terça-feira, 30 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21123: Historiografia da presença portuguesa em África (215): o jovem Amílcar Cabral, finalista de engenharia agronómica, saudando o regresso das chuvas e da esperança, após quatro anos de seca, fome e tragédia, escreveu: "A bem de Cabo Verde, pelo bom nome e pela glória de Portugal" (sic), a rematar um artigo publicado no nº 1 do Boletim de Informação e Propaganda, outubro de 1949



Capa do mensário "Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação", Praia,  nº 1, ano I, 1 de outubro de 1949. Propriedade da Imprensa Nacional, 20 pp. Diretor:  Bento Benoliel Levy  (Preço de capa: 2$50)






















Artigo da autoria de Amílcar Lopes Cabral, futuro engenheiro agrónomo, e fundador e líder do PAIGC: "Algumas considerações acerca das chuvas", pp. 5-7.




Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação, Ano I, nº 1, 1 de outubro de 1949. 

Notícias sobre as chuvas de setembro de 1949.  Há cinco anos que não chovia no arquipélago (!) (p. 7)
Fonte: Hemeroteca Digital, CM Lisboa (com a devida vénia)

 [Fixação de texto para efeitos de reprodução neste blogue: LG]

1. O novo governador de Cabo Verde  (1949-1953), Carlos [Alberto Garcia] Alves Roçadas (, major  de infantaria, licenciado em medicina,  e sobrinho do gen José Augusto Alves Roçadas, 1865 - 1927)  foi o "inspirador" deste orgão da imprensa cabo-verdiano (1949-1964). 

Era propriedade da Imprensa Nacional de Cabo Verde, e tinha como diretor Bento Benoliel Levy (Praia, 1911- Lisboa, 1991),  um político e jornalista, de origem judia sefardita,  afeto ao regime do Estado Novo e defensor (intransigente) da sua política ultramarina.

Bento Levy. Fonte:
Assembleia da República
Bento Levy era licenciado em Direito (Ciências Jurídicas) pela Universidade de Lisboa (1939). Teve uma carreira político-administrativaa feita na Praia, Santiago, Cabo Verde:

(i) administrador du concelho da Praia (1941);

(ii)  vohal do Conselho do Governo (1942); 

(iii) chefe des serviços de administração civil (1946);

(iv)  presidente do Conselho fiscal da caixa geral dos reformados;

(v) presidente do Centro Cultural de Sotavento;

(vi) diretor  técnico da  Imprensa Nacional de Cabo Verde (1948);

(vii) substituto do juiz de direito  da Comarca de Sotavento  (1949-1961);

(viii) diretor do Serviço de propaganda e informação; diretor do Centro de Informação e Turimos de Cabo Verde; fundador et presidente du Rádio Clube de Cabo Verde....

(ix) enfim, deputado à Assembleia Nacional por Cabo Verde (União Nacional, 1961-1965 / 1969-1973), onde abordou por várias veses o problema da seca e da fome.

Para além de responsabilidade pela criação deste Boletim (1949), foi também fundador da Rádio Clube de Cabo Verde (1944); e, mais tarde, fundador do semanário O Arquipélago (1962).

O Boletim foi definido, logo de início como um " jornal de todos [e para todos], em que cada ideia construtiva terá cabimento (...), necessita[ndo], como é óbvio, de colaboração - colaboração de todos quantos de algum modo se interessam por Cabo Verde, ou porque aqui nasceram, ou porque aqui viveram, ou por cá passaram como simples curiosos, ou ainda porque, como portugueses, se acham lígados a esta parcela do Império, para o desenvolvimento e progresso da qual todos devemos contribuir."


É expressament referido que "a ideia desta iniciativa [é] devida a Sua Ex.a o Governador da colónia [, foto acima], que honra o Boletim com um editorial a todos os títulos notável, dando o exemplo e incitanto quantos possam contribuir para se fazer mais e melhor por Cabo Verde" (...).

(...) "É essa colaboração que se pede, pois dela depende a continuação de tão útil, como indispensável elemento de vida da colónia. (...)".

2. E logo no primeiro número surgem nomes, como o do jovem Amílcar Cabral, que de modo algum se podem considerar como "alinhados" com o regime. Veja.se o teor do artigo que acima reproduzimos: Amílcar Cabral ia fazer 25 anos em 12/9/1949, e estava a estudar agronomia em Lisboa, curso que vai concluir em 1950, e cuja escolha estará relacionada com a trágica seca e fome de 1941/43, período que concidiu com a comissão de serviço militar de alguns dos nossos pais (em São Vicente e no Sal).

Filho de pai cabo-verdiano de ascendência guineense, Juvenal Lopes Cabral, professor, e de mãe guineense, de ascêndencia caboverdiana, Iva Pinhel Évora, o Amílcar tinha nascido em Bafatá, em 1924, onde o seu pai fora colocado à época.

Com os oito anos de idade, em 1932, vem com a família para Cabo Verde. Completaria o ensino primário em Santa Catarina, na ilha de Santiago. No Mindelo, São Vicente, termina o curso liceal em 1943, no Liceu Gil Eanes. Tem um primeiro emprego na Imprensa Nacional (1944), já na Praia, Santiago. Ganha uma bolsa de estudos e vai para Lisboa em 1945. Estuda no Instituto Superior de Agronomia (ISA), ode conhece a futura esposa, flaviense. Convive com futuros dirigentes nacionalistas africanos, na Casa dos Estudantes do Império, tais como Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Mário de Andrade.

Em 1941/43 e em 1947/48, Cabo Verde tinha sofrido mais um ciclo de devastadoras secas, com trágicas consequências: dezenas de milhares de mortos, crise económica e social, emigração forçada (nomeadamente para S. Tomé e Príncipe, mas também para a Guiné.).. Em agosto e setembro de 1949, as chuvas (abundantes) voltam a cobrir as ilhas de "palha verde"...

