segunda-feira, 10 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25628: Notas de leitura (1699): Kangalutas, por Abdulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Abdulai Sila mergulha-nos num mundo de recônditas, inconfessáveis vicissitudes, há reveses bem guardados que o arrependimento daquele militar que deixou mulher amada e filha na Guiné vem até à boca de cena e põe três mulheres a multiplicarem as dúvidas, as desconfianças, até, com total surpresa, e depois de algumas tropelias, se chegar a uma vitória eleitoral, estrondosa, floresce a esperança numa Guiné mais justa, e quem veio de Portugal exclusivamente para fazer a vontade ao defunto marido irá mergulhar na causa de acordar um país entorpecido, um país que perdera o sentido, numa causa em que o país se reconcilia consigo próprio e se supera do seu passado colonial e de todas aquelas feridas de um país em estado de injustiça. Parábola, alegoria, qual é a essência da mensagem didática que nos deixa um dos mais conceituados escritores guineenses? Ao leitor cabe resolver, é uma peça de teatro magnífica.

Um abraço do
Mário



Aprender com as feridas do passado, descobrir o fundo da amizade luso-guineense

Mário Beja Santos

É uma peça de teatro, o seu autor é um dos mais renomados escritores da Guiné-Bissau, engenheiro eletrotécnico, empreendedor, associativista dinâmico. As suas tramas centram-se no quadro colonial, nas sanhas do poder (tem uma peça onde alude a Macbeth e os triunfos sanguinários para ganhar o trono) e nunca se escusa a dizer que escreve sobre um país à procura de si próprio.


"Kangalutas", por Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2018, põe em cena três mulheres, uma delas vem de Portugal à procura da filha guineense do seu falecido marido que não a esqueceu no testamento; as outras duas, a filha do branco e a mulher repudiada pelo branco, que por ele fora muito amada, vão terças armas, desconfiadas ou mesmo desinteressadas daquela generosidade da última hora. Não é uma tragicomédia, mesmo que haja, como há, apontamentos dignos de farsa; é uma dramaturgia lírica, tem três mulheres em cena, entre lágrimas e suspiros vão barafustando entre si até se chegar a um desfecho desconcertante: aquela Guiné que procura a democracia, o desenvolvimento e a justiça leva à mobilização daquelas três mulheres, a causa delas não será uma herança baseada numa história do passado colonial, mas o futuro da liberdade daquele país em permanente tormenta, desorientado e sem mobilização coletiva.

O título prende-se com as vicissitudes do amor, a multiplicidade dos reveses, os danos por reparar. A branca chama-se Mariana, veio até à Guiné dar cumprimento a um desejo do falecido marido; a filha chama-se Mbissalangani, acha que pai é uma coisa que não existe, diz sentir-se muito bem no seu país, desconfia de tal herança, não aceita que a tratem por ingrata, parece estar literalmente nas tintas para a promessa do defunto pai de que Mariana é porta-voz; e temos Mariama, a mãe de Mbissalangani, a mulher amada por Luís, que a repudiou. Bem áspero é o primeiro encontro entre Mariama e Mariana, a guineense está determinada: “A filha é minha, só minha. Cuidei dela sempre sozinha, sem a ajuda de ninguém, e agora que ela criou asas e está pronta para voar sozinha, eis que aparece do nada uma milagreira a reivindicar direitos de propriedade, de paternidade ou lá o raio que o parta!”

Mariama tem os seus trunfos, era contatada pelo Luís, surpreende Mariana. Mãe e filha procuram entender o que na verdade trouxe Mariana à Guiné, a mãe diz à filha que deixou a branca arrelampada, que nem pensasse em tirar-lhe a filha, rogou-lhe pragas, a mãe é insidiosa, diz à filha que peça a Mariana o testamento, que deve mesmo exigir as contas bancárias, o clima de intriga está montado, haverá discussão brava entre Mbissalangani e Mariana, ainda não sabemos o teor do testamento, Mariana quer apressar o regresso e levar a filha de Luís, insiste que é preciso um visto e dá a saber que já bateu à porta do consulado, é nisto que se fala na preparação de uma campanha eleitoral para breve, Mbissalangani tem partido político, irá participar, sonha com um país próspero, justo, onde o precário não seja o pão nosso de cada dia.

Depois, Mbissalangani finge ceder junto da mulher de Luís, mas exige-lhe um contrato, prepara uma chantagem junto do responsável pela máquina eleitoral, a branca será o isco, assim se espera obter a vitória do seu partido, adulterando a contagem dos votos, Mariana será o isco, a sedutora… No final haverá vitória, e nós, leitores ou espectadores, até poderemos questionar se não foi a um preço aviltante. A relação entre aquelas duas rivais que amaram Luís estreita-se, Mariana vai mesmo viver para a casa de Mariama, Mbissalangani, com modos sinceros, começa a estimar aquela rival da sua mãe que pretendia vir buscá-la. O plano para que o tal partido venha a ter acesso a uma adulteração dos dados que lhe permita uma vitória inequívoca e até consensualmente aceite entra em marcha, haverá uma intrusão no computador, lança-se um vírus destinado a sequestrar informação do partido rival, há mesmo promessas de Mbissalangani de oferecer computadores àquelas duas infoexcluídas.

E chega o dia da vitória, a jovem anuncia que a juventude acordou, que o país está heroicamente a renascer das cinzas, o que vai a passar a contar é a competência e a dignidade. Algo de estranho, talvez contraditório se irá passar, Mariama e Mariana anunciam ter tomado uma decisão, nada de ir ao consulado, o visto que se lixe, a herança perdeu sentido, a viagem até Portugal fica para a próxima, quem veio para anunciar, e bem contrafeita vinha, dá a saber que é ali na Guiné que se sente útil, agarrada a uma causa.

