quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25840: Timor: passado e presente (17): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VIII: O campo de concentração de Liquiçá e Maubara


António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.


Capa do livro "Quando Timor foi Notícia", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio propagandístico, datado,  do escritor António de Seves Alves Martins: " Estar, agora, Portugal  vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12)

Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois  com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, no campo de concentração de Liquiçá, em 1943. Viu a morte á sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois 



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.  O autor regressou a Portugal em 8 de dezembro no velho navio "Angola", com o governador e  a sua família e mais cerca de 170 refugiados.  Chegada a Lisboa em 24 de fevereiro de 1946!



Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.



Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes.  E tinha uma força militar simbólica.  Lugar de desterro, tinha mais deportados do que colonos e funcionários públicos.  O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.  Os timorenses tinham uma forte identificação com Portugal, o que não acontecia com os outros timorenses do outro lado da ilha, em relação à Holanda.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Timor  (uma descolonização difícil, hoje um país independente,  lusófono, desde 2002, como República Democrática de Timor Leste)  foi o único território  português ultramarino (na altura, designado como "colónia", até 1951)  
que, à revelia da declaração de neutralidade de Portugal,  
foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, durante a II Guerra Mundial (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945),  tropas aliadas (anglo-australianas  e holandesas) e  japonesas, respetivamente. 

Em fevereiro de 1942, ia uma força militar portuguesa, enviada de Moçambique, a caminho de Timor, quando se deu a invasão japonesa, em 19 desse mês, tendo sido desviada para Macau. A soberania do território seria retomada três anos e meio depois, em setembro de 1945.
 (A capitulação japonesa é a 22,  ainda sem a presença militar portuguesa: o nosso contingente só lá chega uma semana depois.)

Recorde-se que Portugal, mesmo não tendo participado na II Guerra Mundial, fez um elevado esforço militar, mobilizando bastantes efetivos para a defesa do continente,  das ilhas atlânticas e do império... Os efetivos em 1942 são já da ordem dos 116 mil homens. Chegam aos 130 mil a partir de 1943.  Há 3 divisões, totalmente equipadas, para defesa do continente.  
Para os Açores foram mobilizados  c. de 26,5 mil homens,
 para a Madeira, 3,4 mil, para Cabo Verde 6,7 mil 
e para Angola e Moçambique 20 mil... 
Não havia plano de defesa para Timor (**).

Mesmo publicado trinta anos depois dos acontecimentos, em 1972 (portanto, numa época em que ainda havia a censura a obras literárias, e os autores faziam autocensura),  o livro em apreço, "Vida e Morte em Timor" "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive,  continua a ser um documento importante para o estudo deste dramático  período da história do Timor português,  uma terra de que, afinal, pouco ou nada sabíamos. No entanto, o autor  usa muito  fonte  os livros do Cal Brandão e do António Liberato. 

Devido à censura (que esteve vigor entre nós, desde 1926 e 1974, e que era mais "apertado" em tempo de guerra,  em 1939-1945 e depois em 1961-1974), o "caso de Timor", com  todo o seu horror,  só foi conhecido após a II Guerra Mundial.  E que depois disso foi novamente silenciado. Enfim, só mais recentemente, 80 anos depois (!), a televisão e o cinema se interessaram pelo que aconteceu naquele território. 
 
Para ajudar a leitura que estamos a fazer, voltamos a  reproduzir neste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos (contrariamente ao que se passou na Guiné-Bissau ou em Angola, por exemplo, os topónimos continuam a ser os mesmos): 

(i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  | (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  ! (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  | (iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.

 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VIII:  O campo de concentração de Liquiçá e Maubara


(i) Depois das chacinas de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942, e contactado por telegrama, em linguagem aberta, o governo central, em Lisboa, a escassa população portuguesa, de origem europeia, está numa situação "dificílima", para não dizer desesperada. 

De Lisboa não virá qualquer socorro... Os portugueses estão isolad0s (e literalmente abandonados). Mas era preciso que ficassem, estoicamente, quais mártires cristãos,  para assegurar, no fim da guerra, a soberania sobre o território... Homens, válidos,  civis e militares, incluindo os deportados, mais as  mulheres, as crianças, os doentes  e os velhos... Não seriam mais do que 3 centenas...