É neste contexto, e na expetativa (moderada) de "mudança de rumo" do governo das ilhas, que deve ser lido este e outros artigos desta revista mensal, que se começa a publicar justamente em outubro de 1949 (e vai durar até 1964, tendo tido um certo impacto na vida cultural, social, intelectual e literária e do arquipélago, apesar do seu alinhamento político-ideológico com o regime de Salazar).
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21107: Historiografia da presença portuguesa em África (214): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21122: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (13): Álbum fotográfico - Parte VI

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 29 de Junho de 2020:

Bom dia Carlos Vinhal
Aqui dou início a mais uma semana, enviando para a Tabanca, o meu Álbum de Fotos n.º 6.
Desejo a todos os Tertulianos uma excelente semana, em especial para os Chefes de Tabanca.
Obrigado pela atenção e trabalho que tens e por me aturares.
Um Abraço,
Albino Silva



(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21104: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (12): Álbum fotográfico - Parte V

Guiné 61/74 - P21121: Parabéns a você (1831): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21118: Parabéns a você (1830):José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Mort Ind 912 (Guiné, 1964/66)

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21120: Notas de leitura (1291): “BC 513 - História do Batalhão”, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Quem contesta a importância primacial da leitura da história dos batalhões como documentação-base para a historiografia da guerra colonial, leia a história do BCAÇ 513 e converse depois connosco.
Desembarcam em Julho de 1963, é-lhes destinado um vasto Sul, em turbamulta, a guerrilha devasta, intimida, executa os contestatários. As incumbências que lhe estão cometidas têm um peso enorme: instalar um destacamento em Guileje, outro em Colibuia, irradiar a partir de Aldeia Formosa, interditar o trânsito do inimigo da área do Forreá para o Incassol, patrulhar e emboscar no eixo Buba-Nhala e na estrada Buba-Aldeia Formosa.
Temos aqui relatos que infundem respeito, que deixam bem claro o caos em que se encontra toda região Sul em 1963 e como numa fase de arranque do PAIGC foi possível confrontá-lo com escassos recursos. Quando ali chegaram, Guileje estava totalmente ao abandono e as forças do PAIGC controlavam totalmente Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde e Campeane, bem como o Cantanhez.
Um relato épico, inesquecível.

Um abraço do
Mário


BCAÇ 513, a divisa era “Ceder Nunca” (1)

Beja Santos

Dentro da minha rede de apoios, a Biblioteca da Liga dos Combatentes tem lugar cimeiro. O responsável pela biblioteca, sempre prestável, quando o informo das minhas devoluções também me informa que encontrou mais umas coisinhas, é tudo uma questão de ir ver. Uma das novidades foi a história deste Batalhão, documento que desconhecia inteiramente: BC 513, História do Batalhão, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000. A surpresa começa logo na dedicatória de oferta:  
“De todos nós, combatentes do BCAÇ n.º 513, que prestou serviço na Guiné entre Julho de 1963 e Agosto de 1965, daqueles que por lá perderam a vida e daqueles que voltaram deixando lá parte dela, aqui fica um muito pouco de nós e um grande reconhecimento que os combatentes sabem ter por quem nunca os esquece. Mas a nossa história, essa, ficará sempre por contar. Ela seria o enorme somatório de todas as histórias, de todos nós, amalgamadas com todos os nossos sentimentos, todas as nossas indignações, angústias, inquietações, desesperos, raivas, medos, coragens, esperanças, desilusões, amizades, amores, tudo isso unido pela fortíssima argamassa que é a irmandade que nasce e perdura para sempre entre aqueles que foram combatentes. Vosso, muito grato, José Filipe da Cunha Fialho Barata, ex-alferes miliciano sapador”.

O BCAÇ 513, diz-se logo no pórtico, não foi uma unidade organizada na metrópole e preparada em conjunto numa única unidade mobilizadora. Apenas havia sido determinada a constituição de um Comando de Batalhão e respetiva CCS, com destino a Moçambique. Na antevéspera do embarque teve-se conhecimento da mudança de destino, a Guiné. Embarcam no Niassa em 17 de Julho de 1963, com as Companhias de Artilharia 494, 495 e 496, e o BCAV n.º 490 com as suas companhias 487, 488 e 489. Chegados a Bissau, logo se descobriu a falta de instalações com o mínimo de condições para alojar o pessoal, viveram um pouco aos baldões até que em 26 de Agosto seguiram para Buba. Houvera entretanto alterações no dispositivo militar, resultante da divisão de zona Sul, então na totalidade incluída na zona de ação do BCAÇ n.º 237. Dera-se a designação de Setor E, e a partir de Janeiro de 1965 passou a ser designado por Setor S2, com sede em Buba e abrangendo os subsetores de Buba, Cacine, Aldeia Formosa e mais tarde ainda os novos subsetores de Gadamael, Sangonhá e Guileje. O BCAÇ n.º 513 foi constituído na Guiné com a incorporação das três referidas Companhias de Artilharia, estava em Buba a CCAÇ n.º 411, houve também reforços com um Pelotão de Reconhecimento de Cavalaria, um Pelotão FOX. Recorde-se que o comandante da CART n.º 494 era o então Capitão Alexandre Coutinho e Lima, protagonista cimeiro da retirada de Guileje, em Maio de 1973. O Comando ficou em Buba, uma companhia partiu para Cacine, outra para a Aldeia Formosa, outra para Ganjola, no setor de Catió, onde se instalou provisoriamente.
E escreve-se na história do batalhão:  
“O facto mais grave foi o enfrentar logo no início de comissão a falta de instalações, muitas delas completamente destruídas, outras não possuindo mais que palhotas. As tropas viveram sempre nas piores condições imagináveis. Tiveram de construir paliçadas, abrigos para as armas e para o pessoal, que progressivamente foi necessário transformar em abrigos à prova de morteiro, pistas para a aviões a fim de não se ficar sujeito à única ligação mensal pelo barco dos reabastecimentos”.
E somos informados do inimigo existente, dispunha-se em três importantes zonas de concentração: a região de Incassol, nas margens do rio Corubal (Gã Gregório), a região de Forreá nas margens do rio Cumbijã e a região de Cacine na orla marítima (Campeane). Era tida como zona isenta de atividade inimiga a região da Aldeia Formosa – Contabane.

Era fundamental trabalhar na recuperação do “Chão Fula”. E escreve-se:  
“O regresso das populações às tabancas abandonadas só foi possível colocando um destacamento militar avançado na direção mais perigosa (Colibuia). O mesmo será necessário fazer quando se progredir na direção de Guileje, instalando nesta localidade um novo destacamento. Este sistema de dispersão de efetivos só seria possível desde que houvesse uma força móvel capaz de acorrer prontamente a qualquer ponto atacado. Por essa razão se manteve em Aldeia Formosa o pelotão FOX”. Era igualmente reconhecimento como imperativo paralisar o trânsito na fronteira Sul da Guiné. A tentativa de perfuração da CART n.º 496 em direção a Campeane não funcionou. Toda a região está bastante comprometida pelos terroristas e a progressão das tropas necessita sempre de apoio aéreo e de apoio terrestre dado por autometralhadoras”.