São vicissitudes da vida. Luís ter-se-ia arrependido de ter deixado uma filha ao abandono, e queria agora recompensá-la, são kangalutas, o destino virou-se do avesso, quem veio anunciar a herança, e que diz vezes sem fim que está farta daquela terra grita bem alto que se há uma juventude que quer limpar o país da corrupção e do desdém internacional, ela fica, tem uma causa, aquele país precisa dela.

Será metáfora, alegoria, parábola? A ferida do passado colonial sarou, chegou a hora da reconciliação, na cena teatral aquelas mulheres de dois países mostram ao público que estão de mãos dadas. É esta a bela lição para guineenses e portugueses que o grande escritor Abdulai Sila nos oferece.

Para saber mais, recomenda-se o artigo de Ianes Augusto Cá e Maria Sousa Assis, intitulado “Kangalutas e espinhoso mistidas: estético e político nas peças de Abdulai Sila”: https://repositorio.unilab.edu.br/jspui/bitstream/123456789/2690/1/1.%20TCC%20-%20Vers%c3%a3o%20Final.%20Ianes.%2014012022.pdf publicado pela UNILAB – Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

Imagem da peça de teatro Kangalutas, de Abdulai Sila
_____________

Nota do editor

Último post da série de 7 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25614: Notas de leitura (1698): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1857) (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25627: Efemérides (441): Comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, promovida pelo Núcleo de Matosinhos da LC, em colaboração com a União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, levada a efeito na Freguesia de Leça da Palmeira (LC / Carlos Vinhal)

Realizou-se em Matosinhos - Leça da Palmeira, a cerimónia de comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, promovida pelo Núcleo, em colaboração com a União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira.
Pelas 10H15 iniciou-se a cerimónia com a concentração dos participantes em frente ao edifício da Junta, sendo de seguida içada a Bandeira Nacional pelo Presidente da União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, Sr. Paulo de Carvalho. Ao mesmo tempo que o grupo de sócias e sócios do Núcleo entoava o Hino Nacional, o clarim dos Bombeiros de Matosinhos e Leça da Palmeira, solicitado para o efeito, fez os toques adequados àquela cerimónia.

Pelas 10H30 foi dada continuidade ao programa no cemitério local - Talhão Militar da Liga, onde se encontravam posicionados o porta-guião, o clarim e uma Guarda de Honra composta por sócios combatentes.

Procedeu-se à chamada dos combatentes leceiros mortos na Guerra do Ultramar pelo Vogal da Direção José Oliveira, seguida da deposição de duas coroas de flores no Talhão pelo Presidente do Núcleo e pelo Presidente da União de Freguesias.
A cerimónia continuou com o Toque de Homenagem aos Mortos e foi guardado um minuto de silêncio com cântico de um salmo pelos sócios presentes para o efeito, terminando com a evocação religiosa pelo Rev. Padre Francisco Andrade.
Posteriormente foram feitas pelo Presidente do Núcleo e pelo Presidente da União de Freguesias alocuções alusivas ao ato. Os discursos realçaram a importância de homenagear a memória de todos aqueles que, ao longo da nossa História, tombaram no campo da honra, nomeadamente na Guerra do Ultramar.

Para terminar, foi cantado o Hino da Liga dos Combatentes na presença de dezenas de sócios, seus familiares, combatentes e público em geral que estiveram presentes nesta atividade cívica e patriótica.

Fez-se cumprir pela 16ª vez, a tradição de uma iniciativa de um grupo de combatentes leceiros (que são presentemente sócios da Liga) que, antes da existência do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, a realizavam anualmente em Leça da Palmeira, no dia 10JUN.
A Bandeira Portuguesa hasteada no edifício da Junta de Freguesia de Leça da Palmeira
Sócios da Liga interpretam o Hino Nacional
Guião do Núcleo de Matosinhos da LC e parte da guarda de honra formada pelos Antigos Combatentes
Presidente do Núcleo de Matosinhos da LC e Presidente da União de Freguesias
O Clarim dos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça, senhor Francisco, e o Vice-Presidente do Núcleo de Matosinhos da LC, SAj Joaquim Oliveira, que coordenou a cerimónia
Antigos Combatentes presentes
Grupo de sócios interpreta um cântico alusivo ao momento
As individualidades que presidiram à cerimónia, vão proceder à colocação das coroas de flores junto ao Talhão da LC existente do Cemitério n.º 1 de Leça da Palmeira
O senhor Pe. Francisco Andrade durante a evocação religiosa
Tenente Coronel Armando Costa, Presidente do Núcleo de Matosinhos da LC, durante a sua alocução
Paulo de Carvalho, Presidente da União das Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira. no uso da palavra.


Texto e fotos: Núcleo de Matosinhos da LC
Edição e legendagem das fotos: Carlos Vinhal

_____________

Nota do editor

Último post da série de 10 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25626: Efemérides (440): 10 de junho, "comemorativo da Festa de Portugal", foi fixado em 1929 por decreto da Ditadura Militar

Guiné 61/74 - P25626: Efemérides (440): 10 de junho, "comemorativo da Festa de Portugal", foi fixado em 1929 por decreto da Ditadura Militar

 





Era então presidente do ministério (1º ministro) o gen Artur Ivens Ferraz (1870-1933) e presidente da República, o gen Oscar CarmonaOscar Carmona (1869-1951).

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25625: Efemérides (439): 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Excertos de "Em foco", por Ana Rita Carvalho, Jornal do Exército, nº 730, junho de 2023

Guiné 61/74 - P25625: Efemérides (439): 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Excertos de "Em foco", por Ana Rita Carvalho, Jornal do Exército, nº 730, junho de 2023

(...) Comemora-se, a 10 de Junho, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. 

