Post do João Tunes (um camarada que já não precisa de apresentação):
Caro Luís,
Confesso que já começo a ficar saturado de te elogiar a árdua labuta. Porque se não se deve embirrar com alguém estando sempre a expor os seus defeitos, isso do elogio perpétuo também não é coisa boa. Porque por este andar, tens por aí, tarda nada, numa qualquer parada de um quartel, ainda a salvo da passagem a condomínio privado, uma estátua e peras (e uma pêra nessa estátua, diga-se, esteticamente falando, até não descondizia com a ilustre personagem na reprodução do seu marcial recorte facial).
E, acho eu, a última coisa que um homem deseja, enquanto vivo (depois, é como diz o outro - façam o que quiserem que já não estou cá para me ralar), é virar feito pedra, bronze ou platina que seja. Assim, desculparás se, um dia destes, conseguir lobrigar defeito teu, daqueles de monta ou mesmo sem monta (que nenhum de nós foi de Cavalaria), como são os da condição humana, e to despeje por aqui. Não será por mal nem menor consideração, toma nota desde já. Apenas a amizade sincera de não permitir que entres na galeria dos mitos, o que deve ser aborrecido até dizer chega. Que mais não seja pelas péssimas companhias que obrigatoriamente lá se devem ter por falta de direito a escolha.
Ainda não é desta que te descomponho o porte impoluto de castrense miliciano de gema e, mais uma vez, vai um elogio e um agradecimento. Refiro-me à tua boa inspiração de descobrires e transcreveres a excelente entrevista do nosso camarada Luís Carvalhido ao Jornal de Barcelos. Ela revela um saber de profundidade serena, em que a acutilância e o grito não se perdem. Sobretudo na forma inspirada como nos mostra a essência do conflito entre o que foi o nosso estar, no que vivemos e no tempo restante em que defrontamos a memória, sempre em desarranjo continuado com uma sociedade que tão mal sempre viveu com o seu passado, pronta a cantar o hino com os sucessos e as glórias e metendo para debaixo do tapete as patifarias, sobretudo as mais grossas. Gostei particularmente, se o realce me é permitido, da passagem em que o nosso camarada Luís Carvalhido disse:
Na altura éramos todos meninos de nossa mãe. Não tínhamos sido ensinados a fazer mal, não tínhamos, sequer, sido ensinados a resistir ao mal. Na recruta fomos muitas vezes despersonalizados até ao mais pequeno pormenor. Os oficiais tentavam preparar homens para uma guerra - não sei se da melhor ou da pior maneira - e o que é certo é que o faziam duma forma que agredia sistematicamente o indivíduo. Isto aumentava o tal stress, mas havia outros. Fazíamos a recruta, a especialidade e ficávamos já com outro stress que era ficar à espera dos dez dias fatídicos. Sempre que nos ofereciam dez dias de férias sabíamos que era o caminho para a guerra. E depois perguntávamos: eu vou para a Spinolândia? A Spinolândia era a Guiné, porque estava lá o Spínola, e a Guiné era um Vietname. Era o terror de quem tinha 20 anos
E se apreciei particularmente este trecho do falar lúcido do nosso camarada, isso prende-se a ele colocar os pontos nos ii quanto ao chamado stress pós-traumático dos ex-combatentes, localizando, com rigor, o início do distúrbio. Pela minha experiência pessoal e vivencial colectiva, tudo começava onde ele colocou a génese - a militarização forçada, depois a espera do resultado da roleta da mobilização, na esperança de lhe não calhar a bola mais preta (a Spinolândia), que, afinal, a tantos calhou em desdita. De facto, o stress maior não foi com o desembarque nem com os azares nos caminhos e nas bolanhas (qualquer gajo, como animal de hábitos que é, a tudo se adapta, melhor ou pior). Ali, julgo que só nos agravámos.
Falando por mim. Estava eu na santa vida quarteleira do Regimento de Infantaria 1, na Amadora, perto de casa, com transporte à porta e horário de funcionário público, casadinho de fresco para mais, quando num dia que marcou - no negro - a minha vida, me chamam ao comando, entregam-me uma licença para gozo imediato de férias pré-mobilização e uma outra guia, esta de marcha, para me apresentar, após as férias de nojo, no quartel de Porto Brandão e embarque breve num Batalhão de Caçadores destinado à Guiné.
Pelo que soube então, o Batalhão em que era incorporado já estava a terminar o IAO tendo acontecido que o alferes de transmissões, um qualquer Chico mas daqueles bons e felizes, insatisfeito por tão reduzida prestação guerreira que lhe queriam calhar na lide com rádios, antenas e criptografia, se havia oferecido para os rangers e haviam resolvido fazer-lhe a vontade. Assim, o alferes Chico largou o IAO e foi direito a Lamego cumprir o treino da sua ambição guerreira e, com o rolar da escala, calhou-me substituí-lo.
O repentino da sucessão breve no tempo até embarcar no Niassa representou duas das semanas mais negras da minha vida. Havia o espectro da Guiné e a falta de tempo de adaptação. O mundo pareceu-me que tinha caído à minha volta. Casado há um ano, senti perder sentido tudo aquilo que tinha projectado em partilha com a minha companheira. E senti-me, verdade seja dita, uma rês a caminho do matadouro. Ou um palerma incoerente por ser contra a guerra colonial e ir fazê-la contra Amílcar Cabral, um dos ícones da minha juventude. Apeteceu-me desertar, depois sobrou-me o sentimento de cobardia de não o fazer, por não ter tido a coragem de largar um lar ainda em parto entusiasmado do começo. Foi ainda neste sofrimento fresco, contra a guerra e contra mim próprio, que subi as escadas do Niassa em Maio de 1969. Depois, o contacto com a guerra limitou-se a agravar a nódoa original. Que não foi pouco. Afinal, nós tínhamos mesmo o nosso Vietname.
O famoso stress levou-me a cometer uma loucura que me marcou a vida para sempre. Na visão alucinada da morte que julgava prometida, nesse medo humano de deixar corpo e alma aos vinte e poucos anos de vida, egoisticamente, entendi que não ia deixar o canastro na Guiné, morrendo e matando contra uma minha causa, sem deixar no mundo uma semente que me continuasse a vida, aquela que eu temia perder. E foi assim, emocionalmente, que convenci a minha companheira que engravidasse durante as minhas primeiras férias.
Desse acto egoísta, de desespero vital, nasceu a minha filha Catarina. Não me arrependo da obra saída, ela é uma mulher que me encheu e enche parte importante da minha vida (e estou a dever-lhe um neto que não é coisa pouca), mas não me perdoo, ainda hoje, de, pelo meu egoísmo desesperado, ter colaborado em metê-la no mundo para depois, conhecê-la fugazmente com dois meses, numas segundas férias, e tê-la para educar e amar já com mais de um ano de idade, sendo recebido com a repulsa com que, nessa idade, se recebe um estranho que entra casa dentro. Claro que custou mas ... foi. Quanto à marca do egoísmo meu, essa ficou-me sempre. Até hoje. Talvez porque, felizmente, tenha sido a marca mais perdurável de ter passado pela guerra na Guiné. Ou seja, cada qual com as suas dores.
Perdoem o pessoalismo da partilha. Abraço para ti. Abraços para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 3 de agosto de 2006
quarta-feira, 2 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1019: O ataque a Bambadinca (28 de Maio de 1969) (Carlos Marques dos Santos)
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):
O ataque a Bambadinca (1)...
Dia 28 de Maio de 1969 ... Por volta das 00.30h ouvimos rebentamentos para os lados da Moricanhe. Mansambo ficava a sul de Bambadinca.
Afinal era Bambadinca. Era a primeira vez que tal sucedia.
As minhas notas dizem que a 29 de Maio de 1969 fui informado às 05.30h que o meu Pelotão, o 3º da CART 2339, iria reforçar a sede de Batalhão por 15 dias.
Reforçar a sede do Batalhão? Coisa grossa, pensámos.
Seguimos e aí tomámos conhecimento da destruição parcial do pontão do Rio Udunduma [, afluente do Geba, na estrada Xime-Bambadinca].
Chegados à sede de Batalhão, iniciámos às 16h, com o Pel Caç Nat 63, a ocupação do pontão para sua defesa e de Bambadinca.
No dia 30, fomos rendidos por 2 pelotões. Dia 31, pelas 14.00h fomos novamente para a ponte.
Dia 2 de Junho de 1969, pelas 20.30h, rebentamentos. Era Amedalai. 15 minutos depois Demba Taco e imediatamente Moricanhe.
Dia 4 Moricanhe era evacuada para reforço de Amedalai. Dia 11, Mansambo era atacada e logo depois o Xime.
Regressámos a Mansambo.
A futura CCAÇ 12 passou aqui nestes dias conturbados para iniciar a sua comissão.
CMS
________
Nota de L.G.
(1) Vd. posts:
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!
31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou
Terceira parte de um conjunto de três posts do João Tunes (1):
Fonte: Bota Acima, blogue do João Tunes > 6 de Abril de 2004
E O JIPE NUNCA VOOU
As noites dos oficiais em Catió seguiam a rotina própria de quem não tem outra escolha que dar cabo do tempo. Esperando que a comissão chegasse ao fim. Esperando. Não havia trincheiras nem valas e os edifícios eram todos cobertos (apenas) de chapas de zinco. Spínola não permitiu a abertura de valas de abrigo para que a tropa não se degradasse em espírito defensivo. Isto dizia ele. Não havia condições para se sair do quartel e, mesmo que houvesse, não havia para onde ir.