E o relatório elenca o que foi a recuperação do Chão Fula. O autor enquadra a situação:
“Junto à fronteira Sul e tendo como fulcro a tabanca da Aldeia Formosa (Quebo) uma vasta região encontrava-se habitada quase exclusivamente por povos de raça Fula tendo um importante chefe religioso, Cherno Rachide. Abrangendo os regulados de Contabane, Forriá e Guileje, corresponde a uma extensão de fronteira de mais de 40 quilómetros. Iniciada em princípios de 1963 a ação de grupos armados do PAIGC, sem que esses povos de raça Fula se tivessem deixado subverter na fase anterior de aliciamento, foram imediatamente atacados e expulsos das tabancas situadas nas linhas de infiltração escolhidas para passagens de pessoal e material, em especial no corredor de Guileje – Mejo – Nhacobá – Buba – Fulacunda. Atacada, incendiada e saqueada a tabanca de Salancaur Fula, onde se encontrava o régulo de Guileje, espalhou-se o pânico entre todos os povos desse regulado, fugindo uns para a República da Guiné, outros para Bedanda e ainda outros para Contabane e Aldeia Formosa. A tabanca do Mejo e outras próximas viriam também mais tarde a ser incendiadas e destruídas. Todas as casas de construção europeia pertencentes a comerciantes de Salancaur Cul e Bantel Silá foram destruídas. Em Maio de 1963 era chacinado em Samenau um sobrinho de Cherno Rachide e Cumbijã era atacada, ficando completamente incendiada e destruída. Assim avançou o IN na destruição das tabancas que lhe opunham dificuldades a caminho de Buba”.

O autor releva a ação de um pelotão da CCAÇ 41 e um pelotão de Reconhecimento de Cavalaria, Pelotão FOX, que foi incutindo respeito ao IN e dando confiança às populações. Nesse tempo os guerrilheiros ainda não dispunham de minas anticarro embora fizessem largo uso de fornilhos, que tinham pouco sucesso, porque eram comandados à distância. A viragem da situação ocorre com a instalação da CART n.º 495 em Aldeia Formosa, seguindo-se a instalação de um destacamento em Colibuia, em Outubro de 1963. Em Dezembro desse ano iniciou-se a preparação para a recuperação de Cumbijã. Em 4 de Fevereiro de 1964, uma enorme coluna auto, encabeçada pelo Pelotão FOX 888 e um grupo de combate da CART 495 procedeu à reocupação de Guileje. Tropas e população começaram do zero a ocupação de um dos mais importantes locais da fronteira Sul, sobre o ponto de vista militar. No mês seguinte começou a construção de um aquartelamento em Mejo e com a sua ocupação estavam criadas as condições necessárias para atingir Salancaur Fula e efetuar a ligação com Cumbijã através de Nhacobá e Samenau, completando-se a reinstalação dos povos Fulas das tabancas que tinham sido forçados a abandonar.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21099: Notas de leitura (1290): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21119: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (33): Beja, antiga Pax Júlia, cidade por onde vi passar muitos camaradas de armas (José Saúde)

Brasão de Beja
1. Mensagem de José Saúde,  ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CCS / BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74); jornalista reformado, natural de Aldeia Nova, Serpa, a viver em Beja:


Date: sexta, 19/06/2020 à(s) 17:16

Subject: Beja, antiga Pax Júlia, cidade por onde passaram muitos camaradas

Luís, meu amigo

Envio-te um texto sobre Beja e o seu quartel - RI 3 - por onde passaram diversos camaradas, sendo que muitos deles tiveram como destino a Guiné.


Entendes que seja útil o contexto da prosa?

Abraço, Zé Saúde



Beja, antiga Pax Júlia, cidade por onde passaram muitos camaradas, jovens militares que tiveram como destino a Guiné

por José Saúde

Recorro a ímpetos da história e vejo-me absorvido pelos primórdios de uma cidade que foi fundada 400 anos a.C. pelo povo celta. Relata também a história que os Cónios, denominados como Conistorgis, foram uma plebe que por esses recuados tempos coabitaram no burgo. No século III a.C. foram os cartagineses que estabeleceram o maior tempo de permanência no lugar sendo, contudo, a civilização romana aquela que romanizou as populações ali existentes.
O nome de Pax Júlia surge intrinsecamente ligado ao período do Império Romano. Pax Júlia teve, aliás, honras de metrópole de grandiosidade na Península Ibérica e albergou uma das três jurisdições romanas da Lusitânia. O Imperador Augusto terá sido o homem que deu origem ao nome de Pax Júlia. 
No ano de 1162 os cristãos reconquistaram definitivamente o burgo, em 1524 recebeu o foral e antes, 1517, já tinha sido elevada a cidade. 
Poder-se-á afirmar, com segurança, que Beja foi berço de notáveis famílias de pedagogos e humanistas na era do Renascimento. Diogo de Gouveia, Francisco Xavier, conselheiro dos reis D. Manuel I e de D. João III de Portugal, André de Gouveia e António de Gouveia, sintetizam algumas das figuras que brilharam no palco do humanismo em Portugal.
Relata ainda a história que a primeira restauração dos muros de Beja teve lugar no reinado de D. Afonso III com recursos oriundos, por 10 anos, de dois terços dos dízimos das igrejas existentes, à época, na velhinha urbe. 
Diz a lenda que Beja foi uma pequena localidade de cabanas rodeada por matagais e uma serpente assassina apresentava-se como um dos maiores problemas para a população, sendo que a solução do dilema passou por assassinar a serpente. O feito levou à morte de um touro que envenenado habitava com a serpente na floresta. Neste contexto, eis-nos perante o brasão da cidade onde existe a presença de uma cabeça de touro.