A celebração da data nacional remonta a 1880, ainda na vigência da Monarquia, quando se assinalou o tricentenário da morte do poeta Luís Vaz de Camões, devendo-se à iniciativa de Teófilo Braga e de uma comissão executiva, curiosamente composta, na sua maioria, por republicanos. Foi contudo o deputado Simões Dias  quem levou ao parlamento um projeto para que o dia 10 de Junho fosse considerado o dia festivo nacional e assim viria a ser. 

A evocação do poeta maior da Língua Portuguesa e a sua identificação com o Dia de Portugal adquiriam então um grande simbolismo, pautado também por forte marca ideológica, fazendo reemergir o lado épico da História, tendo nesse contexto particular um sentido regenerador, o de recuperar um passado glorioso. E assim prevaleceria. 

A figura inigualável de Camões desde há muito se tornou um símbolo de Portugal e é quase um lugar-comum citar o Poeta nos discursos oficiais, sendo ele um referente máximo dos valores e da cultura nacionais, convertido numa espécie de brasão, uma imagem representativa de um percurso de vida que condensa a nossa História, feita de ciclos de grandeza e decadência. 

A comemoração do tricentenário da morte do Poeta, em 1880, provém de um “culto da humanidade” e de um sentido laico (herdado da Revolução Francesa), veiculado em “representações simbólicas do Estado-Nação para consensualizarem o seu poder (…) substituindo formas e funções do ritualismo religioso para construir uma nova memória nacional” (...). 

Curiosamente, estas novas formas de ritualismo de cariz civil permanecerão, durante todo o século XX e até à atualidade, atravessando regimes políticos diversos e múltiplas representações sobre Portugal. 

 Já na vigência da República, em 1929, o 10 de Junho é decretado como feriado nacional, e durante o Estado Novo foi comemorado como “Dia de Camões, de Portugal e da Raça”, sendo ainda presentes, na memória de muitos portugueses, os majestosos desfiles militares que decorriam na Praça do Comércio, em Lisboa, onde se homenageavam os combatentes em África e onde eram condecorados postumamente os militares mortos em combate. 

Depois do 25 de Abril de 1974, a data adquiriu nova designação, passando a “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, por decreto de 4 de março de 1977, assumindo novo simbolismo, ao abarcar as comunidades portuguesas espalhadas pelos cinco continentes, numa visão universalista, tendo a uni-las a Língua Portuguesa, com que o Poeta épico imortalizou os feitos do seu singular Povo.

A identificação com as Forças Armadas prevaleceu, atravessando regimes políticos diferentes e formas de celebração também diversas. Talvez porque a História de Portugal é indissociável das suas Forças Armadas e em particular do Exército Português, desde a fundação de Portugal até um passado mais recente. 

A associação do Exército ao Dia de Portugal sublinha, assim, o caráter eminentemente nacional da Instituição Militar. E também a sua crescente modernização e internacionalização, quando se pensa nos últimos 30 anos e na projeção de Forças Nacionais Destacadas, em que o Exército tem contribuído para a construção da Paz, a estabilização de territórios massacrados pela guerra, a reconstrução de Estados falhados, destacando-se na salvaguarda da vida humana, na defesa do Direito internacional humanitário e na promoção dos valores da liberdade e da democracia. 

Por outro lado, a participação do Exército em missões de apoio à paz, de cooperação e outras tem também reforçado o estatuto de Portugal em organizações internacionais, como a ONU, a UE e a NATO, bem como junto de países amigos e aliados, no âmbito da sua política externa.  

Porém, a identificação entre o Exército e a Nação, ou os Portugueses, subliminar ou explícita, através da celebração ritualizada de efemérides como o Dia de Portugal e de Camões, o Dia dos Combatentes ou o próprio Dia do Exército, significa também a partilha de uma identidade cultural, de um modo português de ser, de estar e de se relacionar com os outros. Um modo de ser e estar que tão bem têm caraterizado a atuação dos nossos militares além-fronteiras, facilitando a sua adaptação aos teatros de operações mais diversos, a integração entre povos e culturas em tudo diferentes, contribuindo inegavelmente para o sucesso das missões em que se têm envolvido. (...)

Também neste sentido a evocação de Camões ganha atualidade, tendo ele mesmo sido militar e percorrido os marítimos caminhos atravessados pelos navegadores, heróis da sua epopeia, Os Lusíadas, isto é, os Portugueses. E, como Poeta, cantado a viagem (e dispersão de uma alma errante) e abarcado a experiência de um momento entre todos glorificado na História de Portugal, fixando os mitos e as memórias mais vincados no coletivo da História, e convertendo a memória desse tempo em escrita poética, identificando-se ele próprio com o Portugal que cantou. Os Lusíadas são, por isso, o livro identificador de Portugal e não por acaso o seu autor é o rosto de uma Pátria que fez coincidir a data nacional com a da morte do Poeta. 

A viagem e a errância personificadas na vida e obra de Camões são também metáfora da História nacional e readquirem significado neste tempo de globalização e universalidade, em que as fronteiras tradicionais se esbatem e que as alianças de países – mormente a nível da Defesa e da Segurança, corporizadas pelas suas Forças Armadas – se torna uma realidade não só necessária mas imperiosa. É que, se por um lado se assiste ao fenómeno da globalização, por outro, reemergem separatismos regionais, cisões ideológicas e políticas e o acentuar de extremismos que resultam num processo contrário de fragmentação e atomização, numa lógica paradoxal. 