Na época, Catió já estava isolada dentro da zona ocupada pelo PAIGC. O abastecimento era feito apenas de avião. E estes não voavam de noite nem quando as condições meteorológicas eram adversas. Na época das chuvas, então, passavam-se semanas de completo isolamento. A comida era má e repetitiva e a falta de frescos (legumes, tubérculos, fruta) muito frequente. Passavam-se semanas a fio em que, ao almoço e ao jantar, se repetia a ementa de enlatados (comemos chispe com feijão de conserva, dias e dias). Quando a repugnância não permitia ingerir mais chispe com feijão, o recurso era consumir quilos e quilos de ostras e camarões, em que o rio próximo era rico, comprados à população a preços insignificantes. Até se enjoar a ostra e o camarão e se conseguir voltar a atacar a chispalhada enlatada.
Era usual o Nino Vieira mandar morteiradas para flagelar o quartel durante a noite. Com a continuação, a direcção de tiro era eficiente e praticamente todas as granadas acertavam dentro do quartel. Havia que retaliar de imediato com artilharia pesada e tratar das baixas quando as havia. Depois, avisar Bissau e esperar pela madrugada seguinte para que os caças Fiat fizessem estragos nas posições do PAIGC e os helis evacuassem os mais azarados na roleta da guerra.
Naquelas condições, terminado o jantar, não apetecia mesmo nada ir para a cama. Porque o que custava mais era estar-se deitado na cama, olhando o tecto zincado e constatar que aquilo era o mesmo que uma mera folha de papel como obstáculo à entrada de um morteiro. Depois de jantar, todos os oficiais se juntavam no bar e bebia-se, bebia-se, até deixar de se ter medo por não se ter lucidez para se sentir o quer que fosse. Os serões iam decorrendo tristes porque se estava num estado de letargia de espera, sempre à espera. Por volta das onze da noite, era habitual o Major Rodrigues, Segundo Comandante e com uma licenciatura em Farmácia, ir ao quarto buscar um calhamaço de Química Orgânica e organizar comigo (único parceiro com formação em Química) uma interminável sabatina de acerto de equações de reacções químicas. Até as cabeças nos doerem e termos coragem inconsciente de irmos à deita.
Uma certa noite, o Major Pessoa, o Oficial de Operações, lembrou-se de fazer um inquérito e perguntar aos presentes quem era a favor da continuação da guerra contra o PAIGC. Só um alferes miliciano (que, entretanto, metera os papéis para seguir carreira na GNR e que os restantes desprezavam por ser chico) disse que sim, concordava com a presença portuguesa na Guiné. Todos os restantes, oficiais, milicianos e de carreira, entendiam que era um estupidez teimar numa guerra perdida. Na altura, estava longe de saber que o Movimento dos Capitães já germinava em algumas cabeças...
Às vezes, o Comandante, Tenente-Coronel Melo, não se aguentava com os copos e procedia a uma liturgia que se repetiu muitas vezes. Levantava-se a custo e dizia-nos, autoritário:
- Senhores oficiais, façam favor de embarcar no meu jipe.
E lá ia toda aquela dezena de oficiais que havia no quartel, à molhada numa viatura de quatro lugares. O Comandante compunha a boina e conduzia o jipe para a pista de aviação em terra batida. Durante uma dúzia de vezes, o Tenente-Coronel acelerava o jipe pela pista fora, simulando o descolar de um avião.
Aquelas gincanas eram acompanhadas pelos gritos desafinados do oficialato etilizado de Catió, em que dominavam "TIREM-ME DAQUI!", "A GUINÉ É UMA MERDA!", "QUERO IR PRA CASA!", "MORTE AO CABRÃO DO CACO!", para só citar as passíveis de transcrição.
O jipe do Comandante nunca levantou voo. Quando convencido desta evidência, ele parava o jipe e dizia:
- Como esta merda não levanta voo, vamos fazer uma manifestação contra a PIDE.
Era então que ele embalava o jipe até parar frente às instalações da delegação da PIDE em Catió (era fora do quartel e chefiada por um agente europeu que vivia lá com a mulher). Então, normalmente por volta das duas da manhã, o oficialato da Guiné deitava cá para fora toda a força que restava e gritava, em uníssono, "MORTE À PIDE!".
Depois de o protesto se repetir meia dúzia de vezes, era o tempo de regresso, darmos voltas pelo escuro até irmos para a cama e esperar, esperar sempre, confiando que a noite não trouxesse trovoada. E assim se foi fazendo a catarse da espera em Catió.
A maioria de nós regressou. Não no jipe do Tenente-Coronel Melo mas sim de navio ou de avião requisitado à TAP. Andamos por aí com os parafusos mal apertados. Mas houve tantos, tantos, que só esperaram. Sem direito a viagem de volta. E sem terem terminado a catarse. Apenas remetidos ao silêncio absoluto com a vantagem única de não ouvirem os patrioteiros de hoje, saudosistas do império, dizerem que estivemos ali a defender a Pátria.
Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. posts de:
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!
Fonte: Bota Acima, blogue do João Tunes > 6 de Abril de 2004
E O JIPE NUNCA VOOU
As noites dos oficiais em Catió seguiam a rotina própria de quem não tem outra escolha que dar cabo do tempo. Esperando que a comissão chegasse ao fim. Esperando. Não havia trincheiras nem valas e os edifícios eram todos cobertos (apenas) de chapas de zinco. Spínola não permitiu a abertura de valas de abrigo para que a tropa não se degradasse em espírito defensivo. Isto dizia ele. Não havia condições para se sair do quartel e, mesmo que houvesse, não havia para onde ir.
Na época, Catió já estava isolada dentro da zona ocupada pelo PAIGC. O abastecimento era feito apenas de avião. E estes não voavam de noite nem quando as condições meteorológicas eram adversas. Na época das chuvas, então, passavam-se semanas de completo isolamento. A comida era má e repetitiva e a falta de frescos (legumes, tubérculos, fruta) muito frequente. Passavam-se semanas a fio em que, ao almoço e ao jantar, se repetia a ementa de enlatados (comemos chispe com feijão de conserva, dias e dias). Quando a repugnância não permitia ingerir mais chispe com feijão, o recurso era consumir quilos e quilos de ostras e camarões, em que o rio próximo era rico, comprados à população a preços insignificantes. Até se enjoar a ostra e o camarão e se conseguir voltar a atacar a chispalhada enlatada.
Era usual o Nino Vieira mandar morteiradas para flagelar o quartel durante a noite. Com a continuação, a direcção de tiro era eficiente e praticamente todas as granadas acertavam dentro do quartel. Havia que retaliar de imediato com artilharia pesada e tratar das baixas quando as havia. Depois, avisar Bissau e esperar pela madrugada seguinte para que os caças Fiat fizessem estragos nas posições do PAIGC e os helis evacuassem os mais azarados na roleta da guerra.
Naquelas condições, terminado o jantar, não apetecia mesmo nada ir para a cama. Porque o que custava mais era estar-se deitado na cama, olhando o tecto zincado e constatar que aquilo era o mesmo que uma mera folha de papel como obstáculo à entrada de um morteiro. Depois de jantar, todos os oficiais se juntavam no bar e bebia-se, bebia-se, até deixar de se ter medo por não se ter lucidez para se sentir o quer que fosse. Os serões iam decorrendo tristes porque se estava num estado de letargia de espera, sempre à espera. Por volta das onze da noite, era habitual o Major Rodrigues, Segundo Comandante e com uma licenciatura em Farmácia, ir ao quarto buscar um calhamaço de Química Orgânica e organizar comigo (único parceiro com formação em Química) uma interminável sabatina de acerto de equações de reacções químicas. Até as cabeças nos doerem e termos coragem inconsciente de irmos à deita.
Uma certa noite, o Major Pessoa, o Oficial de Operações, lembrou-se de fazer um inquérito e perguntar aos presentes quem era a favor da continuação da guerra contra o PAIGC. Só um alferes miliciano (que, entretanto, metera os papéis para seguir carreira na GNR e que os restantes desprezavam por ser chico) disse que sim, concordava com a presença portuguesa na Guiné. Todos os restantes, oficiais, milicianos e de carreira, entendiam que era um estupidez teimar numa guerra perdida. Na altura, estava longe de saber que o Movimento dos Capitães já germinava em algumas cabeças...
Às vezes, o Comandante, Tenente-Coronel Melo, não se aguentava com os copos e procedia a uma liturgia que se repetiu muitas vezes. Levantava-se a custo e dizia-nos, autoritário:
- Senhores oficiais, façam favor de embarcar no meu jipe.
E lá ia toda aquela dezena de oficiais que havia no quartel, à molhada numa viatura de quatro lugares. O Comandante compunha a boina e conduzia o jipe para a pista de aviação em terra batida. Durante uma dúzia de vezes, o Tenente-Coronel acelerava o jipe pela pista fora, simulando o descolar de um avião.
Aquelas gincanas eram acompanhadas pelos gritos desafinados do oficialato etilizado de Catió, em que dominavam "TIREM-ME DAQUI!", "A GUINÉ É UMA MERDA!", "QUERO IR PRA CASA!", "MORTE AO CABRÃO DO CACO!", para só citar as passíveis de transcrição.
O jipe do Comandante nunca levantou voo. Quando convencido desta evidência, ele parava o jipe e dizia:
- Como esta merda não levanta voo, vamos fazer uma manifestação contra a PIDE.
Era então que ele embalava o jipe até parar frente às instalações da delegação da PIDE em Catió (era fora do quartel e chefiada por um agente europeu que vivia lá com a mulher). Então, normalmente por volta das duas da manhã, o oficialato da Guiné deitava cá para fora toda a força que restava e gritava, em uníssono, "MORTE À PIDE!".
Depois de o protesto se repetir meia dúzia de vezes, era o tempo de regresso, darmos voltas pelo escuro até irmos para a cama e esperar, esperar sempre, confiando que a noite não trouxesse trovoada. E assim se foi fazendo a catarse da espera em Catió.
