1. Começamos hoje a publicar "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios*, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.
PORTO DE ABRIGO - I
Dedicatória
À minha corajosa mulher e companheira de 45 anos, meu Porto de Abrigo minha âncora nesta vida cruel; aos meus filhos, hoje só tenho um; à minha incomparável nora, às minhas maravilhosas Netas; as minhas princesas, senhoras do meu sentir, das minhas ambições. Do meu coração um sonho renovado.
Às sofredoras e corajosas Mães de Portugal, muitas Órfãs de guerra e tão esquecidas e a todos os meus inesquecíveis Camaradas; com uma sentida Homenagem. Aos que nos deixaram, alguns deles da forma mais atroz e também aos meus companheiros de desdita, feridos e estropiados.
A todos, muito obrigado.
Seria estultícia da minha parte pretender que com o escrevinhar das minhas memórias que agora no ocaso da vida e ao correr da pena se pudessem transformar em qualquer coisa para além do passar ao papel as recordações, já esbatidas, da minha participação numa guerra com episódios dos mais cruéis e tristes e que foi o quotidiano e marcou negativamente, no meu fraco entender, a vida do povo deste país. A consulta de um blogue de um camarada de armas que teve a paciência de procurar e compilar uma série de dados dolorosos fundamentalmente para os participantes activos e vítimas daquela guerra, fez nascer em mim uma triste nostalgia e emoção ao recordar os nobres actos de solidariedade, praticados pelos grandes amigos que comigo partilharam das agruras e dificuldades daqueles tempos ao mesmo tempo que retrospectivo os bons e saudáveis momentos que vivemos e que ainda hoje quando nos juntamos refazemos e que vislumbro não seja raro encontrar-se na nosso quotidiano.
Para todos um carinhoso abraço de cumprimentos e saudade e o desejo de um Mundo compensador dos tremendos choques e violências que vivemos e observámos.
Tentarei no decorrer da transmissão das já muito ténues recordações não deixar expresso a minha perspectiva actual deste período de tempo passado e dos restantes acontecimentos que como é natural, enformam e são estruturantes do meu pensamento.
Na tentativa de conseguir aproximar-me da forma de uma troca de, opiniões, um desabafo entre amigos; aqui deixo pequenas histórias que vivi na Guiné, no tempo da Guerra Colonial e que me marcaram profundamente.
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Algumas omissões e hiatos de memória que já se vão manifestado em mim (estou perto dos 70 anos, duros e sofridos; com a perca de um filho já com 25 anos e enormes doenças que incluíram até agora 14 operações cirúrgicas - (muito deste panorama se deve a resquícios da passagem pela guerra) podem de algum modo levar a algumas eventuais imprecisões para as quais peço a maior compreensão e apresento as maiores desculpas a algum elemento envolvido e antecipo a minha retracção. Ajudará à compreensão de muitas atitudes e incompreensões minhas as vicissitudes e percalços que os jovens como eu recrutados para o curso de Sargentos Milicianos de Janeiro de 1964 sofreram; e aqui começa o calvário que se prolonga até 1972.
Foi este creio eu o único curso com a duração de cinco meses, entre a recruta e a especialidade; porquê? Constava que no fim deste período seriamos promovidos a furriéis-cadetes e passaríamos auferir 750$00 por mês.
Ali andamos então esforçados e diligentes até ao dia de sermos promovidos como do antecedente a cabos-milicianos e a receber a fortuna de 92$00, para fazer todo o trabalho de sargento. Que desilusão. Começava a revolta e a incompreensão.
Fiquei colocado em Tavira, como monitor dos futuros cursos de milicianos de infantaria dos quais recebi e frui gratificantes amizades e ensinamentos cívicos e culturais! Ainda vim e encontrar-me com alguns na Guiné.
