1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2019:
Queridos amigos,
A presente investigação assenta no estudo de 46 caixas de manuscritos que estão no Arquivo Histórico Ultramarino. Se dúvidas ainda subsistissem sobre a fragilidade ou diluição da presença portuguesa num espaço de nebulosos limites geográficos que teve variadíssimas designações desde Pequena Senegâmbia até aos Rios da Guiné de Cabo Verde, a documentação analisada deixa bem claro que a presença estava confinada a um conjunto pequenino de praças e presídios, que se pagava para comerciar, pagava-se e era obrigatório oferecer presentes aos régulos das redondezas; a concorrência estrangeira era omnipresente, sempre disposta a ocupar posições como acontecerá com Bolama, a tentativa de afastar os portugueses de Bissau e o processo insidioso usado pelos franceses para ir tomando gradualmente posse do Casamansa; a missionação, por razões facilmente explicáveis, foi sempre um insucesso, e tudo acabaria agravado no período liberal.
Lendo o testemunho destes manuscritos tem-se uma sequência da falta de meios, de uma tropa desordeira, que recebia a soldada a desoras; e se quaisquer dúvidas ainda houvesse que Portugal e a Guiné-Bissau têm uma dívida impagável com Honório Pereira Barreto, estes papéis falam de um mestiço que comprou do seu próprio bolso uma boa parte do território onde se desfralda a bandeira da Guiné-Bissau.
Um abraço do
Mário
Uma imersão por três séculos da Guiné Portuguesa (XVII a XIX)
Beja Santos
Trata-se de uma revisitação, já que, tempos atrás, se alertou o leitor para a importância dos documentos que o livro
“A Guiné do século XVII ao século XIX – O testemunho dos manuscritos”, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha, Prefácio, 2004, quer para o estudioso como para o curioso.
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Em primeiro lugar, os autores discreteiam, e com rigor, em torno dos grandes impérios subsarianos, de algum modo a história da Guiné pré-colonial a eles ficou associada: Gana, Mali, Songai, Fulas. No entretanto, faz-se o registo de diferentes atores que percorreram a Senegâmbia, nunca perdendo de vista o Islão e as confrarias Qadiriya e Tidjaniya, que tiveram forte expressão no norte de África e no noroeste africano.
Em segundo lugar, desvela-se a complexidade do mosaico étnico e como ele foi observado por diferentes atores (incluindo viajantes) ao longo dos séculos, desde André Alvares de Almada, que foi a grande figura da literatura de viagens à região de onde se configura a Guiné, sem abstrair, claro está, Zurara e viajantes posteriores como Lemos Coelho e Valentim Fernandes. E assim se faz o arco entre o arquipélago de Cabo Verde e a terra firme do continente fronteiro, a tentativa falhada da missionação e a numerosa correspondência dos capitães-mor de Bissau e Cacheu com o governador de Cabo Verde, sempre queixando-se do abandono, da penúria perpétua, da presença estrangeira, da agressividade dos autóctones. É uma correspondência indispensável para se conhecer o que se comerciava nas praças, o estado das fortalezas, o apelo a mais moradores brancos, os negócios que se faziam em Cacheu, Bissau, Geba, Rio do Nuno, Bijagós e Serra Leoa. Fica-se também com um quadro de referência de como a concorrência estrangeira se assenhoreara dos rios da Guiné e dos pontos considerados estratégicos. Haverá mesmo um gradual grito de alarme para a presença francesa no rio de Casamansa, as autoridades de Lisboa não deram ou não puderam dar ouvidos. É ainda dentro deste acervo de testemunhos que se vão encontrar documentos como a carta que o rei Bacampolco de Bissau enviou no final do século XVII a D. Pedro II. Os documentos falam por si: a necessidade de fazer dádivas aos régulos, modo de os fidelizar, irmos conhecendo as etnias que mais auxílios prestavam aos portugueses, ter conhecimento da deficientíssima capacidade militar das guarnições em que os militares chocavam quem chegava pelo seu estado andrajoso. E assim chegamos a uma fase altamente conflitual em que ganha expressão a questão de Bolama, mas a situação do presídio de Ziguinchor também ganha realce, são aspetos que sobressaem na correspondência que é dirigida a diferentes soberanos.
Em terceiro lugar, os autores abordam a confluência do Cristianismo, do Islão e das crenças tradicionais, é talvez o aspeto mais frágil na análise, dir-se-á que é o mais do mesmo, isto numa altura em que há bibliotecas que abordam a expansão islâmica do Norte de África para a região central, que há historiografia pertinente sobre a missionação e os seus insucessos e inúmeros trabalhos de antropólogos, etnólogos e sociólogos sobre as crenças animistas.
