1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011 o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:
Outras memórias da minha guerra (12)
Madrinha de guerra e… amor
O Neca Quintino era sapateiro e bastante conhecido. Além de ser um artista no desempenho da sua profissão, granjeara um certo respeito pela sua honrada postura e pela solidariedade da sua viuvez precoce. Casou com a Micas do Canto, sua vizinha e bem conhecida desde os tempos de criança. Sempre se sentiram atraídos um pelo outro e, logo que puderam, assumiram uma relação, aliás abençoada por todos.
Era gente de trabalho árduo, fruto dos tempos inseguros da República e da fome que os acompanhou com a implantação do Estado Novo e os sacrifícios com a “neutralidade” de Portugal durante a II Grande Guerra. Além do amanho da casa e das hortas, do pequeno quintal, a Micas estava sempre ao lado do Neca, para o ajudar nos trabalhos de sapateiro.
A filha Deolinda, nasceu “antes do tempo”, o que acontecia muitas vezes com o primeiro filho de um casal. Portanto, naquele ano de 1944, além do casamento dos pais, festejou-se, também, o baptismo da Deolinda. O pai do Neca era serrador e o tio solteiro era pedreiro. Juntos decidiram ajudar o Neca e a Micas e iniciaram a construção de uma casa de quatro paredes. Na parte de cima, ainda colocaram, entre os tijolos vermelhos, três janelas e uma porta mas em baixo, estava tudo vedado com casqueiras de madeira.
A mulher já havia abortado por três vezes e fora avisada de que a sua vida corria perigo sempre que isso acontecia. Porém, a Micas queria um rapaz e como vira que os três fetos eram do sexo masculino, ela vivia ansiosa por conseguir o filho tão desejado.
Quis o destino que no último parto, as coisas corressem pior. Assim, a contrariar a alegria do nascimento do rapaz, caiu a tristeza do falecimento da Micas, pouco tempo depois.
Com oito anos, a Deolinda deixa a escola e vai ajudar o pai e cuidar do bebé recém nascido. Por outro lado, o Neca, apesar da falta de apoio da falecida mulher e, ainda, com algumas dívidas da casa inacabada, resolve instalar luz eléctrica em casa. Convida alguns colegas de profissão, para trabalharem com ele, ajudando-o, assim, a custear tal investimento. A Deolinda substituía a mãe em quase tudo. Sempre com o irmão ao lado, dentro de uma giga de giesta, fazia quanto o pai lhe pedia.
O Quinzinho, que herdou o nome do avô, rapidamente se tornou no miúdo mais acarinhado daquele lugar. Foi crescendo cheio de atenções e simpatias e muito amor da irmã adolescente, que sempre o tratou como se fosse seu filho, para além de seu boneco de estimação.
Quando estalou a guerra em Angola, já a Deolinda era uma mulher. Mulher de raça! Fazia o trabalho de qualquer sapateiro, cuidava da casa e ainda se esforçava na pequena horta contígua à casa.
Na cave da sua casa, em redor de duas mesas colocadas de frente para a luz, que penetrava pelas duas portas abertas (de Verão e de Inverno), trabalhavam mais de 10 pessoas. Trabalhavam à tarefa para as várias fábricas de calçado da região e davam o seu máximo de tempo e de esforço para conseguirem ganhar o sustento condignamente. O Neca trabalhava isolado lá mais atrás, junto a uma pequena mesa, onde era ajudado pela filha Deolinda e por um ou outro aprendiz que ia admitindo. Desta forma, isolava a sua filha das conversas menos convenientes dos adultos e dava o privilégio da entrada da luz, aos outros (seus “inquilinos”).
A Deolinda era inteligente e apercebia-se de quase tudo que ali se discutia, do futebol à política (surda); da religião à má-língua. Agora, já mulher, quando soltava os seus longos cabelos pretos, via-se que, apesar de não ter mais que 1 metro e 60, se tratava de uma mocetona. Era bem feita de corpo e tinha um palminho de cara muito bonita e uns lindos e expressivos olhos negros. Todavia, escondia as mãos e os joelhos, devido aos calos do trabalho.
É nesta fase dos primeiros tempos da guerra, que se vive com muita emoção, o envio das nossas tropas para defender o Portugal de além-mar.
Havia um vizinho, o Zequita, que gostava muito de ir para lá aos serões, ouvir a conversa e ler em voz alta alguns jornais ou revistas que chegassem até ali. Tinham por ele muita simpatia porque era órfão do Zé da Feira, considerado um amigo de todos, que falecera de doença hepática com trinta e poucos anos. Além disso, como eram praticamente todos analfabetos e sem tempo disponível, gostavam de ser informados, através das leituras, enquanto trabalhavam.
Como se falava muito nas Madrinhas de Guerra, a Deolinda confessou que gostaria de ter um afilhado. O pai, embora torcesse o nariz, não via motivos para censurar tal desejo da sua sacrificada filha. Porém, ela tinha um grande entrave: saíra da escola com a primeira classe e já quase nada sabia.
Um dia, ela apanhou uma revista (talvez a “Flama”) e viu lá uma foto tipo passe de um rapaz com a farda diferente. Era da Força Aérea e pedia a alguém que o contactasse durante aquela guerra. Logo que o Zequita lá chegou, ela disse-lhe, meio a brincar, que ele poderia mandar-lhe uma carta no nome dela.
Passados poucos dias, a Deolinda não aguentava tanta emoção. Pois havia recebido uma linda carta, com a primeira foto dedicada por um bonito rapaz, e a tratá-la com elevada educação. O Zequita, apesar dos seus 15/16 anos, gostava muito de cinema e já havia lido alguns livros de enredo romântico, especialmente os de Camilo Castelo Branco, emprestados pelo vizinho Mário Malheiro. Por isso, não foi difícil “abusar” um pouco desses conhecimentos e colocar o relacionamento da Deolinda com o Pára-quedista, João Morgado, talvez um pouco acima da realidade.
A Deolinda, que nunca namorara, entusiasmou-se e agora, já não se sentia bem quando o tema de “Madrinha” era motivo de discussão ali na mesa de trabalho. Preocupava-se, então, em controlar o que o Zequita escrevia e tomou uma atitude:
- Pai, quero frequentar a Escola de Adultos. Vai ver que consigo trabalhar e ir para a escola.
O pai, apesar da falta que ela lhe fazia, ficou contente com a decisão.
Não levou muito tempo para que ela se desenvolvesse na escrita e, com a ajuda do Zequita, o relacionamento de Madrinha de Guerra estava a transformar-se numa relação amorosa.
Entretanto, o Zequita, que trabalhava na cortiça, também resolveu ir aprender contabilidade à noite, no ensino privado, e passou a dispor de pouco tempo para acompanhar as cartas da Deolinda. Este atraso veio a provocar alguma aceleração no relacionamento Madrinha/Afilhado. É que o João Morgado, o tal afilhado, vinha, através do ciúme, demonstrando cada vez mais, que se sentia apaixonado. E ela, por mais que se esforçasse, não se sentia capaz de lhe corresponder como gostaria. A barreira da escrita e um certo retraimento face ao vizinho Zéquita, eram motivos de sobra para chorar a sua sorte. É que o Zequita alinhou naquilo como uma brincadeira e parecia não aceitar o desenvolvimento que estava a levar. Especialmente, não gostava que a Deolinda se apaixonasse daquela forma por “um desconhecido”.
Ela pensou, pensou, chorou, chorou e acabou por tomar a difícil decisão. Quando apanhou o Zéquita, pediu-lhe para escrever a última carta.
Querido João
Gosto muito de ti. Mas neste momento, estou obrigada a parar com o nosso relacionamento. A culpa não é tua. Um dia, se quiseres, poderei explicar-te pessoalmente.
Até lá, desejo-te as maiores felicidades, especialmente nessa maldita guerra.
Fica com esta última foto, tirada no monte da Senhora da Saúde dos Carvalhos.
Um beijinho desta que nunca te esquecerá.
Deolinda
A partir dali, a Deolinda sofria em silêncio aquela mágoa de um amor “cancelado”. Dedicava-se cada vez mais a preparar-se para o exame da 3.ª classe e continuar a aprender aquilo que tanta falta lhe tinha feito agora.
Cerca de dois meses depois, pára um carro VW azul claro, junto da casa da Deolinda. Nenhum vizinho o conhecia. Dele saiu um jovem que se dirigiu à primeira pessoa que encontrou:
- Por favor, diga-me onde vive uma rapariga chamada Deolinda.
- Não tem nada que saber, o senhor parou lá quase à beira. É essa, a segunda casa para quem vem do lado da Feira. – respondeu a vizinha.
Bateu no pequeno portão. Surgiu o Ti Neca que, do alto da escadaria, lhe perguntou o que queria.
- Chamo-me João Morgado e quero falar com a sua filha Deolinda.
Ela que já se apercebera do que se estava a passar, surgiu-lhe junto ao portão, vinda de trás da casa.
Ele, decidido, atira-lhe:
- Vim de férias. Não aguentava estar lá na guerra e ao mesmo tempo não suportava o teu afastamento. Tens de me dizer o porquê dessa atitude.
A Deolinda, emocionada e já com as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, exclama:
- Não tenho coragem para te dizer toda a verdade.
- Seja o que for, só sairei daqui esclarecido e quando tu mandares. – respondeu ele.
- Gostei de ti logo na foto em que pedias uma Madrinha de guerra. Como tive que abandonar a escola, aos 8 anos, quando a minha mãe morreu, pedi a um rapaz vizinho que te escrevesse em meu nome. Nunca pensei que cairia nesta situação. Fui para a escola nocturna por tua causa e agora, que já me sinto capaz de te escrever, não o podia fazer porque a letra não era a mesma. Tinha que parar. Não te queria continuar a mentir. Por outro lado, tens que saber que somos muito pobres, que sou uma rapariga simples, que vivo para ajudar a criar o meu irmão e ao meu pai, fazendo de sapateira e o trabalho de casa. Como vês, não sou rapariga para ti, porque vejo que és rapaz de outras possibilidades.
- Não, por favor, não digas isso. – interrompeu o João, que continuou:
- Também gostei logo de ti e agora, depois do que acabas de contar, sinto-me mais decidido a lutar para que venhas a ser minha mulher.
- Mas eu nunca namorei. Nem ninguém me interessou como tu. – continuou cada vez mais banhada em lágrimas.
- Que se passa, filha? – Perguntou o pai que havia ficado lá em cima.
- Diz ó rapaz para subir. Não fiquem aí a modos do povo ouvir.
Entraram os dois. Estiveram lá umas horas a conversar, para se conhecerem melhor.
À saída, ainda o Ti Neca estava sentado no cimo da escada, junto à porta aberta. O João aproveitou para lhe dizer:
- Senhor Manuel, apenas lhe quero dizer que o Senhor tem a melhor filha do mundo e eu, daria tudo para que ela viesse a ser minha mulher. Ela não tem nada a ver com as raparigas que conheço.
Sou ribatejano. Meu pai, que Deus tem, ensinou-me a tratar os problemas de frente, como se enfrentam os touros. Como trabalho muito, também não tenho tempo para meias conversas. Volto para a guerra. Penso que agora vou para o “descanso” e não vou mais para os combates. Fico feliz se a Deolinda continuar a estudar. Por mim, vai até onde quiser ir. Temos muito trabalho mas também temos empregados para ajudar.
************
Uns dois anos depois, estive com o Ti Neca, por ocasião dos Fiéis Defuntos. E perguntei-lhe:
- Que é feito da sua Deolinda?
- Está lá para a beira de Santarém. – respondeu e continuou:
- Casou com uma jóia de homem. O meu Quinzito está com ela e anda a estudar e eu, ando lá e cá. Estou aqui porque vim ao Cemitério ver a minha patroa, mas vou já para baixo. Ela está em finais de gravidez e não me sai da cabeça o que aconteceu à minha falecida Micas.
