estar deitado a dar tiros, como um simples atirador, mas sim permanecer de pé enquanto o tiroteio chicoteava as copas das árvores ou ceifava o capim e lhe assobiava aos ouvidos. Procurava estar o mais protegido que fosse possível, qualquer tronco de árvore, por mais estreitinho que fosse, servia. Mas de pé, sempre de pé, a única maneira de ver a ação, intervir, poder dirigir a manobra, comandar.

Numa das fases da Operação Tridente seguia como observador o Capitão-Tenente Melo Cristino, Diretor de Instrução da Escola de Fuzileiros, que, nunca tendo participado em qualquer campanha, pretendia sentir ao vivo o comportamento das unidades em combate, razão por que entendera visitar o teatro de operações da Guiné e fizera questão em acompanhar pessoalmente uma acção. Nessa ocasião, quando algumas secções do DFE8 progrediam na retaguarda de um pelotão de paraquedistas, a Unidade caiu debaixo de fogo inimigo, responsável por duas baixas.
Durante o intenso tiroteio travado de seguida e enquanto o Tenente Calvão de pé procurava orientar a manobra dos seus homens, o Comandante Melo Cristino, surpreendido pela violência do fogo e pela chuva de metralha que caía em seu redor, gatinha desorientado pelo chão sem saber muito bem o que fazer. A admiração e o respeito que passou a sentir pela coragem de Alpoim Calvão e dos seus fuzileiros deixou de conhecer limites.

A partir de certa altura, após a passagem dos aviões da Força Aérea, os fuzileiros ouviam fortíssimos rebentamentos na mata e o solo estremecia com a violência de um tremor de terra. Era mais um bombardeamento, mas de invulgar potência. Na sua origem encontrava-se o Comandante da LFG “Dragão”, Primeiro-Tenente Lopes Carvalheira, que via com preocupação a operação arrastar-se durante muito tempo e pensou numa maneira de abreviar o esforço exercido na Ilha do Como. Tinha conhecimento que nos paióis de munições em Bissau estavam estivadas bombas de profundidade para a guerra antissubmarina. Eram cargas poderosíssimas de 350kg de trotil que se encontravam atribuídas às fragatas em serviço na província, mas que, não só por serem desnecessárias naquele teatro de operações como também por representarem um perigo acrescido, eram desembarcadas no início das comissões.
Lopes Carvalheira fez então um teste com as cargas utilizadas para repelir ataques de mergulhadores e confirmou que as espoletas tinham um retardo de 20 segundos. Foi pois fácil ao seu Imediato, Oficial da Reserva Naval, licenciado em Matemática, estabelecer os cálculos da altitude a que deveriam ser largadas de avião para rebentarem a escassos metros do solo. Lopes Carvalheira pede licença para se deslocar a Bissau, embarca num helicóptero Allouette II a bordo da ‘Nuno Tristão’ e expõe a sua ideia, que conta com o apoio inequívoco do Governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues.”

Ver-se-á a seguir como este dispositivo beneficiou Alpoim Calvão e os seus homens na Batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 9 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20046: Notas de leitura (1207): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (18) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20054: Notas de leitura (1208): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)


India > Goa > Volta ao Mundo em 100 dias a bordo do mavio de cruzeiros "Costa Luminosa" > 19 de novembro de 2016 > Cemitério  > Lembrando o 10 de junho, "dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas"... Lembrando ainda os portugueses e seus descendentes que ficaram nos antigos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu.  Aqui se dizia, antigamente: "Na Índia os mais vivem de esperança, e o comum morre sem paga"...


Foto: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Cemitério de Paredes de Viadores > 1 de novembro de 2017 > O mais sumptuoso jazigo, da família da "Casa da Igreja", em estilo revivalista, neogótico > Inscrição em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te hás-de tornar)....

Até na morte os homens tentam reproduzir as desigualdades sociais que existiam em vida: esta capela, dos "fildalgos" da Casa da Igreja é a única que existe, para além da de outra família, neste pequeno cemitério rural, cuja construção remonta a 1894... Logo nos finais do séc. XIX, os ricos e poderosos procuraram contornar a aplicação lei liberal do enterramentio público (que proibia o enterramento em espaço privado: palácios, conventos, igrejas, ermidas, capelas...) erigindo no espaço do cemitério público uma "jazigo capela", uma espécie de minicasa de Deus, reservada aos seus mortos queridos...

Há algo de patético neste encarniçamento em manter, na morte, a segregação socioespacial que existia em vida...  Mas, na relidade, s cemitérios públicos, que só surgem no séx. XIX, com o liberalismo, são (ou deviam ser) verdadeiros "campos da igualdade", já que metaforicamente falando, a gadanha da morte ceifa tudo e todos, ceifa rente a vida, e não poupa tanto a espiga de trigo como a erva do campo, o rico e o pobre, o herói e o cobarde, o novo e o velho, o são e o doente, o amigo e o inimigo... Afinal, "na morte ninguém finge nem é pobre"...


Foto: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)



41. Havia a assistente social que fazia o inquérito de saúde aos indigentes, porcionistas e pensionistas e só em caso de vida ou de morte é que um pobre de Cristo ia parar ao Real Hospital de São José, lá longe na capital do reino, a três horas de distância da camioneta do João Henriques. Parava na Rua da Palma, mesmo pertinho do hospital do rei. 


E em Lisboa, era para morrer: que em Lisboa nem sangria má, nem purga boa, abanava com a cabeça o enfermeiro do hospital da Misericórdia. 

42. Havia a escola, primária, do tal Conde de Ferreira, e não chegava para tantos bandos de crianças que precisavam de aprender a ler, escrever e contar, e mais tarde ajudar a dilatar a fé e o império e a cobrar o imposto de palhota ou remendar as malhas que o império tecia e rompia.

