Data: 28 de Novembro de 2011 19:58
Assunto: Diário de Notícias-Guiledje
Amigo Luís,
Confesso-te que foi com uma grande alegria que li esta reportagem feita por um português (neste caso por uma portuguesa) cujo pai também andou pelas Áfricas de Além Mar.
Veio de Portugal e só em Guiledje teve a oportunidade de, como ela diz "...Foi lá que li a carta que Casimiro escreveu aos pais sobre a retirada de 1973...".
Se ela a quisesse ler, em Portugal, não o podia fazer. E isto porque houve uma iniciativa da AD, associada ao nosso Blogue, que deu no Museu "Memória de Guiledje" o qual permite aproximar povos e juntar memórias.
A alegria é tanto maior quando me lembro quanto fiquei magoado por ver alguns camaradas (que não o deixaram de ser por terem opiniões e visões diferentes) ligarem Guiledje a Aljubarrota, aludindo ao facto do Blogue ter apoiado uma visão unilateral da história por parte dos guineenses.
Afinal, hoje, é uma portuguesa que tem de ir a Guiledje para conhecer a opinião daqueles que foram contemporâneos do pai dela, e aperceber-se que, de facto, não temos por cá Nunos Alvares Pereira, e que sempre percebemos a história como o conjunto das histórias de todos.
Recebe um abraço muito amigo e agradecido
pepito
2. Reprodução, com a devida vénia, do artigo de opinião, de Ana Cristina Pereira, jornalista do Público, publicado no DN- Diário de Notícias, de 27 de Novembro de 2011
Estilhaços do tempo: Impossível não ficar a pensar no que terá passado o meu pai durante a guerra colonial
por Ana Cristina Pereira
"Ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel ou se foi ordem dada pelo comandante-chefe, mas uma coisa é certa: GUILEDJE ESTÁ À MERCÊ 'DELES'."
José Casimiro Carvalho não estava. Tinha ido coordenar uma operação de reabastecimento da companhia. Guiledje era o fim do mundo. Os mantimentos vinham em batelões de Bissau até Cacine. Seguiam em lanchas de desembarque médias até Gadamael. E por coluna até ali.
A situação tornara-se insuportável. Durante três dias, o aquartelamento fora bombardeado 37 vezes. Sobre ele tinham caído 795 granadas. A cozinha fora destruída e a tropa estava impedida de formar coluna para ir buscar água. Já não tinha água e já só podia comer rações de combate.
Guiledje dista três quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacry. O exército assentara arraiais em 1964. Tentava impedir a entrada de armamento e de víveres para o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, via "corredor da morte" ou "caminho di povo", consoante o lado da luta.
A famosa carta enviada pelo José Casmiro Carvalho (Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350), enivada aos pais, remetida de Cacine, em 22/5/1973, anunciando a a saída de Guileje....
Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
Agora, só se pode imaginar a rede dupla de arame farpado, as trincheiras a céu aberto, as trincheiras subterrâneas, o morteiro, as messes, os quartos, o posto de rádio, o posto de socorro, a arrecadação, a cantina, a cozinha… Depois da retirada de militares e civis, António de Spínola, então governador militar da Guiné, mandou bombardear o que restava.
Há uma maqueta no Núcleo Museológico de Guiledje. O lugar está a ser recuperado, muito por força da Associação para o Desenvolvimento. Para já, apenas uma sala com isso e com utensílios e textos de época. Visitam-na antigos combatentes e familiares. Às vezes, aparecem filhos ou netos de militares já mortos, à procura de pistas de um passado silenciado.
Foi lá que li a carta que Casimiro escreveu aos pais sobre a retirada de 1973. E um impressionante depoimento de João Tunes, importado do blogue Bota Acima: "Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guiledje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida. Os que não estavam malucos por lá andavam perto".
Impossível não ficar a pensar no que terá passado o meu pai durante a guerra colonial. Não combateu na Guiné-Bissau. Combateu em Moçambique, mas enquanto lá estive ligou-me várias vezes, inquieto. Suponho que para ele Guiné ainda é sinónimo de inferno.
A guerra colonial começou há 50 anos. Oficialmente, acabou há 37. Em quantas cabeças ainda ecoa?"
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Nota do editor:
Último poste da série > 9 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8875: (In)citações (34): Que país é este, Portugal, que faz de poetas soldados e de soldados poetas ? (Cherno Baldé)