A maioria de nós regressou. Não no jipe do Tenente-Coronel Melo mas sim de navio ou de avião requisitado à TAP. Andamos por aí com os parafusos mal apertados. Mas houve tantos, tantos, que só esperaram. Sem direito a viagem de volta. E sem terem terminado a catarse. Apenas remetidos ao silêncio absoluto com a vantagem única de não ouvirem os patrioteiros de hoje, saudosistas do império, dizerem que estivemos ali a defender a Pátria.
Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. posts de:
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!
Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Foto tirada no centro da povoação, atravessada pela estrada que vai para Bafatá... Uma autêntica autoestrada, garantia o Albano Costa que por lá passou em 2005, onde o jipe podiachegar... aos 120!
Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados.
O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 - que deu origem à CART 11 e esta, por sua vez, à CCAÇ 11 - e, mais trade, por motivos disciplinares, na CART 2520, Xime e Enxalé (1969). Encontrámo-nos, eu e ele, em Contuboel. Em Contuboel, perdemos o rasto um do outro. Há dias enviou-me a seguinte mensagem telegráfica:
Luís
Pela mão do 'Fora-Nada' (, o blogue), cheguei a Contuboel! Em que dia de Agosto nos poderemos encontrar?
Um grande a abraço,
Renato
O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS
É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.
Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadã, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.
Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.
Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.
Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.
Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.
Renato
O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS
É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.
Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadã, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.
Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.
Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.
Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.
Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.
Guiné 63/74 - P1016: Cansissé, terra de mil encantos (Parte III) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Foi na fonte de Semba Uala, que os nossos corpos se retemperaram de energias abaladas. Também, com exasperados desejos, se buscavam encontros de encantos.
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Um troço do rio Campossa, a nossa fronteira de sul, de águas mansas, fluindo serenamente para o grande Corubal
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Também em Cansissé se fabricava mel. A sua proveniência resultava de colmeias fixadas na copa das árvores, a fim de que cada enxame, no seu afã continuado, produzisse esse requintado néctar.
Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)
Terceira e última parte do texto do Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)(1)
Caro Luís:
Da narração que me mereceu Cansissé, enquanto o meu grupo esteve lá sediado, e que já tiveste a oportunidade de a inserir no nosso Blogue (2), constato que ficou incompleta, porquanto as fotos da célebre Fonte dos Fulas e de outros recantos não te chegaram.
Assim, para que este postal sobre o povoamento fique completa, seguem mais estas fotos, para que a nossa Tertúlia as possa contemplar. Poderá ser a parte III.
E sobre a nostalgia de Cansissé, é tudo.
Cordiais cumprimentos a toda a enorme caserna.
Idálio Reis
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)
(2) Vd. posts de:
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Um troço do rio Campossa, a nossa fronteira de sul, de águas mansas, fluindo serenamente para o grande Corubal
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Também em Cansissé se fabricava mel. A sua proveniência resultava de colmeias fixadas na copa das árvores, a fim de que cada enxame, no seu afã continuado, produzisse esse requintado néctar.
Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)
Terceira e última parte do texto do Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)(1)
Caro Luís:
Da narração que me mereceu Cansissé, enquanto o meu grupo esteve lá sediado, e que já tiveste a oportunidade de a inserir no nosso Blogue (2), constato que ficou incompleta, porquanto as fotos da célebre Fonte dos Fulas e de outros recantos não te chegaram.
Assim, para que este postal sobre o povoamento fique completa, seguem mais estas fotos, para que a nossa Tertúlia as possa contemplar. Poderá ser a parte III.
E sobre a nostalgia de Cansissé, é tudo.
Cordiais cumprimentos a toda a enorme caserna.
Idálio Reis
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)
(2) Vd. posts de:
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
terça-feira, 1 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca) (Carlos Marques Santos)
1. Mensagem do Carlos Marques dos Santos:
Luís:
Faz sentido que a vossa companhia (CCAÇ 2590) desse origem à CCAÇ 12 e a do Renato Monteiro (CART 2479) desse origem à CCAÇ 11.
Não faz sentido ser CART 11, pois as CART tinham origem na Metrópole, eram originadas em quartéis de Artilharia e eram quase todas companhias independentes.
Eu fui Fur Mil Atirador de Artilharia. No fundo tropa-macaca, como se dizia na época, mascarado de artilheiro.
2. Mensagem do Zé Teixeira:
Luís:
Da História da CART 2479 consta:
"Em Contuboel ministrou instrução a naturais de etnia fula criando uma sub-unidade mista que se transformou numa companhia de intervenção, formando a partir de Janeiro de 1970 CART 11"
Teve origem no RAL 5 - Penafiel.
Posteriormente terá passado a CCAÇ 11, pois também aparece registada uma CCAÇ 11 proveniente de uma CART 11 cuja origem metropolitana é o RAL 5, formada a partir de Outubro de 1972
Um abraço
Zé Teixeira
3. O Albano Costa mandou-nos a ficha desta unidade, retirada da publicação do Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 3º Volume: Guiné. (Mandou-nos também a ficha da CCAÇ 12, a publicar oportunamente).
CCAÇ 11
Cmdt: Cap Mil Inf Francisco António Touças; Cap Mil Cav Nuno Falcão Moreira de Sousa.
Início: 30 de Junho de 1972 (por alteração da anterior designação de CART 11).
Extinção: 23 de Agosto de 1974.
Síntese da actividade operacional:
Foi criada por alteração da designação anterior de CART 11 e era constituída por quadros e praças especialistas metropolitanos e pessoal natural da Guiné, da etnia Fula, estando então integrada no dispositivo e manobra do BCAV 3864 e com a responsabilidade do subsector de Paúnca.
Tinha ainda um pelotão destacado em Galomaro, este em reforço do BCAÇ 3872. Após recolha deste pelotão, em finais de Junho de 1970, destacou dois pelotões para Paiama, no seu subsector,[a noroeste de Paunca] em meados de Agosto de 1972 e mantendo ali apenas um, a partir de 26 de Dezembro de 1972.
Em 19 de Agosto de 1973, então integrada no dispositivo e manobra do BCAÇV 8323/73, os militares guineenses passaram à disponibilidade, sendo efectuada a sua desactivação e entrega do aquartelamento de Paunca ao PAIGC, em 21 de Agosto de 1974, com a consequene extinção dos subsector.
E,m 23 de Agosto, so quadros e outro pessoal metropolitano recolharema a Bissau, sendo a subsunidade extinta.
Observações: Não tem História da Unidade.
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
(...) "Nota de L.G. (...)"Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAÇ 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto".
Luís:
Faz sentido que a vossa companhia (CCAÇ 2590) desse origem à CCAÇ 12 e a do Renato Monteiro (CART 2479) desse origem à CCAÇ 11.
Não faz sentido ser CART 11, pois as CART tinham origem na Metrópole, eram originadas em quartéis de Artilharia e eram quase todas companhias independentes.
Eu fui Fur Mil Atirador de Artilharia. No fundo tropa-macaca, como se dizia na época, mascarado de artilheiro.
2. Mensagem do Zé Teixeira:
Luís:
Da História da CART 2479 consta:
"Em Contuboel ministrou instrução a naturais de etnia fula criando uma sub-unidade mista que se transformou numa companhia de intervenção, formando a partir de Janeiro de 1970 CART 11"
Teve origem no RAL 5 - Penafiel.
Posteriormente terá passado a CCAÇ 11, pois também aparece registada uma CCAÇ 11 proveniente de uma CART 11 cuja origem metropolitana é o RAL 5, formada a partir de Outubro de 1972
Um abraço
Zé Teixeira
3. O Albano Costa mandou-nos a ficha desta unidade, retirada da publicação do Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 3º Volume: Guiné. (Mandou-nos também a ficha da CCAÇ 12, a publicar oportunamente).
CCAÇ 11
Cmdt: Cap Mil Inf Francisco António Touças; Cap Mil Cav Nuno Falcão Moreira de Sousa.
Início: 30 de Junho de 1972 (por alteração da anterior designação de CART 11).
Extinção: 23 de Agosto de 1974.
Síntese da actividade operacional:
Foi criada por alteração da designação anterior de CART 11 e era constituída por quadros e praças especialistas metropolitanos e pessoal natural da Guiné, da etnia Fula, estando então integrada no dispositivo e manobra do BCAV 3864 e com a responsabilidade do subsector de Paúnca.
Tinha ainda um pelotão destacado em Galomaro, este em reforço do BCAÇ 3872. Após recolha deste pelotão, em finais de Junho de 1970, destacou dois pelotões para Paiama, no seu subsector,[a noroeste de Paunca] em meados de Agosto de 1972 e mantendo ali apenas um, a partir de 26 de Dezembro de 1972.
Em 19 de Agosto de 1973, então integrada no dispositivo e manobra do BCAÇV 8323/73, os militares guineenses passaram à disponibilidade, sendo efectuada a sua desactivação e entrega do aquartelamento de Paunca ao PAIGC, em 21 de Agosto de 1974, com a consequene extinção dos subsector.
E,m 23 de Agosto, so quadros e outro pessoal metropolitano recolharema a Bissau, sendo a subsunidade extinta.
Observações: Não tem História da Unidade.
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
(...) "Nota de L.G. (...)"Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAÇ 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto".
Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.
Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3).
A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).
Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.
O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).
A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).
Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).
Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).
Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.
O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).
A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).
Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).
Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006)
Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)
- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…
Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.
Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…
A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu…
Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)
- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…
Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.
Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…
A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu…
A expressão que eu ouvi na caserna – ó Pimbas, não tenhas medo! -, era para todos efeitos reveladora do baixo moral em que as NT se encontrava na Guiné, mau grau o efeito do fenómeno Spínola e do seu populismo…
Para uma grande parte dos militares, do contingente geral, e até e para muitos dos meus camaradas milicianos, ele era uma espécie de anjo justiceiro que vinha, de heli, castigar os maus (os incompetentes oficiais superiores que estavam à frente dos nossos batalhões) e encorajar o Zé Soldado, lídimo representante do bom povo português… Em breve, o BCAÇ 2852 seria decapitado pelo raio fulminante da justiça spinolista, para gaúdio da populaça…
Chovia torrencialmente nessa noite de 28 de Maio de 1969 – por ironia, uma efeméride, sempre grata aos homens do regime, embora o 28 de Maio de 1926, que instaurara Ditadura Militar, e abrira o caminho ao Estado Novo, já nada dissesse ao comum dos meus camaradas de armas, de camuflado novinho em folha, a caminho de Contuboel que ninguém sabia onde ficava…Uma efeméride que –anoteu eu – também foi comemorada, à sua maneira, pelos homens do PAIGC…
Umas horas antes tínhamos nós atravessado o Trópico de Câncer, a caminho da Guiné, a caminho de Bissau, Bambadinca, Bafatá e Contuboel…
- Fomos todos apanhados as calças na mão! – contou-me, ainda em alvoroço, um conterrâneo meu, 1º cabo telegrafista de infantaria – se não me engano - , mostrando-me um monte de cápsulas de granada de canhão sem recuo com inscrições em russo e em chinês.
- Podíamos ter morrido todos! – concluiu, hiperbólico, o meu amigo Agnelo Ferreira por cujas mãos havia passado, três meses antes, a terrível lista negra dos mortos do Che-Che, no Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969…
Depois da Lança Afiada, toda a gente dormia de cu para o ar: a Browning, junto à pista de aviação, não tinha munições; não havia segurança próxima nem valas de comunicação entre os abrigos; faziam-se quartos de sentinela sem arma; e até os básicos eram escalados como aquele maluco das cozinhas que costumava ver elefantes a pastar ao fundo da pista…
- Os gajos vieram em peso (talvez mais de duzentos!) retribuir-nos a visita que tínhamos feito ao Fiofioli… Por sorte, não houve mortos!
Ainda deu tempo para espreitar um dos quartos dos furriéis, e ver o céu estrelado: o forro tinha sido atingido por uma morteirada; a granada explodiu em cima de uma das camas; por sorte, o tuga que a ocupava, tinha-se posto a milhas, dois minutos antes...
- Por sorte não houve mortos… - comentava eu, em voz alta, para o furriel que ia a meu lado, quando a coluna retomou a marcha, agora em estrada asfaltada, em direcção à próxima paragem, em Bafatá, a capital da zona leste…
- O meu conterrâneo é capaz de ter razão: afinal nesta guerra só morre quem tem de morrer… - ironizava eu.
- Fala a voz do reviralho – interveio o Noronha que seguia à frente, ao lado do condutor – Mas olha lá, ó Camarada Sov, tu com essas ideias derrotistas e dissolventes aqui não vais longe – proferiu o Alferes, em tom de velada ameaça…
- Só espero que a sorte esteja do meu lado…
- Fia-te na Virgem e não corras!... O problema nem é esse: nesta guerra morre-se mais por erros nossos do que por mérito do inimigo… São as estatísticas que o dizem – acrescentou o Ranger, que se meteu na conversa.
- Pelo muito pouco que já vi, não me atreveria a subestimara assim tanto o adversário que temos pela frente – respondi eu.
- Deixa-te de tretas. Os turras não passam de uns cães rafeiros, que ladram mas não mordem… E os cães quando mordem, também se abatem…
- Fico a saber que não gostas de cães…
- Nem muito menos de barrotes queimados – finalizou o Noronha, já agastado com o rumo da
conversa… Por ironia do destino, iria ter que aprender a lidar, durante vinte e meses, com os barrotes queimados que lhe calharam em sorte...
Demagógico e racista, o Noronha aproveitou para contar a última que tinha ouvido, no QG, em Santa Luzia:
- Sabes como é que Deus fez o preto ?... Ao sétimo dia, depois de completada a obra da criação, Deus foi descansar mas, por esquecimento, deixou ao sol o barro com que tinha feito Adão… Quando acordou, e como já não tinha mais nada que fazer, entreteve-se a fazer bonecos, à imagem e semelhança do homem mas, para haver confusões, pintou-os de preto e mandou-os para a floresta onde já estavam os macacos…
- Grande cabrão! – não pude deixar de rosnar, para mim mesmo, ao ouvir o alarve do Noronha por quem, desde Santa Margarida, eu não podia nutrir qualquer simpatia…
E foi assim, aos solavancos, sentados costas contra costas no dorso de um mastodonte, que a nossa conversa prosseguiu, aqui e ali mais azeda, não tanto pelas diferenças de idiossincrasia, como sobretudo pela tensão e pelo cansaço da viagem, até chegarmos a Contuboel, à hora em que o sol raiava de vermelho a savana arbustiva e os bandos se macacos-cães, na orla da floresta, se organizavam para proteger os filhotes das ciladas do leopardo…
Fonte: (Pre)texto: Na Guiné, longe do Vietname (inédito) (Os nomes o pessoal da CCAÇ 12, meus companheiros de viagem, são fictícios.... As restantes personagens são verdadeiras: o Pimbas e o Agnelo, por exemplo).
Luís Graça (1981-2005)
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores:
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau
12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau
12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
1 de Agostod e 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané
(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.
(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.
Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)
Guiné > Região Leste > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > O Jorge Cabral e as suas queridas bajudas mandingas
Foto: © Jorge Cabral (2006)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Mensagem do Jorge Cabral:
Amigo Luis,
De apanhados percebo eu! Dos bons, dos divertidos, dos saudáveis apanhados.
Dos outros, maus, perversos, sádicos, falarei em dia mais azedo...
Abraço Grande,
Jorge Cabral
_____________
Também eu, apanhado me confesso !
Cada um de nós, é o que é, ou o que parece ser? Na guerra fomos nós ou encarnámos ficcionadas personagens?
Atribuíram-nos papéis. Representámos todos. Alguns improvisaram e saíram do texto. Outros, humildes figurantes, quiseram ser protagonistas. A Guiné, a Tropa, a Guerra – palco de tragédias, de comédias, de revistas.
Fomos actores. Uns bons, outros assim, assim…
Por mim falo. Eu, um apanhado-mor. Anti-militar e pacífico por natureza, como podia ter mantido a sanidade mental, se não tivesse inventado um alter ego, aquele louco alferes Cabral, do qual se relatavam estranhíssimas peripécias… (Ainda há pouco tempo um ex-alferes do Xime me perguntou se era verdade que eu convidava os turras para jantar em Missirá…).
Claro que da situação de apanhado decorriam benesses, mas também riscos… Regressar sozinho, desarmado, e de noite a Missirá…ou ir para o mato de pingalim e galões… constituíam sem dúvida, estúpidas aventuras, que me podiam ter sido fatais. Mas era assim! Constavam do guião daquele alferes Cabral…
Tal como a declaração de amor à libanesa D. Rosa, na presença do Capitão Barbosa Henriques (1), que ainda hoje conta a cena. Ou as intermináveis discussões com o Major Leal de Almeida (2), sobre a implementação da Guerrilha na Serra da Estrela…
Reconhecido o estatuto de apanhado, conquistava-se a liberdade de opinião. Podiam-se afirmar as verdades todas. Muito se divertia o Polidoro Monteiro (3), quando eu gozava o Major de Operações, dizendo-lhe que na vida civil e em Lisboa, não o encarregaria de planear a minha ida ao café, pois certamente seria emboscado…
Com o tempo, era preciso cuidado para a criatura não se apossar do criador. Não sei se o consegui, pois aquele alferes Cabral, de vez em quando, surge e faz das suas… É ele que escreve as estórias cabralianas (4) e pertence à Tertúlia.
Na semana passada, acordou no Pilão. Um fuzileiro dormia no chão, um bebé chorava, e ela já não estava… Parece que no quarto ao lado, um tal Furriel Henriques, havia desistido por não gostar da música…
Jorge Cabral
___________
Notas de L.G.
(1) Instrutor, em 1970, da 1ª Companhia de Comandos Africanos, sedeada em Fá Mandinga. Vd. post de 11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
(2) Supervisor , em 1970, da 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(3) Último comandante do BART 2917 (Bambadinca).
(4) Vd. lista das estórias cabralianas:
5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum... (inclui a estória a que deveria corresponder o nº 1 > A mulher do Major e o castigo do Cabral)
5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas) (Estória que corresponderia o nº 2)
7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: O básico apaixonado (estórias cabralianas) (Estória a que corresponderia o nº 3)
18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos.
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXV: Estórias cabralianas (5): Numa mão a espingarda, na outra...
17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá
17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIX: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba
13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCC: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti
20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXVII: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida
3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro
4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto
20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor
Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > 1969 > A morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião de um grande ataque ao destacamento em Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha: os seus livros, os seus discos, os seus escritos, os seus haveres... Esta morança era tradicionalmente destinada aos ilustres visitantes de Missirá.
Foto: © Beja Santos (2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > S/d > "Um momento de Missirá: à esquerda. Madiu Colubali, baixo de corpo, grande de coragem. Grande conhecedor do Corão e da escrita marabu; à direita, o régulo Malã Soncó, em perfeito traje de chefe mandinga - figura bíblica, bravura sem igual. Atrás, o pequeno monumento que os rebeldes destruiram e nós reconstruímos. Ao fundo, à esquerda, a mesquita. À direita, cubata destruída no ataque de Setembro. Tudo tão belo" (...)