- E o trabalho, como vai? - perguntei.
- Olha, isto está a mudar. Os fabricantes de calçado querem agora toda a gente a trabalhar junto deles. O meu patrão Romualdo tem-me dado algum serviço para casa mas, isto já não é vida para mim. Por outro lado, a minha filha e o meu genro querem que eu fique lá. E eu já estou a habituar-me àquela vida no Ribatejo, ajudo no que posso e, realmente, sinto-me em família.
Há mais de 30 anos que quando passo naquela rua, reparo que a casa foi acabada e se mantém bem cuidada. Porém, sempre de portas e janelas fechadas.
Um dia, há uns 15 anos, consegui falar com uma vizinha do lado. Perguntei-lhe:
- Que é feito do Senhor Neca?
- Já faleceu há uns 4 ou 5 anos. Do filho não sei nada. Parece que foi para o estrangeiro. Esse, não cheguei a conhecer porque nunca o vi cá. Mas a Professora Deolinda e o Senhor Morgado passam por cá de vez em quando. Já têm netos!
Silva da Cart 1689
OBS:- As devidas vénias a Manuel Graça, autor da foto do desembarque de tropas em Angola em 1961
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9155: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Ao domingo não há guerra e Estragos no bananal
Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9119: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Sexo - a quanto obrigas
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)
1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 21 de Dezembro de 2011:
Viva Carlos,
Envio ao teu critério a minha breve opinião sobre a interessante biografia de Bobo Keita, que li por gentileza do Virgínio Briote.
Para ti e para o Tabancal envio um abraço com votos de Boas-Festas.
JD
Li no Blogue a extensa recensão sobre a biografia de Bobo Keita, um comandante do PAIGC, que resultou do conjunto de conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor da edição. Aquela amostragem no Luís Graça e Camaradas da Guiné, estendeu-se por três episódios e, talvez fruto da extensão, não terá sensibilizado os leitores para a excelente exposição feita sobre aquele partido, tendo em conta que deriva das lembranças de quem viveu o período colonial e, por via disso, juntou-se ao movimento emancipalista, participou na organização e em acções de guerra, tendo atingido um lugar de destaque na estrutura e, portanto, revela variados momentos e acontecimentos que contribuem para uma melhor avaliação histórica.
Sensibilizou-me a correcção dos discursos em relação à potência colonial, sem preconceito, sem ódio nem azedume, até com uma ingénua simplicidade, como quando se refere à ausência de direitos de uma grande parte da população - os gentios - que, no seu caso, por não ter nome de aculturado, não podia ter bilhete de identidade e, em consequência, não podia frequentar a escola. Disse-o sem rancor ou qualquer animosidade, embora aqueles gentios, sob aquele regime, estivessem sujeitos a perpétua subalternidade e impossibilitados de serem parte em actos administrativos. Não eram escravos, mas eram ostracizados. O regime viria a corrigir a situação mais tarde, para todo o território ultramarino, provavelmente em consequência da evolução social e política, mas também para dar resposta ao crescimento do bem estar e ao estabelecimento de novas formas comerciais.
Valeu-lhe uma missão católica e o bom padre que lhe deu o nome de Henrique dos Santos Keita, para que tivesse tido oportunidade para frequentar a escola, que iniciou aos nove anos. As conversas revelam que o jovem não só estudava, como se iniciava na aprendizagem e ajuda à profissão de alfaiate que o pai exercia. E porque o pai era muçulmano, dificultava-lhe a vida aos domingos para que o Bobo não tivesse oportunidade de frequentar a igreja, preocupação de que sairia aliviado, quando expôs a questão ao mesmo padre que o dispensou das missas e lhe permitiu concluir os estudos primários em condições de alguma normalidade. Hoje, adultos, devemos levar em consideração a influência destes acontecimentos na formação moral e ética de um jovem, que correu contra a exclusão na sua própria terra.
Outra nota muito subtil sobre a formação do carácter e o determinismo pessoal, aconteceu quando o Bobo já era ídolo na cidade de Bissau. De facto, enquanto estudava e ajudava o pai, também praticava futebol e desenvolveu habilidades que o levaram ao Benfica local (apesar de ser o Sporting o clube do coração). Aos dezassete anos, para representar a selecção da Guiné, deram-lhe nova identificação com a idade de dezoito, e passou a deslocar-se para participações em torneios africanos. Aos jogadores era destinada uma pequena verba, talvez para despesas de representação ou pequenos gastos pessoais, com a qual os dirigentes se locupletavam. Reclamavam os futebolistas, mas não havia nada a fazer. Até que num torneio, no Gana, em 1959, que celebrou a independência da antiga colónia britânica com a designação de Costa do Ouro, o presidente Nkrumah exaltou a libertação dos povos oprimidos. Mais tarde, sobre uma deslocação à Nigéria, refere: "no balneário e no hotel, começámos a reflectir nas nossas condições de existência em relação aos outros futebolistas com que nos cruzávamos nesse torneio internacional de Lagos". "Começámos então a manifestar a nossa insatisfação , a acantonar-nos numa certa reserva em relação aos dirigentes da selecção". E o cachet, nicles! Numa deslocação seguinte à Gâmbia os jogadores ameaçaram não participar se não lhes dessem o dinheiro. Em consequência dessa actitude colectiva foram chamados à PIDE que os intimidou, uma prática da "justiça" dominante.
Nesta senda, Bobo e alguns companheiros de futebol decidem abalar para Conakri onde se modelava a oposição. Não foi um guerrilheiro romântico que saiu de Bissau, mas um jovem conhecedor das duas faces da vida que, apesar de se estar a afirmar como futebolista, continuava a sentir as dificuldades da ascendência humilde, em termos que lhe feriam a dignidade. Nem por isso, no entanto, deixa escapar qualquer expressão de ódio ou desprezo em relação aos portugueses. E é também sem qualquer traço de soberba, insulto ou desdém, antes, consciencioso e com sentido das responsabilidades, que Bobo vai fazer o seu exercício de memórias sobre a guerra pela independência.
Sobre o congresso de Cassacá confirma as razões da convocatória e a aplicação da lei marcial. Parece-nos brutalidade (e foi), mas quantos de nós ainda hoje não manifestamos vontade de pendurar em postes públicos ou nos pelourinhos os corruptos de Portugal? Faz-nos descrições interessantes sobre a vida no mato, e nas chamadas zonas libertadas (aquelas onde os portugueses bombardeavam e só passavam em percursos operacionais), bem como os relatos de vários episódios de graça e de guerra, e histórias de intrigas no seio do partido, ou de contactos com os portugueses, quase todas caldeadas de informações complementares e esclarecedoras.
Relativamente à morte de Cabral, Bobo conta-nos sobre a percepção do líder relativamente ao atentado, e a sua convicção (de Bobo) sobre a responsabilidade partilhada por Inocêncio Cani (que iria substituir no comando dos blindados), Mamadu Injai, Momo Turé (primo do Bobo) e Aristides Barbosa, todos concominados com a PIDE, que pretendia a captura dos líderes, e apostava na divisão étnica entre guineenses e cabo-verdianos, e revela o forte indicio de Inocêncio (o autor do primeiro tiro) ao comandar um barco em fuga para Cacine com Aristides Pereira prisioneiro e escondido a bordo. Foi apanhado em Boke, aparentemente para se reabastecer de combustível ou vingar-se de José Pereira que o denunciara de mau carácter. "Os cabo-verdianos estiveram ali nas frentes de combate durante todo o período da luta", refere Bobo desmistificando teorias elitistas no PAIGC relativamente aos guineenses. "Os que defendem esta tese, ou fazem-na de propósito para criar a divisão entre guineenses e cabo-verdianos ou então não conhecem a história da luta". Ora, neste capítulo, dá-se conta de algumas tentativas para eliminação de Cabral.
À morte de Cabral o partido reagiu e declarou a independência, enquanto recebia novos equipamentos para a prossecução da guerra. De entre esses destacaram-se os mísseis Strela. Reorganizados e reequipados, levaram a cabo a operação "Amílcar Cabral". "Lá onde não podiam pôr os pés, porque a guerrilha estava presente em força, mandavam os seus aviões que lançavam bombas semeando o pânico e a destruição para depois fazerem avançar os seus soldados ao assalto, protegidos por tanques blindados e helicópteros de combate. A correlação de forças encontrava-se desequilibrada e a favor deles. Por isso é que a nossa luta durou tanto. Mas na operação multi-direccionada (Guileje-Copá-Guidaje) o uso massivo e sem recuo de canhões de artilharia, foguetões e morteiros fizeram oscilar a balança". E acrescenta sobre a evolução na formação militar: "Com a aquisição da nova força das armas, do cálculo dos artilheiros, muitos de nós certificámo-nos ainda mais de que não eram os 'mésinhos' que determinavam as nossas vidas ou mortes. Compreendemos que uma vez que a bala mortal rompesse a pele e se incrustasse na carne não havia remédio algum que possa salvar. Vi qual era o valor das trincheiras, dos abrigos, do amontoamento de areias à volta das bases". "O primeiro reflexo do guerrilheiro que antes era pôr-se de pé e disparar a peito nu contra o inimigo, confiante no 'mésinho' pendurado à volta do pescoço ou nas coxas... passou a ser a escavação de abrigos, a formação de montes de terra para se proteger do assalto inimigo, a codificação do espaço, a disciplina quotidiana, uma maior concentração nos indícios, a melhor utilização do terreno geográfico, etc.. Éramos combatentes e não feiticeiros ou jambacuses".
Bobo também se refere ao protagonismo e aos privilégios de Nino durante o período da luta, e não lhe foi simpático.
Spínola, o "desmancha prazeres". "É verdade. ...Mas não se esqueça que à frente dele estava também um dos mais prestigiados líderes da revolução africana, Amílcar Cabral! E o braço de ferro entre eles, apesar da morte de Cabral, saldou-se na derrota de Spínola, que acabou por reconhecer que tudo o que fez na Guiné não deu resultado, não conseguiu vencer-nos". Repare-se na delicadeza de trato deste comandante relativamente ao mais famoso adversário. E tece a seguinte consideração: "Spínola estava numa perfeita contradição entre a sua visão neocolonialista de uma autodeterminação e independência da nossa terra debaixo da bandeira de Portugal e o estado avançado em que a luta do Partido se encontrava e de onde já não podíamos recuar". Poderiam os portugueses ter rebatido? Acho que sim, e hoje sabemos de algum abrandamento diplomático dos países ocidentais contra Portugal, mas os portugueses não souberam tomar em tempo devido as medidas aglutinadoras, e cansaram-se da guerra.
Parece um depoimento sério, que aborda várias questões que rivalizaram o PAIGC com Portugal, antes, durante e depois do período da "luta". Não escamoteia o confronto com outras teses conhecidas, antes contribui para novas abordagens sobre essas relações entre duas partes que se reclamavam da legitimidade para governar o povo da Guiné. Aconteceu, porém, que os portugueses desistiram, e Bobo, que comandou a frente leste depois do 25 de Abril, apressou a retirada dos portugueses daquela região, com recurso a estratégias que aproveitavam a desorganização e "desmobilização" da tropa metropolitana.
____________
Notas de CV:
Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:
24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho
25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)
27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)
29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)
Vd. postes da recensão deste livro feita por Mário Beja Santos de:
5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)
e
9 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
Viva Carlos,
Envio ao teu critério a minha breve opinião sobre a interessante biografia de Bobo Keita, que li por gentileza do Virgínio Briote.
Para ti e para o Tabancal envio um abraço com votos de Boas-Festas.