Comemorar o Dia de Portugal adquire renovado sentido num tempo de globalização, em que o País cumpre uma ancestral vocação, iniciada há seis séculos, quando se lançou ao “mar sem fim” como o definiu Fernando Pessoa, permanecendo, para além da memória histórica, uma comunidade de países unidos pela nossa língua. A Língua Portuguesa, que Camões elevou à mais apurada expressão, é hoje falada nos cinco continentes por cerca de 250 milhões de pessoas, sendo, como destacou o Chefe de Estado, “a quinta língua mais falada [no] mundo, a segunda língua mais falada no hemisfério sul, e, também, no hemisfério sul a segunda mais usada no digital.” 

Através da Língua Portuguesa e, muito para além do império territorial, permanecerá um espaço cultural que une os Países de Língua Oficial Portuguesa e neles encontra traços de identidade e  de afetividade reconhecidos num falar comum. 

A lusofonia constitui hoje o horizonte global de uma nova lusitanidade, onde o passado se reúne ao presente e a cultura e identidade nacionais dialogam com outras culturas, diálogo no qual sai reforçada a identidade indefetível entre Países de Língua Oficial Portuguesa. 

Neste espaço (e tempo) da lusofonia acentua-se igualmente a ligação entre os elementos da tríade “Portugal”, “Camões” e “Comunidades Portuguesas”, a que se acrescenta um quarto elemento comum e seu elo de ligação, as “Forças Armadas”, elementos todos eles convocados na data nacional.  (...)

Fonte: Excertos de Jornal do Exército > n.º 730, junho 2023 : Em foco > Ana Rita Carvalho  >  Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, pp. 6/10.

https://assets.exercito.pt/SiteAssets/JE/Jornais/2023/jun/730.pdf

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia...)

___________

domingo, 9 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25624: Elementos para a História do Pel Caç Nat 51 (1966/74) - Parte III: População civil: da cerimónia do fanado ao funeral muçulmano (Armindo Batata)



Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje  ? Cacine ? Catió ?   Cufar ? > c. 1969/70 > Foto nº 71 >  Tudo indica que se tratatava um grupo de "bajudas", fulas e futa-fulas (meninas, umas mais crescidas do que outras),   que acabavam a cerimónia do "fanado" (*).. Sendo do último lote das fotos do autor, é provavel que a localidade seja  Catió ou Cufar. Compare-se a opinião do Cherno Badé: "A imagem mostra um grupo de raparigas muçulmanas durante a celebração da saida do fanado. Não conheco a composição da população de Cufar, mas há uma forte probabilidade que esta imagem seja de Guileje ou Cacine". E acrescenta posteriormente: "A localidade de Cufar é a excluir e mantêm-se as outras como possíveis, com maiores probabilidades para Catió (Priame) e Guileje".


Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje ? > c. 1969 >  Foto nº 41 >  Um típico comportamento dos primatas: fazendo a higiene do cabelo, catando parasitas (piolhos, pulgas e lêndeas)... O famoso "groming", descrito pelos primatólogos... Legenda do Cherno Baldé: "Meninas futa-fulas (de origens diversas, aliás como era a generalidade da população futa-fula nas áreas de Cubucaré e Quitáfine. região de Tombali), a tratar do penteado, em horas de folga".


Guiné > Região de Tombali > s/l (Guileje ?) > c. 1969 > Foto nº 38 > Foto de grupo de adolescentes . A bajuda do lado direito usa relógio de pulso e a rádio portátil, transistorizado... Acrecsenta o Cherno Baldé: "Uma familia cristã, crioula, assimilada, provavelmente, de origem cabo-verdiana ou das praças de Cacheu, Bissau, Bolama ou Geba".



Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje ? > c. 1969 >  Foto nº 39 > Bajuda



Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje ? > c. 1969 >  Foto nº 43 >A caminho da fonte (?), que ficava fora do perímetro de segurança do quartel e tabanca, a cerca de 3/4 km. Era o "calcanhar de Aquiles" de Guileje, como se viu por altura do "cerco" de maio de 1973.


Guiné > Região de Tombali > s/l (Catió ou Cufar > c. 1970 > Foto nº 83 > Diz o Cherno Baldé que é "um ourives juta-fula de metais finos (ouro e prata) a julgar pelos utensilios em uso, trabalhando na sua oficina".

Só conheci ourives mandingas (etnia de eram grandes artesões: em Bafatá, na zona leste, havia um famoso ourives, mandinga). (LG)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > c. 1969 > Foto s/n (1) >



Guiné > Região de Tombali > Guileje > c. 1969 >  Foto s/n (2) >


Guiné > Região de Tombali > Guileje > c. 1969 >  Foto s/n  (3)>
 
Estas três últimas fotos, não numeradas, fazem parte de uma notável sequência de um funeral muçulmano, realizado fora do perímetro do quartel e tabanca de Guileje e que o fotógrafo acompanhou (juntamente com soldados do pelotão) do princípio ao fim (**), e de que mais abaixo se apresenta uma descrição resunida.

Fotos (e legendas): © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1.  São fotos notáveis do Armindo Batata, reveladoras de uma grande sensibilidade sociocultural (que nem todos tinham,  os graduados metropolitanos, a servir em subunidades com praças do recrutamento local). 

Comandante de um subunidade militar composta por guineenses, de diversas etnias, este nosso camarada estava atento a aspetos da vida quotidiana e da cultura da população  onde  se inseria, como era o caso dos rituais de passagem como o "fanado" (feminino) ou das cerimónias fúnebres.

Acrescente-se que as fotos aqui publicadas foram objeto de edição, como é prática de resto habitual no nosso blogue: melhoria da resolução, do brilho, do contraste, do enquadranento, etc..