Uma parte da população portuguesa europeia acaba 
por se conformar  com a solução imposta pelos japoneses, 
a da concentração  dos sobreviventes em Liquiçá e Maubara,
 no distrito de Díli,  a oeste da capital. Ironicamente, 
"sob a proteção das tropas nipónicas"... 

Estamos em novembro de 1942.
Não era "campo" mas "zona", sem arame farpado... ! 
"Zona de proteção", segundo a Cacilda Liberato. 
Uma designação eufemística. 
A estratégica das sinistras tropas do Japão Imperial, 
xintoísta, militarista, xenófobo, racista  e ultranacionalista,
 era claramente a de separar os portugueses dos timorenses, e deixar os primeiros morrer de fome, doenças, vexames, arbitrariedades (e chacinas, 
em consequência dos "raides" das "colunas negras")... 
Afinal, os portugueses , tal como os holandeses, os ingleses, os franceses, etc, eram o rosto do odiado colonialismo europeu.
 
 Num dos seus livros de memórias, o capitão Liberato (**) 
sintetisou este acordo, nestes termos: «A zona de concentração (...) 
 abrangeria as áreas dos postos administrativos de Liquiçá e Maubara.

"Ali se concentrariam todos os portugueses. Os destacamentos militares,
 o meu e o do tenente Ramalho dos Santos, estabelecer-se-iam respetivamente em Boebau, área de Liquiçá, e nas montanhas de Maubara, com a missão de defender a integridade da zona, contra os ataques dos indígenas.

"Cada português poderia conservar em seu poder uma arma de fogo 
para defesa pessoal. Os indivíduos cujas funções obrigassem 
a permanecer em Díli, residiriam no hospital Dr. Carvalho, 
em Lahane». (...)


(...) Entretanto, haviam sido montados os serviços indispensáveis a vida da pequena comunidade agora reunida na região Liquiçá-Maubara (1). 

Como administrador da zona, continuou o engenheiro Canto, com todo o seu entusiasmo e desejo de bem servir. Agindo sob a sua direcção, ficaram à testa dos postos de Liquiçá e Maubara, dois militares, sargentos António Joaquim Vicente e José Miranda Relvas (...)

Na zona de concentração funcionavam, também, os Serviços de Fazenda, dirigidos pelo Dr. Tarroso Gomes, e a assistência médica era prestada pelo Dr. Francisco Rodrigues, coadjuvado por vários enfermeiros e enfermeiros auxiliares, em serviço nas enfermarias de Liquiçá e Maubara.

 (...) «E era tudo. Os vagos Serviços de Abastecimentos, que também se organizaram, mostraram-se pouco eficientes. A sua acção só se fez sentir, enquanto o problema da alimentação não apresentou dificuldades» (1) .

«Quanto à defesa da zona contra as possíveis arremetidas do gentio das regiões limítrofes, ficou unicamente a cargo do destacamento português acampado em Boebau e na Granja Eduardo Marques. As forças do tenente Ramalho dos Santos,desarmadas em Baucau, não puderam ocupar as posições que lhe estavam destinadas, para assegurarem, a defesa da região de Maubara. Dissolvidas, apenas dois ou três elementos europeus e o seu comandante se juntaram aos concentrados (1).

Na zona, logo introduziram os japoneses a sua terrível «Kempy» (1), chefiada por um simples cabo, o famigerado Kato, a qual se instalou numa casa próxima da enfermaria de Liquiçá." (...)


 (ii) Face ao ocupante nipónico, os portugueses estavam divididos em dois grupos: os que acatavam as ordens do governador Ferreira Carvalho (o mesmo é dizer, do governo central);   e os que resistiam contra os japoneses, juntando-se à guerrilha australiana e timorense, como era o caso do advogado portuense, deportado, o dr. Cal Brandão, e outros deportados, bem como  os administradores Manuel de Jesus Pires  e A. Sousa Santos, o luso-timorense Júlio Madeira e diversos "liurais" (régulos), aliados dos portugueses como Dom Aleixo Corte Real.