Havia uma ala para os meninos, e outra para as meninas, com um muro de Berlim ao meio, os sexos apartados desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e onde não chegavam as carteiras para tanto petiz, de pé descalço e ranho no nariz, enfarinhados de pó de giz e de mãos sujas de tinta azul, as cabeças cobertas de piolhos que se matavam com água a ferver, pentes de osso e DDT 
[1]


43. Ah! a tua escola do senhor Conde de Ferreira, que saudades!, construída no tempo da Regeneração, com o remanescente da herança do maior benemérito do Liberalismo, deitada abaixo, mais tarde, pelo desgraçado do camartelo camarário. 


E em frente o carro de praça do ti’ Ad’lino, talvez um velho Ford preto (, lembras-te lá tu agora da cor e da marca!), que viera substituir o coche dos ricos, passando o cocheiro chofer, a chauffeur de praça. Assim, à francesa, chauffeur, como dizia o teu pai e era mais fino.



44. Saudades ?!... Como é que os pobres, com um rancho de filhos, e tantas bocas para dar de comer, tinham saudades da sua pobreza envergonhada?!

Havia a vida privada, por detrás dos muros dos quintais e das paredes dos casarões dos ricos, que os pobres, esses, não tinham vida, e muito menos privada.


45. Havia a alcova, exposta na via pública, o Poço Novo onde as mulheres iam lavar a roupa e os sete pecados mortais, o Poço Novo, grande melhoramento público do Estado Novo. 

Havia o confessor que tinha mau hálito, havia os segredos de confessionário, mal guardados a sete chaves, uma para cada pecado, coisas que se contavam do bom do ferreiro e segeiro da tua rua, que, coitado, tinha fama de fauno, de lobisomem e de beato, batendo a mão no peito, seco, negro do carvão de pedra, uma figura mística, arrancada às tábuas de El Greco [2]. 


46. Havia a guarda, muito pouco republicana e nacional, que estava em pé de guerra contra a comissão fabriqueira da igreja, por ocupar parte das instalações do antigo convento de santo António, velhas disputas que vinham do tempo do mata-frades 
[3]  e da república façanhuda, jacobina, maçónica e anticlerical. E tu, que mais tarde irás ajudar à missa, tomavas o partido de Deus contra o de César. Não podias deixar de tomar partido: não tinhas escolha.


47. Havia o drama dos soldados que partiam para as Índias, Goa, Damão e Diu (sem os enclaves de Dradrá e Nagar-Aveli que o "Pandita" Nehru já nos tinha usurpado em 1954!), os soldados de caqui e farda amarela e botas de polaina, capacete de aço e espingarda Mauser, e as mães da rua dos Valados, comprida, do cemitério ao largo das Aravessas, que, desgrenhadas, roucas, histéricas, rasgando véus, aventais e saias e arrancando cabelos, gritavam, imploravam, praguejavam e até invetivavam Deus e a santa da sua mãe, para que os dois (, juntos, sempre tinham mais força!),velassem por eles, os seus meninos, e os trouxessem de volta, sãos e salvos, no veleiro de torna-viagem.

E voltavam, os que voltavam, mas já não eram os mesmos. E as mães eram as primeiras a dar conta dessa mudança. E ainda não havia a guerra do ultramar, lá longe, em Angola, Guiné e Moçambique, nas terras dos pretinhos, mas hás de lá chegar quando passarem mais outonos e invernos, primaveras e verões, depois da feira de setembro. 

Havia o ditado, de mau agoiro e de negro presságio: À Índia mais vão do que tornam. Se calhar era lembrança dos tempos em que, à Índia, ir e vir demorava dois anos, de barco à vela.

48. Havia ainda a cadeia da c
omarca no largo do convento: tresandava a merda e a mijo, a vomitado e a maresia, a sangue e a suor, e, por detrás das grossas grades de ferro carcomidas pela maresia, uma mulher corajosa, com um filho nos braços, que matara o homem violento, e noutra cela um facínora das Cesaredas, terra danada, diziam, onde as mulheres eram homens e os homens lobisomens, o papão com que te metiam medo, à noite, ao deitar, debaixo dos lençóis, a faca nos dentes, a sangrar, o papão, o lobo mau, o inferno, a danação eterna, o troar dos canhões das trovoadas, dantescas, que faziam estremecer os vidros das janelas, e as missas que tinhas de ouvir por mor da salvação da tua alma, e as orações que tinhas de rezar para alcançares o céu, direitinho que nem um fuso, logo que a alma se desprendesse do frágil e miserável invólucro do teu corpo, na hora da tua morte, ámen! 



49. Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris, lembra-te, meu menino, que és pó e que em pó te hás de tornar!, ameaçava-te o padre pregador franciscano nos sermões da Quaresma,e esse latinório bastava para ficares a entender, aterrorizado, o conceito da tua reles insignificância na periferia do universo que Deus criara, com pompa e circunstância e orquestra.


50. Ah!, e as feiras da tua infância!, não te esqueças de mencionar as feiras, havia as feiras e os mercados, no Rossio, junto ao rio Grande, a merda dos bois e das vacas no terreiro (, caca, que a tua mãezinha nunca te deixaria dizer merda, e de castigo punha-te pimenta na língua!)

E os pobres dos ciganos sem eira nem beira, escorraçados ao fim de três dias, e de quem tinhas medo que te pelavas, quando por lá passavas, nos acampamentos do Rossio, a caminho da Quinta do Bolardo!

Tinham fama, os desgraçados, de desenterrar os animais, mortos por doença, que a fome era negra, e eram tantas as bocas no acampamento.

(Continua)

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[1] DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano) é o primeiro pesticida moderno, tendo sido largamente usado durante e após a Segunda Guerra Mundial.

[2] Doménikos Theotokópoulos, mais conhecido por El Greco (1541-1614): artista plástico genial, desenvolveu a maior parte da sua carreira em Toledo, Espanha.

[3] Alcunha de Joaquim António de Aguiar (Coimbra, 1792 – Barreiro, 1882 [,autor da lei de 30 de maio de 1834 (extinção das ordens religiosa refgulares, e nacionalziação dos seus bens)].