JD
Li no Blogue a extensa recensão sobre a biografia de Bobo Keita, um comandante do PAIGC, que resultou do conjunto de conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor da edição. Aquela amostragem no Luís Graça e Camaradas da Guiné, estendeu-se por três episódios e, talvez fruto da extensão, não terá sensibilizado os leitores para a excelente exposição feita sobre aquele partido, tendo em conta que deriva das lembranças de quem viveu o período colonial e, por via disso, juntou-se ao movimento emancipalista, participou na organização e em acções de guerra, tendo atingido um lugar de destaque na estrutura e, portanto, revela variados momentos e acontecimentos que contribuem para uma melhor avaliação histórica.
Sensibilizou-me a correcção dos discursos em relação à potência colonial, sem preconceito, sem ódio nem azedume, até com uma ingénua simplicidade, como quando se refere à ausência de direitos de uma grande parte da população - os gentios - que, no seu caso, por não ter nome de aculturado, não podia ter bilhete de identidade e, em consequência, não podia frequentar a escola. Disse-o sem rancor ou qualquer animosidade, embora aqueles gentios, sob aquele regime, estivessem sujeitos a perpétua subalternidade e impossibilitados de serem parte em actos administrativos. Não eram escravos, mas eram ostracizados. O regime viria a corrigir a situação mais tarde, para todo o território ultramarino, provavelmente em consequência da evolução social e política, mas também para dar resposta ao crescimento do bem estar e ao estabelecimento de novas formas comerciais.
Valeu-lhe uma missão católica e o bom padre que lhe deu o nome de Henrique dos Santos Keita, para que tivesse tido oportunidade para frequentar a escola, que iniciou aos nove anos. As conversas revelam que o jovem não só estudava, como se iniciava na aprendizagem e ajuda à profissão de alfaiate que o pai exercia. E porque o pai era muçulmano, dificultava-lhe a vida aos domingos para que o Bobo não tivesse oportunidade de frequentar a igreja, preocupação de que sairia aliviado, quando expôs a questão ao mesmo padre que o dispensou das missas e lhe permitiu concluir os estudos primários em condições de alguma normalidade. Hoje, adultos, devemos levar em consideração a influência destes acontecimentos na formação moral e ética de um jovem, que correu contra a exclusão na sua própria terra.
Outra nota muito subtil sobre a formação do carácter e o determinismo pessoal, aconteceu quando o Bobo já era ídolo na cidade de Bissau. De facto, enquanto estudava e ajudava o pai, também praticava futebol e desenvolveu habilidades que o levaram ao Benfica local (apesar de ser o Sporting o clube do coração). Aos dezassete anos, para representar a selecção da Guiné, deram-lhe nova identificação com a idade de dezoito, e passou a deslocar-se para participações em torneios africanos. Aos jogadores era destinada uma pequena verba, talvez para despesas de representação ou pequenos gastos pessoais, com a qual os dirigentes se locupletavam. Reclamavam os futebolistas, mas não havia nada a fazer. Até que num torneio, no Gana, em 1959, que celebrou a independência da antiga colónia britânica com a designação de Costa do Ouro, o presidente Nkrumah exaltou a libertação dos povos oprimidos. Mais tarde, sobre uma deslocação à Nigéria, refere: "no balneário e no hotel, começámos a reflectir nas nossas condições de existência em relação aos outros futebolistas com que nos cruzávamos nesse torneio internacional de Lagos". "Começámos então a manifestar a nossa insatisfação , a acantonar-nos numa certa reserva em relação aos dirigentes da selecção". E o cachet, nicles! Numa deslocação seguinte à Gâmbia os jogadores ameaçaram não participar se não lhes dessem o dinheiro. Em consequência dessa actitude colectiva foram chamados à PIDE que os intimidou, uma prática da "justiça" dominante.
Nesta senda, Bobo e alguns companheiros de futebol decidem abalar para Conakri onde se modelava a oposição. Não foi um guerrilheiro romântico que saiu de Bissau, mas um jovem conhecedor das duas faces da vida que, apesar de se estar a afirmar como futebolista, continuava a sentir as dificuldades da ascendência humilde, em termos que lhe feriam a dignidade. Nem por isso, no entanto, deixa escapar qualquer expressão de ódio ou desprezo em relação aos portugueses. E é também sem qualquer traço de soberba, insulto ou desdém, antes, consciencioso e com sentido das responsabilidades, que Bobo vai fazer o seu exercício de memórias sobre a guerra pela independência.
Sobre o congresso de Cassacá confirma as razões da convocatória e a aplicação da lei marcial. Parece-nos brutalidade (e foi), mas quantos de nós ainda hoje não manifestamos vontade de pendurar em postes públicos ou nos pelourinhos os corruptos de Portugal? Faz-nos descrições interessantes sobre a vida no mato, e nas chamadas zonas libertadas (aquelas onde os portugueses bombardeavam e só passavam em percursos operacionais), bem como os relatos de vários episódios de graça e de guerra, e histórias de intrigas no seio do partido, ou de contactos com os portugueses, quase todas caldeadas de informações complementares e esclarecedoras.
Relativamente à morte de Cabral, Bobo conta-nos sobre a percepção do líder relativamente ao atentado, e a sua convicção (de Bobo) sobre a responsabilidade partilhada por Inocêncio Cani (que iria substituir no comando dos blindados), Mamadu Injai, Momo Turé (primo do Bobo) e Aristides Barbosa, todos concominados com a PIDE, que pretendia a captura dos líderes, e apostava na divisão étnica entre guineenses e cabo-verdianos, e revela o forte indicio de Inocêncio (o autor do primeiro tiro) ao comandar um barco em fuga para Cacine com Aristides Pereira prisioneiro e escondido a bordo. Foi apanhado em Boke, aparentemente para se reabastecer de combustível ou vingar-se de José Pereira que o denunciara de mau carácter. "Os cabo-verdianos estiveram ali nas frentes de combate durante todo o período da luta", refere Bobo desmistificando teorias elitistas no PAIGC relativamente aos guineenses. "Os que defendem esta tese, ou fazem-na de propósito para criar a divisão entre guineenses e cabo-verdianos ou então não conhecem a história da luta". Ora, neste capítulo, dá-se conta de algumas tentativas para eliminação de Cabral.
À morte de Cabral o partido reagiu e declarou a independência, enquanto recebia novos equipamentos para a prossecução da guerra. De entre esses destacaram-se os mísseis Strela. Reorganizados e reequipados, levaram a cabo a operação "Amílcar Cabral". "Lá onde não podiam pôr os pés, porque a guerrilha estava presente em força, mandavam os seus aviões que lançavam bombas semeando o pânico e a destruição para depois fazerem avançar os seus soldados ao assalto, protegidos por tanques blindados e helicópteros de combate. A correlação de forças encontrava-se desequilibrada e a favor deles. Por isso é que a nossa luta durou tanto. Mas na operação multi-direccionada (Guileje-Copá-Guidaje) o uso massivo e sem recuo de canhões de artilharia, foguetões e morteiros fizeram oscilar a balança". E acrescenta sobre a evolução na formação militar: "Com a aquisição da nova força das armas, do cálculo dos artilheiros, muitos de nós certificámo-nos ainda mais de que não eram os 'mésinhos' que determinavam as nossas vidas ou mortes. Compreendemos que uma vez que a bala mortal rompesse a pele e se incrustasse na carne não havia remédio algum que possa salvar. Vi qual era o valor das trincheiras, dos abrigos, do amontoamento de areias à volta das bases". "O primeiro reflexo do guerrilheiro que antes era pôr-se de pé e disparar a peito nu contra o inimigo, confiante no 'mésinho' pendurado à volta do pescoço ou nas coxas... passou a ser a escavação de abrigos, a formação de montes de terra para se proteger do assalto inimigo, a codificação do espaço, a disciplina quotidiana, uma maior concentração nos indícios, a melhor utilização do terreno geográfico, etc.. Éramos combatentes e não feiticeiros ou jambacuses".
Bobo também se refere ao protagonismo e aos privilégios de Nino durante o período da luta, e não lhe foi simpático.
Spínola, o "desmancha prazeres". "É verdade. ...Mas não se esqueça que à frente dele estava também um dos mais prestigiados líderes da revolução africana, Amílcar Cabral! E o braço de ferro entre eles, apesar da morte de Cabral, saldou-se na derrota de Spínola, que acabou por reconhecer que tudo o que fez na Guiné não deu resultado, não conseguiu vencer-nos". Repare-se na delicadeza de trato deste comandante relativamente ao mais famoso adversário. E tece a seguinte consideração: "Spínola estava numa perfeita contradição entre a sua visão neocolonialista de uma autodeterminação e independência da nossa terra debaixo da bandeira de Portugal e o estado avançado em que a luta do Partido se encontrava e de onde já não podíamos recuar". Poderiam os portugueses ter rebatido? Acho que sim, e hoje sabemos de algum abrandamento diplomático dos países ocidentais contra Portugal, mas os portugueses não souberam tomar em tempo devido as medidas aglutinadoras, e cansaram-se da guerra.
Parece um depoimento sério, que aborda várias questões que rivalizaram o PAIGC com Portugal, antes, durante e depois do período da "luta". Não escamoteia o confronto com outras teses conhecidas, antes contribui para novas abordagens sobre essas relações entre duas partes que se reclamavam da legitimidade para governar o povo da Guiné. Aconteceu, porém, que os portugueses desistiram, e Bobo, que comandou a frente leste depois do 25 de Abril, apressou a retirada dos portugueses daquela região, com recurso a estratégias que aproveitavam a desorganização e "desmobilização" da tropa metropolitana.
____________
Notas de CV:
Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:
24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho
25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)
27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)
29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)
Vd. postes da recensão deste livro feita por Mário Beja Santos de:
5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)
e
9 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P9258: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (19): Recordações de um colega cego
1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta vez relembrando um colega, de faculdade, cego.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (19)
O Colega Cego
Em pleno Outono de 1961 iniciei os estudos em Coimbra. Matriculei-me no curso de Filologia Germânica; éramos mais de 250 alunos naquele curso, mas menos de 20 eram do sexo masculino. Em determinadas aulas havia 600 alunos numa sala a ouvir um professor lá na frente porque havia “cadeiras” comuns a três cursos: Germânicas, Românicas, e Clássicas.
Imaginem hoje um professor ministrar uma aula com 600 alunos dentro duma sala! Seria interessante se um professor nos dias de hoje conseguisse dar a aula.
No meu curso havia um rapaz que era cego. A mãe acompanhava-o diariamente até à Faculdade; no fim das aulas lá estava ela a esperar pacientemente pelo filho generoso para o conduzir, a pé, até casa.
Naquela época os carros eram raros... o dinheiro não abundava mas ninguém “comia fiado”. E hoje só se fala em crise! O que seria aquilo?!
Apercebi-me que o Fausto, o companheiro cego, vivia para as minhas bandas.
Eu vinha diariamente da Conchada,... ele da Nicolau Chantrene, ali perto.
Combinei com aquela mãe maravilhosa que trouxesse o filho até à Antero de Quental; dali para a Faculdade e volta eu seria a sua muleta.
Na vida já fiz muitas coisas... extra: já fui engenheiro, empreiteiro de pontes e aprendiz de moço de cego (prestei provas e passei a moço). Sem pretender molestar ninguém... penso que desempenhei adequadamente esse cargo... voluntário; nunca houve atrasos nem faltas de comparência.
O Fausto era um colega interessantíssimo, muito paciente e muito inteligente; todos os colegas adoravam conversar com ele e ajudá-lo; era um óptimo conversador. Em cada intervalo, um montão de malta (colegas) rodeava-o para conversar, saber como escrevia manualmente (Breille) o que o professor ía relatando, como “lia” as horas no seu relógio... para cegos etc.
Em casa tinha um gravador de bobines onde o irmão – estudante de medicina – “gravava” as sebentas. A ouvir a gravação o Fausto aprendia a matéria.
No nosso percurso de e para as aulas conversei muito com ele; contou-me como tudo tinha acontecido com pormenores surpreendentes.
