Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > 1969 > A
morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião de um grande ataque ao destacamento em Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha: os seus livros, os seus discos, os seus escritos, os seus haveres... Esta morança era tradicionalmente destinada aos ilustres visitantes de Missirá.
Foto: ©
Beja Santos (2006)
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Cuor > Missirá > S/d > "Um momento de Missirá: à esquerda. Madiu Colubali, baixo de corpo, grande de coragem. Grande conhecedor do Corão e da escrita marabu; à direita, o régulo Malã Soncó, em perfeito traje de chefe mandinga - figura bíblica, bravura sem igual. Atrás, o pequeno monumento que os rebeldes destruiram e nós reconstruímos. Ao fundo, à esquerda, a mesquita. À direita, cubata destruída no ataque de Setembro. Tudo tão belo" (...)
Foto e texto: ©
Beja Santos (2006)
Mensagem do
Beja Santos, com data de 31 de Julho de 2006 :
Caro Luís, estás a pôr à prova os [meus]dotes epistolográficos. Mas eu estou contente. Oxalá um dia possamos juntar a CCAÇ 12 e o BCAÇ 2852 num pleno onde caibam gente como eu e o Vacas de Carvalho.
Amanhã, despeço-me mas prometo levar para férias alguns episódios a latejar. Enviei-te hoje fotografias e bilhetes postais que julgo de uso interessante. Uma das fotografias é Bambadinca em 68. Tenho uma supresa para ti: vou publicar cartas com poemas inéditos do Ruy Cinati, que ele enviou em 69 e 70. Esclareço que perdi tudo nos fogos de Março de 69: livros, discos e respectivo aparelho, toda a correspondência. Felizmente que a memória funciona. E felizmente também que o nosso blogue é um hino à vida. Recebe a cordialidade do Mário.
Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável
O BCAÇ 2852, para mim, era a tropa de Bambadinca. Depois de fazer a bolanha de Finete (cerca de 4 Km de uma língua de terra onde passava à tangente um Unimog 411), chegava ao Geba e gritava pelo canoeiro, Mufali.
Feita a cambança, percorria uma centena de metros até ao estanco do Sr Tavares, onde metia sempre dois dedos de conversa. Daí subia a rampa para Bambadinca, já com as tarefas distribuídas: um grupo ia buscar comida, outro dirigia-se às munições, um outro ao posto de saúde, mais outro em direcção à delegação do Batalhão de Engenharia.
Eu ia fazendo a ronda, portava-me como um capataz, regateando, vociferando, pedindo mais e melhor. Eu tinha autoridade para pedir mais pois estava para lá do fim do mundo. Daí a naturalidade com que roubava da messe jornais desportivos, a revista
Flama, alguns jornais diários datados do mês anterior.
Este circuito que passava pela manuntenção, reabastecimento, alimentação, sargento enfermeiro, conversas com mecânicos radiomontadores, sapadores, etc., gerou estimas e os inevitáveis desencontros e pequenos arrufos. Ainda há uns anos atrás quando o pintor Sá Nogueira, de quem fui amigo, festejou 79 anos, fui a um almoço onde o seu
marchand se apresentou assim:
- Sou o Dário, o vagomestre de Bambadinca, lembra-se?
A minha resposta foi pronta:
- Ainda bem que não me lembro, pois vagomestre era a gente mais odiada da guerra.
Depois desfiz-me em explicações com o Dário, lembrando-lhe por exemplo com os desacertos do abastecimento e a época das chuvas onde estive 19 dias a pé de porco salgado com feijão verde em latas de conserva da África do Sul e leite com chocolate holandês.
Voltando às relações humanas, concentrava toda a minha diplomacia à hora do almoço. Quando me negavam o essencial, eu gritava para que todos me ouvissem:
- Já que me tratam assim, ficam a saber que amanhã não vou a
Mato Cão!
Era tudo treta, mas assim ficava bem claro que a malta de Bambadinca e tudo aquilo que era transportado por estrada para o Leste dependiam também da gente de Missirá e Finete que todos os dias montava segurança às embarcações militares e civis num ponto estratégico.
O BCAÇ 2852 chegou em Setembro e recordo a tarde em que ouvimos a alocução do Prof Marcello Caetano, quando tomou posse. Da minha relação com o Tenente-Coronel Pimentel Bastos, já falei no saudoso Pimbas (1).
Mantive uma relação cordial com o Major Pires da Silva, o oficial de operações com quem trabalhei até pouco depois do ataque a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969. Amizade funda mantive sempre com o David Payne e o Ismael Augusto, que já não podia mais com as minhas reindivicações. O Tenente Pinheiro da secretaria era a minha enxaqueca permanente, já que mantive heroicamente toda a burocracia em atraso. O Capitão Batista Neves era o Comandante da CCS e recordo-o pelo bem que sempre me fez e a todos os meus soldados. Histórias com a BCAÇ 2852 foram muitas e agora passo em revista algumas que mantenho vivas.