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série >

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

Guiné 61/74 - P20063: Parabéns a você (1663): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20047: Parabéns a você (1662): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 1972/74) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20062: Agenda cultural (697): Convite para a apresentação do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", de Francisco Baptista, a levar a efeito no dia 24 de Agosto de 2019, pelas 15,00 horas, na Biblioteca Municipal Trindade Coelho, Rua dos Bombeiros Voluntários, Mogadouro

C O N V I T E



Contracapa do livro "BRUNHOSO, ERA O TEMPO DAS SEGADAS - NA GUINÉ, O CAPIM ARDIA", com um texto do nosso camarada Fernando Gouveia, também ele um transmontano dos quatro costados e antigo combatente na Guiné.

Sobre o autor:
Francisco Maria Magalhães Baptista nasceu em Brunhoso, concelho de Mogadouro, no dia 19 de Julho de 1947.
Frequentou a Instrução Primária na sua freguesia e o Ensino Secundário em Mogadouro e no Porto.
Em cumprimento do serviço militar, a 19 de Março de 1970 embarca para a Guiné em rendição individual, com o posto de Alferes Miliciano, destinado à CCAÇ 2616, onde permanece até ao regresso desta Companhia à Metrópole em 1971. A fim de completar a sua comissão de serviço é integrado na CART 2732. Embarca para a Metrópole com esta Unidade no dia 19 de Março de 1972.
Funcionário Público Reformado, exerceu funções na Segurança Social e nas Finanças.
Acaba de publicar este seu primeiro livro.

Sobre o livro:
Título: "BRUNHOSO, ERA O TEMPO DAS SEGADAS - NA GUINÉ, O CAPIM ARDIA"
Autor: Francisco Baptista
Editor: Edição de Autor
Capa: Crasto, colina próxima de Brunhoso
Páginas: 388 
Encadernação: Capa mole
Dimensões: 230X150X20mm
1.º Edição: Maio de 2019
Depósito legal: 455196/19
ISBN: 978-989-691-830-9

O livro pode ser solicitado para este mail: francisco.mbaptista@gmail.com
Custo: 15,00€ mais portes de correio
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Notas do editor

Vd. poste de 18 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19900: Notas de leitura (1188): Uma história antiga, do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", da autoria de Francisco Baptista, com lançamento no próximo dia 24 de Agosto de 2019, pelas 15 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Mogadouro

Último poste da série de 25 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20009: Agenda cultural (696): Apresentação do livro do nosso camarada Joaquim da Silva Jorge, "Ferrel através dos tempos", 9 de agosto de 2019, 6ª feira, às 17h00, no salão de festas do Jardim Infantil de Ferrel, "a capital da luta contra o nuclear"

Guiné 61/74 - P20061: Memória dos lugares (393): Ainda os memoriais de Buruntuma e Camajabá (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), com data de 9 de Agosto de 2019:


Ainda os memoriais de Buruntuma

Estando eu navegando no nosso blogue, resolvi pesquisar postes relacionados com Buruntuma, onde permanecemos algum tempo, deparando com o poste P17867 que fala sobre os memoriais daquele aquartelamento.

Começo por dizer que na foto do memorial da CCAÇ 3546 que presta homenagem aos seus mortos, que ainda está na Ponte Caium, e que vai resistindo à erosão dos tempos, se vê à esquerda, os restos de um pedestal onde existia um pequeno oratório, tipo capelinha, com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Já lá se encontrava quando a CART 1742 tomou conta do sector que tinha sede em Buruntuma.
Ao tempo, era enviado um grupo de combate para Camajabá, que por sua vez deslocava uma secção para a Ponte Caium a fim de manter a segurança da mesma.

Envio foto minha junto desse oratório. O pedestal não tinha a inscrição que se vê na foto do Patrício Ribeiro. Olhando para semelhança das letras e  dos números inscritos no memorial, dá a ideia de que tenha sido a malta da 3456 a fazer tal inscrição, e muito bem.

Ponte Caium - Memorial da CCAÇ 3546
Foto: Eduardo Campos

Ponte Caiun - Abel Santos junto ao oratório
Foto: Abel Santos

Ponte Caium - Restos do oratório
Foto: Patrício Ribeiro

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Em Camajabá ainda resiste um memorial pertencente à CCAÇ 1418. Envio foto minha e, para comparação, uma foto mais recente do mesmo, tirada pelo camarada Patrício Ribeiro.

Camajabá - Abel Santos junto ao Memorial da CCAÇ 1418
Foto: Abel Santos

Camajabá - Memorial da CCAÇ 1418 - Actualmente
Foto: Patrício Ribeiro


Envio um abraço aos camaradas da CCAÇ 3546 pelo bonito memorial que deixaram em terras da então Guiné Portuguesa, perpetuando assim a sua e nossa passagem por África.
Ao meu amigo Eduardo Campos a minha vénia pelas excelentes fotos, tiradas aquando da sua visita em 2010 à Guiné-Bissau.
Também uma referência ao Patrício Ribeiro que palmilha a Guiné-Bissau de lés-a-lés e que nos vai revelando a arqueologia da passagem das Unidades Militares naquele país.

Um abraço para a Tabanca Grande e camaradas da Guiné.
Abel Santos.
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Notas do editor

Último poste da série de 21 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19811: Memória dos lugares (392): Memoriais da zona de Buruntuma e Camajabá (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 6/12/1942 > Nazaré, Maria Adelaide e Ascensão, três vizinhas e amigas do Luís Henriques (1920-2012),  fotografadas na ponte sobre o Rio Grande, na altura à saída da Lourinhã, a norte -  Foto enviada para o amigo e vizinho, expedicionário em Cabo Verde, com "votos de verdadeira e sincera amizade".

