1. Mensagem de Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 -
Os Barões, (
Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), enviada no dia 11 de Dezembro de 2008, com mais uma das suas histórias, esta integrada nos
arranjinhos que se faziam nas nossas Unidades, para haver sempre umas
massas de reserva para o que
desse e viesse, vulgo
saco azul.
Amigos editores, Aleluia! O blog está como eu gosto. Menos erudição e mais histórias com gente lá dentro. Como o Natal do comandante Picado ou o segredo do José Colaço, que acabei de ler. Em tempos, disse ao Luís Graça que mais interessante do que a escrita em si, é, através dela, podermos conhecer o dono da mão que escreve. Esta é a minha onda, reafirmo-me nela através de mais um conto que conta uma cena verdadeira. Com um retrato. A todos os camaradas e amigos, obrigado por gostarem das minhas histórias. Aos que não apreciam, as minhas desculpas.
O Saco Azul
O senhor Manuel Carroça, é um sortudo. Entradote na idade, é proprietário, gerente e assistente de vendas num espaço comercial típico do Portugal da nossa meninice; uma tasca com secção de mercearia. O freguês vai à cata por exemplo, de um quilo – ratado – de prego de solho ou de um fedorento maço de tripa seca para a patroa fazer os chouriços e na volta, bota abaixo um penalty – com gola – do bom tintol da região. Como ainda não foi visitado pela ASAE, mantém-se no seu posto atrás do balcão, até ao dia em que lhe selem a porta. Tem vários problemas de saúde, incomodam-no principalmente as queixas de natureza reumatismal. A propósito, diz ele com a cara mais séria deste mundo, e com toda a propriedade, acrescento eu:
-
Ó dótor, eu dos pés ainda tal, tal. Agora das mãos, sou um ladrão!
Quem pensa que foi a simpática presidente de uma ainda mais simpática autarquia do Norte que inventou e deu a conhecer ao mundo essa engenhosa criação que dá pelo nome de saco azul, está enganado. Para os ex-combatentes do ultramar, essa entidade é-lhes familiar, apesar de a maioria nunca lhe ter visto o forro! Para os que não sabem, tratava-se de uma espécie de fundo de maneio clandestino e como tal não escriturado, que servia para suportar contas de pequena ou média importância, despesas não elegíveis ou de difícil justificação.
Quem ficasse na liquidatária, liquidava o saco, sendo o respectivo inventário e processo de partilha
top secret, como mandava a ética. Afirmam as más línguas que houve quem, através liquidação do saco, se tenha abotoado com umas massas e assim nasceu a atoarda dos apartamentos nas avenidas novas, tantos quantas as comissões.
Ao contrário do ti Manel Carroça, fui sempre saudável e
jeitoso de mãos. Em criança, desmontava e reconstruía, geralmente com grande economia de peças, qualquer apetrecho em que pousasse a vista. Aos 11 anos confeccionei a partir de uma lâmina
Nacet, a primeira gazua para a ignição do carro lá de casa. Como a sorte nem sempre protege os audazes, foi nessa idade e na qualidade de condutor que tive o primeiro acidente de viação de que resultou um ferido ligeiro, uma cabeça rachada. Apanhei-lhe o gosto. Qualquer chave comum, amorosa e pacientemente desbastada à lima, um apalpa-folgas e até os plebeus clips e corta unhas me permitiam materializar o sonho de montar tudo o que roncasse e bebesse gasolina. Por puro divertimento, fui-me aperfeiçoando. As viaturas de vizinhos e familiares pernoitavam onde acabava a gasosa, mas também podiam aparecer estacionadas sobre os relvados de jardins públicos ou encavalitadas em degraus de igreja.
Aos 17, já me encontrava num escalão mais especializado e competitivo, o das motos. Pilotando uma dessas máquinas, tive outro acidente que me podia ter custado a viola. Safei-me com uma tíbia e peróneo feitos num oito. Fui superiormente tratado pelo senhor Manuel Coelho de Porto de Mós, na altura o melhor endireita da região e, em dois meses, pude voltar ao activo com notável enriquecimento da minha colecção de automóveis escaqueirados. Até que, um encontro imediato de primeiro grau com o homem vestido de preto, no Tribunal Judicial de Ansião, pôs termo a uma promissora carreira. E ainda há quem diga que a juventude de hoje está perdida!
Como as outras, a CCaç 2753 era uma companhia séria, de gente séria, com uma administração acima de qualquer suspeita. Tirando o caso da trombadinha que o
Sant’Amaro deu no baú onde o
Santa Maria guardava os dólares remetidos pela família da América para o tabaquito, nunca dei conta de que alguém deitasse a unha ao do alheio. Foi por isso que, com surpresa, tomei conhecimento da presença no K3 de um senhor major vindo de Bissau para uma espécie de auditoria às contas da Unidade.