Nasceu com uma deficiência que lhe afectou a visão; passou a ver cada vez menos; a partir dos cinco já via pouco mas passou a ter dores horríveis. Estas dores abrandavam se estivesse em local absolutamente escuro. Apareceu um médico americano que prometeu debelar as dores... porém “levou-lhe” também a pouca visão que lhe restava.
Naquela época ele apercebia-se apenas dum obstáculo – um muro, por exemplo – à sua frente; um buraco, por maior que fosse, não era perceptível.
Nos exames escrevia à máquina; o Fausto era um bom aluno. Conhecia todos os colegas... pela voz; era muito vivo, muito perspicaz.
Um dia perguntei-lhe se ele gostaria de vêr. Ele estacou no meio das escadas monumentais; depois de pensar calmamente por uns instantes e respondeu:
- Nunca me fizeram tal pergunta; daí a minha demora em responder; sinceramente penso que ter vista agora seria uma desilusão para mim... o mundo talvez não seja como eu o imagino... não será mesmo... calculo que a minha decepção seria enorme!
No ano lectivo seguinte tínhamos horários diferentes; eu já não podia auxiliá-lo. Outro colega ocupou o meu lugar; “víamo-nos” e falávamos de vez em quando... raramente.
Findo o ano lectivo de 1962/63 mandaram-me para Mafra, EPI; ainda me matriculei em duas cadeiras... apenas para poder exercer a praxe. Aos fins de semana, de vez em quando, ia até Coimbra e lá tomava parte numa “trupe”... para caçar caloiros. Seria até uma boa preparação para mais tarde... caçar “turras”. Como só actuava de noite nunca encontrei o Fausto.
Em Janeiro de 1964, como aspirante, fui para Évora; em Maio no mesmo ano, como alferes, parti para a Guiné.
Um ano depois, em Abril/Maio de 1965, vim de férias; ia muitas vezes a Coimbra visitar a garota (que veio a ser e ainda é a minha mulher) e assistir à queima das fitas.
Numa das idas a Coimbra, numa rua bastante inclinada que desemboca no Largo da Portagem – Conraça de Lisboa, creio) vi o Fausto no meio da multidão amparado por uma ex-colega minha.
A uns metros de distância gritei:
- Oh Fausto! Estás bom, pá?!
Corri logo para junto dele.
O Fausto retorquiu:
- Fala mais alguma coisa! Estou a reconhecer a tua vez!
Mais duas ou três palavras e o Fausto exclamou contente:
- Tu és o Belmiro! Que foi feito de ti, rapaz? Dá cá um abraço, meu grande amigo! Deixa-me chamar-te... meu guia!
Iniciámos logo um longo desfiar de recordações; conversámos longamente.
A certa altura, o Fausto informou:
- A minha guia agora é esta! (e acarinhou amorosamente a nossa ex-colega) lembras-te dela? Casámos há quatro meses... é uma grande companheira! Uma excelente amiga!
Uns anos mais tarde soube que ele era professor de inglês num liceu de Coimbra; A esposa leccionava na mesma escola; os alunos adoravam-no!
Quando em fins dos anos 70 pretendi saber o que era feito dele... fui informado que tinha falecido em consequência da doença congénita que lhe provocou a cegueira.
Aquele encontro em Maio de 65 ficou gravado na minha memória, para sempre. Mais de 46 anos passados ainda recordo aquele dia com alegria e emoção: o Fausto reconheceu-me depois duma separação forçada de 3 anos. Que rica queima das Fitas!
Lisboa, 19 de Dezembro de 2012
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (18): Uma mina anticarro e as suas consequências
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (19)
O Colega Cego
Em pleno Outono de 1961 iniciei os estudos em Coimbra. Matriculei-me no curso de Filologia Germânica; éramos mais de 250 alunos naquele curso, mas menos de 20 eram do sexo masculino. Em determinadas aulas havia 600 alunos numa sala a ouvir um professor lá na frente porque havia “cadeiras” comuns a três cursos: Germânicas, Românicas, e Clássicas.
Imaginem hoje um professor ministrar uma aula com 600 alunos dentro duma sala! Seria interessante se um professor nos dias de hoje conseguisse dar a aula.
No meu curso havia um rapaz que era cego. A mãe acompanhava-o diariamente até à Faculdade; no fim das aulas lá estava ela a esperar pacientemente pelo filho generoso para o conduzir, a pé, até casa.
Naquela época os carros eram raros... o dinheiro não abundava mas ninguém “comia fiado”. E hoje só se fala em crise! O que seria aquilo?!
Apercebi-me que o Fausto, o companheiro cego, vivia para as minhas bandas.
Eu vinha diariamente da Conchada,... ele da Nicolau Chantrene, ali perto.
Combinei com aquela mãe maravilhosa que trouxesse o filho até à Antero de Quental; dali para a Faculdade e volta eu seria a sua muleta.
Na vida já fiz muitas coisas... extra: já fui engenheiro, empreiteiro de pontes e aprendiz de moço de cego (prestei provas e passei a moço). Sem pretender molestar ninguém... penso que desempenhei adequadamente esse cargo... voluntário; nunca houve atrasos nem faltas de comparência.
O Fausto era um colega interessantíssimo, muito paciente e muito inteligente; todos os colegas adoravam conversar com ele e ajudá-lo; era um óptimo conversador. Em cada intervalo, um montão de malta (colegas) rodeava-o para conversar, saber como escrevia manualmente (Breille) o que o professor ía relatando, como “lia” as horas no seu relógio... para cegos etc.
Em casa tinha um gravador de bobines onde o irmão – estudante de medicina – “gravava” as sebentas. A ouvir a gravação o Fausto aprendia a matéria.
No nosso percurso de e para as aulas conversei muito com ele; contou-me como tudo tinha acontecido com pormenores surpreendentes.
Nasceu com uma deficiência que lhe afectou a visão; passou a ver cada vez menos; a partir dos cinco já via pouco mas passou a ter dores horríveis. Estas dores abrandavam se estivesse em local absolutamente escuro. Apareceu um médico americano que prometeu debelar as dores... porém “levou-lhe” também a pouca visão que lhe restava.
Naquela época ele apercebia-se apenas dum obstáculo – um muro, por exemplo – à sua frente; um buraco, por maior que fosse, não era perceptível.
Nos exames escrevia à máquina; o Fausto era um bom aluno. Conhecia todos os colegas... pela voz; era muito vivo, muito perspicaz.
Um dia perguntei-lhe se ele gostaria de vêr. Ele estacou no meio das escadas monumentais; depois de pensar calmamente por uns instantes e respondeu:
- Nunca me fizeram tal pergunta; daí a minha demora em responder; sinceramente penso que ter vista agora seria uma desilusão para mim... o mundo talvez não seja como eu o imagino... não será mesmo... calculo que a minha decepção seria enorme!
No ano lectivo seguinte tínhamos horários diferentes; eu já não podia auxiliá-lo. Outro colega ocupou o meu lugar; “víamo-nos” e falávamos de vez em quando... raramente.
Findo o ano lectivo de 1962/63 mandaram-me para Mafra, EPI; ainda me matriculei em duas cadeiras... apenas para poder exercer a praxe. Aos fins de semana, de vez em quando, ia até Coimbra e lá tomava parte numa “trupe”... para caçar caloiros. Seria até uma boa preparação para mais tarde... caçar “turras”. Como só actuava de noite nunca encontrei o Fausto.
Em Janeiro de 1964, como aspirante, fui para Évora; em Maio no mesmo ano, como alferes, parti para a Guiné.
Um ano depois, em Abril/Maio de 1965, vim de férias; ia muitas vezes a Coimbra visitar a garota (que veio a ser e ainda é a minha mulher) e assistir à queima das fitas.
Numa das idas a Coimbra, numa rua bastante inclinada que desemboca no Largo da Portagem – Conraça de Lisboa, creio) vi o Fausto no meio da multidão amparado por uma ex-colega minha.
A uns metros de distância gritei:
- Oh Fausto! Estás bom, pá?!
Corri logo para junto dele.
O Fausto retorquiu:
- Fala mais alguma coisa! Estou a reconhecer a tua vez!
Mais duas ou três palavras e o Fausto exclamou contente:
- Tu és o Belmiro! Que foi feito de ti, rapaz? Dá cá um abraço, meu grande amigo! Deixa-me chamar-te... meu guia!
Iniciámos logo um longo desfiar de recordações; conversámos longamente.
A certa altura, o Fausto informou:
- A minha guia agora é esta! (e acarinhou amorosamente a nossa ex-colega) lembras-te dela? Casámos há quatro meses... é uma grande companheira! Uma excelente amiga!
Uns anos mais tarde soube que ele era professor de inglês num liceu de Coimbra; A esposa leccionava na mesma escola; os alunos adoravam-no!
Quando em fins dos anos 70 pretendi saber o que era feito dele... fui informado que tinha falecido em consequência da doença congénita que lhe provocou a cegueira.
Aquele encontro em Maio de 65 ficou gravado na minha memória, para sempre. Mais de 46 anos passados ainda recordo aquele dia com alegria e emoção: o Fausto reconheceu-me depois duma separação forçada de 3 anos. Que rica queima das Fitas!
Lisboa, 19 de Dezembro de 2012
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (18): Uma mina anticarro e as suas consequências
Guiné 63/74 - P9257: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (8): Mensagens das nossas amigas tertulianas Felismina Costa e Margarida Peixoto
MENSAGENS DE NATAL DAS NOSSAS AMIGAS
FELISMINA COSTA E MARGARIDA PEIXOTO
FELISMINA COSTA E MARGARIDA PEIXOTO
1. À Tabanca Grande de Luís Graça & Camaradas da Guiné
e a todas as Tabancas dela derivadas
Meus amigos
“Muito em cima da hora“, porque os afazeres nesta data, são múltiplos, não quis no entanto deixar passar esta quadra, sem vos enviar os meus votos de “Festas-Felizes”.
Num ápice, desapareceu 2011!
365 dias, voaram!
E, se por um lado, nos custa ver voar os anos, por outro, é um prazer achar que passaram depressa.
Tristes dos que, com a nossa idade, acham que os dias são enormes e que as noites são infindáveis!
Quanto a vida nos permita ocupação, quanto o tempo nos ofereça capacidades para preencher as horas da nossa vida, é um bem incalculável, somente apreciado por aqueles que se sentem limitados nas suas capacidades físicas.
Assim, bem digo a velocidade a que o tempo corre!
Bendigo o tempo vivido!
Bendigo a aprendizagem permitida no tempo, no meu tempo de vida!
Nestas seis décadas, somos testemunhas de evoluções e retrocessos, certamente de mais evoluções que retrocessos, lembramos um passado comum, embora cada um de seu modo diverso, mas comum, em que somos capazes de compreender o que cada um sente e viveu.
Não cabe aqui o desfiar do tempo que já vivemos, a universalidade contextual da nossa existência, mas digo-vos que, apesar de todas as contingências, dos grandes erros humanos que lamento, a vida, é o maior bem!
Nela crescemos, física e intelectualmente, diferenciados por capacidades e oportunidades, e por isso mesmo, formamos um todo, diverso entre si, rico pela multiplicidade dos conhecimentos adquiridos.
É neste contexto que vos saúdo!
Agradeço a todos a partilha dos vossos conhecimentos, dos vossos sentimentos, da vossa visão do tempo, presente e passado.
Quero reafirmar-vos o meu prazer, em fazer parte desta “família” de gente bonita, de seres humanos extraordinários, que se mantêm unidos, que partilham lembranças de dias difíceis, que com tudo os uniu, pois que é nas dificuldades que as pessoas se unem.
E, é por saber que o Natal aproxima mais as famílias, que há um espírito de maior união, que há até uma necessidade de ir ao encontro dos amigos, saber deles, falar do passado para manter o presente, que vos quero desejar uma reunião natalícia, Alegre e Feliz.