1ª página do jornal "República", 2 de janeiro de 1962. Recorte recolhida da Internet, com a devida vénia: Sol Sapo, 23 de fevereiro de 2017

A história do Regimento de Infantaria (RI1), em Beja, é longa e a sua origem remonta a 1648. Claro que seria demasiado fastidioso penetrarmos no campo da pormenorização. Mas há um feito de aventureirismo que marcou o Estado Novo: o assalto ao quartel, na noite de 31 de dezembro de 1961 para o 1 de janeiro de 1962.
Tinha eu 11 anos e lembro-me desse acontecimento. Morava na Rua Ramalho Ortigão nº 1, uma transversal localizada quase defronte ao quartel dos Bombeiros Voluntários de Beja cuja corporação se situa na Avenida Fialho de Almeida, uma rua que era, nesses tempos, uma das poucas vias que dava acesso ao quartel, sendo simultaneamente a estrada que ligava a velha Pax Júlia a outros pontos ao sul do país.
A missão teve como um dos principais protagonistas o capitão Varela Gomes [1924 - 2018]. O assalto ao quartel, conhecido como Regimento de Infantaria 3 (RI3), tinha como incumbência uma ação contra o Regime. 
Na aventureira intentona participaram ainda Manuel Serra, que já tinha chefiado os civis no Golpe da Sé, o major Francisco Vasconcelos Pestana, o capitão Pedroso Marques, o tenente Brissos de Carvalho e Fernando Piteira Santos.
No golpe estiveram envolvidos alguns civis e o objetivo não correu de acordo com os planos previamente delineamentos. Houve "negas" de última hora, dois mortos, ao que se soube, e o golpe falhou. O major Galapez, segundo comandante do quartel, fez resistência e Varela Gomes foi gravemente ferido.
 Com o rebentamento da guerrilha no Ultramar, primeiro em Angola. seguindo-se Moçambique e Guiné, o RI3 foi um antro onde foram depositados milhares de camaradas cujo destinou de alguns foi a Guerra Colonial. Beja apresentava-se como uma rampa de lançamento para jovens militares que tiveram como destino a Guiné.
Na década de 1960 e princípios dos anos 70, tive a oportunidade de ver magotes de rapazes que chegavam à velha Pax Júlia para se iniciarem, como mancebos, no serviço militar obrigatório.
Envergando uma farda verde, uma boina que por vezes pouco ou nada se enquadrava com o perímetro da cabeça, de cabelo rapado e calçando umas botas militares de delgada memória, o jovem, feito militar à força, passeava-se pela cidade e regozijava-se pelo estatuto de homem valente. Enchia o peito de ar e sentia-se como um herói. Por outro lado, a plebe via com alguma tristeza o futuro próximo do rapazinho recém-chegado às fileiras do exército, sabendo de antemão que o seu porvir passava consequentemente pela fatídica guerra.
Alguns arranjavam namoricos, outros madrinhas de guerra tendo em conta a sua mais que provável ida para o Ultramar, outros passeavam-se, vaidosos, pela cidade, outros encantavam-se com as suas presenças em cafés e cervejarias onde o povo amavelmente os recebia, enfim, eram os tempos de um permanente corrupio de recrutas "encaixados" em débeis fardamentos que em nada se enquadravam com o seu corpo.
Mas, o momento passava pelo enfâse no descobrir de novas paragens, sendo que no íntimo do seu ego existia quiçá a postura de um novo herói que meses depois estaria nas linhas da frente na guerra de além-mar.
E foram muitos os camaradas que passaram pelo quartel de Beja em tempo de recruta e que mais tarde cruzaram a agoirenta rota da Guiné. Muitos deles perderam a vida nas frentes de combate, outros numa infeliz situação quando nada o fazia prever, outros viram-se fisicamente debilitados, sento também muitos os que felizmente chegaram são e salvos à terra natal após um conflito armado em solo guineense, onde certamente não faltaram os refinamentos das presumíveis tenebrosidades.
Camaradas, este recuo ao passado é, tão-só, o recordar muitos de vocês que transitaram pelo então RI3, em Beja, seguindo-se uma especialidade que vos atirou, depois, para as trincheiras de uma guerrilha e precisamente numa Guiné onde as nossas memórias são, de facto, imensas.
Abraços, camaradas.
José Saúde 
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 27 de março de  2020 > Guiné 61/74 - P20782: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (32): O tempo de serviço militar passado em Lisboa (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TSF)

Guiné 61/74 - P21118: Parabéns a você (1830):José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Mort Ind 912 (Guiné, 1964/66)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21112: Parabéns a você (1829): Fernando Maria Neves Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2404 (Guiné, 1968/70) e Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

domingo, 28 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21117; Da Suécia com saudade (73): A raposa, as uvas e... o vírus (José Belo)

1. Mensagem do José Belo [, régulo da Tabanca da Lapónia, a mais setentrional das tabancas da Tabanca Grande]:

Date: domingo, 28/06/2020 à(s) 14:05
Subject: A raposa, as uvas, e.....o vírus.

Um certo tipo de jornalismo cria e espalha notícias menos corretas nos seus fundamentos. (Como diz o nosso António Aleixo, "P'ra mentira ser segura,/ E atingir profundidade, / Tem que trazer á mistura, / Qualquer coisa de verdade...)

Um bom exemplo são as notícias relacionadas com a excessiva mortandade, por Covid-19,  entre os mais idosos na Suécia.

Sendo esta mortandade um facto incontroverso há que analisar cuidadosamente as razões do mesmo.
Como em muitos outros países ocidentais,  os casos mortais provocados pelo vírus entre os idosos vivendo em lares foi muitíssimo superior  ao dos idosos vivendo nas suas habitações particulares.

Na Suécia, onde a longevidade é das mais elevadas a nível mundial, os lares para idosos são inúmeros e enormes.

Sabe-se hoje terem sido as razões do contágio, e consequente mortalidade, o facto de muitos dos empregados estarem contaminados pelo vírus antes de o mesmo ter tido resultados significativos na sociedade envolvente.

Daí os resultados predominantes deste grupo etário no topo das estatísticas e subsequentes números finais. 

Ao contrário de muitos outros países, o responsável pelo combate à pandemia na Suécia é uma Instituição Estatal de Saúde, independente (!) do Governo e respondendo unicamente perante o Parlamento.

Facto "conveniente" tanto para os políticos governamentais, como para a oposição, que deste modo podem "lavar as mãos " das decisões tomadas por este Departamento Estatal independente e, principalmente, das consequências das mesmas.

Alguns grupos de conhecidos cientistas suecos, médicos, jornalistasm e outros intervenientes sociais têm vindo a pressionar o Governo quanto a uma intervenção nas decisões do Departamento, mas até hoje sem resultados.

Não tendo havido qualquer tipo de "confinamento " obrigatório da população,  todas as recomendações tem sido...recomendações!

As fortíssimas tradições locais quanto a liberdades individuais,transparência governamental, confiança,e sentido de responsabilidade perante o interesse comum estão ligadas a esta atitude...muito incompreensível em sociedades não escandinavas.

Teatros, cinemas, restaurantes, bares, discotecas, centros comerciais, infantários e escolas, todos continuam a funcionar normalmente, procurando respeitar as regras do distanciamento entre indivíduos. (Mesmo que em alguns casos sejam evidentes as dificuldades quanto a um distanciamento  efectivo.)

