1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 13 de Fevereiro de 2012:
Queridos amigos,
Mais algumas anotações sobre a versão edulcorada de uma guerra exclusivamente ditada por gente que atacava e que prontamente retirava, obrigando as Forças Armadas a um policiamento incessante. Não sendo prodigiosa estas técnicas de ocultação, a verdade é que não era possível dimensionar o ecrã da guerra, quais os efetivos, as dificuldades e, sobretudo, onde estava o inimigo e qual a sua massa específica. Muitas vezes, era pelas notas oficiosas que se ficava a saber que o conflito se estendia para lá das fronteiras. Mas a neblina informativa estava bem montada, entre “nós” e os “outros” a distância podia ser enorme ou uma pura ficção.
Um abraço do
Mário
A guerra da Guiné no Boletim Geral do Ultramar (3)
Beja Santos
Não é de mais insistir que o
Boletim publicado pela Agência-Geral do Ultramar* não é fonte de surpresas e achados sobre a evolução da guerra da Guiné. O Boletim era uma publicação oficiosa, veiculava os discursos dos governantes, noticiava eventos, encerrava doutrinação ideológica, havia recensão de obras e muita informação, até mesmo notas de ministérios. É, no entanto, um bom barómetro para se aferir o que o regime pretendia transmitir como corrente de pensamento: não existia guerra, existia uma agressão do exterior; as ações combativas tinham um termo eufemístico, eram policiamento contra um terrorismo que ameaçava populações; é deliberadamente esbatida a fronteira entre o político e o militar, quando um ministro visita uma povoação é recebido em delírio, vitorioso, aparecem sempre ali uns militares, há umas reuniões misturadas com inaugurações, etc. E durante anos deu-se uma imagem de brandos costumes e de uma enorme tenacidade a expulsar bandoleiros que acidentalmente voltavam como num movimento de eterno retorno.
Entra-se agora no ano de 1967. Estamos em Fevereiro, e chega a Bissau o ministro da Defesa Nacional, General Gomes de Araújo. Endereça uma saudação aos guineenses:
“Nesta hora de luta imposta do exterior”. E tece um elogio:
“As Forças Armadas e todos os que com ela colaboram nesta missão sagrada têm-na cumprido brilhantemente”. O ministro, surpreendentemente, não se confina às viagens da praxe: visita o Leste, incluindo Madina do Boé e Beli; almoça em Bambadinca e segue depois para Jabadá; no dia seguinte deslocou-se a Tite, Bedanda e Bolama. Depois, a 15, no percurso para Mansabá e Farim,
“teve ocasião de sobrevoar diversas obras em curso”. Presumivelmente por meios aéreos, visitou Guidage, Ingoré, Ingorezinho e S. Domingos. A 16, esteve em Cutia, Mansoa, Biambe, Bula
“onde assistiu ao regresso de elementos que recorriam de uma ação e ouviu um relato sobre a situação. Chegou a Lisboa a 20, onde discursou: posso transmitir ao país que o moral das tropas é extremamente elevado e que a consciência da missão é perfeita e que o espírito de determinação é invulgar”. E deixa bem claro:
"na Guiné não houve nem há insurreição, nem sublevação. As populações, sempre que atacadas pelos terroristas, acolhem-se ao abrigo das Forças Armadas”. Nesse mesmo mês é conferida posse ao novo secretário-geral da província da Guiné, Dr. José Manuel Marques Palmeirim.
Em Abril, graças à TAP que instituíra o Prémio Governador da Guiné, estão de férias na Metrópole o Alferes de 2.ª Linha Samba Ganha Baldé, régulo de Joladu, o Guarda de Polícia Administrativa Calilo Sibedé e o Marinheiro Fuzileiro Especial Amândio Rodrigues Coelho. Em 19 de Maio, Salazar recebe os desportistas do Ténis Clube de Bissau que vieram jogar para a Taça de Portugal. Os jornalistas logo apontam a vontade indómita dos guineenses superarem com serenidade a fúria destruidora dos terroristas a Sul do estrangeiro.
Em Junho, são contemplados com o Prémio Governador da Guiné o Soldado Manuel Aires da Costa, o Guia Auxiliar Chefe Malan Djassi e o Caçador Aleu Mari.