A primeira parte da legenda é ilegível. A Maria Adelaide já morreu. Da Ascensão perdeu-se-lhe o rasto. A Nazaré era a tia da Mariete, a família toda emigrou para a América, em meados dos anos 50. E por lá terá casado a Nazaré... Era "ajuntadeira" (costureira de calçado), e trabalhava muito para o Luís Henriques,  sapateiro, que dava trabalho a muita gente na Lourinhã. 

O autor ainda se lembra  bem da ti Ad'lina, mãe da Nazaré, sua vizinha, e que era uma  espécie de curandeira lá do bairro... O poeta , quando jovem, morava na rua dos Valados, ou do Castelo, e elas na rua, paralela, a do Clube, na parte antiga da vila... Quando puto, e quando doente, ela - a ti Ad'lina - aplicava-lhe as suas mezinhas, receitas da medicina popular com séculos de eficácia simbólica e terapêutica... Lembra-se, com ternura e repulsa, das suas "unturas & benzeduras": uma em especial era aplicada na garganta, era feita com merda e gordura de galinha, para tratar da papeira... 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


[...] 31. Jogava-se à bola, domingo à tarde, no campo de futebol, pelado, por detrás da igreja do convento, enquanto um cão uivava na vinha vindimada pelo Senhor, jogavam à bola os graúdos, os solteiros contra os casados, os vivos contra os mortos, os pobres contra os pedintes, os idiotas contra os felizardos, os esperançados da vida contra os da vida já cansados, os novos contra os da velha guarda…

A bola, as disputas entre aldeias vizinhas, o alvoroço do povo, o cabo chefe, o bufo, o louco, o beato, o lobisomem, o analfabeto contra o esperto, o feitor e o caseiro, o porco no estertor da morte, o regedor, o provedor da Santa Casa da Misericórdia, o rico contra o remediado, o pobre e o indigente, mais o cão que já não guardava a vinha vindimada do Senhor, velho, escanzelado, tinhoso, sarnento, doente, vira-latas.

Vieram depois dizer-te que era o medo que guardava a vinha do Senhor, quando tu e os da tua rua iam apanhar o rabisco!... 


E todos os ricos, que viviam em Lisboa, tinham um feitor ou um caseiro ou um criado tão mau como o "Brutamontes". Afinal, "ao  cabo de um ano tem  o criado as manhas do amo"...

Tinham medos deles,  os meninos da tua rua, quando iam roubar uvas ou pêras. Nem todos: alguns não tinham medo de nada, e já diziam muitas asneiras, como o "Frasco do Veneno", o "Brutamontes"  ou os filhos da "Bruxa" da tua rua.


32. Soletravas à noite, à luz do candeeiro a petróleo, a lição onde terra rimava com chão. T e um E, TE… ERR e um A, CHÃOOOOO!!!… 


E Deus Pai achava-te graça, era paciente, condescendente e até bonacheirão. E falava em verso quando estava com os amigos e conhecidos.

33. Não, ainda não havia televisão, nem a série Bonanza 
[1], havia o hino, na rádio, que era um luxo, havia Deus, a Pátria e a Família, e pouco mais, mas chegava, essa sagrada tríade, onde cabia todo o teu pequeno universo. E não se discutia Deus nem a Pátria nem a Família!...

E quando a série Bonanza aparecer, de quem mais vais gostar será do Hoss e do Joe Pequeno, lá do rancho da Ponderosa!





Tabanca de Candoz > c. 1980 >  Ainda se matava o porco em casa, no Norte do País, como na Lourinhã nos anos 50: "uma cena que Bruxelas quis banir definitivamente dos nossos campos e aldeias em nome de uma concepção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade"... 

Foto (e legenda): Blogue A Nossa Quinta de Candoz (com a devida vénia).


34. E no Natal ?!... Lembras-te do Natal, quando ainda o Pai Natal não tinha morto o Menino Jesus, e não havia luzinhas, a não ser as das velas ou do candeeiro a petróleo ?!… 

Ia-se à missa do Galo, à meia noite em ponto, na igreja do Castelo, tumular, tudo escuro como breu, e só depois, a tiritar de frio, de regresso a casa, é que se bebia o cacau quente e se comiam os coscorões, o arroz doce e as filhós de sangue de galinha!...

E só de manhã, cedo, é que te levantavas, em alvoroço, para saber a prenda que o Menino Jesus te deixara, no sapatinho, na chaminé: um lenço, umas peúgas, um chupa-chupa, um brinquedo de chocolate, embrulhado em tosco papel de prata!

Parca prenda para quem fora todo o ano um rapazinho bem comportado, temente a Deus, amigo dos seus pais e manas, diligente, obediente e inteligente! 



35. Havia os funcionários do grémio da lavoura, e os do comércio, das pescas, da indústria e artes correlativas, que recebiam, ao fim do mês, vencimento e chapelada, opa e pálio na procissão, e cartão de eleitor dos deputados e do supremo magistrado da Nação. Mais os da câmara e das finanças, dos correios, do tribunal e das conservatórias, a pequena burguesia engravatada da tua aldeia.


Chamavam-lhes os "mangas de alpaca"… por causa da manga postiça que usavam, desde os punhos até um pouco acima dos cotovelos, e que era apertada nas extremidades com um elástico; assim não estragavam ou sujavam o casaco, quando escreviam à mão, no tempo em que ainda não havia esferográficas e até a tinta das canetas era permanente; tudo era permanente, na tua aldeia, no teu tempo.   E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja, enquanto um cão uivava  na vinha vindimada do Senhor.

Havia ainda os comerciantes e os proprietários, que animavam o clube 14 de julho, que era o dia, não da tomada da Bastilha, como virás a saber mais tarde, mas do aniversário da Viscondezinha, uma das grandes proprietárias rurais da tua terra, que se casara com alguém importante, que veio de fora, e que, se não fora o príncipe encantado, só poderia ser um bacharel em leis ou em medicina, de Coimbra.

Não, nunca chegaste a conhecer a Viscondezinha, como lhe chamavam, temerosas e  ternurentas, as mulheres da tua aldeia.