Deste modo a generalidade da economia tem sido muito menos afectada, podendo o país usar as avultadas reservas económicas existentes em suporte das actividades industriais e sociais mais importantes.

Segundo os últimos testes efectuados em Estocolmo julga-se que entre 17% a 20% da população local terá desenvolvido anti-corpos quanto ao vírus.

São números sempre passíveis de discussão quanto a uma não suficiência.

Guiné 61/74 - P21116: Blogpoesia (683): "Me agarro à vida...", "Sobraram canhões e castelos" e "As ideias", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Me agarro à vida…

Adoro viver. Agarro a vida como um leão.
Fujo das jaulas que me prendem os movimentos.
Desato as laçadas todas com que tentam prender-me.
Escarneço dos ociosos e parasitas que não sabem o que fazer dela.
Desfaço os ataques da preguiça com banhos de água fria.
Agarro-me às fragas com garras duma águia atenta.
Não desespero de me livrar das tendências más que a natureza inoculou e me puxam para o abismo.
Recuso a escravidão.
Quero respirar sempre o ar puro da liberdade…

Ouvindo Rachmaninoff plays Piano Concerto 2
Bar 7 Momentos, 22 de Junho de 2020
10h25m
Jlmg

********************

Sobraram canhões e castelos

Pelo mundo fora, no alto dos montes, sobraram canhões e castelos.
Não acabaram as guerras.
Não há vencedores.
Imensas derrotas enchem os palcos.
Humilham os fortes.
Vingam humildes.
Desfeitiam arrogantes.
Despedaçam a paz.
Roubam as vidas.
Afugentam a esperança.
Invenção diabólica disseminada no mundo.
Mundo pirata.
Qual o sentido?
Se, ao menos, aprendessem a lição.
Ditadores e piratas, espécies famintas.
De sangue e de ódio.
Piores que as pestes.
Não há quem os farte…

Ouvindo Brahms - Piano Concerto No. 1 | Hélène Grimaud, Piano
Bar Castelão em Mafra, 24 de Junho de 2020
Jlmg

********************

As ideias

Elas andam por aí.
Famintas. Buscando o pólen das muitas flores.
Para fabricarem o mel.
Há quem o espere sedento.
Alimento suculento.
Neste mar de torpor.
Acre e doloroso.
Eu as apanho com manha de raposa.
Saltitantes.
Me afeiçoa a elas e faço jogos de palavras.
Teço versos coloridos com pena de pintor.
Me extasio ao ver um quadro harmónico na paleta.
Onde os claros e escuros se combinam com o feitiço da harmonia.
Depois, leio-os, do começo ao fim, como um pai embevecido…

Ouvindo Schubert
Bar 7 Momentos, 25 de Junho de 2020
10h24m
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21096: Blogpoesia (682): "Terra negra, Terra negra, seca", "Rostos mascarados" e "Sábios e presunçosos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 27 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21115: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (16): A DGS boa ou má e outras siglas, ou Lembrando a resistência dos meus conterrâneos



1. Em mensagem do dia 8 de Junho de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, desta vez dedicada à sigla DGS, antes de má memória, hoje um serviço que olha pela nossa saúde.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 15

A DGS boa ou má e outras siglas ou 
Lembrando a resistência dos meus conterrâneos 

Como vulgar cidadão, assumidamente como pouco culto e pouco informado, não sou mais que um Zé-ninguém, Zé português do Norte e mais um fruto da minha geração. Por isso, lamento não esticar mais os comentários, para os quais não tenho a pretensão nem a capacidade de os desenvolver. Resta-me, apenas, recordar a minha “leve ligação” a alguma destas siglas.

Por via do Covid-19, esse vírus que alegadamente veio da China, direcionado para matar os “cotas” ou gente de deficiente qualidade, possivelmente inspirado em critérios próximos do famigerado Nacional Socialismo (National Sozialistische Deutsche Arbeiterpartei), somos levados a repensar na sigla que outrora tanto nos atormentava: a DGS - Direcção Geral de Segurança.

A DGS foi uma inovação promovida pelo “governo de abertura” de Marcelo Caetano em 1969 que, com desmedido destaque publicitário, “acabou” com a PIDE – Polícia Internacional da Defesa do Estado. Pelo que se sabe, apenas a sigla foi substituída.

A PIDE, em 1945, substituiu a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que havia sido criada em 1933.

Ora, os “cotas” da minha geração, sabem bem do que estamos a falar. Podem ser poucos os que sofreram na pele o verdadeiro “tratamento” dessa “segurança”, mas são muitos os portugueses que foram condicionados por ela.

São milhares as histórias contadas, umas mais reais que outras, mas quase todas apontadas para a aversão e o ódio ao comportamento dessas organizações.
Com o 25 de Abril, assistimos a uma certa luta pelo controlo dos arquivos da PIDE/DGS. Diz-se que houve um trabalho muito eficaz por parte do PCP que,até, os fizera deslocar para Moscovo. Por outro lado, também houve pressões que levaram à destruição e desaparecimento de documentação. Curioso o facto de recentemente a PJ ter apreendido mais de 700 fichas pessoais dos mesmos arquivos, que estavam à venda.

(“Fonte: Publico de 23 de Abril de 2020, por Luís Miguel Queirós”)

“A DGS foi extinta a 25 de Abril de 1974. No entanto em Angola os serviços desta Polícia continuaram a funcionar até à independência daquele território em 1975, embora sob a designação de Polícia de Informação Militar e de Gabinete Especial de Informação, e com outras atribuições.
Quanto à integridade do Arquivo, são de assinalar os efeitos negativos das destruições e anulações de processos efectuadas pela própria PIDE/DGS, as destruições ou desvios ocorridos entre 1974 e 1990, e o desmembramento de algumas séries de processos, levado a cabo pelo Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa, seguido da integração desses processos noutras séries do Arquivo da PIDE/DGS ou em séries do próprio Arquivo dos Serviços de Extinção.”