Foto e texto: © Beja Santos (2006)
Mensagem do Beja Santos, com data de 31 de Julho de 2006 :
Caro Luís, estás a pôr à prova os [meus]dotes epistolográficos. Mas eu estou contente. Oxalá um dia possamos juntar a CCAÇ 12 e o BCAÇ 2852 num pleno onde caibam gente como eu e o Vacas de Carvalho.
Amanhã, despeço-me mas prometo levar para férias alguns episódios a latejar. Enviei-te hoje fotografias e bilhetes postais que julgo de uso interessante. Uma das fotografias é Bambadinca em 68. Tenho uma supresa para ti: vou publicar cartas com poemas inéditos do Ruy Cinati, que ele enviou em 69 e 70. Esclareço que perdi tudo nos fogos de Março de 69: livros, discos e respectivo aparelho, toda a correspondência. Felizmente que a memória funciona. E felizmente também que o nosso blogue é um hino à vida. Recebe a cordialidade do Mário.
Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável
O BCAÇ 2852, para mim, era a tropa de Bambadinca. Depois de fazer a bolanha de Finete (cerca de 4 Km de uma língua de terra onde passava à tangente um Unimog 411), chegava ao Geba e gritava pelo canoeiro, Mufali.
Feita a cambança, percorria uma centena de metros até ao estanco do Sr Tavares, onde metia sempre dois dedos de conversa. Daí subia a rampa para Bambadinca, já com as tarefas distribuídas: um grupo ia buscar comida, outro dirigia-se às munições, um outro ao posto de saúde, mais outro em direcção à delegação do Batalhão de Engenharia.
Eu ia fazendo a ronda, portava-me como um capataz, regateando, vociferando, pedindo mais e melhor. Eu tinha autoridade para pedir mais pois estava para lá do fim do mundo. Daí a naturalidade com que roubava da messe jornais desportivos, a revista Flama, alguns jornais diários datados do mês anterior.
Este circuito que passava pela manuntenção, reabastecimento, alimentação, sargento enfermeiro, conversas com mecânicos radiomontadores, sapadores, etc., gerou estimas e os inevitáveis desencontros e pequenos arrufos. Ainda há uns anos atrás quando o pintor Sá Nogueira, de quem fui amigo, festejou 79 anos, fui a um almoço onde o seu marchand se apresentou assim:
- Sou o Dário, o vagomestre de Bambadinca, lembra-se?
A minha resposta foi pronta:
- Ainda bem que não me lembro, pois vagomestre era a gente mais odiada da guerra.
Depois desfiz-me em explicações com o Dário, lembrando-lhe por exemplo com os desacertos do abastecimento e a época das chuvas onde estive 19 dias a pé de porco salgado com feijão verde em latas de conserva da África do Sul e leite com chocolate holandês.
Voltando às relações humanas, concentrava toda a minha diplomacia à hora do almoço. Quando me negavam o essencial, eu gritava para que todos me ouvissem:
- Já que me tratam assim, ficam a saber que amanhã não vou a Mato Cão!
Era tudo treta, mas assim ficava bem claro que a malta de Bambadinca e tudo aquilo que era transportado por estrada para o Leste dependiam também da gente de Missirá e Finete que todos os dias montava segurança às embarcações militares e civis num ponto estratégico.
O BCAÇ 2852 chegou em Setembro e recordo a tarde em que ouvimos a alocução do Prof Marcello Caetano, quando tomou posse. Da minha relação com o Tenente-Coronel Pimentel Bastos, já falei no saudoso Pimbas (1).
Mantive uma relação cordial com o Major Pires da Silva, o oficial de operações com quem trabalhei até pouco depois do ataque a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969. Amizade funda mantive sempre com o David Payne e o Ismael Augusto, que já não podia mais com as minhas reindivicações. O Tenente Pinheiro da secretaria era a minha enxaqueca permanente, já que mantive heroicamente toda a burocracia em atraso. O Capitão Batista Neves era o Comandante da CCS e recordo-o pelo bem que sempre me fez e a todos os meus soldados. Histórias com a BCAÇ 2852 foram muitas e agora passo em revista algumas que mantenho vivas.
A primeira operação em que me envolvi foi a Meia Onça (2). Foi tão cansativa e inútil que só guardo a recordação da boa soneca qeu tirei numa GMC entre Xime e Bambadinca, depois de andarmos perdidos mais de um dia à volta do Buruntoni. Foi uma sensação horrível de andar atrás de muita gente sem perceber bem o que se andava a fazer, eu que tinha tantos patrulhamentos à minha espera no regulado do Cuor.
Experiência dramática foi a Anda Cá, que merecerá capítulo próprio. Quando, em Março de 1969, Missirá foi devorada por uma flagelação numa noite quente, ardeu tudo e eu fiquei reduzido ao que tinha vestido. Recordo a cortesia de quem me deu roupa nova e empolgante movimento de solidariedade que foi a primeira reconstrução de Missirá, de Abril a Julho: desde arame farpado a cimento, passando por chapas, armamento, vestuário e equipamento, nada nos faltou. Como num filme épico, fez-se uma jangada para transportar oito bidons preparados como chuveiro moderno, e que era o indicador de modernidade da nova Missirá. Só por esses momentos eu saúdo aqui todos aqueles que fizeram bem à gente do Cuor.
A solidariedade também se permuta. Em 27 de Maio de 1969, depois de horas de paciência em emboscada, colhemos de surpresa uma coluna de reabastecimento do PAIGC em Chicri (3). Foi um êxito, mas resolvi não correr mais riscos depois da surpresa inicial da destruição provocada na coluna, dei ordem de retirada imediata.
Duas coisas aconteceram que nunca mais esqueço. O Cabo Barbosa, já tinhamos avançado cerca de 6 Km e veio ter comigo exigindo que voltássemos a Chicri, pois deixara lá a sua boina de estimação. Para quem nos lê e nunca fez esta guerra, este comportamento parece uma bizarria. A guerra desenvolve superstições e a nossa não era diferente das outras, onde há objectos fetiches.
Acreditem ou não, demorei meia hora a negociar com o Barbosa a voltarmos lá no dia seguinte. É no regresso a Missirá, nessa noite de 28, que começou um ataque em que eu supus que Finete estava a ser destruída, em jeito de retaliação. Em cima de um abrigo, petrificado, eu via o fogo dos obuses a subir e a descer num céu espectral, apocalíptico.
Arrebanhei 20 voluntários e atirei-me para a picada num [Unimog] 404 que voou até Finete. Aqui, estava-se em paz, lá atravessámos o bolanha de Finete, veio o Mufali, mas o Geba estava praticamente a vau, de modo que chegámos completamente enlameados a uma Bambadinca transformada em campo de batalha.
O PAIGC atacara com três canhões, vários morteiros e outro armamento uma sede de Batalhão até então esquecida da guerra. Nessa noite, vi com os meus olhos um grande milagre: caíram postos electrificados e ninguém morreu; choveu fogo desencontrado e as baixas limitaram-se a dois feridos ligeiros.
Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, com o furriel Guimarães da CART 2716. Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como outros (o caso mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa)
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Limitei-me a pedir que desligassem a electricidade e que se esperasse pelo amanhecer para arrumar os estragos. Pelo caminho, pedi ao capelão (4) que conversava em cuecas à porta de um abrigo com a mulher do Tenente Pinheiro (5) em camisa de noite que fosse ajudar algumas almas em sofrimento. Foi quando ele veio apressado saber onde estavam as almas, que lhe pedi discretamente que pusesse mais roupa em cima...
Voltarei à carga, pois irei pertencer a Bambadinca em Novembro de 1969. Como era de esperar, a relação que se estabeleceu teve novos contornos e eu deixei de ser o visitante de Missirá e Finete.
_______
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
(2) Iniciada em 11 de Outubvro de 1968, com a duraçãod e dois dias, para "procurar aniquilar ou capturar elementos IN no acampamento de Buruntoni (Baio). Tomaram parte na operação as CART 1746 e 2339, os pel Caç Nat 52 e 53, 1 Gr Comb /CCAÇ 2401 e Pel Art. As nossas tropas perderam-se e não tibveram contacto nem vestígios" (História do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, Cap II, pág. 7).
(3) Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)
(4) Tratava-se do Padre Poím, açoriano, segundo informação do Beja Santos. O nome do capelão do BCAÇ 2852 aparece em branco, na história da unidade.Também serviu o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), acabando por ser expulso do exército, creio que já em finais de 1970.
(5) Tenente Manuel Antunes Pinheiro, chefe da secretaria do Comando do BCAÇ 2852.
Foto: © Beja Santos (2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > S/d > "Um momento de Missirá: à esquerda. Madiu Colubali, baixo de corpo, grande de coragem. Grande conhecedor do Corão e da escrita marabu; à direita, o régulo Malã Soncó, em perfeito traje de chefe mandinga - figura bíblica, bravura sem igual. Atrás, o pequeno monumento que os rebeldes destruiram e nós reconstruímos. Ao fundo, à esquerda, a mesquita. À direita, cubata destruída no ataque de Setembro. Tudo tão belo" (...)
Foto e texto: © Beja Santos (2006)
Mensagem do Beja Santos, com data de 31 de Julho de 2006 :
Caro Luís, estás a pôr à prova os [meus]dotes epistolográficos. Mas eu estou contente. Oxalá um dia possamos juntar a CCAÇ 12 e o BCAÇ 2852 num pleno onde caibam gente como eu e o Vacas de Carvalho.
