1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2011:
Queridos amigos,
Afinal, ainda há terreno para surpresas, a prova vem deste relato divertido, bem humorado e onde a memória do estudante que houve em todos nós é de uma especial finura.
Depois de ler O Paparratos, fica-me a convicção de que no blogue há seguramente leitores que me podiam ajudar a conhecer outras raridades.
Um abraço do
Mário
O Paparratos
Beja Santos
“O Paparratos é uma figura meio verídica, meio imaginada, perdida entre tantas outras, mais ou menos falsas, mais ou menos reais, cuja falsidade e existência não deixam de ser verdadeiras… Pretende o relato desta aparente vivência ser tão verosímil e, paralelamente, tão fantástico quanto possível e, embora abstracto, ser mostrado com uma carga emocional que se tenta esbater, numa tarefa que não é fácil”.
É assim que José Pardete Ferreira apresenta as suas divertidas memórias, que incluem, talvez com uma intensidade única o meio universitário do princípio dos anos 60, sobre a sua passagem por terras da Guiné onde serviu como alferes miliciano médico e, autobiograficamente falando, aparecerá como João Pekoff, um médico que forjou Gabriel, o Paparratos (“O Paparratos, Novas Crónicas da Guiné, 1969 – 1971”, por José Pardete Ferreira, Prefácio, 2004).
Paparratos é a candura, a simplicidade e a força da natureza daqueles soldados portugueses que se adaptavam como podiam ao meio estranho. O autor adianta: “O Gabriel ou Paparratos era um rapaz simples das nossas aldeias, filho de um casal de trabalhadores rurais, que partilhava o seu tempo na escola, nas brincadeiras com os seus inúmeros irmãos e companheiros, no ajudar dos pais e na serventia ao sacristão. Sabia ler e escrever, desconhecendo-se ao certo qual o nível real de instrução que conhecia. O contacto com a rude dureza da vida ensinara-lhe a humildade e, provavelmente mais a generosidade do que a valentia. Esta, já a mostrava nas rixas no povoado ou nos campos, em dias de festa da aldeia ou no turbilhão domingueiro que quebrava a monotonia repetitiva do labor quotidiano”. Gabriel é soldado comando pertence à 105 ª Companhia.
Apresentado o bom soldado português, o autor divaga pelos espaços míticos dos estudantes que frequentavam a Cidade Universitária no início dos anos 60: o Café Roma, onde hoje é um Mc Donald’s, junto ao Cinema Londres, a praxe do luto académico, o Café Colonial, o CDUL, o Monte Carlo, o Monumental, o D. Rodrigo, a Pastelaria Biarritz bem como as respectivas faunas, sonhos, devaneios. Tudo entremeado pela vida mais ou menos bélica no chão manjaco onde vai aparecer o alferes miliciano médico Pekoff.
Fica-se com a ilusão que Pekoff se cruza com o Paparratos, mas seguramente, já que são figuras mais ou menos falsas e mais ou menos reais, seguem caminhos paralelos. E temos um flash dessa tão celebrada e jamais esquecida 105ª Companhia de Comandos, comandada com cada vez maior frequência pelo alferes Jorge Esteves, em virtude das visitas, quase permanentes a Bissau, do capitão Dias Anjos e que se prolongavam no tempo. A sua mulher encontrava-se de férias na capital providencial, os dois pombinhos podiam ser encontrados no Quartel General.
O Posto de Comando do Aquartelamento do Chão Manjaco era conhecido como A Casa da Mariquinhas com as suas janelas com tabuinhas. Por dever de causa, o autor apresenta-se pondo-se ao espelho através de João Pekoff, vamos aos seus locais de estudo, alguns dos cafés atrás referidos, subimos até à Cantina Universitária, às Pró-Associações de Medicina e de Letras, às Associações de Direito e de Ciências, entramos no Estádio Universitário. Ficamos a saber que além dos estudos de medicina, pratica desporto e andou no associativismo religioso.
Pelo que se dirá adiante, a sua guerra não foi só feita de tiros e morteiradas mas também de hospital e em Bissau, remendando feridos graves e ligeiros, criando a ideia, junto dos autóctones, de que era feiticeiro. Um bom pretexto para, sempre a propósito e a despropósito, voltar aos cafés de Lisboa e saudar os seus amigos inesquecíveis.