(“Fonte: História custódial e arquivística da Pide, na Torre do Tombo”)

Fichas aparecidas à venda na internet “Fonte: Público de 23 de Abril de 2020, por Luís Miguel Queirós”

Fui habituado a olhar permanentemente para o grande quadro negro da escola, em cuja parede se destacavam os retratos de Oliveira Salazar e de Óscar Carmona, tendo, no meio deles, uma cruz com Jesus Cristo crucificado. Ainda apanhei Craveiro Lopes, que substituiu Carmona em 1951.
Nessa altura tinha um sentimento patriótico acentuado, por influência da Profª. D. Irene, uma figura marcante no Ensino Primário de Fiães. Ela ensinou-nos a cantar o Hino Nacional e punha-nos de mão estendida a cantar as várias canções- marcha de adoração à Pátria, à semelhança do que se fazia na Mocidade Portuguesa. Sempre que entrava alguém na escola, tínhamos que nos levantar e fazer a saudação nazi, até que nos mandasse o “à vontade”. Todavia, em criança, eu não ligava esse patriotismo a qualquer idolatria aos governantes. Já se sentiam, então, os murmúrios de familiares e amigos, pondo em causa essas lideranças.
Nesses anos seguintes à instrução primária, o que se sabia da polícia política era em segredo e muito devido à audição da Rádio Moscovo. Ainda poucos tinham aparelho de rádio e muito poucos tinham a coragem de sintonizar essa rádio comunista. Nessa altura, todos estavam bem informados quanto à noção do espaço e das limitações sobre esse assunto melindroso.
O medo e a desconfiança estavam amplamente instalados. O respeito pelo professor e pelo padre, também era acentuado. E também eles seriam importantes nos costumes pidescos.
O certo é que todos sabíamos que a PIDE nos controlava e nos poderia castigar à menor acusação. E todos sabiam dos vários exemplos marcantes que nos rodeavam.

Na minha terra, em Fiães da Feira, sempre houve tradição relacionada com a política de oposição. Conheci pessoas vigiadas e perseguidas, na sua vida pessoal e profissional. Porém, mais que isso, tenho que destacar várias personalidades que marcaram a história da nossa democracia.

Começo por uma que, apesar de não estar referida nas prisões e perseguições como outros estão, merece todo o realce pela importante evidência política que mostrou na sua difícil geração.

Em 6 de Janeiro de 1869 nasceu o Dr. Elisio Pinto de Almeida e Castro, filho de António Pinto de Almeida e Castro e de D. Marcelina Barbosa. Seus pais viviam em Fiães, No Palacete da Quinta das Camélias, que o pai mandara construir quando regressou, rico, do Brasil. Todavia, em registos (alguns contraditórios), aponta-se que o nascimento de Elísio e de sua irmã Amélia, ocorreram no Porto, na freguesia de Cedofeita, onde foram baptizados na Igreja de S. Martinho. Mais informam que foram considerados filhos de pai incógnito (os pais ainda não haviam casado), e que só viriam a ser perfilhados em 1880, pouco antes do pai António falecer.

Na minha modesta opinião, esta disparidade em relação ao registo do nascimento dos filhos, no Porto (Cedofeita), poderá ter a ver com a “indesejável/intolerável” situação do casal aos olhos do clero e dos bons costumes locais.

O Dr. Elísio Castro que ficou órfão de pai com 11 anos, licenciou-se em Direito em Coimbra, com 21 anos.
Casou em 22.08.1892, com D. Maria Emília Bessa de Carvalho, no mesmo dia que sua irmã Amélia casou com o irmão de sua noiva.


O Dr. Elísio absorveu, logo em criança, o espírito aberto a novas ideias trazidas pelo seu pai do Brasil e, mercê dos bons relacionamentos por ele criados, procurou dar-lhes continuidade, atingindo o mais alto nível da política e dos poderes.

Apesar de o pai militar na área do Partido Regenerador e de vir a salientar-se mais entre as doutrinas republicanas, o Dr. Elísio conviveu bastante com a Corte, tendo participado em caçadas e torneios de tiro com o próprio Rei D. Carlos. A taça que se mostra na foto ao lado diz respeito a uma finalíssima de tiro aos pombos, ganha pelo Dr. Elísio ao Monarca.
Quando ocorreu o regicídio, o Dr. Elísio manifestou-se grandemente contra esse ignóbil acto que, quanto a ele, não resolveria os problemas do País.

No dia 23 de Janeiro de 1907, sob a coordenação do Dr. Elísio de Castro, realizou-se, em sua casa, em Fiães, no Palacete da Quinta das Camélias, mais uma reunião, que culminou com a criação da Comissão Republicana Municipal da Feira. Na acta divulgada no dia 30 desse mês, verifica-se que o Dr. Elísio de Castro foi eleito Presidente. Nessa Comissão, composta por 10 elementos eleitos, consta, também, outro Fianense, o Médico António Mota.

A implantação da República foi muito desejada em Fiães.
Em 15.05.11, o Dr. Elísio foi eleito Deputado à Assembleia Nacional Constituinte e, em 08.07.11, deixa a Comissão Municipal para acompanhar e colaborar melhor a Assembleia Constituinte de 1911.
Em 02 de Setembro de 1911 o Dr. Elísio de Castro foi eleito o Senador, para um período de 6 anos. Foi condecorado com a Medalha Comemorativa da Revolução do 31 de Janeiro de 1891.

Vista parcial da Avenida Dr. António Mota, de Fiães e a Escola primária de Macieira

Em 27.04.12 foi aberta a Avenida de Fiães, graças à doação de terrenos pelo Dr. Elísio de Castro que, além disso, pagou de seu bolso as expropriações a outros proprietários.

Foto de Abril de 1918, com a presença do Dr. Afonso Costa.

Dadas as boas relações deste Fianense com os seus ilustres colegas republicanos Dr. António José de Almeida e Dr. Afonso Costa (e outros), eles hospedavam-se, periodicamente, na sua casa, em Fiães.
O Dr. Elísio fez parte da Comissão de Honra da candidatura do General Norton de Matos.
Teve dois filhos, ambos licenciados; o Fernando e o Elísio. O Fernando veio a casar com D. Maria Costa, que era filha do Dr. Afonso Costa, que foi Presidente da República.
Faleceu a 12 de Novembro de 1942.

(“Fontes: Publicações no Jornal “Correio da Feira”, Manuel Strecht Monteiro em “Um Fianense na Ascensão e Queda da I República” e José Rodrigues em “Palacete da Quinta das Camélias”).


Nota: O Palacete da Quinta das Camélias veio a funcionar como Escola Preparatória. Ali trabalhou, como Professor de Educação Física, Bernardino Ribeiro, quando chegado de Moçambique, da Guerra do Ultramar. O Bernardino veio a destacar-se como excelente autarca, durante mais de 30 anos.

Lembro o Inspector Escolar Adelino Soares Bastos, a quem, diziam, arrancavam as unhas e as sobrancelhas nas torturas da PVDE. A sua casa, hoje um Infantário, ainda tem os esconderijos nas suas próprias paredes.