Manuel de Jesus Pires, antigo administrador de Baucau ("Vila Salazar") consegue, com a ajuda dos australianos, e à revelia 
do governador Ferreira Carvalho,  salvar cerca de 
uma centena de mulheres e crianças, 
que serão levadas para a Austrália, 
em 18 de dezembro de 1942, 
numa navio que aportou  em Aliambata,
na parte sul do território. 


(...) Conta-nos o dr. Cal Brandão o que se passou por estes tempos no reino do Suro de que era liurai D. Aleixo Corte Real (2). A sua gente havia-se afastado das povoações e embrenhara-se no mato, ou estabelecera-se nas montanhas, para evitar relações com os invasores. Depois do ataque a Same, que tivera lugar em 10 de dezembro, os australianos deram ordens às suas guerrilhas para abandonar toda a região de oeste, concentrando-se na área de Fátu-Berliu, donde foram evacuados para a Austrália, embarcando na Aliambata.

A secção instalada junto de D. Aleixo fora, também, levando consigo os europeus que nessal altura ainda estavam acoitados naquelas paragens, com excepção do sargento José Estêvão Alexandrino, chefe do posto de Atsabe, com o seu pequeno grupo constituído pelo deportado sr. Felner Duarte e os senhores José Cachaço e Romualdo Aniceto, que se negaram a acompanhá-los. 

O sargento Alexandrino, com o seu grupo, desde os primeiros dias da revolta da Fronteira, reunira os arraiais dos timorenses fiéis, à frente dos quais estava o sempre dedicado chefe Cipriano, de Suro-Craic, e de montanha em montanha, de povoação em povoação, foi levar o castigo aos rebeldes. Quando lhe foi dada ordem para se apresentar ao tenente Liberato, a fim de seguir para a zona de concentração, negou-se a cumpri-la. 

Por muito tempo se conservou na área do seu posto, nessa guerra de movimento, até que os japoneses, julgando importuna a sua presença, deram uma ajuda às colunas negras para o desalojar. Já a essa data se lhe viera juntar o chefe Tálu-Bere, de Loi-Cíbu, Maliana, que, reunindo a sua gente de guerra se dera a castigar os inimigos rebeldes seus vizinhos, depois do que, num gesto de audácia e bravura, abriu caminho através das hostes adversárias e veio congregar os seus esforços aos da autoridade portuguesa que lhe ficava mais próxima. 

Recuando perante a forte pressão a que não podiam resistir, vieram acolher-se todos à protetora amizade do Suro. Nos primeiros tempos alsl metralhadoras e granadas australianas eram elementos convincentes para manter as colunas negras a razoável distância. Mas, mesmo depois da partida destes, o ardor dos portugueses não esmoreceu (1). (...)


(iii) E chegamos ao ano 1943, cujos acontecimentos o autor resume em menos de uma dúzia de páginas (pp. 68-79); além da violência dos japoneses e das "colunas negras",   portugueses e timorenses estavam sujeitos ao bombardeamentos dos Aliados.

Há, entretanto, mais um suicídio, heróico, de um médico, o dr. Correia Teles. No final da guerra, dos 4 médicos existentes na colónia, só restará o dr. José dos Samt0s Carvalho, que era o mais novo (em idade e antiguidade, segundo sabemos)


(...) Em princípios de janeiro , alguns indígenas, dirigidos por um oficial e dois ou três soldados japoneses, assaltaram, pela calada da noite, a casa onde residiam, em Liquiçá, o administrador Virgílio Duarte e o chefe de posto Moreira Rato, vasculharam, minuciosamente, a residência, à procura de australiano escondidos, e levaram, sob prisão, os dois funcionários que, prudentemente, se haviam refugiado no sótão da habitação, ao sentirem aproximar-se os díscolos. Depois de uma noite de interrogatórios, libertaram-nos (1).

 No dia 3, à tarde, fomos surpreendidos no hospital de Lahane pela inesperada aparição do chefe de posto, encarregado da administração da circunscrição do Oecússi, sr. Fernando Tinoco. Contou-nos que, tendo-lhe os japoneses falado num pacordo com os portugueses que referiam à sua maneira, ele os convencera a deslocar-se a Díli, num beiro timorense (3),para pessoalmente receber instruções do Governador. No território do Oecússi, tudo decorria normalmente, estando todos bem.