Quero também desejar, que o Novo Ano traga estabilidade, paz para todo o mundo, discernimento para os homens que tem por missão a governação dos povos, de forma, a que haja uma mais justa distribuição da riqueza, para que me possa sentar à minha mesa humilde, contente por saber, que em qualquer parte do mundo, o mais pobre, tenha como eu, o pão e o conforto do seu lar.
A todos vós, o meu abraço imenso, fraterno e solidário.
A vossa amiga de sempre
Felismina Costa
2. É NATAL
É Natal!
Foi-nos dado um tempo, mas todos temos a consciência que atravessar esse tempo não é deixá-lo passar ao sabor do vento, chegando ao fim do dia sem reflectirmos o que fizemos de bom, de positivo de humanitário nas vinte e quatro horas que passaram por nós, ou nós por elas.
A juventude vai passando e as recordações da mocidade vão-se avivando, fazendo-nos pensar no que somos e no que poderíamos ter sido.
Melhores?!!!
Piores?!!
Ou simplesmente como somos?
Não importa, o que realmente conta é a nossa consciência, a nossa postura na vida, os nossos sentimentos.
Natal! Palavra mágica! Católicos ou não, esta quadra mexe connosco.
Ao sentimento de amor, de sensibilidade, de darmos as mãos em sinal de Paz e Amizade.
Que as luzes cintilando em cada casa, árvore ou rua, apaguem a revolta e a tristeza, transformando-as num manto de serenidade, e numa certa tranquilidade. E sem sabermos como, sentirmos ainda, mesmo ao de leve, uma esperança de uma vida melhor.
Ainda que a Fé, esteja longe de nós, mesmo que pensemos que tudo isto não passa de um conto de “fadas” ninguém fica indiferente ao olhar para o Presépio. Ele representa a Vida, a Família a União.
Neste Natal, em que vós ex-combatentes estais unidos pela amizade, pelo passado, pelo que de bom e de mau vos uniu, desejo-vos a todos assim como à vossa Família, que o “ vazio “ que sentiam antes de se encontrarem nesta maravilhosa aventura da vida, seja um acumular de glórias no vasto horizonte das vossas vivências.
Que a Estrela que guiou os Reis Magos até à cabana onde nasceu o Menino Jesus, vos guie para uma vida de Paz, saúde e alegria.
Que o Presépio construído em Belém represente a vossa família.
O tempo que aqui passamos é breve. Pensemos nesta realidade e vivamos este momento com toda a Glória do Universo a que pertencemos.
Um Bom Natal e que o Ano Novo vos reúna novamente.
Margarida Peixoto
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9255: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (6): Onde não mora o Natal. Mensagem do José Eduardo liveira (JERO)
Guiné 63/74 - P9256: À margem da história oficial ou oficiosa (2): A tragédia, em São João, que ensombrou o Natal de 1966 da CART 1613: o assassínio do Cap Fausto Ferraz, substituído depois pelo Cap Eurico Corvacho (que morreu anteontem)
Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Presume-se que fosse uma brincadeira de Carnaval... Dois militares parodiam a PM- Polícia Militar... O Cap Eurico Corvalho pode ser o terceiro a contar da esquerda, pelo menos ostenta é alguém que ostenta as divisas de capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garante-me o Nuno Rubim, que foi seu camarada da academia (O Nuno era de um curso anterior ao do Eurico) ... (LG).
Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Todos os direitos reservados.
1. Na vésperas da noite de Natal de 1966, uma tragédia vai ensombrar a história da CART 1613/BART 1896, a companhia que estava em IAO em São João e que iria, seis meses depois, para Guileje (onde esteve de Junho de 1967 a Maio de 1968).
Nos registos oficiais diz-se que Cap Mil Art com o nº mecanográfico 1036/C, pertencente à CART 1613/BART 1896, mobilizada no RAP2, Vila Nova de Gaia, de seu nome Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, foi vítima mortal de acidente com arma de fogo (sic), ocorrido no aquartelamento de S. João, vindo a morrer a 24 de Dezembro de 1966 no Hospital Militar 241, em Bissau.
O malogrado Cap Ferraz foi inumado no cemitério da Conchada, em Coimbra. Era casado com Maria Fernanda Ferreira da Costa, filho de Manuel Fonseca Ferraz e Ana Rosa Manteigas, sendo natural da freguesia de Pousafoles do Bispo, concelho de Sabugal.
Antes de morrer, o Cap José Neto (1929-2007) contou-me, antes de morrer, que se tratou de um homicídio, e não de um simples acidente com arma de fogo. O autor dos disparos foi o Soldado Condutor Auto Rodas José Manuel Vieira Cavaco. Era madeirense (se não erro), tendo recebido na véspera de Natal provisões remetidas pela família, entre elas uma garrafa de aguardente de cana ou de poncha (se não me engano).
A companhia tinha chegado à Guiné há cerca de um mês, e estava em S. João, frente a Bolama, em treino operacional. As saudades da terra, as recordações do Natal e a poncha devem ter feito uma mistura explosiva na cabeça do pobre Cavaco. Sob o efeito do álcool, e sem motivo aparente, o Cavaco abateu a tiro o comandante da companhia, Alferes de Artilharia, graduado em Capitão, Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz em 24 de Dezembro de 1966. Terá inclusive ferido mais militares. O Zé Neto, que estava a exercer funções de 1º sargento, teve que o esconder para ele não ser linchado.
2. Eis dois excertos das memórias do Zé Neto, publicadas no nosso blogue, na I Série:
(...) Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia .Excerto do relato do Zé Neto sobre o julgamento do Cavaco, um ano depois em Bissau.
No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia. (...)
Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.
Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM [, Polícia Militar,] e dum sistema de detecção de velocidade discutível.
O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária. (...)
O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.
Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.
Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.
Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra. Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.
Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante... é o capitão Corvacho!
Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.
Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.
Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de vai e volta. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).
Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.
Ironicamente, saliento que o meu Capitão tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói. E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.
Com torneados e floreados, foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta. Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada" - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guileje, onde morámos e combatemos cerca de um ano. (...).
(...) No final do ano [1967], eu, o Furriel Martins e o 1º Cabo Santos fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do Soldado Cavaco . O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido. O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.
Tanto eu como o Furriel e o Cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O Tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o Juiz Auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o carácter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.
Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel Presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:
-Um excelente e infeliz soldado.
A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena. (...)
______________
Nota do editor:
Último poste da série > 22 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9249: À margem da história oficial ou oficiosa (1): Revolta, em Guidaje, da martirizada CCAÇ 19 (Manuel Marinho, 1ª C/BCAÇ 4512; José Martins, CCAÇ 5)
Guiné 63/74 - P9255: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (7): Onde não mora o Natal. Mensagem do José Eduardo liveira (JERO)
1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:
Camaradas,
Guardei-me prás "últimas" para vos mandar um pequeno texto e votos de Boas Festas.
Para vós e todas as vossas famílias. E obviamente para toda a gente que colabora e gosta do nosso blogue.
Para vós e todas as vossas famílias. E obviamente para toda a gente que colabora e gosta do nosso blogue.
PS- O conto que envio é baseado em factos reais. Infelizmente não é ficção. Antes fosse.
De certo modo tem a ver com a "estória" do Alfero Cabral e do miúdo Sitafá, que não sabia onde morava o Natal.
Ainda há muita gente que sabe que há Natal mas que mora muito longe...
Ainda há muita gente que sabe que há Natal mas que mora muito longe...
A casa da Dª. Micas ficava ao fundo da rua apertada da sua terra de sempre. A aldeia da Boavista. Por ironia do destino ao fundo da rua não havia nem boa vista …nem nada…
Quando se abria a porta da velha casa os cheiros a mofo, a podridão, a miséria batiam-nos violentamente.
Passada a ombreira da velha porta entrava-se num mundo de odores, que se entranhavam rapidamente nas nossas roupas. Talvez até mais fundo. Na nossa pele, no nosso coração, na nossa alma…
Os 92 anos mirrados da Dª. Micas, que estava lá ao fundo, na sua cama obrigavam-nos – sem respirar fundo – a um esforço suplementar para sorrir e dizer “bom dia”.
Porque a Dª. Micas nas suas longas horas de solidão esperava pela chegada da senhora do “apoio domiciliário”…há que tempos.
Ia ter o seu tempo de companhia e de “higiene”, palavra quase absurda naquele espaço em adiantado estado de pobreza, de miséria, onde o mau cheiro se sobrepunha a tudo.
A antiga casa da velha aldeia tinha duas salas e um simulacro de cozinha, com uma pequena lareira e uma chaminé.
A Dª. Micas tinha 3 filhos que tenham decidido revestir o interior da chaminé com plásticos negros. Mas em relação às paredes da sala tinham sido mais imaginativos. As 4 paredes estavam “decoradas” com papel de embrulho…com palhaços! O aspecto final era difícil de classificar. Palhaços amarelecidos…a sorrir ali…naquele local.
A intenção até podia ter sido boa – e vamos acreditar que sim – mas que destoava um bocado…destoava!
Acabados os cuidados de “higiene” a Dª. Micas ficava sentada num velho cadeirão. Envolta por um velho lençol que parecia “amarrá-la” mas que servia para não se desequilibrar e cair. Um dos filhos, no final do seu dia de trabalho, arranjaria um bocadinho para passar por sua casa e deitá-la. Onde ficaria a dormitar e à espera da visita do dia seguinte da senhora do “apoio domiciliário”…
E o que a Dª. Micas dizia dos seus filhos? Defendia-as com “unhas e dentes” e dizia que eram “bons filhos”.
Fechada a porta quem saía trazia os cheiros. De uma casa velha, com palhaços a forrar paredes sem tempo. A rua estreita subia até se ver a Boavista. E os vales circundantes com o pinhal de Leiria lá muito ao fundo.
Será que era lá ao longe, para lá das alturas do Monte de São Bartolomeu, que morava o Natal?
Ali, na velha casa da Dª. Micas, não era com certeza. E não estávamos no fim do mundo.
Alcobaça, com o seu Mosteiro Património Mundial, e com as suas ruas com enfeites de Natal, estava a meia dúzia de minutos… De carro.
Amanhã é outro dia. Para se fazerem as últimas compras e para desejar um “Feliz Natal”.
Boas Festas.
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675
___________
Nota de M.R.:
22 DE DEZEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P9251: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (5): Mensagens de Albino Silva, José Mussá Biai e Tabanca de Matosinhos
Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2011:
Queridos amigos,
Estes “recortes” são de indiscutível interesse no que toca à história da Guiné-Bissau pós-independência. Não se conhece outro compêndio, na actualidade, com tão basta informação quanto às décadas mais recentes.
Quando encomendei a obra, a Fundação Fé e Cooperação, a organização não-governamental portuguesa operante nas áreas de educação para o desenvolvimento na Guiné-Bissau, enviou-me documentação referente às suas actividades e sugere a presentes solidários. Por 7 euros receberá um postal solidário que tem a ver com uma maleta de documentos para a Guiné-Bissau. Menciona-se concretamente: ofereça medicamentos às cerca de 19 mil crianças e 1600 mulheres grávidas atendidas nos centros de recuperação nutricional e casas da mães na Guiné-Bissau. Este presente irá contribuir para a significativa melhoria da saúde das mulheres e crianças guineenses.
Para mais informações contactar www.presentessolidarios.pt.
Para comprar os recortes, o ideal é fazê-lo através do email geral@fecongd.org.
Um abraço do
Mário
Recortes da história da Guiné-Bissau
Beja Santos
“Recortes da história da Guiné-Bissau 1900 - 2005” é um apanhado de dados históricos que podem ajudar a compreender cerca de um século da Guiné-Bissau. A obra foi coordenada por Catarina Lopes, numa edição da FEC – Fundação Fé e Cooperação, uma organização não-governamental vocacionada para actuar nas áreas da educação para o desenvolvimento e advocacia social (www.fecongd.org). A FEC trabalha estreitamente com a CIEE – Comissão Interdiocesana de Educação e Ensino, que é um organismo da Igreja Católica responsável pela coordenação da educação nas escolas geridas directa ou indirectamente pelas Dioceses de Bissau e Bafatá.