Nasceu em Fiães da Feira, no dia 30-11-1882.
Foi empossado como Inspector Escolar em 28-10-1919.
Foi preso, provavelmente, em Abril de 1928. Passou a ser encarcerado/perseguido/fugitivo periodicamente.
Em Maio de 1938 é detido pela Delegação da PVDE do Porto que o leva para o Aljube de Lisboa.
Voltou para a Delegação do Porto, mas regressou ao Aljube em 24-04-39.
Foi julgado pelo Tribunal Militar Especial em 27-06-39 e em 19-08-39.
Transferido para Caxias em 21-05.40.
Libertado por amnistia, em 03-06-40

(“Fonte: João Esteves em “Silêncios e Memórias”)

Casa do Inspector Adelino Soares Bastos. Hoje funciona como Infantário do Centro Social do Pe. José Coelho

O Dr. Alcides Strecht Monteiro, nasceu no lugar do Souto, Fiães da Feira, no dia 1910.
Foi casado com Ana Celeste Ferreira da Silva
Destacados lutadores no MUD - Movimento de Unidade Democrática e nas candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado.
Estão ligados no apoio à ASP (1964) e à fundação do PS (1973).
Foi sempre o chefe da oposição no Distrito de Aveiro.
Foi Deputado de 1975 a 1977.
Faleceu a caminho da Assembleia da República na tarde de 14 de Junho de 1977.
Foi condecorado com a Ordem da Liberdade.
Este ilustre Fianense era o Advogado dos pobres e o abrigo dos perseguidos politicamente.

(“Fonte: Prof José Rodrigues em “Biografias de Ilustres Fianenses”)

O PS substituiu a ASP em BadMunstereifel, Alemanha, em 19-04-73.

A Drª. Alcina Bastos nasceu em Fiães, concelho de Vila da Feira, a 7 de abril de 1915. Era filha do Inspector Escolar Adelino Soares Bastos e da Dr.ª Filomena de Sousa Vilarinho Bastos.
Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde colaborou com o Socorro Vermelho Internacional (SVI).
Exerceu a advocacia no Porto, Espinho e Vila da Feira. Aí aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD).
Influenciada por motivos familiares já que o pai, republicano, muito lutara e muito sofrera nas prisões. Alcina Bastos preencheu a sua vida em actividades em prol da liberdade, sendo, não raras vezes, a única mulher a marcar presença nas mesas das sessões políticas então realizadas, apesar de se omitir a sua identificação.
Em 1949, empenhou-se na candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República e, em 1958, integrou, juntamente com o irmão Joaquim Bastos, também advogado, a equipa que promoveu e organizou a candidatura presidencial do general Humberto Delgado
Reconquistada a liberdade, empenhou-se no julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, marcando presença nas audiências dos agentes da PIDE e na trasladação dos restos mortais do general para Portugal. Integrou a Liga Portuguesa dos Direitos do Homem

O Tenente Armando Agatão Lança, aqui de espada em punho, evidenciou-se na Revolta dos Marinheiros

Foi casada com o militar republicano Armando Pereira de Castro AgatãoLança (19/08/1894-23/05/1965), também interveniente ativo nas conspirações para derrubar o regime que pôs fim à I República (1927 e Revolta dos Marinheiros em 1936).
Teve uma filha (n. 1955) que seguiu o mesmo trajeto profissional da mãe.
Faleceu em 17-08-1993. Quis ser enterrada com a sua toga no Cemitério dos Prazeres e, um ano depois, a título póstumo, foi-lhe atribuída a Ordem da Liberdade.

Alcina Bastos sentada, à direita, durante o comício do general Humberto Delgado no Liceu Camões a 18 de Maio de 1958.

(“Fonte: João Esteves em “Silêncios e Memórias”)

Também Antero Canastro, o “Regedor da Mamoa”, que casou com uma sobrinha do Inspector Adelino Bastos, esteve preso. Por altura de um movimento revolucionário em Lisboa (8 de Setembro de 1936 - Revolta dos Marinheiros), o Inspector que talvez beneficiasse do contacto optimista do seu futuro genro, Tenente Armando Agatão Lança, envolvido no comando dessa revolta, estava convicto do seu êxito e, empolgado, entregou a Bandeira Nacional a Antero:
- O Salazar foi com o caralho, vais hastear a bandeira na Capela da Nossa Senhora da Conceição, a Padroeira de Portugal!

O Antero gritava de alegria, enquanto corria e atravessava o centro da freguesia. De braços abertos, alternava e corrigia a posição da imagem da esfera armilar, por forma a honrar e valorizar condignamente a feliz referência ao acontecimento nacional.

Capela de Nª. Sª. da Conceição, Padroeira de Portugal

Já tinha atravessado a Ponte de Chão do Rio, sobre o Rio Azavessas, e seguia subindo o Monte de Stª. Maria, aproximando-se da Capela, quando lhe gritaram:
- Cuidado Antero, olha que o filho da puta, afinal não morreu! Não morreu e os bufos vão-te foder.

Passados uns dias, o Antero saiu da prisão. Só esteve lá três dias. Perguntavam-lhe uns amigos:
- Porque é que já vieste embora? Não nos digas que te vais armar em bufo da “Pevide”? Nem penses no tal! Enterramos-te vivo, seu caralho!

E o Antero, revoltado afirmava:
- Foi o sacana do Professor Reinaldo que me acusou. Eles só me perguntavam quem me deu a bandeira. Eu disse-lhes que nem reparei a quem a tirei das mãos. Mas eles não me querem fazer mal. Penso que querem mostrar à família da minha mulher que são uns gajos porreiros. Se calhar, até pensam que vou melar e colaborar com eles, esses filhos da puta.

Há dias, o amigo Zéquita do Calvário, que foi aluno do Professor Reinaldo, contava-me que ele pendurava os alunos, pelas orelhas, com os seus braços enormes, levando-os junto do quadro do Salazar enquanto os “acusava” de incumpridores e de falta de patriotismo.

Desde a infância que fomos tomando conhecimento destes lutadores pela democracia e das implicações que sentiriam os seus seguidores.

Aquele ano de 1958 ficaria marcado para o resto das nossas vidas. Meu pai faleceu a 11 de Abril e as eleições realizaram-se a 8 de Junho. Eu completava os 15 anos, mas já era um entusiasta pelo élan de vitória de Humberto Delgado. Parecia que ele iria ganhar e bem. Porém, vivi ainda uma outra frustração, porque não conseguia convencer a minha mãe, a votar Humberto Delgado, apesar da miséria em que tínhamos caído. A influência da igreja e das “pessoas de bem” faziam-na vergar para a habitual condição de subserviência.
O nosso grupo restrito constava de uma lista “fornecida” pelo Padre Inácio ao Presidente da Câmara. De JOCistas, passámos a perigosos vadios que ficavam fora da igreja durante a missa. É verdade que o padre aparentava a preocupação de nos condenar publicamente. Por vezes, suspendia a missa e vinha insultar-nos cá fora.