36. Na tua aldeia, todas as meninas prendadas eram exogâmicas, casavam com alguém de fora e tinham direito a genuflexório, almofadado, na primeira fila da missa de domingo na igreja matriz. 


Vermelho, não, carmesim, emendava o sacristão que era bimbo, das terras do Demo, falava "atchim", era a favor da "situação", e atravessara meio país até arribar a esta terra que já fora de romanos, visigodos, mouros, judeus, moçárabes e francos.
Já não eram meninas, eram senhoras donas, de peruca, mumificadas, os rostos cobertos de pó de arroz, e tinham casarões com capelas e brasões, comprados em hasta pública, bens de mão morta dos espoliados do Liberalismo. 

37
. Havia um carcereiro e um coveiro, com que te metiam medo quando não querias comer a sopa... Fugia-se do coveiro, como do empestado ou do leproso: ninguém o cumprimentava de mão estendida, nem tinha amigos ou conhecidos... Ninguém queria ser coveiro na tua terra, era sempre alguém que vinha de fora.

O resto era moleiro, sapateiro, cavador de enxada ou criado, com direito a uma garrafão de cinco litros de água-pé podre, cocheiro, almocreve,trolha da construção civil, ferrador, marceneiro, caboqueiro, latoeiro ou funileiro, jornaleiro, pescador, homem do campo ou do mar, trabalhador, cansado, do vinho e da vinha do Senhor, ou então marçano, ou criada de servir nas avenidas novas da Lisboa, menina e moça, dos Antónios (o Santo, o Salazar, o Ferro, que povo, esse, chamava-se Zé!).

38. Não ia à escola a filha da camponesa, ia para a vila ou para a cidade, onde no máximo tirava a 3ª classe em professora particular, e depois aprendia a cultivar as boas maneiras e a fazer rissóis e pastéis de massa tenra e coscorões e arroz doce e a tricotar as teias da pobreza e a fazer as contas do merceeiro em papel de embrulho!... "Ah!, Senhora, como a vida está cara, os ladrões açambarcaram o açúcar, o café e o azeite!"... 


Casavam depois com os rapazes da vila, tinham filhos e filhas, e a estas havia a moda de as batizar com nomes afrancesados: bernardetes, elisabetes, gracietes, marietes, miletes, suzetes... Era mais chique que Francisca, Joana, Joaquina, Maria ou Manela.


39. Da janela do teu quarto, contavas, um a um, os cinquenta homens que em fila, de enxada em riste, cavavam a vinha do Senhor, encosta a cima, até ao alto onde se erguia um moinho de vento.

Do outro lado, encosta abaixo, outros tantos cinquenta homens, de enxada em punho, cavavam outra vinha do Senhor, que tinha muitas vinhas e fazia muitas pipas de vinho!...

Nessa época a riqueza media-se em pipas de vinho e  carros de bois de trigo e jeiras (que era a medida da terra). E não havia ainda motocultivadores e tratores.


40. Havia cães, isso sim, muitos cães, vadios. E tu tinhas fobia aos cães. Fugias dos cães e do "Brutamontes" e do seu bando, como o diabo fugia da cruz. Não, nunca tinhas visto o diabo em figura de gente, mas que ele existia, existia, tal como as bruxas. E seria ainda muito pior que o "Brutamontes".

Havia dois ou três médicos, e chegavam para todo o concelho, que a gente da tua aldeia só os chamava no estertor ou no pavor da morte, a eles e aos padres, às parteiras, às carpideiras, aos testamenteiros e aos gatos-pingados. Mal por mal, antes cadeia que hospital.

Havia duas boticas e chegavam, que o arsenal terapêutico cabia no malote do facultativo municipal. Com malvas e água fria, fazia-se um boticário numa dia.

Havia os cortejos de oferendas (cada um dava o que podia e calhava: uma abóbora, um chouriço, um galo ou um saco de batatas!), para se construir um hospital novo para a velha misericórdia do séc. XVI, onde os catres para os doentes pobres não chegavam, que os ricos e os remediados, esses, morriam em casa, confortados com a extrema unção, que fazia parte do arsenal da arte de bem morrer cedo e quanto mais depressa melhor, porque este mundo era um vale de lágrimas.

(Continua)
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[1] A série começou a ser exibida a RTP em 1961

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Nota do editor:

Vd. último poste da série > 14 de agosto de 2019  > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

Postes anteriores:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)


quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20059: Historiografia da presença portuguesa em África (172): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
António dos Anjos, já reformado e em Bragança, lançou-se à escrita das suas memórias referentes às décadas de 1910 e 1920, andou pela Guiné, não participou diretamente mas possui excelente informação sobre as operações de Teixeira Pinto, percorreu a colónia, registou os inúmeros atos de sublevação e de contestação da presença colonial. Tece uma homenagem aos bravos que tombaram, e foram muitos, e dá-nos conta das funções que desempenhou, das tremendas dificuldades que viveu.
É uma satisfação enorme ter encontrado este livrinho, espero que os senhores historiadores doravante lhe façam justiça, como merece, ilumina como se vivia na colónia, ninguém retratou com tanta fidelidade tais situações como ele.