Amanhã, despeço-me mas prometo levar para férias alguns episódios a latejar. Enviei-te hoje fotografias e bilhetes postais que julgo de uso interessante. Uma das fotografias é Bambadinca em 68. Tenho uma supresa para ti: vou publicar cartas com poemas inéditos do Ruy Cinati, que ele enviou em 69 e 70. Esclareço que perdi tudo nos fogos de Março de 69: livros, discos e respectivo aparelho, toda a correspondência. Felizmente que a memória funciona. E felizmente também que o nosso blogue é um hino à vida. Recebe a cordialidade do Mário.
Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável
O BCAÇ 2852, para mim, era a tropa de Bambadinca. Depois de fazer a bolanha de Finete (cerca de 4 Km de uma língua de terra onde passava à tangente um Unimog 411), chegava ao Geba e gritava pelo canoeiro, Mufali.
Feita a cambança, percorria uma centena de metros até ao estanco do Sr Tavares, onde metia sempre dois dedos de conversa. Daí subia a rampa para Bambadinca, já com as tarefas distribuídas: um grupo ia buscar comida, outro dirigia-se às munições, um outro ao posto de saúde, mais outro em direcção à delegação do Batalhão de Engenharia.
Eu ia fazendo a ronda, portava-me como um capataz, regateando, vociferando, pedindo mais e melhor. Eu tinha autoridade para pedir mais pois estava para lá do fim do mundo. Daí a naturalidade com que roubava da messe jornais desportivos, a revista Flama, alguns jornais diários datados do mês anterior.
Este circuito que passava pela manuntenção, reabastecimento, alimentação, sargento enfermeiro, conversas com mecânicos radiomontadores, sapadores, etc., gerou estimas e os inevitáveis desencontros e pequenos arrufos. Ainda há uns anos atrás quando o pintor Sá Nogueira, de quem fui amigo, festejou 79 anos, fui a um almoço onde o seu marchand se apresentou assim:
- Sou o Dário, o vagomestre de Bambadinca, lembra-se?
A minha resposta foi pronta:
- Ainda bem que não me lembro, pois vagomestre era a gente mais odiada da guerra.
Depois desfiz-me em explicações com o Dário, lembrando-lhe por exemplo com os desacertos do abastecimento e a época das chuvas onde estive 19 dias a pé de porco salgado com feijão verde em latas de conserva da África do Sul e leite com chocolate holandês.
Voltando às relações humanas, concentrava toda a minha diplomacia à hora do almoço. Quando me negavam o essencial, eu gritava para que todos me ouvissem:
- Já que me tratam assim, ficam a saber que amanhã não vou a Mato Cão!
Era tudo treta, mas assim ficava bem claro que a malta de Bambadinca e tudo aquilo que era transportado por estrada para o Leste dependiam também da gente de Missirá e Finete que todos os dias montava segurança às embarcações militares e civis num ponto estratégico.
O BCAÇ 2852 chegou em Setembro e recordo a tarde em que ouvimos a alocução do Prof Marcello Caetano, quando tomou posse. Da minha relação com o Tenente-Coronel Pimentel Bastos, já falei no saudoso Pimbas (1).
Mantive uma relação cordial com o Major Pires da Silva, o oficial de operações com quem trabalhei até pouco depois do ataque a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969. Amizade funda mantive sempre com o David Payne e o Ismael Augusto, que já não podia mais com as minhas reindivicações. O Tenente Pinheiro da secretaria era a minha enxaqueca permanente, já que mantive heroicamente toda a burocracia em atraso. O Capitão Batista Neves era o Comandante da CCS e recordo-o pelo bem que sempre me fez e a todos os meus soldados. Histórias com a BCAÇ 2852 foram muitas e agora passo em revista algumas que mantenho vivas.
A primeira operação em que me envolvi foi a Meia Onça (2). Foi tão cansativa e inútil que só guardo a recordação da boa soneca qeu tirei numa GMC entre Xime e Bambadinca, depois de andarmos perdidos mais de um dia à volta do Buruntoni. Foi uma sensação horrível de andar atrás de muita gente sem perceber bem o que se andava a fazer, eu que tinha tantos patrulhamentos à minha espera no regulado do Cuor.
Experiência dramática foi a Anda Cá, que merecerá capítulo próprio. Quando, em Março de 1969, Missirá foi devorada por uma flagelação numa noite quente, ardeu tudo e eu fiquei reduzido ao que tinha vestido. Recordo a cortesia de quem me deu roupa nova e empolgante movimento de solidariedade que foi a primeira reconstrução de Missirá, de Abril a Julho: desde arame farpado a cimento, passando por chapas, armamento, vestuário e equipamento, nada nos faltou. Como num filme épico, fez-se uma jangada para transportar oito bidons preparados como chuveiro moderno, e que era o indicador de modernidade da nova Missirá. Só por esses momentos eu saúdo aqui todos aqueles que fizeram bem à gente do Cuor.
A solidariedade também se permuta. Em 27 de Maio de 1969, depois de horas de paciência em emboscada, colhemos de surpresa uma coluna de reabastecimento do PAIGC em Chicri (3). Foi um êxito, mas resolvi não correr mais riscos depois da surpresa inicial da destruição provocada na coluna, dei ordem de retirada imediata.
Duas coisas aconteceram que nunca mais esqueço. O Cabo Barbosa, já tinhamos avançado cerca de 6 Km e veio ter comigo exigindo que voltássemos a Chicri, pois deixara lá a sua boina de estimação. Para quem nos lê e nunca fez esta guerra, este comportamento parece uma bizarria. A guerra desenvolve superstições e a nossa não era diferente das outras, onde há objectos fetiches.
Acreditem ou não, demorei meia hora a negociar com o Barbosa a voltarmos lá no dia seguinte. É no regresso a Missirá, nessa noite de 28, que começou um ataque em que eu supus que Finete estava a ser destruída, em jeito de retaliação. Em cima de um abrigo, petrificado, eu via o fogo dos obuses a subir e a descer num céu espectral, apocalíptico.
Arrebanhei 20 voluntários e atirei-me para a picada num [Unimog] 404 que voou até Finete. Aqui, estava-se em paz, lá atravessámos o bolanha de Finete, veio o Mufali, mas o Geba estava praticamente a vau, de modo que chegámos completamente enlameados a uma Bambadinca transformada em campo de batalha.
O PAIGC atacara com três canhões, vários morteiros e outro armamento uma sede de Batalhão até então esquecida da guerra. Nessa noite, vi com os meus olhos um grande milagre: caíram postos electrificados e ninguém morreu; choveu fogo desencontrado e as baixas limitaram-se a dois feridos ligeiros.
Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, com o furriel Guimarães da CART 2716. Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como outros (o caso mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa)
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Limitei-me a pedir que desligassem a electricidade e que se esperasse pelo amanhecer para arrumar os estragos. Pelo caminho, pedi ao capelão (4) que conversava em cuecas à porta de um abrigo com a mulher do Tenente Pinheiro (5) em camisa de noite que fosse ajudar algumas almas em sofrimento. Foi quando ele veio apressado saber onde estavam as almas, que lhe pedi discretamente que pusesse mais roupa em cima...
Voltarei à carga, pois irei pertencer a Bambadinca em Novembro de 1969. Como era de esperar, a relação que se estabeleceu teve novos contornos e eu deixei de ser o visitante de Missirá e Finete.
_______
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
(2) Iniciada em 11 de Outubvro de 1968, com a duraçãod e dois dias, para "procurar aniquilar ou capturar elementos IN no acampamento de Buruntoni (Baio). Tomaram parte na operação as CART 1746 e 2339, os pel Caç Nat 52 e 53, 1 Gr Comb /CCAÇ 2401 e Pel Art. As nossas tropas perderam-se e não tibveram contacto nem vestígios" (História do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, Cap II, pág. 7).
(3) Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)
(4) Tratava-se do Padre Poím, açoriano, segundo informação do Beja Santos. O nome do capelão do BCAÇ 2852 aparece em branco, na história da unidade.Também serviu o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), acabando por ser expulso do exército, creio que já em finais de 1970.
(5) Tenente Manuel Antunes Pinheiro, chefe da secretaria do Comando do BCAÇ 2852.
Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)
Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso ; legenda do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos) (1).
Texto de Luís Graça (2)
Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias...
Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na CCAÇ 12: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…
Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é talvez pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos...
Os páras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. A mala pata do Mané!... Por azar, foi apanhado pelos páras com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (3).
Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui. Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné. Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2).
Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho, o refeitório dos praças. Entre a escola e o posto administrativo. Há um correpio de gente que vem ver o turra capturado pelos paras, na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.
Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca (cabo-verdiana, ao que parece) que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola.
Guiné > Circa 1969 > Cartaz de propaganda das NT, dirigido ao homem do mato...
Imagem enviada por: © A. Marques Lopes (2006)
A senhora professora (que os senhores oficiais tratam com a deferência de cavalheiros) deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Se calhar é simpatizante do PAIGC. Ou até mesmo militante. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (5).
Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885, e que tem nome de rua no Porto...
Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável...
Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?
Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.
Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.
Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão. Foi no mato ainda menino, não consegue precisar com que a idade. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha-grande em Ponta Varela.
Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da luta di partido africano.
O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus cento e tal quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané (6). Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima. Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Conquistadores. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. São os cipaios, os agentes do colonialismo... Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.
Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do Pelotão de Informação e Reconhecimento. Um personagem sinistro, a quem nunca dirijo a palavra. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá. Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros.
Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, eu julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral!... Que idiota!... Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.
Por um dia, O Malan Mané foi o meu herói, o meu anti-herói (7)...
O Malan Mané, se hoje ainda for vivo (8), terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.
A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (9). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau (8). Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois.
Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ? Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento da Ponta do Inglês, à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo.
Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real). Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar as suas criaturas, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós próprios fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui.
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)
(2) Há uma outra versão anterior: vd post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
(3) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
(4) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"
(5) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas.
Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, a começar pelo comandante (tenente-coronel Pimentel Bastos, mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).
Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
(6) O Abibo Jau consta da lista dos guineenses que combateram do nosso lado e que terão sido fuzilados a seguir à independência: vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)
(7) Vd. posts anteriores:
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ;
Texto de Luís Graça (2)
Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias...
Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na CCAÇ 12: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…
Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é talvez pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos...
Os páras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. A mala pata do Mané!... Por azar, foi apanhado pelos páras com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (3).
Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui. Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné. Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2).
Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho, o refeitório dos praças. Entre a escola e o posto administrativo. Há um correpio de gente que vem ver o turra capturado pelos paras, na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.
Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca (cabo-verdiana, ao que parece) que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola.
Imagem enviada por: © A. Marques Lopes (2006)
A senhora professora (que os senhores oficiais tratam com a deferência de cavalheiros) deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Se calhar é simpatizante do PAIGC. Ou até mesmo militante. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (5).
Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885, e que tem nome de rua no Porto...
Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável...
Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?
Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.
Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.
Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão. Foi no mato ainda menino, não consegue precisar com que a idade. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha-grande em Ponta Varela.
Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da luta di partido africano.
O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus cento e tal quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané (6). Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima. Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Conquistadores. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. São os cipaios, os agentes do colonialismo... Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.
Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do Pelotão de Informação e Reconhecimento. Um personagem sinistro, a quem nunca dirijo a palavra. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá. Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros.
Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, eu julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral!... Que idiota!... Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.
Por um dia, O Malan Mané foi o meu herói, o meu anti-herói (7)...
O Malan Mané, se hoje ainda for vivo (8), terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.
A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (9). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau (8). Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois.
Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ? Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento da Ponta do Inglês, à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo.
Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real). Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar as suas criaturas, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós próprios fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui.
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)
(2) Há uma outra versão anterior: vd post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
(3) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
(4) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"
(5) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas.
Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, a começar pelo comandante (tenente-coronel Pimentel Bastos, mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).
Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
(6) O Abibo Jau consta da lista dos guineenses que combateram do nosso lado e que terão sido fuzilados a seguir à independência: vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)
(7) Vd. posts anteriores:
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ;
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau
12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
(8) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)
(9) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(8) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)
(9) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
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segunda-feira, 31 de julho de 2006
Guiné 63/74 - P1010: Pensamento do dia (6): O único rio a sério, na nossa terra, é o Corubal (Amílcar Cabral) (Luís Graça)
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Texto de Amílcar Cabral (com adaptações de L.G.):
Na Guiné, terra cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas que no fundo não são rios:
(i) Farim só é rio para lá de Candjambari;
(ii) o Geba só é rio de Bambadinca para cima, e por vezes mesmo para lá de Bambadinca há água salgada;
(iii) Mansoa só é rio depois de Mansoa para cima, já a caminho de Sara, perto de Caroalo;
(iv) Buba, esse não é rio de lado nenhum, porque até chegarmos a terra seca, é só água salgada;
(v) Cumbidjâ, Tombali, são todos braços de mar, a não ser na parte superior com um bocadinho e água doce na época das chuvas, sobretudo o rio de Bedanda, que vem a Balana buscar água doce.
(vi) O único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal.
Esta é uma realidade muito importante para nós, porque se, por um lado, temos muitos portos para entrar na nossa terra, com barcos, por outro podem ver o perigo que isso representa para nós. Se a nossa terra fosse toda fechada, com as andanças todas em que estamos nesta luta, o tuga já estava desesperado porque os quartéis não tinham comida. Mas como eles têm barcos e a nossa gente não ataca bastante os barcos, eles podem usar os barcos de mar para levar comida e material aos seus quartéis do interior" (...)
Fonte: Extractos de: CABRAL, Amílcar - A arma da teoria: unidade e luta. Volume I. 2ª ed. Lisboa: Seara Nova. 1978. (Obras Escolhidas de Amílcar Cabral. Textos coordenados por Mário de Andrade). p. 135.
Guiné 63/74 - P1009: Cancioneiro do Xime (1): A canção da fome (Manuel Moreira, CART 1746)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Esboço do sector, vendo-se a posição do antigo destacamento da Ponta do Inglês, abandonado pelas NT em Novembro de 1968, na nargem direita do Rio Corubal. Havia uma estrada que ligava directamente a Ponta do Inglês ao Xime.
Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971
Infografia: © Luís Graça (2005)
1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 52, Saltinho, 1970/72):
Mando-te a letra da Canção da Fome, da autoria do meu amigo e conterrâneo Manuel Moreira (1), ex-1º cabo do Pelotão comandado pelo Gilberto Madail, da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (2):
CANÇÃO DA FOME
Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês (3).
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.
A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.
Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.
Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.
Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.
A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:
MANUEL VIEIRA MOREIRA.
Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968 (4)
______________
Notas de L.G.
(1) O Paulo Santiago e o Manuel Vieira Moreira são naturais de Águeda. O Paulo vive em Aguada de Cima.
(2) Vd. post de 23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)
(...) "O mundo é pequeno. Tenho um amigo, aqui em Aguada, ex-soldado do pelotão comandado pelo Gilberto Madaíl. Telefonei-lhe há minutos, para me informar dos dados que procuravas.O Madaíl pertencia à CART 1746, transferida de Bissorã para o Xime. O grupo de combate, comandado pelo Madaíl, e do qual fazia parte o meu amigo Manuel Moreira, esteve destacado na Ponta do Inglês durante algum tempo, regressando ao Xime, visto ser muito difícil aguentar aquela posição. Conheço uma canção muito interessante, feita pelo meu amigo, durante a estadia naquele destacamento. Vou ver algo mais que possa ser publicado na Tertúlia, e que ele tenha em casa" (...).
(3) O estratégico aquartelamento da Ponta do Inglês , na margem direita do Rio Corubal, foi abandonado pelas NT em Novembro de 1968. Na altura era guarnecido por forças da CART 1746, a unidade de quadrícula do Xime: vd post de 19 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado
A queda (ou o abandono) da Ponta do Inglês significou a interdição do Rio Corubal à nossa navegação, quer civil quer militar. E, como muito bem lembrava Amílcar Cabral, "o único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal"...
(4) Pontuação da minha responsabilidade. Para o Manuel Moreira vai um grande abraço de um camarada, da CCAÇ 12, que muito penou nas idas à Ponta do Inglês... Aliás, quem, da malta que esteve no sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), não tem dramáticas recordações da Ponta do Inglês ? Refiro-me aos operacionais das companhias de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho) e das sub-unidades de intervenção, dependentes de Bambadinca como a CCAÇ 12 e os Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63)...
O Manuel Moreira está automaticamente feito membro da nossa tertúlia, desde que ele nos possa disponibilizar um endereço de e-mail (ou caixa de correio electrónico) para onde a gente possa mandar-lhe as nossas mensagens...
Agora que está inaugurado o Cancioneiro do Xime, espero que a veia dos nossos poetas populares não seque (ou não seque tão depressa).
Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971
Infografia: © Luís Graça (2005)
1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 52, Saltinho, 1970/72):
Mando-te a letra da Canção da Fome, da autoria do meu amigo e conterrâneo Manuel Moreira (1), ex-1º cabo do Pelotão comandado pelo Gilberto Madail, da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (2):
CANÇÃO DA FOME
Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês (3).
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.
A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.
Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.
Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.
Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.
A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:
MANUEL VIEIRA MOREIRA.
Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968 (4)
______________
Notas de L.G.
(1) O Paulo Santiago e o Manuel Vieira Moreira são naturais de Águeda. O Paulo vive em Aguada de Cima.
(2) Vd. post de 23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)
(...) "O mundo é pequeno. Tenho um amigo, aqui em Aguada, ex-soldado do pelotão comandado pelo Gilberto Madaíl. Telefonei-lhe há minutos, para me informar dos dados que procuravas.O Madaíl pertencia à CART 1746, transferida de Bissorã para o Xime. O grupo de combate, comandado pelo Madaíl, e do qual fazia parte o meu amigo Manuel Moreira, esteve destacado na Ponta do Inglês durante algum tempo, regressando ao Xime, visto ser muito difícil aguentar aquela posição. Conheço uma canção muito interessante, feita pelo meu amigo, durante a estadia naquele destacamento. Vou ver algo mais que possa ser publicado na Tertúlia, e que ele tenha em casa" (...).
(3) O estratégico aquartelamento da Ponta do Inglês , na margem direita do Rio Corubal, foi abandonado pelas NT em Novembro de 1968. Na altura era guarnecido por forças da CART 1746, a unidade de quadrícula do Xime: vd post de 19 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado
A queda (ou o abandono) da Ponta do Inglês significou a interdição do Rio Corubal à nossa navegação, quer civil quer militar. E, como muito bem lembrava Amílcar Cabral, "o único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal"...
(4) Pontuação da minha responsabilidade. Para o Manuel Moreira vai um grande abraço de um camarada, da CCAÇ 12, que muito penou nas idas à Ponta do Inglês... Aliás, quem, da malta que esteve no sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), não tem dramáticas recordações da Ponta do Inglês ? Refiro-me aos operacionais das companhias de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho) e das sub-unidades de intervenção, dependentes de Bambadinca como a CCAÇ 12 e os Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63)...
O Manuel Moreira está automaticamente feito membro da nossa tertúlia, desde que ele nos possa disponibilizar um endereço de e-mail (ou caixa de correio electrónico) para onde a gente possa mandar-lhe as nossas mensagens...
Agora que está inaugurado o Cancioneiro do Xime, espero que a veia dos nossos poetas populares não seque (ou não seque tão depressa).
Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), à direita, com mais três elementos da sua sub-unidade. Legenda da foto: "Bissau, Outubro de 69. A uma mesa de café, junto das docas de Bissau, Barbosa, o herói das emboscadas, o condutor Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de grato convívio de gente que partilha com resignação os mesmos sacrifícios. A ver se se tomamos uma 'bica' nesta mesma daqui a 2 meses (...)".
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Texto do Beja Santos:
Caro Luís, aqui vai mais um naco de prosa. Dentro das tuas possibilidades, ilustra com fotografias. Tudo farei para que isto não seja uma conversa caquética nem cheire a memórias de um autoconvencido. O que mais me está a empolgar é o fio da memória. Pegando na história do Batalhão [de Caçadores] 2852 [Bambadinca, 1968/70], verifico com curiosidade que o sector L1 era exclusivamente considerado para cá do Geba, o que não era bem assim. Eu estava para lá do Geba, e sem tropas no [regulado do] Cuor a vida do L1 seria um inferno. Ironias do destino. Prometo escrever-te segunda e terça e depois faço férias. Abraços, Mário Beja Santos.
O Saudoso Pimbas,
Cheguei a Bambadinca ao anoitecer de 2 de Agosto de 1968. Foi uma viagem de mais de 10 horas pelo Geba, salvo erro com uma paragem em Porto Gole. Deram-me no cais de Bissau uma ração de combate e comprei três peças de fruta. Houve muitos protestos com o transporte das duas pesadas caixas onde eu transportava livros e discos. Viagem relativamente aprazível, com lindos palmares, muita quietude das águas e o prazer de observar as conversas dos djilas (1) que partiam com as suas mercadorias para o Leste.
Aliás, quando cheguei a Bambadinca e me apresentei ao Comando, informaram-me que eu estava no sector L1. A três, o oficial de operações informou-me que eu ia para uma colónia de férias, Missirá e Finete:
- O régulo vai tratá-lo bem, vai lhe dar umas raparigas para não andar chateado, o Furriel Saiegh fará a guerra por si.
Já se sabe que não foi nada assim e do Saiegh (2) falaremos mais adiante. Ao reler a história do BCAC 2852, com quem convivi ao longo de mais de um ano, saltou-me à memória o nome do seu primeiro Comandante, Manuel Maria Pimentel Bastos (3), de quem guardo uma saudade sem fim. Na caserna, ele era afectusoamente tratado por Pimbas. Conversar com ele era uma delícia, pela sua cultura vastíssima e dotes soberbos de colocar a voz e teatralizar as emoções.
Sobrinho de João Bastos, o famoso criador de revistas do Parque Mayer, conhecia o meio mas adorava igualmente música clássica e frequentava concertos. A sua relação com a guerra era vaga e difusa. Era um cosmopolita acidentalmente colocado num teatro de operações, mantendo notavelmente uma conversa com nexo sem nunca arremessar palavrões ou recorrer ao calão. Os que com ele conviveram recordam a Sra Dona Maria Alzira, a mulher que sempre o acompanhou e que nos fazia rissóis de camarão na cozinha da messe.
Guardo do Pimbas algumas histórias irresistíveis. A primeira, a visita que fez em Novembro de 68 a Missirá. Fui buscá-lo na cambança do Geba, a meio da manhã, com um esquadrão impecavelmente fardado. À chegada a Finete, o Pimbas deslumbrou-se com as reverências das mulheres grandes, muito ao jeito do protocolo mandinga. Fizemos os 14 Km a conversar sobre literatura, astronomia e etnografia. Em Missirá comeu assado numa espelunca transfigurada em refeitório. E pediu música. Ouviu deliciado a Aida, cantada por Nilsson, Corelli, Bumbry e Piero di Palma, dirigida por Zubin Mehta. Acompanhava os momentos triunfais e dramáticos com uísque puro ou copos de água Perrier.
A meio da noite mandou-me patrulhar à volta de Missirá, alegando que um Comandante não podia ser apanhado à mão. Falámos um pouco da guerra e ele tranquilizou-me:
- Menino, mantém-te assim, não há guerra que te aborreça!
O Pimbas voltará a Missirá em circunstâncias dilacerantes, nos momentos patéticos da Op Anda cá (4), submetido às pressões do Hélio Felgas (5), que o desprezava. Aos poucos, o Pimbas foi-se isolando e ficando isolado, se bem que muito apoiado pelo médico, o David Payne, e alferes como Ismael Augusto e o Taco Calado (6). Nunca fora agressivo, e via a guerra com grande distância (salvo erro estivera no Maiombe, talvez em Macau e Índia dos bons tempos) e relativa serenidade. Nessa espiral de isolamento, conversámos muito e fomos úteis um ao outro.
Trocávamos livros, confidências e outras notas íntimas. A operação Lança Afiada (7) foi o ponto culminante que levou à sua queda, acusado de incapacidade, negligência e nulo sentido das realidades. Foi graças ao Pimbas que aprendi que estar numa guerra não é só uma questão de cultura, de assertividade ou convicções. Havia o problema do sentimento. Por sensibilidade, o Pimbas não estava na guerra, mas moldou-se até ao limite das suas forças por se manter enérgico e determinado. Mais tarde, visitei-o em Lisboa e ele recuperara para a vida cosmopolita o que perdera definitivamente com a humilhação da passagem à reserva.
Creio que está por fazer um conjunto de inventários: os oficiais do quadro permanente que não podiam transformar-se em oficiais prussianos e contra-guerrilheiros inflamados, por razões da trajectória profissional e moral; os oficiais milicianos, sobretudo os capitães, que eram lançados na fogueira dos acontecimentos bélicos sem qualquer preparação, pondo entre parêntesis a vida pessoal, profissional e familiar, por vezes com uma violência inaudita. Foi o que foi dado a verificar com homens como o Capitão Maltez, com quem colaborei no Xime.
Vergo-me respeitosamente à memória do Pimbas e logo à noite vou ouvir a Aída em sua homenagem.
___________
Notas de L.G.
(1) Djila: comerciante ambulante, em geral fula, futa-fula ou mandinga, que percorria a Guiné, em especial a zona leste, que tinha acesso privilegiado aos países limítrofes (Senegal e Guiné-Conacri). Em geral falava nelhor o francês do que o português. Eram considerados agentes quer da PIDE, quer do PAIGC, sendo os seus serviços (de informação) disputados por uns e por outros.
(2) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
(3) Tenente coronel de Infantaria Manuel Maria Pimental Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), transferido por motivos discipinares, tendo sido substituído em Julho de 1969 pelo ten cor inf Jovelino Pamplona Corte Real.
(4) Op Anda Cá: decorreu entre 20 e 22 de Fevereiro de 1969, com o objectivo de atacar as posições da guerrilha instalada em Madina / Belel. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(5) Coronel, na altura, comandante do Agrupamento 2957 (com sede em Bafatá), mais tarde COP 2.
(6) Alf Mil médico David Payne Rodrigues Peereira; Alf Mil Manutenção Ismael Quitério Augusto; e Alf Mil Transmissões Fernando Carvalho Taco Calado. Pertenciam ao Comando do BCAÇ 2852.
(7) Vd posts de:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli
Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca
Foto: © Paulo Raposo (2006)
XV parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 42-43 (1).
AS COLUNAS
Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.
Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.
1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimog.
Um dos outros encantos de África é o convívio. Passamos a ser bons contadores de histórias. Como não há distracções é o convívio que prevalece. Histórias e episódios havia-os para todos os gostos. A televisão e as novelas não só mataram o convívio familiar como mataram também o convívio e as tertúlias de café.
O nosso Capitão Portugal contou-me ele, tinha estado no Comando Distrital da PSP, quando foi lançada a muita ao peão, em Lisboa. Sim, quem atravessasse uma rua sem ser nas passagens de peão, pagava uma multa de 2$50. Isto talvez se tivesse passado no ano da 1955. Era um pouco caricato. As histórias da reacção de cada um eram sensacionais.
Houve um Senhor, contou ele, que ao ver-se confrontado com a multa de 2$50 pediu ao polícia para lhe vender toda a caderneta das multas. Cada um reage de forma diferente às situações que se deparam e estas variam também consoante o momento.
2. O nosso Capitão [da CCAÇ 2405, Cap Mil José M. N. Jerónimo] não tinha carta de condução, mas não se confessava. A muito custo conseguiu arranjar um jeep para andar nas suas voltas em Galomaro.
Numa ida a Bafatá ele lembrou-se de ir a conduzir o Unimog e eu seguia ao lado. Surge uma curva, ele não abranda, o carro foge-lhe, entra terra dentro e vira-se sobre o meu lado. Por esse facto não consigo saltar. Agarro-me ao banco e abaixo-me. Como os taipais eram mais altos, Nossa Senhora me salva.
Atrás nos bancos que estavam montados costas com costas, seguiam vários militares. Todos saltam excepto o Furriel Vagomestre (2). Teve medo, não saltou, e o carro passa-lhe por cima e parte-lhe a coluna. Segue para Bissau em heli, mas vem a falecer no dia seguinte.
Como a Companhia ficou sem Vagomestre, eu cedo um Furriel do meu Grupo, o Ferreira (3), e o Cândido, que era do Alferes David, vem substituir aquele.
Fiz uma grande amizade com o Cândido (4), que era de Beja. Terminada a Comissão convidei-o para vir trabalhar comigo. Ainda estamos juntos.
Ele é o responsável pela minha fábrica. É uma jóia de rapaz, posso-lhe confiar tudo e ele pode contar comigo seja para o que for.
Já vai para 27 anos que trabalhamos juntos sem nunca ter havido qualquer atrito.
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post anterior, de 10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa
(2) Arnaldo R. Fonseca (Fonte: História do BCAÇ 2852)
(3) Adriano M. Ferreira (Fonte: Idem)
(4) Cândido R. Trombinhas (Fonte: Idem)
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