Em quarto lugar, procede-se a um inventário sobre o estado da Igreja no século XIX, é um olhar que merece ser considerado para se entender as dificuldades sentidas em melhorar a expansão do catolicismo, sempre confrontado com os ritos gentílicos e o islamismo difundido por Mandingas e Fulas. O Bispo de Cabo Verde não deixará de se lamuriar em permanência com o estado caótico da diocese e com a sua incapacidade de enviar eclesiásticos extintas que estavam as ordens religiosas. Fica-se com um panorama da falta de qualidade do clero ordenado, como as igrejas da Guiné estavam praticamente vazias por falta de padres, todas as propostas enviadas para a revitalização do Cristianismo esbarravam com a indiferença em Lisboa. Não deixa de ser curioso, no entanto, desta correspondência ajuntada pelos autores, ver certos governadores cheios de expetativas sobre as potencialidades guineenses. Após a separação de Cabo Verde, a Guiné era assumida como uma colónia nascente onde tudo estava por fazer. Escrevem os autores que
"A menção às potencialidades da Guiné não era inédita. António Maria Barreiros Arrobas, Governador-Geral da Província de Cabo Verde entre 1854 e 1858, sobre a Guiné informava que seria uma possessão muito mais importante que a actual Cabo Verde. O Governador-Geral seguinte falava também esperançoso da parte continental da Província de Cabo Verde, que poderia fornecer grandes recursos às ilhas, essa parte continental era pródiga pela Natureza".
Ninguém ignorava que os limites do território eram imprecisos, ninguém conhecia os seus limites geográficos. O Governador de Cabo Verde, Cabral Vieira, diria em 1878 que
"Se é fácil indicar os pontos em cuja posse estamos, onde se acham as nossas autoridades, e ainda aqueles onde o nosso domínio está mais ou menos reconhecido e aceite pelos indígenas (...) não encontro a mesma facilidade em indicar quais os limites do território a que verdadeiramente podemos dar a denominação de Guiné Portuguesa". Mais tarde, já efetuada a separação da Guiné, o Comandante de Bissau, João Rodrigues de Sá e Melo Menezes e Souto Maior, falaria sobre a amplitude do domínio da Guiné:
"Os estabelecimentos que possuímos na costa da Guiné, e que são dignos de atenção são unicamente os de Cacheu e Bissau (...) À margem do Rio de S. Domingos (...) em distância de sessenta léguas da sua embocadura a Oriente no interior do país o estabelecimento de Farim, e a dez léguas ao Norte à margem do Rio de Casamansa a Praça de Ziguinchor ambas subordinadas ao Comandante de Cacheu (...) A de Bissau (...) situada mais ao Sul em uma ilha e banhada de um rio, e no centro das terras em distância de cinquenta léguas se acha a povoação de Geba; estes lugares são os que restritamente estão debaixo da sujeição e Domínio Português, sendo todo o resto do país ocupado de gentios bárbaros (...)". Os autores elencam a legislação que tentou dar um caráter administrativo à presença portuguesa e toda esta correspondência trocada entre Bissau e Lisboa não ilude as hostilidades em volta das praças e dos presídios e fica igualmente bem claro o papel crucial desempenhado por Honório Pereira Barreto. Há um importante documento que é apresentado, tem a data de 17 de junho de 1874, é enviado por sessenta negociantes e proprietários ao governador de Cabo Verde, deixa bem claro a natureza dos perigos que eram vividos naquele território, exaltavam-se as potencialidades agrícolas, mas era reclamada uma força militar que pusesse cobro às hostilidades dos autóctones e, claro está, pediam-se menos impostos, os que existiam eram considerados insustentáveis.
Em quinto lugar, estão muito bem organizadas as conclusões da obra, dá uma súmula do que foi a missionação a par das crenças religiosas existentes. E diz-se taxativamente que até ao início do século XIX a presença portuguesa na Guiné se circunscrevia às praças, quase sempre votadas ao abandono, com as relações políticas e até as comerciais bastante controversas, frequentemente marcadas por hostilidades. E escreve-se:
“Ao longo da centúria de 1800, tal como acontecera também nos séculos XVII e XVIII, o conhecimento que os manuscritos patenteiam do “gentio” da Guiné é muitíssimo superficial; e o alheamento do colonizador face ao Islão, fortíssimo concorrente, é ainda mais impressionante. As condutas irregulares e a indisciplina reflectem, por um lado, a falta de meios; por outro, a insegurança provocada pelos traumatismos que vão das invasões francesas às lutas civis que na Metrópole fizeram descurar o acompanhamento das possessões ultramarinas”. Não se pode ignorar a instabilidade adveniente do liberalismo, que teve também como consequência o enfraquecimento da Catolicidade no território. O fenómeno que os autores enfatizam é uma alvorada da consciência política dos europeus e dos crioulos como aquela petição dos sessenta negociantes e proprietários, não é de eliminar a hipótese que tenha sido uma boa alavanca para a separação da Guiné de Cabo Verde. E, finalmente, com a Conferência de Berlim, o Governo foi forçado a repensar a natureza da presença na Guiné, como de facto aconteceu, mas muitíssimo tarde se acordou para uma verdadeira ocupação do território.
Insiste-se que se trata de uma obra que tanto o investigador como o curioso só têm a ganhar com a sua leitura.
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Notas do editor
[1] - Vd. poste de 15 DE AGOSTO DE 2008 >
Guiné 63/74 - P3133: Notas de leitura (11): A Guiné do século XVII ao século XIX (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 27 DE MAIO DE 2020 >
Guiné 61/74 - P21014: Historiografia da presença portuguesa em África (211): Planos de desenvolvimento no rio Geba e em Fá, um pouco antes da guerra (Mário Beja Santos)