Um abraço do
Mário




Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: 
A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2)

Beja Santos

Não são frequentes os testemunhos militares referentes à Guiné do tempo de Teixeira Pinto e período posterior. O documento que o 2.º Sargento António dos Anjos nos legou possui um cabedal de informações de enorme valor, porquanto: inventaria, mesmo com erros de datação, a infinidade de atos de insubmissão face à presença portuguesa e revela claramente a fragilidade dessa mesma presença; contesta aquilo que a doutrina oficial é insistente em dizer que a pacificação trouxera a paz interétnica, estava longe de ser verdade; e descreve igualmente as operações lideradas por Teixeira Pinto com relativa fidelidade. Deixa para o final da obra o testemunho da sua comissão, a exaltação da camaradagem e refere os sinais de progresso.
Convém, por estas razões, citar na íntegra parágrafos importantes da sua obra:
“Hoje, a Guiné está muito diferente da de outrora. Em 1920, foi construído na ilha de Bolama um campo de aviação de 96 hectares de superfície. Para fazer a planta, demarcar o terreno e vigiar a construção do campo, foi nomeada uma comissão composta de dois oficiais do Exército e um funcionário civil. Foi também encarregado um 2.º sargento e um pelotão de soldados indígenas da 1.ª Companhia, da missão de vigiarem e obrigarem a trabalhar os Mancanhas habitantes da ilha, tendo sido confiado ao sargento o bom andamento daquele trabalho, durante os três meses que o campo levou a construir. Foi um trabalho extenuante, porque o terreno era muito arborizado. Por fim, os indígenas já cansados com o extenuante trabalho procuravam desaparecer da ilha.

Durante este trabalho, deu-se um caso interessante. No campo havia um grande e velho poilão dentro de um pequeno bosque. À volta do tronco havia os Mancanhas agrupando grande quantidade de garrafas vazias, penas de galinha e ossos dependurados nas ramas dos arbustos e neste lugar havia uma pequena faixa de terreno varrido. Aquele bosque era para eles sagrado, pois diziam ser a sua igreja, onde estava o Irã. O pior foi para destruir aquela pequena floresta e derrubar o poilão, porque os indígenas receavam fazer tal trabalho! Tiveram os soldados que agarrar as enxadas, picaretas e machados para a derrubarem; e quando tinham este serviço quase a meio é que os Mancanhas se encheram de coragem e pediram as ferramentas aos soldados para eles concluírem.

Como estímulo deste grande trabalho e depois de concluído, o governador louvou os dois oficiais e o civil, cujos louvores foram publicados no Boletim Oficial da Colónia. Quem não foi louvado foi o sargento nem praça alguma, se bem que houvesse algumas que bem o mereceram, porque durante os três meses que durou o extenuante trabalho empregaram grande atividade para obrigarem os Mancanhas a trabalhar e tendo que fazer aquele trajeto a pé duas vezes por dia, isto é, ida para o trabalho de manhã e regresso do trabalho à noite, ficando o campo a três ou quatro quilómetros de distância de Bolama; enquanto que os oficiais e o civil quase que só de oito em oito dias é que apareciam no campo… E nunca foram a pé…”

E passa o seu testemunho, começa por nos dizer o que era fazer uma viagem de canoa:
“Fiz eu muitas dessas viagens, sendo uma delas numa pequena canoa de um comerciante Fula, da Ilha de Canhambaque a Bolama, em maio de 1919, e algumas de Nhacra a Bissau, e vice-versa, quando ali destacado em 1914-1915, e com os vizinhos Papéis ainda por bater! Às vezes navegava-se em certos rios perigosos, em que o gentio ainda rebelde tentava assaltar as embarcações. Notei ser verdade o assalto às lanchas, porque quando em Dezembro de 1912 retirava do posto militar de Simbor, com três soldados, embarcámos na lancha de uma casa comercial, a fim de seguir para Cacheu e, ao viajar no rio Farim tentaram os Oincas assaltar-nos a lancha, quando esta, de noite, estava amarrada ao tarrafo do lado do Oio, aguardando nova maré para poder continuar a viagem. Juntou-se grande número de Oincas à beira do rio, por detrás do tarrafo, fazendo ameaças e uma gritaria ensurdecedora! O que nos valeu foram as quatro espingardas com que estávamos armados…

A primeira estrada construída foi entre Bafatá e Bambadinca e a seguir a estrada de Bolama a Bolama Este. Acabada a Guiné de ser batida, fazíamos as viagens por terra a pé, pelos caminhos dos gentios aos ziguezagues, umas vezes debaixo de um sol sufocante, outras vezes debaixo de chuva batendo a palha molhada numa pessoa. Era assim que nesse tempo os militares faziam as viagens com a espingarda Kropatchec ao ombro e os sessenta cartuchos da ordem. Se nesse tempo houvesse estradas abertas, não nos custaria tanto vencer o trajecto.

Fazíamos o arrolamento do imposto de palhotas, sempre acompanhados de uma pequena força, pois uma pessoa sozinha não se podia meter nessas aventuras, porque nalgumas povoações dava-se a casualidade de haver traulitada. Vou relatar quais as casas que habitei nos diferentes postos militares por onde estive destacado. Passados três meses do meu desembarque, fui para o posto de Geba, sendo a casa uma palhota. Em 1912 fui destacado para Cacheu, onde encontrei boas casas no quartel. Passados três meses, fui destacado para Simbor, região de Farim, a casa do posto era uma palhota. Em Abril de 1913, fiz parte das operações militares realizadas na região dos Felupes, tendo a coluna pernoitado no posto militar do Arame umas sete ou oito noites, as casas do posto eram também palhotas. Ainda no mesmo ano fui destacado para Bissorã, habitei uma casa coberta de zinco. Este posto encontrava-se montado na margem direita do rio Armada, região do Oio. Esta região acabava de ser batida pela coluna Teixeira Pinto e na margem esquerda deste rio estava insubmisso o gentio denominado Balanta Bravo.