 2. Relativamente ao cortejo funerário e enterro muçulmano, podemos fazer aqui uma  uma breve descrição:

(i) os participantes encaminham-se para a mata; à esquerda, é visível um troço de arame farpado do aquartelamento e tabanca  [foto s/nº, (1)];  

(ii) o fotógrafo acompanhou a cerimónia desde a saída da tabanca até ao local, na mata, onde se realizou o enterro; não parece haver qualquer escolta militar;

(iii) percebe-se pelas  imagens que o morto, presumivelmente civil, do sexo masculino, é transportado numa maca (possivelmente cedida pela NT), e vem coberto com um lençol ou um pano branco;

(iv) os familiares e amigos, só homens, quer civis quer militares, descalços, fazem um círculo à volta da sepultura, e possivelmente rezam em voz alta  uma primeira oração; 

(v) inumação do cadáver, envolto em panos... e que parece ser depois encimado por uma esteira  [foto s/nº, (2)];

(vi) descida do corpo à terra.possivelmente a oração de despedida à volta da sepultura, vísível pelo montículo de terra  [foto s/nº, (3)],
 
Comentou o nosso Chero Baldé (**): 

"O Armindo Batata dá-nos nestas imagens a impressão de um observador atento ao que se passa ao redor, no obstante, escapou-lhe a parte da oração fúnebre (conjunta) que é feita na morança, antes de partir para a sua última morada onde participam todos, homens e mulheres.

"Torna-se quase impossível identificar o(a) morto(a) a partir das imagens (se é civil ou militar, homem ou mulher), mas a padiola [maca,] é militar e deve pertencer aos serviços sanitários do quartel que, neste caso substitui a função tradicional da esteira fabricada com fibras de colmo que deveria servir para enrolar e transportar o defunto ao local do enterro.

"A praxe muçulmana manda que o cemitério esteja situado fora da aldeia e a proteção da sepultura suficientemente sólida para evitar que as hienas e jagudis façam das suas.

"O funeral muçulmano caracteriza-se pela sua simplicidade, rapidez e equidade, cada uma delas com o seu lote de vantagens e inconveniências, dependendo do ponto de vista de quem observa ou analisa. Todavia, uma coisa é certa, são cada vez mais as comunidades africanas que aderem, nomeadamente na Guiné-Bissau, provavelmente para diminuir o fardo dos custos (sociais e económicos) ligados às tumultuosas e repetitivas cerimónias de culto aos mortos em tempos de crise generalizada" (...)

Posteriormente acrescentou, à foto s/n (3): "O último adeus ou a breve reza da despedida do defunto após o seu enterro".


3. Cerca de uma centena de fotos, a preto e branco, foram cedidas pelo Armindo Batata ao nosso amigo Pepito (1949-2014), integrando hoje o Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Temos cópia desse arquivo desde 2007.  

O Armindo Batata é também um dos nossos grão-tabanqueiros mais antigos. Infelizmente não temos tido, desde há uma boa dúzia de anos, notícias dele.   É formado pelo ISEL e,  a tratar-se da mesma pessoa, vive em Alpiarça, onde é autarca. 

Um alfabravo muito especial para ele, com toda a nossa gratidão e apreço eela partilha das suas memórias da Guiné .

4. Ainda para a história do Pel Caç Nat 51 (***),  refira-se:

(i) a origem do Pel Caç Nat 51 remonta a setembro de 1966, devendo ter sido extinto em meados de 1974, como as demais subunidades africanas;

(ii)   segundo informação do Henique Matos, primeiro cmdt do Pel Caç Nat 52, o seu e os Pel Caç Nat 51, 53,  54, 55 e 56 formaram-se em Bolama;  

(iii) passado um curto IAO,  
o Pel Caç Nat 51 saiu numa LDM para o Enxalé, ficando em reforço à CCAÇ 1439, independente, de madeirenses, adstrita ao BCAÇ 1888, sediado em Bambadinca;

(iv) na mesma ocasião também sairam de Bolama:  o Pel Caç Nat 53, do Alf Mil Serra, que ficou no Xime em reforço à CCAÇ 1550; o Pel Caç Nat 51, do Alf Mil Perneco, que foi para Guileje; e o Pel Caç Nat 54, do Alf Mil Marchand (que foi inicialmente para Mansabá mas passado pouco tempo também foi parar ao Enxalé.) 



Odivelas > 16 de Junho de 2007 > Encontro dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 54, 55 e 56> "Uma imagem do que foi possivel juntar da formação inicial dos primeiros Pelotões de Caçadores Nativos, passados 41 anos do seu início em Bolama.

(i) Pel Caç Nat 51 > Alf mil Perneco (16), fur mil Carvalho (3), fur mil  Azevedo (1) , fur mil  Castro (12), 1º  cabo Ramos(4) e 1º cabo Marques(6);

(ii) Pel Caç Nat 52 > Al mil Henrique Matos (13), fur mil Vaz (15), fur mil Altino (11), fur mil  Monteiro (10) e 1º cabo Cunha (7);

(iii) Pel Caç Nat 54 > Fur mil  Viegas (9), fur mil Costa (2), 1º cabo Januário (14) e 1º cabo Coelho (8):

(iv) Pel Caç Nat 56 > Fur mil  Delgado (5).

(v) "Para nosso desconsolo, e muito falamos nisso, não possível até agora encontrar os restantes elementos dos nossos pelotões que regressaram, porque tivemos algumas baixas, nem qualquer elemento do 53 e do 55". (****).


Foto (e legenda): © Henrique Matos (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

____________________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 27 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10442: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (2): Funeral fula em Guileje (ou melhor, funeral muçulmano, segundo o nosso amigo Cherno Baldé)

(****) Vd. poste de 28 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1896: Encontro dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 54, 55 e 56 (Henrique Matos)

Guiné 61/74 - P25623: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (21): "Na altura própria"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Na altura própria

João era agora um homem velho, em paz consigo e com o mundo. Tinha um objetivo e uma ambição, suicidar-se na altura própria. Nem antes, nem depois. Não queria morrer ao acaso. Não queria morrer na incerteza com que nasceu. A sua grande angústia residia no medo de não vir a reconhecer a altura própria. Ambicionava o momento exato, e para tal se ia preparando, criando dia a dia uma espécie de protocolo que o encaminhasse progressivamente para o momento certo.