Mobilizado pelo RI-2-Abrantes para a Guiné ali constitui com o meu amigo José Monteiro, (também ele ferido numa operação), o estóico 2.º Sarg.º Ameixa e o meu querido amigo e conterrâneo Vasco Sousa Cardoso (desaparecido em combate), curiosamente sobrinho do na altura Governador-Geral de Angola Gen. Silva Tavares. (adiante acrescentarei pormenores) que veio a ser substituído pelo meu grande amigo e mentor Rui Alexandrino Ferreira (um pessoa de eleição – um guia, um amigo e líder sem comparativo).
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Neste período de tempo passado em Abrantes e St.ª Margarida em que se apoderou de mim e creio que da maioria dos meus camaradas uma intensa tensão e ansiedade, de tal maneira que eram frequentes as questiúnculas entre diversos elementos pelos motivos mais fúteis, não tenho recordações relevantes, apenas me vêm à memória dois episódios caricatos em que ressaltam já algumas características e comportamentos inerentes a cada um de nós. Num dos dias da instrução em Santa Margarida, foi-nos transmitido que tínhamos (os cabos milicianos) de nos deslocar a Abrantes para tirar a fotografia com a farda nº. 1, para o cartão de furriel. Naturalmente que nenhum de nós tinha a necessária fardeta.
Um camarada nosso do Q.P. emprestou-nos o casaco e o boné e lá partimos para Abrantes todos em cima de uma GMC, conduzida por um dos nossos condutores que devido à inexperiência e inaptidão transformou a viagem numa aventura e paródia tal que foi alvo de estrondosa salva de palmas nossa, quando no Rossio ao Sul do Tejo conseguiu passar por baixo do viaduto sem tocar em nenhuma das paredes. Seriamos uns 12 elementos e todos tiramos a foto com o mesmo casaco e boné. Depois de uma passeata pela cidade no regresso já mais de metade do pessoal veio de táxi.
Também aqui em St.ª Margarida, em que o estado de espírito era o já salientado; numa das casernas dois camaradas desentenderam-se tendo um deles ameaçado o outro com uma navalha de barba, interveio um terceiro elemento que conseguiu eliminar aquele foco de instabilidade, pelo foi chamado ao local o meu querido camarada e actual amigo, J. M. Bastos que de imediato entrou em contacto com o Alf. Mil. Malaca dos Santos, um puro e robusto ribatejano que de imediato se deslocou a caserna, e sendo abordado pelo elemento que apaziguou a questão: - Meu alferes fui eu que… Pum..Pum.. dois valentes sopapos e eis o pobre de costas; o Bastos conhecedor de todo o problema pretendeu intervir, mas por razões óbvias inibiu-se. Confirma-se o velho aforismo popular, “por bem fazer mal haver”.
- Falou o Malaca, tudo para os seus lugares, assim ficou resolvida a questão e o Alferes ganhou a alcunha de Oficial de Justiça, era o maior e mais sincero amigo do pessoal; vindo a ser punido na Guiné por um dos ineptos comandantes da companhia (por alcunha o Capador) porque se recusou a que os seus rapazes, como os tratava carinhosamente saíssem para nova operação, depois de nessa madrugada terem regressado de uma violenta e esgotante investida a uma casa de mato do IN. O Pessoal estava esgotado física e psicologicamente. Infelizmente os furriéis que lhe estavam adstritos não souberam tomar uma atitude solidária e digna. Este grande homem que faz agora o favor de me dedicar a sua amizade é hoje um reformado de professor do ensino secundário onde exerceu com mérito a sua função. Era e é um puro.
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Partimos para a estação já de noite e embarcámos a monte num decrépito comboio de bancos da madeira, acompanhados de todo o conjunto de malas, caixotes, sacos de produtos regionais que cada um trazia como testemunho da gratidão e despedida dos seus amigos e entes chegados. Que expressões de ansiedade e tristeza no semblante, comportamento e olhares de tantas centenas de jovens. Durante toda a noite o Alf. Mil. Vasco Cardoso, Vasco para todos - quanta humanidade, trocou com alguns de nós vastas palavras sobre a Guiné, onde já tinha estado, e nos mostrou um enorme espólio de fotografias dos momentos dos hábitos e culturas daqueles povos no sentido de nos incentivar e dar a conhecer a terra para onde íamos. Um amigo que perdemos em combate poucos dias depois de chegarmos a Fulacunda.