Em 1914, após a guerra dos Manjacos, fui destacado para o Churo, região dos Manjacos, habitei uma palhota…”

É minucioso na descrição por onde andou, em 1916 foi para a Ilha de Bissau, fez o arrolamento de palhotas em Safim, esteve no Biombo, em Canhambaque em 1918, os habitantes da ilha eram insubmissos.
Sempre que pode, sai-lhe um desabafo:  
“Durante o tempo que permaneci em efectivo serviço militar na colónia as marchas que fui obrigado a fazer foram sempre feitas a pé. Nem bicicleta havia ao tempo na colónia, quanto mais automóveis”.
Refere que passaram a haver mais campos lavrados produzindo mancarra, arroz, milho, feijão, mandioca, batata-doce, árvores de fruto, exalta o fértil solo da Guiné. Anota as melhorias introduzidas nas estruturas militares, a existência em muitos postos de hortas com couves e alfaces, tudo por iniciativa dos militares, o Governo não despendia qualquer verba. “Se queríamos ter capas ou toalhas de banho, toalhas das mãos, lençóis, cobertas de cama, etc., era tudo comprado à nossa custa…”.
E comenta abusos e a sua repressão:  
“Chegou-se a uma época em que alguns funcionários não querem andar sem ser de automóvel. Mas em 1931, o Major Zilhão veio para governador e com uma mão de ferro pôs termo a muitos abusos que havia com os carros do Estado…
Depois as famílias de alguns senhores administradores lamentavam-se do corte de regalias”.

E tece um louvor ao progresso, às novas estradas:
“Até parece um sonho, pensar-se que hoje uma pessoa sai de Bissau para qualquer dos pontos mais distantes do interior, como seja Contuboel, Sonaco ou Gabú, etc., e dali a três horas ou três horas e meia encontrar-se nessas paragens”.

Um documento único, um olhar muito especial sobre duas décadas da Guiné, uma peça incontornável para a historiografia.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20041: Historiografia da presença portuguesa em África (170): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)


Lourinhã >  c. inícios da década de 50 do séc. XX > Praça da República: o velho coreto no largo (empedrado) do convento. Este foi um dos lugares (mágicos) das brincadeiras da infância do poeta: era aqui, neste empedrado que, na hora do recreio escolar, os miúdos da Escola Conde Ferreira (, à esquerda, não visível na foto,) jogavam ao "hoquei em patins"... sem patins e com "sticks" (ou estiques) de pau de tramagueira... 

Era também aqui, neste coreto,  que se ouvia os concertos da Banda da Lourinhã, fundada em 2 de janeiro de 1878 (e, a partir dos anos 30, Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã)... Infelizmente, o coreto foi demolido pelo camartelo camarário, antes do 25 de Abril, ao tempo em que era presidente da edilidade um arquiteto estadonovista e iconoclasta, lourinhanense,  Lucínio Guia da Cruz (1914.1999), que fizera carreira no gabinete de urbanização colonial, com sede em Lisboa, criado em 1944 por Marcelo Caetano, ministro das colónias... 

Postal ilustrado. Edição do GEAL - Museu da Lourinhã. [Reproduzido com a devida vénia]. 



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito): 

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


À memória de Álvaro Andrade de Carvalho, médico psiquiatra (1948-2018), lourinhanense, que faria hoje 71 anos, se fosse vivo. Meu querido amigo e condiscípulo de escola.


(Continuação)



[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


21. Havia a bola, já o disseste, que era o alfa e o ómega da vida, o campo de jogos, pelado, por detrás do convento, do antigo convento...

Havia o hóquei em patins, as emoções dos relatos do Campeonato Europeu e Mundial de Hóquei em Patins, do torneio da páscoa em Montreux [1], e pouco mais... mas nós éramos os campeões do mundo, e, atrás de nós, vinham os eternos rivais, os espanhóis. 



22. Não, tu nunca tinhas visto um espanhol em carne e osso. Ou melhor: havia um espanhol na tua aldeia, galego, amolador de facas e tesouras, e consertador de chapéus de chuva, e que usava boina basca, preta, fugido, diziam, do terror de uma guerra civil, coisa de que tu nunca ouviras falar nem muito menos sabias o que era. 


"Um coisa horrível, meu filho, de que Deus nos livre, da fome, da peste e da guerra, libera nos, Domine!". 

Tinha uma espécie de gaita de beiços com que se fazia anunciar, pelas ruas fora, com a sua estranha bicicleta de uma roda só. Era espanhol ou galego, sabias lá tu onde era a terra dele. Não tinha nome, só alcunha. Era o “Espanhol”. 



23. Não, não havia patins, nem hóquei, nem ringue, ouvias o relato do hóquei em patins, debaixo dos lençóis, numa galera inventada pelo teu amigo e vizinho Zé que há de emigrar para as Américas, e registar patentes das suas engenhocas de apagar incêndios em poços de petróleo.

Sim, havia os tios e os primos, os amigos e os vizinhos que emigravam para as Américas, com os irmãos mais velhos e os pais, e que não voltavam mais... até se varrerem completamente da lembrança os seus nomes e as suas caras, aos meninos e aos pais dos meninos que cá ficavam. 


Fazia-te confusão por que é que eles tinham que se ir embora. Para longe, para tão longe, muito longe… Mais tarde descobrirás que as Américas eram o Novo Mundo, o Eldorado, o Paraíso Terrestre…


Lourinhã, finais dos anos 40, princípio de 50 do séc. XX.
O "campo de futebol" do largo do convento... Era de pequeninbo
 que se torcia o pepino... Foto: Luís Graça (2005)

24. Jogava-se à bola no Portugal dos pequeninos, na era dos cinco violinos 
[2], jogava-se à bola, os de chanatas e os de pé descalço, contra os de botas cardadas, no largo (empedrado) do coreto ou no largo do convento, depois da missa matinal, ao domingo, e, antes do almoço de peixe seco, salgado, e com cebolas e batatas com pele, que era a comida dos pobres no inverno da tua aldeia, jogavam à bola os da aldeia de baixo contra os de cima, os da rua do Castelo contra os da rua do Clube mais os do largo das Aravessas, e os da travessa do Quebra-costas, os do Casal Velho contra os do Casal Novo, os das aldeias contra os da vila, e que eram muito mais matulões do que tu, os da Terra contra os da Lua, os Travassos contra os Jesus Correia, os Peyroteos contra os Matateus, o Benfica contra o Sporting, os assimilados contra os pretos lá nas lonjuras do Portugal de além-mar em África.