A obra tem dois prefácios, da autoria do escritor Abdulai Silá e do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro apela a que se decomponha o mito a favor do senso ou da consciência histórica, enaltece estes “recortes” por proporcionarem o momento de reflexão sobre o passado histórico da região, considerando que a publicação refere abundantemente os factos da história recente da Guiné-Bissau sem nódoas nem mágoas. O segundo considera esta iniciativa uma magnífica surpresa, ela preenche um vazio quase absoluto, aparece como um valiosíssimo e utilíssimo compêndio da história recente da Guiné-Bissau, de consulta obrigatória.
Depois de um enquadramento sinóptico que vai desde o Império do Mali até à conferência de Berlim, somos mergulhados na definição das fronteiras do território da Guiné, nas campanhas de pacificação e num aceso de lutas em torno do imposto de palhota. Na época, o comércio externo da Guiné aparece dominado por sete casas comerciais, com destaque para franceses, alemães, belgas e franco-ingleses, os portugueses estão francamente minoritários. Com a República, a Guiné é dividida em dois municípios e sete circunscrições civis.
Os grandes acontecimentos da segunda década giram à volta das campanhas de Teixeira Pinto e da obra deixada pelo governador Velez Caroço, a ele se deve o mérito de transformar um território meramente fluvial em terrestre. Os anos 30 ficaram marcados pelo regime de indigenato, pela Casa Gouveia ter ser sido entregue à CUF, em quem se delegou, em 1927, o monopólio da exploração dos recursos económicos da Guiné. Com os anos 30, emerge a mística imperial e conclui-se o trabalho da pacificação. Em 1945, a colónia tem um governador de grande categoria, o comandante Sarmento Rodrigues, entrou-se numa nova fase da colonização da Guiné por intervenções em diversas áreas: sanitária, científica, cultural, económica e social. De acordo com o primeiro recenseamento populacional da Guiné, em 1950, a população “civilizada” era composta por 8320 indivíduos e a restante população, os indígenas, eram cerca de meio milhão. É uma década em que vai vibrar uma onda de descolonização, Amílcar Cabral vai trabalhar no recenseamento agrícola e em 1955 um grupo de civilizados criou um movimento de independência, que teve uma vida efémera. O PAIGC tem usado a data de 19 de Setembro de 1956 como o momento da criação do PAIGC, a historiografia moderna contesta tal facto, mas no fim da década assiste-se à independência de muitos estados africanos e em 3 de Agosto de 1959 ocorre o massacre do Pidjiquiti, acontecimento emblemático que irá acarretar uma nova estratégia de actuação do movimento de libertação.
As décadas 60 e 70 estarão centradas na luta armada e na independência. Estes “recortes” têm muitas entradas de 1976 a 2005: fracasso do modelo pós-independência, golpes de Estado ou seus simulacros, afundamento económico, a chegada do multipartidarismo, a estruturação da dependência crónica da ajuda externa e em Junho de 1998 inicia-se um doloroso conflito político-militar tendo em campos opostos Nino Vieira e a Junta Militar dirigida por Ansumane Mané. Em Janeiro de 2000, Kumba Ialá foi eleito presidente, os conflitos militares não desapareceram, Ansumane Mané acabará executado, entrara-se numa nova era de instabilidade que culminará com o afastamento do presidente graças a um golpe militar tendo à frente o general Veríssimo Seabra. Sempre a viver na transitoriedade, e numa segunda volta de eleições presidenciais, Nino Vieira, que regressara depois de um exílio em Portugal é empossado na presidência. Mas não se fechou o ciclo das turbulências em que se encontra a Guiné-Bissau, um dos seis países mais pobres do mundo e em que dois terços da sua população vivem com menos de dois dólares americanos por dia.
Concluído este repertório de recortes, o compêndio agrega biografias de figuras representativas, desde Honório Pereira Barreto, passando por Amílcar Cabral e Vasco Cabral, até Malã Bacai Sanhá. Outra secção contempla figuras proeminentes das artes, cultura e sociedade, temos ali Berta Oliveira Bento (à frente da lendária Pensão Central), Braima Galissá, Carlos Lopes, Flora Gomes, José Carlos Schwartz, Odete Semedo, Tabanca Djazz e Tony Tcheka. O leitor é também brindado com uma importante bibliografia, indicação de sites e de organizações não-governamentais com inequívoco trabalho no terreno. Como em todas as obras deste tipo, aqui e acolá há algumas imprecisões que certamente irão aparecer corrigidas em nova edição.
Estes “recortes” passarão a ser propriedade do nosso blogue.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9231: Notas de leitura (313): Três Tiros da Pide, de Oleg Ygnatiev (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Estes “recortes” são de indiscutível interesse no que toca à história da Guiné-Bissau pós-independência. Não se conhece outro compêndio, na actualidade, com tão basta informação quanto às décadas mais recentes.
Quando encomendei a obra, a Fundação Fé e Cooperação, a organização não-governamental portuguesa operante nas áreas de educação para o desenvolvimento na Guiné-Bissau, enviou-me documentação referente às suas actividades e sugere a presentes solidários. Por 7 euros receberá um postal solidário que tem a ver com uma maleta de documentos para a Guiné-Bissau. Menciona-se concretamente: ofereça medicamentos às cerca de 19 mil crianças e 1600 mulheres grávidas atendidas nos centros de recuperação nutricional e casas da mães na Guiné-Bissau. Este presente irá contribuir para a significativa melhoria da saúde das mulheres e crianças guineenses.
Para mais informações contactar www.presentessolidarios.pt.
Para comprar os recortes, o ideal é fazê-lo através do email geral@fecongd.org.
Um abraço do
Mário
Recortes da história da Guiné-Bissau
Beja Santos
“Recortes da história da Guiné-Bissau 1900 - 2005” é um apanhado de dados históricos que podem ajudar a compreender cerca de um século da Guiné-Bissau. A obra foi coordenada por Catarina Lopes, numa edição da FEC – Fundação Fé e Cooperação, uma organização não-governamental vocacionada para actuar nas áreas da educação para o desenvolvimento e advocacia social (www.fecongd.org). A FEC trabalha estreitamente com a CIEE – Comissão Interdiocesana de Educação e Ensino, que é um organismo da Igreja Católica responsável pela coordenação da educação nas escolas geridas directa ou indirectamente pelas Dioceses de Bissau e Bafatá.
A obra tem dois prefácios, da autoria do escritor Abdulai Silá e do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro apela a que se decomponha o mito a favor do senso ou da consciência histórica, enaltece estes “recortes” por proporcionarem o momento de reflexão sobre o passado histórico da região, considerando que a publicação refere abundantemente os factos da história recente da Guiné-Bissau sem nódoas nem mágoas. O segundo considera esta iniciativa uma magnífica surpresa, ela preenche um vazio quase absoluto, aparece como um valiosíssimo e utilíssimo compêndio da história recente da Guiné-Bissau, de consulta obrigatória.
Depois de um enquadramento sinóptico que vai desde o Império do Mali até à conferência de Berlim, somos mergulhados na definição das fronteiras do território da Guiné, nas campanhas de pacificação e num aceso de lutas em torno do imposto de palhota. Na época, o comércio externo da Guiné aparece dominado por sete casas comerciais, com destaque para franceses, alemães, belgas e franco-ingleses, os portugueses estão francamente minoritários. Com a República, a Guiné é dividida em dois municípios e sete circunscrições civis.
Os grandes acontecimentos da segunda década giram à volta das campanhas de Teixeira Pinto e da obra deixada pelo governador Velez Caroço, a ele se deve o mérito de transformar um território meramente fluvial em terrestre. Os anos 30 ficaram marcados pelo regime de indigenato, pela Casa Gouveia ter ser sido entregue à CUF, em quem se delegou, em 1927, o monopólio da exploração dos recursos económicos da Guiné. Com os anos 30, emerge a mística imperial e conclui-se o trabalho da pacificação. Em 1945, a colónia tem um governador de grande categoria, o comandante Sarmento Rodrigues, entrou-se numa nova fase da colonização da Guiné por intervenções em diversas áreas: sanitária, científica, cultural, económica e social. De acordo com o primeiro recenseamento populacional da Guiné, em 1950, a população “civilizada” era composta por 8320 indivíduos e a restante população, os indígenas, eram cerca de meio milhão. É uma década em que vai vibrar uma onda de descolonização, Amílcar Cabral vai trabalhar no recenseamento agrícola e em 1955 um grupo de civilizados criou um movimento de independência, que teve uma vida efémera. O PAIGC tem usado a data de 19 de Setembro de 1956 como o momento da criação do PAIGC, a historiografia moderna contesta tal facto, mas no fim da década assiste-se à independência de muitos estados africanos e em 3 de Agosto de 1959 ocorre o massacre do Pidjiquiti, acontecimento emblemático que irá acarretar uma nova estratégia de actuação do movimento de libertação.
As décadas 60 e 70 estarão centradas na luta armada e na independência. Estes “recortes” têm muitas entradas de 1976 a 2005: fracasso do modelo pós-independência, golpes de Estado ou seus simulacros, afundamento económico, a chegada do multipartidarismo, a estruturação da dependência crónica da ajuda externa e em Junho de 1998 inicia-se um doloroso conflito político-militar tendo em campos opostos Nino Vieira e a Junta Militar dirigida por Ansumane Mané. Em Janeiro de 2000, Kumba Ialá foi eleito presidente, os conflitos militares não desapareceram, Ansumane Mané acabará executado, entrara-se numa nova era de instabilidade que culminará com o afastamento do presidente graças a um golpe militar tendo à frente o general Veríssimo Seabra. Sempre a viver na transitoriedade, e numa segunda volta de eleições presidenciais, Nino Vieira, que regressara depois de um exílio em Portugal é empossado na presidência. Mas não se fechou o ciclo das turbulências em que se encontra a Guiné-Bissau, um dos seis países mais pobres do mundo e em que dois terços da sua população vivem com menos de dois dólares americanos por dia.
Concluído este repertório de recortes, o compêndio agrega biografias de figuras representativas, desde Honório Pereira Barreto, passando por Amílcar Cabral e Vasco Cabral, até Malã Bacai Sanhá. Outra secção contempla figuras proeminentes das artes, cultura e sociedade, temos ali Berta Oliveira Bento (à frente da lendária Pensão Central), Braima Galissá, Carlos Lopes, Flora Gomes, José Carlos Schwartz, Odete Semedo, Tabanca Djazz e Tony Tcheka. O leitor é também brindado com uma importante bibliografia, indicação de sites e de organizações não-governamentais com inequívoco trabalho no terreno. Como em todas as obras deste tipo, aqui e acolá há algumas imprecisões que certamente irão aparecer corrigidas em nova edição.
Estes “recortes” passarão a ser propriedade do nosso blogue.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9231: Notas de leitura (313): Três Tiros da Pide, de Oleg Ygnatiev (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P9253: Parabéns a você (357): Albano Costa, ex-1.º Cabo da CCAÇ 4150/73 (Guiné, 1973/74), Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/STM/QG (Guiné, 1968/70) e amiga Felismina Costa
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9236: Parabéns a você (356): José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp da CCAV 8350 e CCAÇ 11 (Guiné, 1972/74)
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9236: Parabéns a você (356): José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp da CCAV 8350 e CCAÇ 11 (Guiné, 1972/74)
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
Guiné 63/74 - P9252: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (6): Mensagens dos nossos camaradas Augusto Silva Santos, Fernandino Vigário, Luiz Fonseca, Manuel Resende, Ernesto Duarte, António Graça de Abreu e José Barros
MENSAGENS DE NATAL DOS NOSSOS CAMARADAS
1. Do nosso camarada Augusto Silva Santos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73:
Com votos de Feliz Natal
************
2. Do nosso camarada Fernandino Vigário, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69:
Camaradas e amigos,
Que o espírito de Natal permaneça no coração de todos vós todos os dias do ano junto dos vossos familiares.