(...) Conta-nos o capitão Liberato num dos seus livros (***) que em Liquiçá logo se viu a necessidade imperiosa de se tomarem rápidas, e enérgicas medidas para pôr cobro aos desmandos dos meliantes, apesar de serem, certamente, considerados pelos nipónicos como tropa sua. 

Resolveu-se fazer uma batida a Quene-Açu, improvisando-se, rapidamente, uma coluna de voluntários chefiada pelo engenheiro Canto e pelo tenente Liberato que, por acaso, então se encontrava em Liquiçá e de que faziam, também parte, o sr. Jaime de Carvalho, Administrador da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, os deportados, senhores Jaurés Viegas, Serafim Martins, Viegas Carrascalão, Joaquim da Silva, João Pinto e José Pinto, o aspirante administrativo José Duarte Santa e seus irmãos Vítor Santa e Mário Santa.

A coluna de voluntários atacou de surpresa, sendo três mortos e meia dúzia de prisioneiros no campo adverso, o resultado da breve escaramuça, podendo, assim, o sr. Jaime de Carvalho entrar na palhota onde encontrou, sãos e salvos, o sr. JúlioLemos e toda a sua família, a quem os captores haviam dito que seriam fuzilados dentro de um quarto de hora ! (1)

 «Ê interessante registar que, coincidindo com o tiroteio em Quene-Áçu, se ouviu o matraquear das metralhadoras nipónicas em Liquiçá. Levou-se isso à conta de sinal previamente combinado entre os dominadores e a «coluna negra». Assim era, efectivamente.» (1).

 Por este tempo, a guerrilha do sr. Júlio Madeira incomodava, fortemente, os japoneses, movimentando-se por terras da Hátu-Lia e Ermera, o que lhes deu o pretexto de exigirem a saída, de Boebau, do destacamento do tenente Liberato, por pretensa assistência àquele guerrilheiro (1). Assim o destacamento teve de trânsferir-se pára Guguleur, na região de Maubara, onde se instalou, no dia 9 de eevereiro (1 .

 (...) Na tarde do dia 26 chegou ao hospital uma camioneta japonesa donde se apearam dois europeus, o cabo reformado Francisco Migule e um seu filho. Por eles então soubemos do embarque para a Austrália da maioria dos portugueses foragidos de Baucau e do abandono de alguns, pelo mato, sem alimentos nem assistência, perseguidos pelas colunas negras e minados pela fome e doença. Os dois, não tendo, também, conseguido embarcar para a Austrália, haviam-se entregado aos japoneses, em Viqueque, que os transportaram para Díli. 

Mais nos informaram que o dr. Correia Teles se havia suicidado e que o enfermeiro Senanes fora assassinado à catanada por indígenas das colunas negras que o apanharam isolado, tendo eles ouvido o brado de terror que precedeu a sua morte — Meu Deus!.

 Conta-nos o Dr. Cal Brandão, no seu livro, pormenores sobre a morte do Dr. Correia Teles, que, prestando serviços clínicos aos seus companheiros de odisseia, adoecera gravemente (2). 

As condições de saúde do médico, que bem conhecia o seu estado, agravaram-se, sentindo que não podia caminhar ou montar a cavalo e que seria penoso e difícil o transporte em padiola, Num gesto de desânimo afastou-se dos companheiros,deitou-se no leito duma ribeira, e, com os dedos dos pés, desfechou a espingarda caçadeira que possuía, com os canos apoiadoscontra o maxilar (2).  Passara-se esta tragédia no dia 6 de fevereiro.

(...) Em princípios de maio, os japoneses forçaram os agricultores europeus de Maubara a abandonar os suas plantações e a concentrarem-se na povoação, tendo o mesmo acontecido em Liquiçá, para os empregados da granja Eduardo Marques e da plantação da Pahata, da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho.