- Este é um sítio porreiro para alguém se suicidar, na altura própria, não acham?

Mas não havia ninguém à volta para receber a pergunta. Concluiu que falava para si mesmo. É um profundo precipício, com o mar no fundo, basta engatar o carro em primeira e zás! Na altura própria.

João ainda não almoçara e, nesse dia, não lhe agradava a ideia de partir, não achava que fosse a altura própria. Além disso, não lhe apetecia ir para o outro lado com a barriga vazia.

João gostava muito de cabeça de pescada cozida com todos. Com todos é, como todos sabem, um acompanhamento variado, constituído por batatas, couves ou grelos ou feijão-verde, cenoura, cebola e ovo cozido.

- Traga-me, por favor, um galheteiro… azeite e vinagre.
- Quer um dentinho de alho?
- Com peixe não, só com bacalhau.

Ao abrir a cabeça da pescada, ele viu que o bicho tinha, entre os dentes, uma coisa estranha. Aquilo que lhe pareceu ser um dedo. Sim, um dedo, um dedo humano. Poderia ser de homem ou de mulher, talvez de homem, a avaliar pela falangeta larga, mais do tipo baqueta de tambor, mas poderia ser de mulher e estar inchado pela água. Mirou, mirou e quando não teve dúvidas de que se tratava mesmo de um dedo, vomitou ali em cima do prato, vomitou tudo, esófago, estômago, duodeno, vesícula biliar e parte do fígado. Não vomitou mais porque, entretanto, desmaiou.

Quando acordou, estava rodeado de caras, ainda mal definidas, que o olhavam de forma estranha, entre o curioso e o chateado. Anjos ou demónios? Estaria já no outro mundo?

- Sente-se bem?
- Acho que sim, desculpem, mas perdi-me. Não sei bem onde estou. Boa-tarde.

Saiu sem pagar, deixando a comida intacta e o empregado hesitante entre deixá-lo ir ou chamá-lo à atenção. Deixou-o ir em paz.

Voltou ao alto da falésia onde deixara o carro e pensou:
- Não é a altura própria. Além disso, porra! Há alternativas!

Ligou o carro, sem se lembrar que estava engatado em primeira, e já não teve tempo de escolher outra alternativa. Chegara, sem dúvida, a altura própria.

_____________

Nota do editor

Post anterior de 2 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25595: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (20): "Uma história antiga"

Guiné 61/74 - P25622: Humor de caserna (64): O anedotário da Spinolândia (XII): o "caco" que foi parar ao caldeirão da cozinha de Guileje...



1. Esta história deliciosa, a do "caco", o monóculo  (que não era graduado, mas sim um simples "ronco")  do "homem grande" de Bissau, caído no caldeirão da cozinha de Guileje, já a conhecia do meu tempo, circulava na 5ª Rep, o Café Bento, quando passei por Bissau,  "periquito"  desembarcado do "Niassa" em 29 de maio de 1969 e logo metido em LDG até ao Xime em 2 de junho...

Anedota ou não, é contada no livro de memórias "O Silvo da Granada", do José Maria Martins da Costa, ex-1º cabo trms, do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, maio de 1968/ julho de 1970). A edição da edição da Chiado Books, 2021, meio milhar de páginas (!).

Sobre o livro o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, chamou-lhe "uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné" , nas quatro notas de leitura que entusiástica e generosamente lhe dedicou (Postes P23121, p23131, p23139 e p23156).

Sabemos pouco sobre o autor, a não ser o que ele nos diz, na sua apresentação:

(i) natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, frequentou a escola primária, finda a qual entrou num seminário beneditino;

(ii) saiu no sétimo ano, provavelmente incompleto; 

(iii) foi chamado para a tropa, passou por Tavira e Lisboa,  e  foi mobilizado para a Guiné;

 (iv) no regresso à vida civil,  deve ter tirado "o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra" (Beja Santos interpretou mal; se ele tuvesse o 7º ano ou equivalente, ou fosse licenciado, teria ido frequentar o COM - Curso de Oficiais Milicianos);


Capa do livro, "O Silva
da Granada", de José Maria
Martins Costa, Lisboa,
Chiado Books, 2021. Gostaríamos
de ver o autor, nosso antigo
camarada de armas, a integrar 
 a Tabanca Grande.



(v) entretanto, fixara-se no Porto, onde casou, foi professor e jornalista...
 
Muito poucas são as referèncias existentes na Net a este homem e nosso camarada de arnas. De acordo com as notas do Beja Santos, nunca se chega  
a esclarecer, no livro, as razões por que o autor, tendo frequentado o CSM (Curso de Sargentos Milicianos), em Tavira, acabou por ir para a Guiné como 1º cabo  de transmissões, especialidade que tirou em Lisboa (certamente no quartel da Graça).   

Terá havido aqui, pelo meio, no CISMI, problemas disciplinares,  que explicam a  sua passagem compulsiva ao contingente geral.

Sabemos, isso, sim, é que chegou à Guiné em maio de 1968 ( tendo regressou à metrópole em julho de 1970), ou seja,  na mesma altura em que o brigadeiro António Spínola toma posse como governador e comandante-chefe. 

Foi colocado, em rendição individual, no Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1968/70).

No livro há apontamentos que são relevantes para a história do Pel Caç Nat 51, do tempo do alf mil Armindo Batata (ligeiramente mais novo, 1969/70),  e que iremos
  resumir, mais tarde. 