À porta da secretaria, detecto sinais de embaraço. Mãos nos bolsos, cigarro nos lábios à Bogart, o
Leanito parece inquieto. E tem razões para isso. Lá dentro, está em jogo a sua reputação de militar impoluto. O Ribeiro mais o Marques, saem a voar baixinho e assim como quem não quer a coisa, vão até ao bar. Sozinho a enfrentar a
fera, fica o Mexia. Senhor de uma barriguita cuja bitola já na altura não lhe permitia ver o
coiso, transpira que nem um suíno, salvo seja. De cu para o ar e nariz enfiado nas gavetas da mobília, remexe a tralha. Sentado à secretária, entre o divertido e o furibundo, o major tem o ar de quem não acredita no que está a acontecer... o segredo do cofre levou tal sumiço que ninguém o encontra.
Vitor, eis o teu momento de glória, diz-me uma vozita ao ouvido. Agarra-o rapaz, porque esta merda de guerra pode não te oferecer outro. Decido avançar.
- O meu Major dá-me licença?
- ???
- Se me permitisse, gostaria de tentar abrir o cofre.
- Ah, faça favor.
O cofre, um matacão preto em ferro, deve pesar meia tonelada, seguramente. É do tipo monobloco com chave, tranca accionada por um volante central e fechadura secundária comandada por seis roletes alfabéticos. Isto vai ser canja!
Encosto-lhe o ouvido. Acaricio os roletes enquanto lhes observo as folgas e escorrências de óleo, assim como os movimentos quase imperceptíveis determinados pela pressão da tranca. Em menos de cinco minutos, o sistema rende-se. O major, excitadíssimo, salta como perdigueiro em cima da caça. Era vê-lo a farejar caixas, envelopes, papelada.
Inchado que nem um peru, afivelo uma expressão de fingida modéstia e peço autorização para me retirar. Preparado para receber o aplauso e agradecimento da multidão, muito justamente devidos a quem deu provas de tamanha
expertise. Porém, oh mundo ingrato, sinto-me fuzilado pelo olhar reprovador do Leão que, do alto do seu metro e sessenta e cinco, resmunga entre dentes:
- O meu Alferes arranjou-a bonita, arranjou. Olhe, depois não se esqueça de dizer que a comida não presta.
Dizendo isto, saca a mão do bolso e vira-me a palma: R…S…T…
De braço dado com o major, lá se foram até Bissau os oito contitos do saco azul.
Nota: Personagens e glossário, pela ordem em que aparecem no texto:
Carroça – é a alcunha pela qual o senhor Manuel é mais conhecido.
Ratado – roubado no peso.
Com gola – mal cheio. Também se diz com fita.
Penalty – copo de 2,5 dl de vinho
Apalpa-folgas – instrumento semelhante a um canivete suíço com várias lâminas de aço, muito finas. Serve para ajustar a folga das válvulas na cabeça dos motores.
Manuel Coelho – o nome e morada são verdadeiros, assim como o facto de ter sido ele quem me tratou. Se tivesse ido para o hospital, o mais certo seria ter ficado coxo para o resto da vida.
Ansião – concelho do distrito de Leiria a que pertencia a minha freguesia, Chão de Couce. O julgamento deu-se em 1966. Estava relacionado com um passeio numa moto emprestada. Fui julgado à revelia (ai não…) e absolvido!!! E ainda há quem não acredite na justiça.
Sant’Amaro – por razões óbvias, o nome do santo não é este. O rapaz ganhou a alcunha porque logo no segundo dia de recruta, alegando o cumprimento imperioso e urgente de uma promessa ao tal santo, fez um peditório junto dos camaradas cujo produto gastou em vinho, cerveja e cavacos (marisco açoriano). Andou grosso durante uma semana. Após o saque irregular, não se conteve e viajou até Farim onde adquiriu alguns bens na casa Libanesa. A operação policial posta em campo descobriu rapidamente o rato através dos sinais exteriores de riqueza. Teve uma rebanhada de filhos, quase todos a residirem na América, aos quais se juntou recentemente depois de uma vida como pescador em Vila Franca do Campo.
Santa Maria – alcunha verdadeira do soldado Alves por ser natural daquela ilha, único aliás, na Companhia. Era um garnisé, asmático, incapaz de dar dois passos sem ficar com os bofes à boca. Contudo, fumava dois maços de tabaco por dia. Só por milagre é que ainda poderá estar vivo.
Bogart – Humphrey Bogart
Leanito – 1º Sargento Leão. Alentejano de Portalegre, andaria pelos cinquenta anos. Bom homem, faleceu há mais de duas décadas.
Ribeiro – 2º Sargento do QP. Fino que nem um rato, chegou a Chefe. Vive Lordelo do Campo, próximo de Vila Real.
Marques – amanuense, de Rio Maior.
Mexia – 2º Sargento do QP, alentejano de Vila Boím. Um gajo porreiro. Vi-o pela última vez há cerca de quatro ou cinco anos. Devido ao excesso de peso (200kg?), andava a ser seguido numa consulta de endocrinologia em Santa Maria.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3585: Histórias de Vitor Junqueira (11): Um conto (triste) de Natal