Saudações Natalícias.
Fernandino Vigário.
************
3. De Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms, CCAV 3366/BCAV 3846, Suzana Varela , 1971/73:
Com os meus mais sinceros votos de óptima Quadra Festiva
************
4. Mensagem de Manuel Resende, ex-Alf Mil da CCaç 2585, BCaç 2884, que esteve em Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71:
Caros amigos e camaradas,
Como já todos devem ter recebido imensos postais com muitas luzinhas a piscar e muita neve, eu apenas quero desejar a todos que tenham um bom Natal no aconchego das famílias, e que o próximo ano seja o melhor possível, apesar do desconforto da crise.
Que o Menino não se esqueça dos nossos amigos camaradas que mais precisam.
Um Santo Natal para todos
Manuel Resende
************
5. Do nosso camarada Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67:
Caro Amigo Carlos Esteves Vinhal
Dirijo-te mais duas linhas, antigo camarada, não de glórias, mas de cumpridores de imposições desagradáveis!
Eu fiz a minha vida, mas nunca consegui esquecer e convivo mal com o depois de tantos apelos à paz, ver guerras nascerem todos os dias, o homem é hipócrita, logo eu sou hipócrita.
Mas tentar esquecer, e é Natal e já que o homem em dois mil anos, não conseguiu criar mais que um, pois que se apele às nossas forças, para que se viva esta quadra em espírito de Natal com paz e amor.
Através de ti bom amigo envio um grande abraço de Natal para toda a malta militar e principalmente os antigos militares que ainda andam dando vida a esta terra que os viu nascer e eles tanto amaram e amam.
BOM NATAL
FELIZ ANO NOVO
Ernesto Duarte
************
6. Mensagem do nosso camarada António Graça de Abreu, CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74, apresentando ao Blogue o Menino Jesus chinês:
************
7. Mensagem do nosso camarada José Ferreira de Barros, ex-Fur Mil At Cav, CCav 1617/BCav 1897, Mansoa, Mansabá e Olossato, 1966/68:
Caro amigo e camarada Carlos:
Tenho andado um pouco arredio da escrita no blogue, mas o trabalho de encenação de uma peça num grupo amador tem-me trazido bastante ocupado.
Esta quadra natalícia não podia deixá-la passar sem desejar aos editores, co-editores e a todos os tabanqueiros e de uma forma especial a ti, que é quem mais me atura, um SANTO NATAL E UM NOVO ANO COM MUITA SAUDE E ALEGRIA para enfrentar tanto aperto de cinto.
Porque dois Natais foram passados Além-Mar, com alguma alegria e muita amargura, aqui deixo um poema de Cabral do Nascimento que se intitula:
NATAL DE ALÉM-MAR
Não há pinheiros, não há neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz…Mas é Natal.
Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical,
Plantas da flora mais estranha,
Aves de fauna tropical.
Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre igual.
Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém, são velhas
E a noite é de Natal.
Um grande abraço
José Barros
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9251: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (5): Mensagens de Albino Silva, José Mussá Biai e Tabanca de Matosinhos
Marcadores:
António Graça de Abreu,
Augusto Silva Santos,
Ernesto Duarte,
Fernandino Vigário,
José Barros,
Luiz Fonseca,
Manuel Resende,
O nosso sapatinho de Natal
Guiné 63/74 - P9251: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (5): Mensagens de Albino Silva, José Mussá Biai e Tabanca de Matosinhos
MENSAGENS DE NATAL DOS NOSSOS CAMARADAS
1. Do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70:
************
2. Do nosso tertuliano José Mussá Biai:
Chove. É dia de Natal
Poema de Fernando Pessoa
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
UM NATAL FELIZ E UM ANO NOVO MUITO PRÓSPERO
José C. Mussá Biai
************
3. Da Tabanca de Matosinhos
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9234: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (4): Mensagens dos nossos camaradas Raul Albino, Ricardo Figueiredo, Carlos Rios, Henrique Cerqueira, Manuel Alheira, Rui Silva, Valentim Oliveira e Manuel Maia
Guiné 63/74 - P9250: Bibliografia de uma guerra (58): Pequenas partes do Lugares de Passagem aqui juntas com algum sentido (José Brás)
1. A propósito do Poste de Cherno Baldé (P9243*) recebemos do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) estas
Pequenas partes do "Lugares de Passagem", aqui juntas com algum sentido
Tenho visto que choras
Filipe, de vez em quando.
Tenho visto e não entendo o teu chorar.
Choras quando te julgas só, perdido no andar apressado entre o bar e o teu quarto, sentado na cama, cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos na cara, abertas, cobrindo-te o rosto quase todo e deixando os olhos na sombra dos dedos.
Sei que choras porque fungas forte, e limpas os olhos às costas da mão direita, retomando logo a postura de antes e deixando ver as marcas húmidas na mão, reflectindo a luz forte que entra pela porta entreaberta.
E não entendo,
de novo o digo. Não entendo porque te sei corajoso e paciente, e que esperas da vida coisa melhor do que esta que aqui tens, voltando à tua terra, à tua gente, à tua luta.
Não estou
a queixar-me, juro, tenho a minha sina feita, filho pequeno, homem na guerrilha que tu não conheces, de ver próprio na figura, mas conheces da minha fala sobre ele, sobre falta que me faz, pessoa bondosa e valente, enfilado na mata há dois ou três anos na nossa luta por nossa terra.
Conto a ti
porque te conheço já, porque te confio certo, nos olhos de verdade. Só homem grande de Tabanca é que sabia antes, que saímos de Bissau naquele tempo, justo para ingressar na luta do Amílcar Cabral, e agora sabes tu, também.
Sabes que
voltou três vezes a visitar morança, chegando aqui na luz do dia, ficando dentro de casa deitado, puxando eu na cama para brincar, olhando, olhando cansado, fazendo sem vontade este meu filho pequeno que se alimenta do que ganho lavando roupa de soldado.
E tu sabes
que soldado é abusador, sempre querendo meter mão em perna, subir em cueca. Não digo por raiva a eles, aqui nesta terra longe de mulher esposa ou amásia, tudo novo, idade de querer brincar, saudade de outro sol, de outro vento, de caminho velho e de brincadeira com branca no pinhal.
Tu é diferente.
Gosto. Não tens brutidades como outros gajos. Não vieste de mão a mexer em braços, em seios, em catota. Demoraste tempo, tratando-me sempre bem, pagando lavagem melhor que outros, ajudando filho com lata de leite.
Quando vinhas
e trazias que comer na minha morança, ou pano novo, ou remédio que te pedia, eu pensava é hoje que ele quer brincar, açúcar, sal, farinha é paga de cama, como fazem outros, soldados e até alferes e capitão.
E ficava descansada
no princípio, vendo-te apenas olhar meu trabalho, uma luzinha aguada nos olhos, parecia que querias mas afastavas-te de volta ao quartel, sem a ofensa que eu queria que fizesses, deixando dúvida, achando que talvez nem fosses homem inteiro, que não gostasses de mulher.
Comecei a esperar
que chegasses com roupa para lavar ou com ajuda ou mesmo sem nada como vinhas muitas vezes, apenas para partir conversa, para perguntar coisas. Não notícias de marido ou informação da luta, antes outras coisas simples de vida, para dizeres só, bem, vou embora, até amanhã, escondendo teus olhos de água e teu pau gordo dentro de calção fechado.
Ia eu no quartel
e não deixava tua roupa sobre a cama, como outras faziam, sem que viesses recebê-la tu e às vezes inventava uma coisinha como desculpa para ficar contigo um pequeno tempo em quarto, desejando que partisses acanhamento e me empurrasses para dentro de mosquiteiro, sabendo que teus companheiros se iam logo para o bar.
Num dia
disseste, Mominato, ficaste tempinho calado, e avançaste a mão no meu rosto, afagando, pedindo desculpa querendo retirar a mão que eu agarrei logo e não queria que retirasses.
Olhaste-me
por dentro e encostaste teu peito. Olhavas minha cara e sentia-te nervoso mas cheio de vontade de brincar, abraçando-me e deitando meu corpo sobre tua cama, desatando meus panos com pressa e me tendo nua por debaixo.
Passaste
a ser meu homem de verdade todos os dias e quando marido visitou, encontrou-me doente porque pediste a doutor remédio que fingisse eu tomar, querendo não melhorar de doença que não tinha até que partisse de novo na luta armada.
Sabia que irias partir,
deixar este quartel. Ou que poderias ser morto ou ferido que eram outras formas de partires e nessas horas de pensar mal, sentia pernas fracas e desejo de chorar o choro que não via em ti. E ria. Ria por dentro de mim, também como tu no choro, mas ao contrário, do gosto que me davas então e de desejo que não partisses nunca.
E agora tenho
visto que choras sozinho, escondido dos outros e até já te vi olho vermelho que escondes de toda a gente, fazendo-te o que não és, partindo teu sentimento, afogando teu sentir recto de ser gente, nessa tua forma de ser humano como deve ser.
Teu amigo
João morreu de mina na picada de Xamarra e tu não choraste. Vi-te preso por dentro, cheio de raiva, a ira a rebentar e a rebentar-te, a alma atada na fraqueza de remediar coisas, de pôr tudo como antes. Mas não choraste, ou pelo menos não te vi chorar.
E não choraste
por teu amigo Sebas, como lhe chamavas e me disseste ser nome pequeno de Sebastião, morreu de tiro na perna, furinho só, que mal se via e o matou pouco a pouco, helicóptero a querer vir a chão para evacuar e rajadas de PAIGC, quem sabe se de meu homem guerrilheiro, a não deixarem, o Sebas a morrer devagar, em teus braços, sobre tuas pernas, como vela, dizias depois, como vela que arde e se apaga lentamente gastando a cera.
Tenho fé que
choravas de verdade, à noite, sozinho no escuro do quarto, mais que esse choro que te via sem sair. Choravas de verdade porque não pode um homem abrigar só dentro de si, tamanha dor, tão enorme solidão, sem a soltar, manso e só como julgo que fazias, ou bravo e gritando, dando murros no ar e nos tampos de mesas como fazia Vilar, alferes do terceiro.
E também choraste,
eu sei, quando notícia chegou sobre morte de marido de mim, e aí te vi lágrimas querendo rebentar, segurando mãozinhas de Adulai, meu filho, e meu filho agora só de mãe, pequeno e tão perto de mortes já, das mortes tuas de companheiros brancos e de mortes tuas também, de pai de meu filho, de guerrilheiros negros de PAIGC, guerrilheiros da liberdade, como dizias e eu acreditava serem.
Percebi, então
que mundo não era assim pequeno como morança de tabanca, como lavra de mancarra, como estrada de Buba, como caminho de batelão para o Bissau, teu mundo era maior que diferença entre tropa branca e tropa guerrilheira, maior que Lisboa, maior que mar de navio para Lisboa e era isso que te trazia tão de raiva contra mortes de brancos e de pretos, contra os dias abafados, contra as fomes que vias no povo da tabanca, nos pratos pequenos dos soldados, no quartel do Quebo e nas suas mesas de aldeia portuguesa.
Nesse tempo
de alegria triste, muito queria eu abraçar teu corpo branco e preto, deitar tua cabeça em meu colo, consolar tua fraqueza de homem, deixar que entrasses em mim dorido, chorando, me molhasses de lágrimas tuas, e de mim saísses inteiro e novo porque sei, desde que conheço minha vida, que mulher tem esse dom, essa força de terra que germina e pare filho e dá força a homem quando vacila e sofre.