Para já, retivemos duas referências a Spínola, a partir dos excertos selecionados pelo Beja Santos (e que vão em negrito e itálico):

(...) Primeiro-cabo Martins já viajou para Guileje, está na fase adaptação, somos levados a supor que este homem que está profundamente impregnado pela cultura clássica, que domina o Latim e alguns dos mais cultores da língua portuguesa,  trabalha nas Transmissões. 

De supetão, arribaram três helicópteros, de um deles saiu Spínola, já percorreu o quartel, conversou com os oficiais e decidiu visitar a cozinha:

“Spínola em corpo e alma e rompeu pela cozinha sem aviso, deixando atónitos, presos aos seus lugares, cozinheiros e forneiro; e, depois das saudações e palavra de circunstância e de circunvagar um olhar indagador como a inspecionar as condições de trabalho e de higiene, avança para os fogões, mete o nariz em tachos e panelas. Eis senão quando – caso nunca visto – cai-lhe o monóculo ao panelão, onde, vaporando fortemente, fervia a cachão o feijão frade. Valeu que à ilharga, atento e venerador, estava o cabo-cozinheiro, que, ato contínuo, introduzindo por entre densos vapores a desembaraçada manápula acostumada a queimaduras e escaldões, retira incólume a luneta”.

Esta cena deve-se ter passado em meados de 1968 (talvez mesmo  logo em 26 de maio de 1968, data da primeira visita a Gandembel), porque, após a rápida passagem por  Guileje,  Spínola partiu  para aquela  aquartelamento que estava em construção há mês e meio.

Uma segunda "cena", que merece registo na nossa série "Humor de caserna", é a de uma outra visita de Spínola a Guileje, um ano depois, em meados de 1969, ao tempo da CART 2410, "Os Dráculas":

(...) E assim se chegou a abril e depois a maio 
[de 1969] , sucedem-se as flagelações, a população continua tranquilamente a sua vida monótona, não deixando de ir cultivas o seu arroz de subsistência, ao amanhecer as viaturas carregadas de bidões vão direito ao poço aberto na brenha, a uns 2 km, operação que requer severa vigilância. Spínola volta a Guileje, assim se descreve o seu regresso:

“Negros como abutres, descrevendo círculos por largo, bem à vista o cano
 saliente do canhão de bordo, os três passarões assenhoreiam-se destes ares; metem respeito e não admira que os guerrilheiros mais que tudo os temam. E, enquanto dois deles vão dando voltas, agora mais fechadas, sobre Guileje, o outro ensaia a operação delicada de vir a terra; um instante imobilizado, roda agora a ganhar posição, inclina um tudo-nada o focinho, cautamente sondando o espaço em baixo onde pousar. E já vai descendo, em volto grossos rolos de pó que revoluteiam furiosamente no ar agitado do voltear estonteante da hélice. O monstro impõe a sua presença aparatosa. Ei-lo em repouso no chão espanado pela ventaneira”.

 

O comandante de Companhia não gostou da discriminação, Spínola passou por meio da pequena multidão e deu de caras com um furriel do  [Pel Caç Nat] 67, cumprimentos efusivos.

“O nome, de todo incomum, ou talvez sobrenome, é o mesmo de uma família da alta roda lisboeta ligada à banca. Coincidência ou não, o certo é que ainda não passaram quinze dias e já o furriel foi de abalada, transferido para zona menos descoberta aos golpes da implacável guerrilha.” (...)

2. Há quem, acrítico e sisudo, não goste de ver as figuras da nossa História (e o marechal Spínola já lá está, na História com H Grande, independentemente dos nossos juízos pessoais, efémeros e transitóriso) serem objeto de anedotas ou caricaturas...  

Achamos, pelo contrário, que é quase sempre um sinal de apreço e até de homenagem: no caso de Spínola, por exemplo, enquanto governador e comandante -chefe do CTIG (1968-1973) não conhecemos anedotas sobre o seu antecessor (gen Armaldo Schulz) ou o seu sucessor (gen Bettencourt Rodrigues). E para mais andeotas que persistem na memória dos antigos combatntes,  mesmo meio século depois.

Fica aqui a nossa declaração de interesses.

(Seleção, revisão / fixação o de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao seu crítico literário)

____________

Nota do editor:

Último poste da sérier > 7 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25613: Humor de caserna (63): Em 1971, por uns bons 250 contos (equivalente, a preços de hoje, a mais 75 mil euros), um 1º cabo miliciano arranjava um subsituto para ir para o ultramar

Vd. também poste de 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25584: Humor de caserna (60): O anedotário da Spinolândia (XI): "Continua, meu rapaz, salvas-te tu para que este batalhão não seja a merda mais completa" (Um anedota contada pelo saudoso Rui A. Ferreira,1943-2022)

sábado, 8 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25621: Os 50 anos do 25 de Abril (27): "A Academia Militar, os Seus Militares e a Revolução dos Cravos", Exposição relativa aos 50 anos do 25 de Abril na Academia Militar


1. Mensagem do nosso camarada António Carlos Morais da Silva (ex-Instrutor da 1.ª CCmds Africanos em Fá Mandinga; Adjunto do COP 6 em Mansabá e Comandante da CCAÇ 2796 em Gadamael, 1970 e 1972), com data de 8 de Junho de 2024:

Caro Vinhal
Julgo não ter enviado a notícia da exposição na Academia Militar homenageando os seus militares participantes no 25 de Abril (Otelo, Garcia dos Santos, Morais Silva....).
A ser assim, como julgo, aqui vai informação e uma foto do dia da inauguração. Se considerar útil agradeço anúncio no blogue.

