Camarigo Carlos Vinhal, Saudações.
Antes de mais, desejaria deixar bem expresso que este trabalho é um repositório do que já foi divulgado, sobre as memórias do ex-Tenente Reserva Naval Alexandre Carvalho Neto e que ao tempo foi Secretário do General Spínola, na Guiné e do Dr. Marcello Caetano, em S. Bento. Foi um posto de observação privilegiado dos últimos anos do anterior regime, sendo uma testemunha única no relacionamento entre estes dois governantes. Tais memórias estão insertas na Revista Expresso n.º 1299, de 20 de Setembro de 1997.
Como é princípio assente, aquando das facilidades concedidas para a partilha da informação, agora agradeço com a devida vénia, por incumbência a Srª. D. Sónia Afonso, do Serviço de Cliente Gesco S.A. “Jornal Expresso” e por inerência o Sr. jornalista Ricardo Costa, Director da Publicação Expresso, bem como o Sr. José Pedro Castanheira, jornalista autor do texto e ao Sr. Alexandre Carvalho Neto, pela utilização das suas fotos.
Após vários meses, foram concluídos os contactos achados por convenientes (agradeço também o apoio do camada ex-Ten. RN Manuel Lema Santos) e recebidas as autorizações para os fins solicitados, resolvi então organizar este trabalho e executar de forma a não alterar a essência do conteúdo do texto.
Enuncio embora sucintamente, que tendo nascido em Lisboa em 1943, o Dr. Alexandre Carvalho Neto, foi o primeiro filho de 14. Educado no Colégio de S. João de Brito, em Lisboa, fez o Curso de Direito, tendo terminado em 1966.
No ano seguinte concorreu à Marinha, obtendo a especialidade de Administração Naval, tudo indicando que o Aspirante se livraria da Guerra Colonial e ficaria na Metrópole. Um belo dia porém, foi chamado ao gabinete do Chefe de Estado-Maior da Armada, Almirante Reboredo e Silva, onde lhe comunicaram que fora escolhido para ir para a Guiné.
Memórias de Alexandre Carvalho Neto
Ao serviço do General Spínola, na Guiné e de Marcelo Caetano em São Bento
O jurista - aspirante aterrou no aeroporto de Bissalanca em Setembro de 1968. Em Bissau, o homem forte chamava-se António de Spínola, chegado à província em Maio.
O anterior Comandante General Arnaldo Schulz, enquanto ali permaneceu não melhorou a situação sócio-militar. A situação era absolutamente catastrófica à beira do colapso, conta Carvalho Neto. Bissau ficou a estar praticamente cercada. Durante meses ouviam-se distintamente os rebentamentos em Tite, que fica na outra margem do Rio Geba.
Guiné > Bissau > Aeroporto de Bissalanca > Março de 1970 > O Ministro do Ultramar, Silva Cunha, visita a Guiné. Acompanham-no Pedro Cardoso, António de Spínola, Almeida Bruno e Carvalho Neto.
A iminência de uma derrota militar fora constatada pelo próprio Presidente da República, Américo Tomás, na visita que fizera à Guiné em Fevereiro de 1968.
Quando o Almirante Tomás regressou a Lisboa, teve uma conversa com Salazar e disse-lhe que a guerra estava por um fio. Salazar chamou então o General Schulz à Metrópole e destituiu-o de Governador e Comandante-Chefe. Schulz ainda voltou a Bissau, para se despedir e “empacotar” várias lembranças da Guiné, trouxe-as para Lisboa. Carvalho Neto disse que o episódio foi relatado por um funcionário civil do Palácio do Governador, em Bissau, que fazia a comparação com a seriedade do Spínola.
A primeira prioridade de Spínola foi de carácter militar. Com sucesso reconhecido até pelos inimigos do PAIGC. Ao fim de seis meses, evocou Carvalho Neto: "Deixámos de ouvir explosões em Bissau. E em menos de um ano a província estava pacificada”.
O jovem Subtenente que nunca ouvira falar de Spínola, foi integrado no Gabinete Militar. "Éramos quatro da Marinha, outros tantos da Força Aérea e os restantes oitenta do Exército, a maior parte de Cavalaria, a Arma de que Spínola era oriundo".