Não tardaram depois a impor aos civis residentes na zona de concentração, a entrega de todo o armamento que, conforme o acordo negociado, quando da concentração, cada português podia conservar em seu poder, para defesa pessoal (1) .

 Na tarde do dia 11 de maio apareceram no hospital de Lahane, transportados numa camioneta japonesa, os padres António Manuel Serra e Júlio Augusto Ferreira, o secretário de circunscrição José Luís Howell de Mendonça, o aspirante administrativo Eugénio Vaz de Oliveira e o deportado sr. Américo de Sousa.

 Satisfazendo a nossa ansiosa espectativa contaram-nos a sua odisseia, desde a saída de Baucau, em 24 de novembro, administrativo Eugénio Vaz de Oliveira,

 Escondidos na região de Viqueque, souberam que um navio australiano viria à praia da Aliambata, no dia 18 de dezembro, para levar para a Austrália os portugueses foragidos de Baucau, de Kelicai, de Laga e de todos os postos que se despovoaram à aproximação das colunas japonesas que eles sabiam não respeitar ninguém (2).

 Assim, apresentaram-se na praia da Aliambata, no dia combinado. Porém, com grande estupefacção da sua parte, foram informados, então, pelo sargento Martins (o qual acompanhava o oficial australiano que superintendia no embarque) que não faziam parte da lista das pessoas autorizadas a embarcar e ele estva encarregado de os impedir de o tentarem, mesmo que tivesse de fazer uso da sua metralhadora.

Pelo Dr. Cal Brandão (2) podemos comprender o explicar o sucedido. O tenente Pires, que era o chefe natural da gente foragida e contactava com os militares australianos, intentou salvá-la, especialmente mulheres e crianças, das colunas negras lançadas em sua perseguição. Para isso, avistou-se com o chefe do grupo da Inteligência Militar Australiana, capitão Brothers, sugerindo-lhe uma evacuação, como as que já tinham sido feitas pelos australianos.

«O oficial português deseja ficar com os funcionários seus subordinados, para manter, enquanto possível, a soberania e a autoridade portuguesa naquela área. O inglês acede, mas pretende que mais alguns portugueses voluntariem para colaborar na resistência. As famí-lias desses voluntários terão preferência no embarque. Dentro deste critério, o capitão, organiza uma lista de 300 pessoas, na qual inclui todas as senhoras e crianças europeias, e fá-las embarcar» (2).

O secretário Mendonça, embarcados para a Austrália sua esposa e filho, juntou-se aos dois missionários e ao aspirante Eugénio de Oliveira, passando a vaguear pelo mato, escondendo-se das colunas negras e alimentando-se de espigas de milho e de raízes de mandioca cruas, que iam apanhando a furto, pois as povoações estavam cheias de japoneses.

Conservaram-se assim, sofrendo privações de toda a ordem, na área dos postos de Viqueque e de Lacluta, até que passaram para a região de Luca onde tiveram a ventura de ser acompanhados e fielmente amparados por dois filhos do chefe do suco de Umuai de Baixo, do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares, os quais iam frequentemente à casa de seu pai para fornecerem alimentação ao grupo.

Conservaram-se nesta situação cerca de dois meses, tendo sido então que tiveram conhecimento do suicídio do dr. Correia Teles que fazia parte doutro grupo de portugueses que perto ali andava.

Cansados e sem esperança, vendo que estavam a comprometer seriamente os timorenses que tão desveladamente os ajudavam, resolveram tentar tudo por tudo, apresentando-se aos japoneses, em Viqueque,

Submetidos pela polícia a um violento interrogatório, durante seis horas, vendaram-lhes, depois, os olhos e meteram-nos, de pé, numa camioneta, julgando, então, irem ser fusilados.

Felizmente, porém, a camioneta foi posta em andamento e, quando horas depois lhes tiraram as vendas, estavam já nas proximidades de Baucau, continuando a viagem para Díli e seguindo directamente para o hospital de Lahane.

O padre Serra deu-me, por fim, a notícia que o missionário, padre Francisco Madeira, havia morrido miseravelmente na região de Lacluta, no mês de Abril, minado por infecção ocasionada por sarna generalizada, para a qual não tivera qualquer possibilidade de tratamento.