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Num ambiente de profunda resignação, apenas se ouvia como ruído de fundo os gritos de angustia e as lágrimas dos nossos familiares e amigos, juntamente com algumas imprecauções que se ouviam também não se sabe de onde, em largo número por todas as zonas com acesso visual ao cais da rocha do Conde de Óbidos - Alcântara onde se encontrava atracado o navio Niassa, transformado em transportador de tropas, onde iríamos embarcar após terminarmos a formatura frente ao cais onde um alto graduado veio debitar várias e inócuas frases feitas a um conjunto de desesperados e descontentes jovens, salvo raras excepções. Nesta formatura, apareceu pouco depois um grupo de senhoras, todas com a farda de uma instituição a distribuir a cada militar um isqueiro e um maço de tabaco. Quando recusei a oferta, objectando que não fumava, a senhora que me pretendia entregá-la, disse entre dentes qualquer imprecaução, que não entendi e fez-me um olhar, para mim incompreensível, de que ainda hoje me lembro, desaparecendo de imediato. Foi a bordo motivo para enorme chacota. Quanto me lembra o momento do embarque e do dramático Adeus; viam-se lágrimas e emoção nos jovens que partiam e nos entes queridos que ficavam despedindo-se quiçá pela ultima vez. Quão é ainda hoje, tão chocante e amargamente emotivo, recordar esses momentos.
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Partidos da metrópole fomos à Madeira para meter dentro daquele malfadado transportador de carne para canhão mais uma companhia.
Não teceria a mais pequena alusão a este hiato de tempo se dois casos que despertaram a permanente curiosidade que me acompanha não me pusessem a pensar e revoltado com elas.
Na Madeira, em Câmara de Lobos onde nos deslocámos na noite que passámos na ilha, para comer produtos do mar aconselhados pelo motorista do táxi que nos transportava a visitar alguns locais do Funchal; um camarada meu pediu no estabelecimento onde nos encontrávamos uma caixa de fósforos: pois bem; na Madeira à época custava 40 centavos, contra os 30 que eram adquiridos em Lisboa; irrisório não parece? Pois é mas é uma diferença de 25%, como seria com os outros artigos importados da Metrópole?
Ainda me choca e é doloroso recordar as abjectas condições em que os nossos praças, os melhores de todos nós, foram transportados durante seis dias dentro do Niassa; era no porão da carga que estavam instalados um imenso número de beliches da tropa sobrepostos e em filas em que ficavam lado a lado seis a oito corpos em baixo e em cima (tinham de passar uns por cima dos outros), o cheiro que lá de baixo exalava era nauseabundo com um odor a vomitado azedo insuportável, a generalidade dos jovens dormia a céu aberto por qualquer canto do convés; foi o inicio das vicissitudes em que se viam caras de cansaço e ansiedade e em que alguns apresentavam uma tez amarelada de mau trato e adoentada.
Vista parcial de Câmara de Lobos - Ilha da Madeira
Foto: © Carlos Vinhal
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O barco aportou a Bissau, onde não era possível acostar e onde fomos transportados em barcaças para o porto. O calor era intenso acompanhado de uma humidade salgada que dava a sensação de se colar à pele e parecia vir a tornar-se irrespirável. Sem qualquer espécie de emoção tentei vislumbrar e enquadrar as palavras e o ambiente das fotografias do amigo Vasco Cardoso, mas o que vi foi um aglomerado de população nativa, em que pontificavam as crianças, descalças desnudas e em farrapos que se ofereciam para transportar as nossas bagagens; aqui uma tremenda ansiedade apodera-se de mim sentindo como que um aperto de garganta, por saber que para além do que me era possível ver; a guerra estava ali não sabia onde e era uma realidade que matava, feria e estropiava.
(Continua)
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Novembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9072: Tabanca Grande (308): Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857 (Mansoa e Bissorã, 1965/66)