Agora estou aqui,
de cabeça maluca esperando teu chegar em minha casa, de manhã, de tarde, ou eu ir no quartel mesmo sem roupa lavada, só para me tirares panos, deitares comigo, fazer amor, como dizes e eu não sabia o que era mas agora sei porque faço como nunca fiz em Umaru, e penso em ti sempre e tenho medo que vás.
Descobri que
essas palavras de filha de senhora de sentir paixão por homem, de querer um só, de desejo de brincar sempre, não é só de gente branca mas é também de gente negra, de mulher negra com branco ou com negro, também, de homem branco por negra.
Ensinaste-me
querer brincar sem obrigação, só de vontade, de vontade de sentir corpo todo na tremura, de quase morrer cansada e de voltar à vida devagar, devagarinho, recuperar forças e querer mais, de novo, voltar ao desmaio e reanimar, tu comigo, sem querer acabar.
Só acontece
a mulher, bajuda ou grande, se não é fanada em criança, dizes tu, crime grande se faz nessa prática que mata parte de espírito de ser humano, desejo e prazer, e eu acho também, agora, ser verdade por conversa de fonte com mulheres de aldeia.
E mesmo que
branca, muitas, sem fanação, dizes que sofrem dessa falta também por homem ser egoísta e querer só gozo de seu corpo, sem respeitar direito de mulher, gostando só de si próprio e não de esposa ou de amásia, conforme caso.
Não sei que
vai ser de minha vida quando fores. Dizes que estarei um tempo sem homem e como se fosse viúva, agora viúva de verdade sentida, e depois outra gente branca virá e eu serei lavadeira de outro e amásia de vontade se ele for bom pessoal e à força se for besta.
Pode ser
que sim, como dizes agora com essa mágoa que te vejo nos olhos, e se a vejo, fico triste como se fosse hoje o dia de saíres, o dia de chorar muito por não te ver amanhã, ficando eu no choro que eu disse tu tens e não entendo.
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9243: Memórias do Chico, menino e moço (32): Havia lavadeiras e... lavadeiras: o caso das minhas duas irmãs (Cherno Baldé)
Vd. último poste da série de 13 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6727: Bibliografia de uma guerra (57): Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota, a publicar em Setembro de 2010 (Mário Beja Santos)
Pequenas partes do "Lugares de Passagem", aqui juntas com algum sentido
Tenho visto que choras
Filipe, de vez em quando.
Tenho visto e não entendo o teu chorar.
Choras quando te julgas só, perdido no andar apressado entre o bar e o teu quarto, sentado na cama, cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos na cara, abertas, cobrindo-te o rosto quase todo e deixando os olhos na sombra dos dedos.
Sei que choras porque fungas forte, e limpas os olhos às costas da mão direita, retomando logo a postura de antes e deixando ver as marcas húmidas na mão, reflectindo a luz forte que entra pela porta entreaberta.
E não entendo,
de novo o digo. Não entendo porque te sei corajoso e paciente, e que esperas da vida coisa melhor do que esta que aqui tens, voltando à tua terra, à tua gente, à tua luta.
Não estou
a queixar-me, juro, tenho a minha sina feita, filho pequeno, homem na guerrilha que tu não conheces, de ver próprio na figura, mas conheces da minha fala sobre ele, sobre falta que me faz, pessoa bondosa e valente, enfilado na mata há dois ou três anos na nossa luta por nossa terra.
Conto a ti
porque te conheço já, porque te confio certo, nos olhos de verdade. Só homem grande de Tabanca é que sabia antes, que saímos de Bissau naquele tempo, justo para ingressar na luta do Amílcar Cabral, e agora sabes tu, também.
Sabes que
voltou três vezes a visitar morança, chegando aqui na luz do dia, ficando dentro de casa deitado, puxando eu na cama para brincar, olhando, olhando cansado, fazendo sem vontade este meu filho pequeno que se alimenta do que ganho lavando roupa de soldado.
E tu sabes
que soldado é abusador, sempre querendo meter mão em perna, subir em cueca. Não digo por raiva a eles, aqui nesta terra longe de mulher esposa ou amásia, tudo novo, idade de querer brincar, saudade de outro sol, de outro vento, de caminho velho e de brincadeira com branca no pinhal.
Tu é diferente.
Gosto. Não tens brutidades como outros gajos. Não vieste de mão a mexer em braços, em seios, em catota. Demoraste tempo, tratando-me sempre bem, pagando lavagem melhor que outros, ajudando filho com lata de leite.
Quando vinhas
e trazias que comer na minha morança, ou pano novo, ou remédio que te pedia, eu pensava é hoje que ele quer brincar, açúcar, sal, farinha é paga de cama, como fazem outros, soldados e até alferes e capitão.
E ficava descansada
no princípio, vendo-te apenas olhar meu trabalho, uma luzinha aguada nos olhos, parecia que querias mas afastavas-te de volta ao quartel, sem a ofensa que eu queria que fizesses, deixando dúvida, achando que talvez nem fosses homem inteiro, que não gostasses de mulher.
Comecei a esperar
que chegasses com roupa para lavar ou com ajuda ou mesmo sem nada como vinhas muitas vezes, apenas para partir conversa, para perguntar coisas. Não notícias de marido ou informação da luta, antes outras coisas simples de vida, para dizeres só, bem, vou embora, até amanhã, escondendo teus olhos de água e teu pau gordo dentro de calção fechado.
Ia eu no quartel
e não deixava tua roupa sobre a cama, como outras faziam, sem que viesses recebê-la tu e às vezes inventava uma coisinha como desculpa para ficar contigo um pequeno tempo em quarto, desejando que partisses acanhamento e me empurrasses para dentro de mosquiteiro, sabendo que teus companheiros se iam logo para o bar.
Num dia
disseste, Mominato, ficaste tempinho calado, e avançaste a mão no meu rosto, afagando, pedindo desculpa querendo retirar a mão que eu agarrei logo e não queria que retirasses.
Olhaste-me
por dentro e encostaste teu peito. Olhavas minha cara e sentia-te nervoso mas cheio de vontade de brincar, abraçando-me e deitando meu corpo sobre tua cama, desatando meus panos com pressa e me tendo nua por debaixo.
Passaste
a ser meu homem de verdade todos os dias e quando marido visitou, encontrou-me doente porque pediste a doutor remédio que fingisse eu tomar, querendo não melhorar de doença que não tinha até que partisse de novo na luta armada.
Sabia que irias partir,
deixar este quartel. Ou que poderias ser morto ou ferido que eram outras formas de partires e nessas horas de pensar mal, sentia pernas fracas e desejo de chorar o choro que não via em ti. E ria. Ria por dentro de mim, também como tu no choro, mas ao contrário, do gosto que me davas então e de desejo que não partisses nunca.
E agora tenho
visto que choras sozinho, escondido dos outros e até já te vi olho vermelho que escondes de toda a gente, fazendo-te o que não és, partindo teu sentimento, afogando teu sentir recto de ser gente, nessa tua forma de ser humano como deve ser.
Teu amigo
João morreu de mina na picada de Xamarra e tu não choraste. Vi-te preso por dentro, cheio de raiva, a ira a rebentar e a rebentar-te, a alma atada na fraqueza de remediar coisas, de pôr tudo como antes. Mas não choraste, ou pelo menos não te vi chorar.
E não choraste
por teu amigo Sebas, como lhe chamavas e me disseste ser nome pequeno de Sebastião, morreu de tiro na perna, furinho só, que mal se via e o matou pouco a pouco, helicóptero a querer vir a chão para evacuar e rajadas de PAIGC, quem sabe se de meu homem guerrilheiro, a não deixarem, o Sebas a morrer devagar, em teus braços, sobre tuas pernas, como vela, dizias depois, como vela que arde e se apaga lentamente gastando a cera.
Tenho fé que
choravas de verdade, à noite, sozinho no escuro do quarto, mais que esse choro que te via sem sair. Choravas de verdade porque não pode um homem abrigar só dentro de si, tamanha dor, tão enorme solidão, sem a soltar, manso e só como julgo que fazias, ou bravo e gritando, dando murros no ar e nos tampos de mesas como fazia Vilar, alferes do terceiro.
E também choraste,
eu sei, quando notícia chegou sobre morte de marido de mim, e aí te vi lágrimas querendo rebentar, segurando mãozinhas de Adulai, meu filho, e meu filho agora só de mãe, pequeno e tão perto de mortes já, das mortes tuas de companheiros brancos e de mortes tuas também, de pai de meu filho, de guerrilheiros negros de PAIGC, guerrilheiros da liberdade, como dizias e eu acreditava serem.
Percebi, então
que mundo não era assim pequeno como morança de tabanca, como lavra de mancarra, como estrada de Buba, como caminho de batelão para o Bissau, teu mundo era maior que diferença entre tropa branca e tropa guerrilheira, maior que Lisboa, maior que mar de navio para Lisboa e era isso que te trazia tão de raiva contra mortes de brancos e de pretos, contra os dias abafados, contra as fomes que vias no povo da tabanca, nos pratos pequenos dos soldados, no quartel do Quebo e nas suas mesas de aldeia portuguesa.
Nesse tempo
de alegria triste, muito queria eu abraçar teu corpo branco e preto, deitar tua cabeça em meu colo, consolar tua fraqueza de homem, deixar que entrasses em mim dorido, chorando, me molhasses de lágrimas tuas, e de mim saísses inteiro e novo porque sei, desde que conheço minha vida, que mulher tem esse dom, essa força de terra que germina e pare filho e dá força a homem quando vacila e sofre.
Agora estou aqui,
de cabeça maluca esperando teu chegar em minha casa, de manhã, de tarde, ou eu ir no quartel mesmo sem roupa lavada, só para me tirares panos, deitares comigo, fazer amor, como dizes e eu não sabia o que era mas agora sei porque faço como nunca fiz em Umaru, e penso em ti sempre e tenho medo que vás.
Descobri que
essas palavras de filha de senhora de sentir paixão por homem, de querer um só, de desejo de brincar sempre, não é só de gente branca mas é também de gente negra, de mulher negra com branco ou com negro, também, de homem branco por negra.
Ensinaste-me
querer brincar sem obrigação, só de vontade, de vontade de sentir corpo todo na tremura, de quase morrer cansada e de voltar à vida devagar, devagarinho, recuperar forças e querer mais, de novo, voltar ao desmaio e reanimar, tu comigo, sem querer acabar.
Só acontece
a mulher, bajuda ou grande, se não é fanada em criança, dizes tu, crime grande se faz nessa prática que mata parte de espírito de ser humano, desejo e prazer, e eu acho também, agora, ser verdade por conversa de fonte com mulheres de aldeia.
E mesmo que
branca, muitas, sem fanação, dizes que sofrem dessa falta também por homem ser egoísta e querer só gozo de seu corpo, sem respeitar direito de mulher, gostando só de si próprio e não de esposa ou de amásia, conforme caso.
Não sei que
vai ser de minha vida quando fores. Dizes que estarei um tempo sem homem e como se fosse viúva, agora viúva de verdade sentida, e depois outra gente branca virá e eu serei lavadeira de outro e amásia de vontade se ele for bom pessoal e à força se for besta.
Pode ser
que sim, como dizes agora com essa mágoa que te vejo nos olhos, e se a vejo, fico triste como se fosse hoje o dia de saíres, o dia de chorar muito por não te ver amanhã, ficando eu no choro que eu disse tu tens e não entendo.
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9243: Memórias do Chico, menino e moço (32): Havia lavadeiras e... lavadeiras: o caso das minhas duas irmãs (Cherno Baldé)
Vd. último poste da série de 13 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6727: Bibliografia de uma guerra (57): Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota, a publicar em Setembro de 2010 (Mário Beja Santos)
Subscrever:
Mensagens (Atom)