(iv) Relato dos bombardeamentos dos aliados 
e o tratamento dos feridos de guerra


(...) A noite em que os meus amigos de Baucau chegaram ao hospital, haveria de ficar marcada por um acontecimento da maior importância para os que aí residiam.

Por estes tempos, os bombardeamentos aliados a Díli recrudesciam de intensidade e frequência, havendo-os duas e até mais vezes ao dia.  Eram terríveis espectáculos em que os aviões voavam sobre nós e iam afrontar uma formidável barragem de artilharia antiaérea que defendia a cidade, com troar ensurdecedor.

Porém, como tínhamos sempre hasteada a bandeira nacional e as suas cores pintadas no telhado de zinco do pavilhão principal, vivíamos com algum sossego, sob a impressão de não sermos, provavelmente, atingidos,

Ora, cerca das dez horas da noite desse dia 11 de maio ouvimos, mais uma vez, os ruídos de motores de aviões que rapidamente se aproximaram. Enquanto corríamos para o abrigo que havíamos cavado na montanha, junto da casa mortuária, fomos surpreendidos
por uma luz intensíssima que tudo claramente iluminava, a qual provinha duma fonte que descia lentamente, certamente num paraquedas.

Mal tendo acabado de entrar no abrigo, sentimos, nitidamente o sibilar de bombas lançadas dos aviões e, a seguir, o tremendo estrondo de explosões muito próximas.

Afastados os aviões, abandonámos o abrigo e mal pudemos, então, acreditar que uma bomba havia caído mesmo ao lado da casa mortuária, a poucos metros de nós, pois aí encontrámos
grandes pedaços da sua parte externa, caprichosamente retorcidos. Assim, cessava toda a nossa confiança em que os aliados respeitariam o hospital português quando bombardeassem os objetivos japoneses.

Mas, além disto, verificou-se, momentos depois, haver tremenda tragédia nas palhotas que os timorenses, auxiliares da Missão Geográfica habitavam no fundo da ravina, junto do hospital. Grande clamor se ouviu então, e, logo chegou um deles, com a notícia de que o auxiliar José havia morrido, com a cabeça esfacelada, e que mais quatro estavam feridos.

Corremos para o local, com macas, e transportámo-los para uma sala que tinha sido enfermaria e ainda conservava as camas respectivas, as quais, oportunamente não haviam podido ser levadas para Quelicai, na pressa da transferência dos Serviços.

Nunca na minha vida de médico eu tivera ocasião de observar feridos de guerra. Os pequenos estilhaços das bombas, por serem caprichosamente retorcidos, seguem um percurso muito sinuoso, dentro das partes moles, sendo as feridas muito irregulares e anfractuosas nos seus bordos e em profundidade.

Dos quatro feridos, um apresentava fractura do fémur e necessitava, com toda a urgência, de uma operação de grande cirurgia que não se podia sonhar ser feita numa ambulância em que nem sequer possuíamos instalações de esterilização de material, de pensos e de roupas, dos quais, aliás, não dispúnhamos, senão para cuidados simples de enfermagem. Porém, mesmo para os outros, eu não tinha possibilidade de lhes extrair os estilhaços profundamente alojados nos tecidos.

Mais uma vez, o engenheiro Canto se dirigiu ao consulado do Japão, desta vez para pedir auxílio que não se fez esperar. Cerca das 10 horas do dia 12, médicos militares japoneses operavam os feridos no seu hospital que tinham instalado no nosso antigo pavilhão de mulheres, tendo eu, a seu convite, assistido à operação.

Logo, voltaram os operados ao hospital português onde eu e os enfermeiros de serviço lhes fizemos os tratamentos subsequentes, um deles durante uma incursão aérea aliada que, tal como felizmente sempre depois sucedeu, não bombardeou o hospital.

Quando se tornou possível, os feridos foram levados para a enfermaria de Liquiçá, onde parecia não haver perigo de bombardeamentos, ficando sob os cuidados do Dr. Francisco
Rodrigues. Todos foram inteiramente recuperados.

(...)