A primeira tarefa de que fora incumbido era não só burocrática, como nada estimulante: A contabilização das baixas em combate. Da sua mórbida estatística constaram os três Majores mortos à queima-roupa pelo PAIGC, em Abril de 1970, um crime que pôs termo a uma prolongada negociação entre as forças inimigas. Antes desta matança, e durante três ou quatro meses, não houve praticamente mortos em combate, o que é um dado sintomático da espécie de tréguas que rodeou aquelas conversações.
Em Abril de 1969, Marcelo Caetano visitou a Guiné, num périplo que também incluiu Angola e Moçambique. Foi uma visita histórica, ou não fosse a primeira de um Chefe de Governo em cinco séculos! Velhos conhecidos, Alexandre Carvalho Neto cumprimentou afectuosamente o novo Presidente do Conselho. "Havia entre nós uma relação de amizade pessoal", explica. O facto não passou despercebido na pequena aldeia que era Bissau. Talvez por isso, decorridas algumas semanas o Tenente da Marinha foi destacado do Gabinete Militar para o Gabinete do Governador.
Guiné > Bissau > Salão Nobre do Palácio do Governador > Março de 1970 > Numa cerimónia presidida por Silva Cunha, Spínola e Pedro Cardoso. Carvalho Neto é o primeiro da esquerda.
O Secretário do Governador passou a lidar diariamente com Spínola e com o Secretário Geral da Província e número dois da Administração, o então Tenente-Coronel Pedro Cardoso. Spínola tinha uma capacidade de trabalho completamente maluca. Acordava pelas quatro da manhã e trabalhava no quarto até às oito. A manhã reservava-a para as funções militares, incluindo as visitas às frentes. A seguir ao almoço fazia uma pequena sesta e só então ia ao seu gabinete de Governador, onde trabalhava das três até às seis. Ao fim da tarde tinha o `briefing´ diário com as chefias militares. Normalmente voltávamos a trabalhar depois do jantar, até à meia-noite. Ele tinha uma teoria, que estava sempre a apregoar: “Não há nada melhor para descansar do que mudar de actividade”.
Dos raros militares colocados em Bissau licenciados em Direito, Carvalho Neto fazia de tudo um pouco; secretariar o Governador, receber visitas, tratar da correspondência, etc.
Nas várias “entouranges”que o rodearam, os hieróglifos de Spínola ganharam fama. Em jeito de caricatura, o ex-Secretário gostava de dizer que Spínola tinha quatro tipos de letras: uma que toda a gente entendia; outra que só os familiares e os colaboradores bem treinados liam; outra só ele percebia; e, por último uma letra que nem ele próprio decifrava. Quantas vezes aconteceu ele ser incapaz de perceber o que tinha escrito, na sua letra típica e muito bonita, quase sempre a tinta preta, mas ininteligível!
Guiné > Bissau > Março de 1970 > Varanda principal do Palácio do Governador. Ao centro, Silva Cunha com o chapéu a corresponder aos vivas dos manifestantes; pela direita: o ex-1.º Cabo Fotocine e o ex-Ten RN Alexandre Neto.
O monóculo que caiu na sopa
Alérgico ao ar condicionado, nem por isso o General largava o aprumo enquanto trabalhava no gabinete. Entre paredes, trocava o famoso monóculo por óculos de ver ao perto. O monóculo era apenas um enfeito, não lhe servia para nada, porque não era graduado. Fora na Alemanha da II Guerra Mundial, a exemplo dos Oficiais de formação prussiana, que Spínola começara a usar o monóculo e foi um hábito que nunca perderia. Ele tinha uma boa colecção em casa, mas não eram de vidro, eram de material plástico. Uma vez, numa inspecção ao rancho de um aquartelamento, deixou cair o monóculo na sopa, que estava muito quente, e aquilo ficou empenado e até derreteu um bocado.
Pelas mãos do Tenente-marinheiro passou a correspondência trocada com o Ministro do Ultramar Silva Cunha, o titular da Defesa Venâncio Deslandes, e o próprio Marcelo Caetano. "Cheguei a tratar de alguns ofícios muito secretos sobre a preparação da Operação Mar Verde - a invasão a Conacri, em Novembro de 1970". Enquanto Spínola esteve na Guiné, as coisas correram quase sempre bem. "Ele era considerado um bom General e tinha apoio do Governo Central". Seria exagerado falar propriamente de uma relação cordial, muito menos de amizade entre ambos, mas é indiscutível que havia uma boa relação institucional. Bem melhor por exemplo do que com o Ministro do Ultramar, Silva Cunha, com quem o General não se entendia muito bem. A facilitar a articulação entre o Governador e o Chefe do Governo, estavam opiniões muito semelhantes sobre o Ultramar e por isso “falavam pessoalmente”.