E, já agora, ficamos a saber porque é que se trata Gabriel por Paparratos. Alcunha tinha sido posta pelo sacristão. Um dos majores lá do chão manjaco aventara a hipótese de Paparratos vir de paparaz, uma planta muito tóxica. Na zoologia Paparratos é uma garça, uma espécie migratória muito rara em Portugal e que entre nós nidifica no Paul do Boquilobo, quase não se dá pela sua ausência. Vamos então aos aspectos concretos: “O sacristão lembrara-se de crismar o Gabriel de Paparratos, não porque este fosse esquivo ou silencioso mas, muito provavelmente, pela morfologia algo alongada do nariz e pela desproporção existente entre os grandes braços do nosso herói que lhe davam uma envergadura considerável, e as suas curtas pernas, que lhe conduziam o andar oscilante, bem como pela posição da sua peitaça inchada para a frente. Este biótipo fazia-o rolar os ombros na progressão, movimento que acentuou após ter sido soldado comando”.
Como quem não quer a coisa, dado o retrato do CDUL e o seu desempenho na Academia Lisboeta, vamos numa missão helitransportada à Caboiana, que meteu bombardeamentos, reconhecimentos e até mosquitos. No Cacheu, para que conste, as Companhias de açorianos e madeirenses não só não se misturavam como tinham hortas separadas. E depois o alferes Pekoff vai até à Ilha de Jeta, fazer a psico, tratar das populações, e o alferes deliciou-se com esta floresta quase tropical, pensou mesmo que estava num Haiti a 4 horas de voo da Europa. Spínola é conhecido pelo Brigadeiro Sebastião Ribeiro, alguém que vai todos os dias ao Hospital, lugar onde o pessoal de saúde é de uma dedicação exemplar.
Nova saltada à mocidade de João Pekoff, desta feita às suas práticas no andebol e até às suas lembranças da campanha presidencial de 1958 e às manifestações ao candidato Humberto Delgado. Paparratos e Pekoff encontram-se de facto num passeio à Ponta de Caió, andaram por lá até desoras, o que trouxe uma grande inquietação lá no aquartelamento do chão manjaco.
Fala-se da Pax Romana, dos movimentos católicos universitários, da retirada de Madina do Boé, da Operação Mar Verde (tratada no livro como a Operação Verde Tinto), depois viaja-se até Paris, segue-se o tratamento de um ferido VIP, o capitão cubano Peralta, a guerra prossegue, o Paparratos continua a fazer das suas na tabanca, ao aproximar-se do sentinela que grita “Alto!”, ele continua a avançar e é fulminado por uma rajada. A família soube da notícia e ficou incrédula pois disseram-lhes que tinha falecido de um acidente em serviço, morte impensável para quem fazia parte das tropas especiais.
E João Pekoff está de regresso a uma Lisboa quase hostil, não reconhecem, a adaptação foi cruel: “Levou algum tempo a orientar-se na nova selva que pisava, a do cimento armado, com as suas intrigas, os seus boatos, as suas sacanices, o correr de repartição em repartição. Teve que se bater para recuperar o que apenas deixara pelo facto de ter sido mobilizado para uma comissão de serviço militar que, ainda por cima, quer aquela quer este eram obrigatórios”.
O Paparratos é uma divertimento sério, supera as situações caricatas e cómicas, na senda da literatura de humor, que se perde na noite dos tempos, comprova que muitas vezes o que se diz a rir é para reter em todo o horizonte da amargura, a sisudez pode ser troça e não é difícil provar que há muito Paparratos que serve de carne para canhão.
É o prazer da memória e, insiste-se, não se conhece um fresco tão vigoroso sobre o meio estudantil universitário daqueles longínquos anos 60.
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste da série de 20 de Abril de 2011 >
Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 21 de Abril de 2011 >
Guiné 63/74 - P8144: Notas de leitura (231): A Última Missão, por José de Moura Calheiros - Gostei francamente do que li (José Francisco Borrego)