Cumprimentos cordiais
Morais Silva

Dia da inauguração da Exposição
_____________

Nota do editor

Último post da série de 6 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25612: Os 50 anos do 25 de Abril (26): A exposição, na Gare Marítima de Alcântara, sobre os antecendentes e a origem (com enfoque na guerrra colonial) e os protagonistas do 25 de Abril de 1974... Para ver até 26 de junho - Parte I: Os bodes expiatórios do regime

Guiné 61/74 - P25620: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157): Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Não é mais do que o passeio à volta de muralhas, não se trata de um interrogatório à História, nem se veio fiscalizar se há para aqui obras bizarras, Tavira oferece aos seus cidadãos e a quem a visita esta singularidade de ter um casco histórico inserido, adossado, participando do benefício de uma lendária construção militar. Por aqui se cirandou, agradado ou um tanto inquieto, há evidentes situações de que se está a asfixiar a fruição dos panos de muralha, a entaipar vistas, descontinuando a contemplação de um equilíbrio que cede à ganância dos construtores. O resultado final ainda continua positivo, mas assiste ao visitante deixar algumas questões a todos aqueles que queiram ver o seu património (também nosso) protegido e valorizado.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157):
Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas


Mário Beja Santos

Tenho para mim que um dos encantos da cidade de Tavira se prende com o intenso e permanente diálogo dos vestígios das muralhas com a organização da chamada Vila a Dentro. Porque há uma parte de Tavira que se fixa, contorna, confronta, se embebe, nos panos da muralha. Que o visitante inicie a sua viagem fora delas, por exemplo, começando nos Paços do Concelho, passa ao lado do Núcleo Museológico Islâmico, vire à direita, dá com a Porta de D. Manuel I, esta até parece que está suportada por dois edifícios paralelos, dá para imaginar o que houve antes deles e até que aproveitamento se faz da muralha um suporto à habitação. Desça-se, começa-se a circundar todo o exterior, nada de ter a tentação de visitar a Igreja da Misericórdia, a muralha fenícia, o Palácio da Galeria, há tempo para mirar a Torre do Relógio na Igreja de Santa Maria do Castelo, e estamos agora no castelo, foi a partir dele que se desenvolveram as muralhas da cidade. O seu interior está ajardinado, quem subir à torre octogonal vai desfrutar de uma panorâmica espetacular, logo no primeiro plano os telhados de quatro águas.

Edifícios encostados a panos de muralha é acontecimento banal no país e na Europa, quem vive em Lisboa e se passeie no interior do Castelo de S. Jorge encontrará casas adossadas dentro e fora, e há mesmo aspetos curiosos (continuamos a falar do Castelo de S. Jorge) em que no exterior e próximo de um pano de muralha se ergue um belo templo religioso, a Igreja do Menino de Deus. O que atrai o visitante, neste Aquém da Ponte, é namoriscar como se processa o entrosamento entre todos estes vestígios da muralha, as habitações existentes, os espaços circundantes e, vamos lá, se há uma valorização do património de molde a não entaipar a contemplação das muralhas (e não se esconde um certo pesar por se ver construções atentatórias de uma fruição visual, houve para ali autorizações de construção de valia mais do que duvidosa).

E sem mais, vamos percorrer o perímetro e o que há de circundante das muralhas tavirenses, há uma impressionante beleza, desleixos a remediar e erros na autorização de empreendimentos que deviam servir de lição aos cidadãos hipotecados no respeito que é devido a estes bens patrimoniais que dão tanta graciosidade a Tavira.

A porta de D. Manuel I, um dos monumentos-ícone da cidade
Só espero que não se venha a entaipar esta vista, afogando os terrenos com hotéis e habitação
Assim sim, é uma beleza ver esta torre de vigia que parece despontar do empreendimento
Mostra-se este pano de muralha em dois sentidos, aqui aparentemente só há à vista a degradação do que terá sido um torreão, mas fica-se na dúvida se não cortaram o pano de muralha para pôr construção
Salvo melhor opinião, houve para aqui uma atrocidade, a que título se meteu aquele paredão, interrompendo o enfiamento da muralha, quem autorizou a sua demolição?
Sim, aqui há proteção, por favor, não venham agora sufocar a vista deste impressionante pano de muralha metendo para aqui construção habitacional ou hoteleira
O jardim do castelo está muito bem tratado, apanhei em boa floração este cipó, também conhecido por flores de S. João, este jardim é um dos atrativos da cidade, é de visita obrigatória, é quase certo que houve esmero nas intervenções feitas, são panos de muralha que não se deixaram degradar, dá encanto por aqui passear e ver uma boa parte da cidade de cima para baixo.
O castelo parece ter ganho vida ao nível dos seus fundamentos, a construção privada e até mesmo a piscina não entravam a vista e, ponto curioso, até parece correto dizer-se que há mais castelo fora do castelo, veja-se aquela torre, que parece de menagem, lá em cima, espera-se que aquelas duas gruas não estejam a construir edificações fora da escala.
Houve cuidado no elemento urbanístico, o bom propósito de deixar ao cidadão poder aproximar-se de umas muralhas que, mais tarde ou mais cedo, vão carecer de uma manutenção adequada.
Ao vermos estas três imagens fica-nos certamente umas perguntas por responder, como as manter como bons exemplares de património militar, como garantir que se mantenha um bom diálogo entre o militar e o civil, entre o passado que exige salvaguarda e o que se melhora por já estar construído e como se garante que o que bate à porta para construir de movo algum acarretará degradação visual. Responda bem quem melhor estiver habilitado.

Aqui finda a visita a Tavira, daqui segue-se para Belas, que além dos conhecidos bolos que dão pelo nome de Fofos tem património que merece seguramente uma cuidada visita.

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 1 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25591: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (156): Em Tavira, para visitar Balsa, cidade romana, que existiu há cerca de 2000 anos (Mário Beja Santos)