25. Não, não havia mais, não havia mais nada na tua terra liliputiana, criada por Deus, e à beira-mar plantada, e que por isso era o centro do mundo mas onde o mundo era a preto e branco, às vezes mesmo a preto e negro nas noites de inverno de breu, e dividia-se em duas metades, em dois campos, em duas balizas, tão simples como o campo de futebol: havia os bons e os maus, como o "Brutamontes", os fiéis e os infiéis, os santos e os pecadores, as presas e os predadores, os pequenos e os grandes, nós e os outros, os portugueses e os da Espanha que ficava por detrás da serra azul de Montejunto, ali tão longe e tão perto. 


Havia os ricos e os pobres. Os pobres eram muitos, e magros, os ricos eram poucos, e gordos.


26. Podias lá tu imaginar o que ficava lá para trás de uma serra, dos cabeços e dos moinhos?! E muito menos que por detrás de uma serra, havia sempre outra serra, colina ou cabeço, e que era redonda a terra e profundo o mar por onde se chegava aos Cabos da Boa Esperança!

O mais longe a que podias chegar, na tua imaginação febril de miúdo, era a lua, e as suas manchas escuras, que não eram mais do que a silhueta de um pobre diabo com um molho de lenha às costas, condenado sabe-se lá por quê e por quem!?... 


De certo, por Deus, por trabalhar ao domingo e não respeitar o dia do Senhor, dizia a tua catequista, a "Branca de Neve", sempre tão gentil, e tão casta, e tão linda…



27. Outros diziam, os mais antigos, que era a alma do ti Zé Mendes, morto numa outra vida, e agora ferreiro e segeiro da tua rua, a rua dos Valados ou rua do Castelo, que, qual Hércules ou Vulcano, de tronco nu, passava o dia e a noite a dar à forja e a malhar o ferro em brasa… 


E rezava uma estranha ladainha enquanto malhava o ferro em brasa, uma mistura de padres-nossos, avé-marias e salvé-rainhas…Para os putos da tua rua, a sua oficina era a boca do inferno… Costumava dizer-nos entre dentes: "Quando fores bigorna, sofre; e quando fores malho, malha"...


28. Jogava-se hóquei com um pedra esquinada e um estique de pau de tramagueira e botas de couro cardadas, e alguns de pé descalço, no largo do coreto da tua aldeia.

E a senhora professora, quando saía, punha-te a vigiar e a punir a turma dos insurretos, essa chusma de insetos, de repetentes, de analfabetos, de quem a Nação nunca poderia vir a ter orgulho. 


Sabias lá tu, meu menino, o que era a Nação e orgulho da Nação, que era infinitamente maior que a mesquinhez das gentes atarracadas da tua aldeia!... A Nação só podia estar em Lisboa, capital do reino e do império!…

Em frente ao quadro preto, no estrado de madeira, com um pau de giz branco na mão, qual aprendiz de santo inquisidor,
e o ponteiro na outra, qual garboso lanceiro de Aljubarrota, fardado, de bibe azul às riscas, aprumado, ajuramentado, a apontar os nomes dos meninos mal comportados! …


Hoje terias, por certo, vergonha desse papel de sabujo e delator que te obrigavam a desempenhar em pequenino, mesmo nunca tendo pertencido à "Bufa", a Mocidade Portuguesa! 



29. E a pedra, o calhau, o paralelepípedo de granito, arrancado da calçada, e que te vem de fora, atravessando a janela e a sala, arremessada pelo matulão do "Brutamontes", podia ter-te morto, o safado, o moinante, o ressabiado, o desgraçado, o jacobino, o do reviralho, o herege, o excomungado, que odiava a escola, a igreja, a civilização, a ordem e o progresso, a farda, a bandeira das cinco quinas, a menina dos cinco olhos, a férrea disciplina, a patriótica delação, a lei e a grei, a sanha de Deus e a punição de César!...


O "Brutamontes", filho de gentes reles, pai alcoólico, mulher da mau porte, consolava-te a tua boa mãe, afagando-te o rosto coberto de lágrimas.

Havia muitos paralelepípedos de granito e basalto, andavam nessa altura a calcetar as ruas da tua aldeia. Vinham de longe, os calceteiros. E alguns gozavam com os putos  que, de volta a casa, se juntavam a ver a "obra", na rua do cemitério, ou quando passava algum funeral
: "Meninos, erros de médico e calceteiro, a terra os cobre!"



30. O condenado ao fogo eterno, o "Brutamontes", esse, só queria a derrota da equipa das quinas e do projeto de Educação Nacional, com os meninos, tão lindos, que lá iam cantando e rindo, como no teu Livro de Leitura da Terceira Classe, depois de bebido o leite em pó e comido o grosso naco de casqueiro com queijo fatiado, das sobras que os primos ricos da América, através da Caritas Católica, te mandavam nos anos do pós-guerra, arroz, queijo, farinha de trigo, leite em pó, roupa usada.

Podias lá tu, meu petiz, saberes da nossa pobreza envergonhada, do teu Portugal pobrete mas alegrete ?!…


A "Branca de Neve" punha-te a rezar à saúde e às "propriedades" dos meninos brancos americanos e das suas mamãs louras, de olhos azuis, dos filmes de cobóis. 

Não te lembras de rezar aos pretinhos de África, coitadinhos, muito menos aos de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique, que eram tão portugueses como tu, mas que iriam para o inferno se os missionários de barbas brancas não fossem a tempo de os catequisar e batizar! 

(Continua)
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[1] Montreux, cidade suiça, onde ainda hoje se realiza um dos mais antigos (desde os anos 20 do séx. XX) e prestigiados torneios de hóquei em patins.


[2] Os Cinco Violinos é uma designação jornalística, atribuída ao grupo de cinco jogadores da linha avançada da equipa principal de futebol do Sporting Clube de Portugal que, na segunda metade dos anos 40 do séc. XX, em três épocas, ganharam tudo ou quase tudo que havia para ganhar… A sua fama perdurou pela década seguinte… e entrou no imaginário dos putos da escola...


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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)