Finda a comissão guineense, Carvalho Neto regressou à Metrópole no início do Verão de 1970. Em Lisboa, o ex-miliciano tratou de dar novo rumo à vida. Marcelo soubera pela mãe do jovem Alexandre que este estava à procura de emprego. O Chefe do Governo necessitava de um jurista para o seu gabinete. "Aceitei o convite. Conhecia-o, era uma pessoa estimável, eu estava desempregado, porque não?"
Da janela de São Bento, Carvalho Neto assistiu de perto aos últimos dias do regime. A contagem decrescente disparou com a publicação do livro Portugal e o Futuro. O Spínola foi a São Bento, sem qualquer aviso, oferecer um exemplar ao Marcelo. Mas não era assim que este funcionava, pelo que não o recebeu de imediato. O General estava com pressa, deixou dois exemplares e foi-se embora.
"A leitura do livro deixou Marcelo sem ilusões, como ele admite do seu volume de memórias, Depoimento. Ficou de cabeça perdida depois de o ter lido, confirma o ex-Secretário, só dizia isto é o princípio do fim”.
O ex-Secretário soube que o golpe de 25 de Abril estava na rua pela rádio. Surpreendido como quase todos os portugueses, foi para a residência oficial onde permaneceu todo o dia, na companhia de quase todos os membros do gabinete.
Marcelo como se sabe, procurou refúgio no Quartel da GNR, no Carmo. A sua rendição teve momentos verdadeiramente dramáticos e não completamente conhecidos.
O último secretário do Presidente do Conselho conta que durante as horas em que esteve sitiado pelas forças revoltosas do Capitão Salgueiro Maia, Marcelo Caetano ponderou três soluções possíveis: "Ou ia para Angola, em resposta à sugestão que lhe terá sido feita, a partir de Luanda, pelo então Governador-Geral Eng. Santos e Castro; ou entregava o poder nas mãos de Spinola; ou suicidava-se".
É certo que Carvalho Neto não viveu esses momentos cruciais. "Quem lhe contou foi o Comandante Coutinho Lanhoso, que esteve no Carmo e presenciou tudo. O Prof. Marcelo pediu a pistola ao seu Adido Militar e colocou-a em cima da mesa. Se o poder não fosse entregue ao General Spínola e o Quartel fosse invadido, ele suicidar-se-ia".
O poder acabaria por ser entregue a Spínola. Foi a “condição” de Marcelo, assim sintetizada por Carvalho Neto:
"Entregar o poder a Spínola, só a Spínola e a ninguém mais que Spínola".
Esta última vontade do governante apeado é bem reveladora da confiança que, apesar de tudo, Marcelo continuava a ter no general do monóculo;
"Não me venham, portanto, dizer que os dois homens não se entendiam. E a verdade é que Spínola correspondeu em pleno, ao enviar Marcelo para a Madeira e, depois, para o Brasil, com vários políticos aos saltos".
Resta-me, portanto concluir, que tratando-se de um texto extenso fiz contenção na transcrição e adaptação de parte das memórias de Alexandre Carvalho Neto. Quem, atentamente, debruçar-se sobre o mesmo compreenderá que dizem respeito às suas funções como secretário ao serviço do General Spínola, na Guiné - 1968/70 e que no dia 25 de Abril de 1974 era secretário pessoal de Marcelo Caetano, em São Bento. Pelas suas mãos passou grande parte da correspondência entre o General e o Presidente do Conselho.
Com um Abraço para todos
Arménio Estorninho
CCaç 2381 “Os Maiorais” de Empada
Guiné - 1968/70
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8656: Álbum das Glórias (52): Ordem de Serviço N.º 43 do BCaç 2892, de 18 Fevereiro 1970 (Arménio Estorninho)
Vd. último poste da série de 16 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8912: Recortes de imprensa (51): Strela, a ameaça ao domínio dos céus do ultramar português - II Parte - Revista da FAP, Mais Alto, n.º 393 , Set / Out 2011