O Bernardino Ribeiro foi chamado à PIDE e só tinha 17 anos. Quando o viram na sede, no Campo 24 de Agosto, um dos “gorilas”, exclamou:
- Que caralho vem a ser isto, agora mandam canalha para aqui? Isto não é nenhum infantário. Temos mais que fazer.

Mandaram-no embora dizendo:
- Ó miúdo, tem juizinho e quando disseres mal do Salazar, olha bem para os lados.

Ao Carlos Fontes também lhe disseram a mesma coisa. Tinha sido chamado por ter afirmado no café que as despesas das festas políticas da Câmara Municipal eram legalizadas com camiões de pedra ou de areia.

Chegado da guerra, em Março de 1969, estive, juntamente com o Bernardino, na crise estudantil de Coimbra e assistimos parcialmente ao II Congresso Republicano, realizado em Aveiro, 15 a 17 de Maio, distrito onde predominava a luta pela democracia.

Nesse ano da “abertura Marcelista”, regressou dos 10 anos de exílio D. António Ferreira Gomes, o famoso Bispo do Porto. Como o Pe. Artur da Paróquia de Espinho, regressou ao Secretariado da sede Episcopal, o “afastado” Pe. Manuel Henriques Ribeiro, foi para esse lugar, em Espinho. Este Fianense, visitante assíduo do amigo D. António Ferreira Gomes no exílio, em Espanha, também sofria da descriminação no próprio clero. Salazar, por mais que insistisse junto da Santa Sé, para que o lugar do Bispo do Porto fosse preenchido, nunca o conseguiu, mas o nomeado como Delegado Adjunto, D. Florentino Andrade fazia de sua a justiça mais conveniente ao poder civil.

E em Outubro, votámos para as eleições legislativas.

O Dr. Alcides Strecht Monteiro era o chefe da oposição de Aveiro e, como candidato, enviou o seu boletim, pelos CTT, para quem estava inscrito nos cadernos eleitorais. Porém, nos últimos dias, o “bufo” de cada lugar, dirigiu-se às pessoas pedindo a entrega desse boletim, alegadamente por indicação do Sr. Presidente da Câmara. Penso que todas as pessoas lhe fizeram essa vontade.
O Dr. Alcides ainda editou novos boletins que, perigosamente, andámos, durante a última noite, a distribuir pelas pessoas da oposição e de maior confiança, num esforço inglório para suavizar a anormal derrota. Numa dessas ruas e vielas, acabei por embater com o carro do “Inhecas”, num meco de granito.

O Inhecas - José Henriques Ribeiro, que havia sido ferido em 1967, na guerra da Guiné, continuou muito activo na oposição ao regime que nos governava. Militou no MDP, salientou-se como autarca, professor e dirigente associativo. Foi participante no III Congresso da Oposição (e último), realizado, também, em Aveiro. Não o incomodavam, talvez por recearem a firmeza do seu carácter e a sua utilização contínua da cadeira de rodas.

O jovem Dr. Manuel Lima Bastos, que era o nosso mentor revolucionário, foi sempre perseguido e controlado pela DGS. É sobrinho-neto do Inspector Adelino Soares Bastos. Foi ele que nos levou às crises de 68 e 69 em Coimbra, aos Congressos da Oposição e aos seus Comícios. O seu irmão Ângelo seguia-o sempre que podia.
Ligado ao MDP, veio a ocupar lugares de responsabilidade política após o 25 de Abril.
Hoje dedica-se à escrita, tendo publicados cerca de duas dezenas de livros.

Havia, ainda, o médico Carlos Ferreira Soares, de Nogueira da Regedoura, grande amigo e camarada do Inspector Adelino Bastos nessa luta antifascista.

Nasceu em 1903 e faleceu em 1942.
Era conhecido por Dr. Prata, o médico dos pobres. Dizem que, além das consultas grátis, dava e comprava medicamentos para os mais necessitados.
Tal como o seu amigo, andou clandestino e em fuga da PVDE. É célebre o seu esconderijo numa pequena japoneira situada no meio do cemitério.
Foi condenado à revelia em Tribunal Militar Especial do Porto, em Agosto de 1937, com multa elevada e um ano depois, com 4 anos de prisão correcional.
Foi assassinado em 4 de Julho de 1942.

(“Fonte: Antifascistas da resistência”)

Sempre que eu, adolescente, passava no autocarro da Feirense, junto à igreja de Nogueira, a caminho de Espinho, e olhava para o cemitério anexo, fixava a japoneira e prolongava essa visão, imaginando e admirando a bravura desses meus vizinhos patriotas antifascistas a quem muito devemos.

Os restos mortais do Dr. Carlos Ferreira Soares jazem junto da Japoneira (entretanto a primeira já foi substituída) que o escondeu muitas vezes da perseguição da PVDE.

Em 1970, quando eu seguia de barco para Angola, fui chamado à DGS para complementar as informações que pretendiam e ouvir algumas advertências.
Vim a verificar que todos os funcionários públicos eram “obrigados/aconselhados” a preencher a ficha de filiação na União Nacional. Sem negar essa inscrição, fui protelando e prometendo fazê-la. Porém, nunca o fiz.
Passei a ser visitado periodicamente na Câmara Municipal de Cabinda e sempre com o “convite amistoso” de passar por lá, pela DGS.
Por último, foram à Câmara no dia 20 de Abril de 1974, intimar-me para comparecer nas suas instalações “na próxima Quarta-feira, dia 24”.
Como não o fizeram por escrito, eu entendi que ainda não deveria lá ir “voluntariamente”.
Durante a noite, senti alguma preocupação. Apesar de não esconder a minha antipatia ao regime, estava convicto de que não havia nada de comprometedor no meu comportamento de cidadão português, cumpridor e patriota.

A manhã raiou com o desejado 25 de Abril. Quando tive conhecimento da revolta, senti uma satisfação indescritível.

************


Felizmente que hoje, a sigla DGS, ao contrário da outra, é a de uma organização que muito orgulha os portugueses.


E é nesta luta que enfrentamos contra a Covid-19 que a ela mais nos sentimos ligados.
Obrigado DGS – DIREÇÃO GERAL DA SAÚDE!

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21094: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (15): Os Carolos