A primeira operação em que me envolvi foi a
Meia Onça (2). Foi tão cansativa e inútil que só guardo a recordação da boa soneca qeu tirei numa GMC entre Xime e Bambadinca, depois de andarmos perdidos mais de um dia à volta do
Buruntoni. Foi uma sensação horrível de andar atrás de muita gente sem perceber bem o que se andava a fazer, eu que tinha tantos patrulhamentos à minha espera no regulado do Cuor.
Experiência dramática foi a
Anda Cá, que merecerá capítulo próprio. Quando, em Março de 1969, Missirá foi devorada por uma flagelação numa noite quente, ardeu tudo e eu fiquei reduzido ao que tinha vestido. Recordo a cortesia de quem me deu roupa nova e empolgante movimento de solidariedade que foi a primeira reconstrução de Missirá, de Abril a Julho: desde arame farpado a cimento, passando por chapas, armamento, vestuário e equipamento, nada nos faltou. Como num filme épico, fez-se uma jangada para transportar oito
bidons preparados como chuveiro moderno, e que era o indicador de modernidade da nova Missirá. Só por esses momentos eu saúdo aqui todos aqueles que fizeram bem à gente do Cuor.
A solidariedade também se permuta. Em 27 de Maio de 1969, depois de horas de paciência em emboscada, colhemos de surpresa uma coluna de reabastecimento do PAIGC em Chicri (3). Foi um êxito, mas resolvi não correr mais riscos depois da surpresa inicial da destruição provocada na coluna, dei ordem de retirada imediata.
Duas coisas aconteceram que nunca mais esqueço. O Cabo Barbosa, já tinhamos avançado cerca de 6 Km e veio ter comigo exigindo que voltássemos a Chicri, pois deixara lá a sua boina de estimação. Para quem nos lê e nunca fez esta guerra, este comportamento parece uma bizarria. A guerra desenvolve superstições e a nossa não era diferente das outras, onde há objectos fetiches.
Acreditem ou não, demorei meia hora a negociar com o Barbosa a voltarmos lá no dia seguinte. É no regresso a Missirá, nessa noite de 28, que começou um ataque em que eu supus que Finete estava a ser destruída, em jeito de retaliação. Em cima de um abrigo, petrificado, eu via o fogo dos obuses a subir e a descer num céu espectral, apocalíptico.
Arrebanhei 20 voluntários e atirei-me para a picada num [Unimog] 404 que voou até Finete. Aqui, estava-se em paz, lá atravessámos o bolanha de Finete, veio o Mufali, mas o Geba estava praticamente a vau, de modo que chegámos completamente enlameados a uma Bambadinca transformada em campo de batalha.
O PAIGC atacara com três canhões, vários morteiros e outro armamento uma sede de Batalhão até então esquecida da guerra. Nessa noite, vi com os meus olhos um grande milagre: caíram postos electrificados e ninguém morreu; choveu fogo desencontrado e as baixas limitaram-se a dois feridos ligeiros.
Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, com o furriel Guimarães da CART 2716. Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como outros (o caso mais famoso foi o do
Padre Mário da Lixa)
Foto: ©
David J. Guimarães (2005)
Limitei-me a pedir que desligassem a electricidade e que se esperasse pelo amanhecer para arrumar os estragos. Pelo caminho, pedi ao capelão (4) que conversava em cuecas à porta de um abrigo com a mulher do Tenente Pinheiro (5) em camisa de noite que fosse ajudar algumas almas em sofrimento. Foi quando ele veio apressado saber onde estavam as almas, que lhe pedi discretamente que pusesse mais roupa em cima...
Voltarei à carga, pois irei pertencer a Bambadinca em Novembro de 1969. Como era de esperar, a relação que se estabeleceu teve novos contornos e eu deixei de ser o visitante de Missirá e Finete.
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
(2) Iniciada em 11 de Outubvro de 1968, com a duraçãod e dois dias, para "procurar aniquilar ou capturar elementos IN no acampamento de Buruntoni (Baio). Tomaram parte na operação as CART 1746 e 2339, os pel Caç Nat 52 e 53, 1 Gr Comb /CCAÇ 2401 e Pel Art. As nossas tropas perderam-se e não tibveram contacto nem vestígios" (História do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, Cap II, pág. 7).
(3) Vd. post de 21 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)
(4) Tratava-se do Padre Poím, açoriano, segundo informação do Beja Santos. O nome do capelão do BCAÇ 2852 aparece em branco, na história da unidade.Também serviu o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), acabando por ser expulso do exército, creio que já em finais de 1970.
(5) Tenente Manuel Antunes Pinheiro, chefe da secretaria do Comando do BCAÇ 2852.