Em Julho, o Governador Schulz veio a Lisboa e discursa:
“O inimigo tem sido batido e tem sofrido pesadas baixas humanas e em material em todas as zonas da Província onde aparece. Enquanto o inimigo persistir nos seus traiçoeiros e cobardes ataques às populações, que de forma alguma querem esta guerra, nós ali estaremos para o bater, até que definitivamente seja expulso e nenhum resto nas terras da Guiné”. Fica-se também a saber que o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa vai promover a realização do Concurso Científico e Literário, contemplando ciências exatas (Prémio Honório Barreto), ciências especulativas (Prémio Edmundo Correia Lopes) e literatura (Prémio Sena Barcelos).
Em Setembro desse ano, temos uma nova nota oficiosa do Ministério dos Negócios Estrangeiros por causa da violação da fronteira senegalesa. Mais uma vez, é tudo um embuste, um delírio de gente maldosa. A explicação é bem simples:
“Na noite de 5 para 6 de Agosto último alguns elementos terroristas, vindos de território senegalês, atravessaram a fronteira com a província portuguesa da Guiné e atacaram a povoação de Cossolol Catetia. Neste ataque, os terroristas utilizaram morteiros, metralhadoras pesadas e pistolas-metralhadoras. A população reagiu em legítima defesa. As Forças Armadas Portuguesas, em consonância com as suas instruções permanentes, não ultrapassaram os limites do território nacional".
E assim chegamos a 1968. Logo no primeiro número, Amândio César escreve sobre o Natal na poesia portuguesa e quanto à Guiné ilustra com um poeta combatente, Armor Pires Mota e este seu poema:
Natal nos corpos caídos,
Varados pela metralha:
Jovens de olhos turvos de sangue
E angústia de metralha.
Natal nos olhos vencidos
Dos homens que fogem as ruas
As esquinas e as luas
Com medo da sua sombra.
Natal na selva entre pássaros e serpentes,
(O Menino gosta de meninos negros,
Mas nem sabem que Ele existe!).
Natal para as crianças nuas,
De mãos sujas de brincar,
Brincando nas mãos e nos olhos
Um sonho triste.
Natal nos corpos caídos,
Varados pela metralha:
Jovens de olhos turvos de sangue
E angústia de mortalha.
Natal de granadas no seio
E morte nas mãos acesas,
Não Natal!
O Almirante Thomaz visitou em Fevereiro a Guiné, viajou a bordo do paquete “Funchal”. De acordo com o boletim, a comunidade islâmica trata o presidente da República como o emir de todos os portugueses. Um fula desabafa para um jornalista:
“Se os portugueses se fossem embora, ainda tínhamos de continuar a guerra, até acabar com o último fula: isto é o que afirmam os terroristas”.
Em 28 de Março, temos uma nota do Ministério da Defesa Nacional a propósito de uma avioneta, que, devido a uma avaria, tinha aterrado em Aldeia Formosa, tratava-se de um bimotor de fabrico russo com matrícula da República da Guiné, transportava seis passageiros, todos de nacionalidade maliana, pertenciam à delegação da República do Mali à conferência dos estados confinantes com o rio do Senegal. A nota é intimidatória:
“Em mais de uma ocasião alguns grupos de terroristas, baseados na República da Guiné capturaram em território da província cinco militares portugueses, entre os quais o 1.º Sargento António de Sousa Lobato, e levaram-nos para aquele país onde os têm conservado num regime que se tem de classificar de cárcere privado. O governo português determinou o internamento do referido avião e dos tripulantes, e declara que estes só serão entregues quando forem libertados os cinco militares portugueses”.
Em Abril, na maior das discrições, Arnaldo Schulz termina a sua comissão de 4 anos. Salazar vai nomear o novo Governador e Comandante-Chefe, alguém que traz uma áurea de prestígio de Angola.
A era de Spínola vai começar.
(Continua)
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9468: Notas de leitura (331): O Boletim Geral do Ultramar (2) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 12 de Março de 2012 >
Guiné 63/74 - P9598: Notas de leitura (341): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (5) (Mário Beja Santos)