 ______________

Notas do autor;

(1) Vide Capitão António de Oliveira Liberato, Os japoneses Estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

 (2) Vide Carlos Cal Brandão, "Funo". Porto, 1946.

(3) «Beiro» é o nome, em Timor, das pirogas indígenas. 

 
(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, reordenação das notas de rodapé, negritos, itálicos: LG)

(**) Vd. Teixeira,  Nuno Severiano: "Portugal e a Segunda Guerra Mundial". In "Nova História Militar de Portugal (dir. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira", vol. 4,  s/l,  Círculo de Leitores,  2004, pp. 46-55.

(***) António  Oliveira Liberato escreveu dois livros de memórias sobre o seu tempo de Timor: (i) O Caso de Timor, Portugália, Lisboa, s/d (c. 1947);  (ii) Os japoneses estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

Guiné 61/74 - P25839: Verão 2024: Olá, nós por cá todos bem (3): O bom padre Escudeiro (1917-1994) e a lição que aprendeu um dia, em Alcanena e na Lourinhã: "Nunca se sabe o que se passa no coração dos poetas nem muito menos na cabeça dos censores"...


Lourinhã > Igreja de Samta Maria do Castelo  (Séc. XIV). Gravura de autor desconhecido.n Fonte; Jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Poema à Igreja do Castelo

por Luís Graça

Em tuas pedras
Habitam os deuses assimetricamente
Ressuscitam os cavaleiros andantes
Que em ti prolongaram o Eterno.

Tuas naves albergam vagos sibilos
Símbolos escondidos
Pássaros noturnos
E recortam a harmoniosa dimensão do espaço
Em que as palavras se quebram
De encontro ao silêncio das colunas.

Adornaste os teus capitéis
Com as algas do mar
Extraíste das conchas as pérolas
Para o rendilhado das tuas rosáceas
E fabricaste
Com as linhas paralelas dos limos
A tua própria austeridade.

E do alto da tua torre
Como do mastro de um navio
Contemplas a imagem perturbante dos moinhos
E persegues as gaivotas
Até onde o mar tem fronteiras de neblina.

Luís Graça (1964)


Publicado originalmente no jornal Jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Lourinhã > Igreja de Santa Maria do Castelo (Séc. XIV) > Vista interior. Fotógrafo: Mário Novais, 1899-1967. Orientador científico: Mário Tavares Chicó, 1905-1966. Data aproximada da produção da fotografia original: 1954.[CFT015.236.ic].



1. Um poema meu, publicado aos 17 anos... (naquela idade em que todos julgamos ser poetas de génio). Dedicado à igreja que é o ex-libris da minha terra. E onde fui batisado em 1947. Pelo padre Tobias. 

Publicado no jornal "Alvorada". Há 60 anos. Foi aqui, no jornal "Alvorada", que comecei a publicar os meus primeiros poemas. A escrever as ,minahs primeiras peças jornalísticas (notícias, reportagens...). 

Foi aqui que tive a minha primeira atividade remunerada como jornalista, embora sem carteira profissional. Foi, aliás, esta a profissão que dei para a tropa, quando aos 20 anos fui à inspeção militar, em 1967. Também dava explicações a alunos do ensino secundário (português, francês, geografia, história...).

Comecei por estar ligado, à criação de uma secção, ou de uma página, a que chamámos "Alvorada Juvenil", com outros jovens da terra, estudantes (e outros,  já a  trabalhar), com destaque para os meus amigos e colegas de escola primária, os saudosos  Álvaro Andrade de Carvalho, mais tarde psiquiatra (Lourinhã, 1948 - Lisboa, 2017) e o Rui Tovar de Carvalho (Lourinhã, 1948-Lisboa, 2014), que haveria, depois, de fazer carreira no jornalismo desportivo. (O Álvaro faria hoje an0s, 76, se fosse vivo.)

Criámos a seguir um secção dedicada ao "correio dos soldados do ultramar", e mais uma outra onde demos voz aos nossos emigrantes (maioritariamennte em França e na Alermanha, ams também no "Novo Mundo", Brasil, EUA, Canadá).

No "Alvorada Juvenil", abrimos um inquérito aos jovens lourinhanenses e alimentámos o "cantinho dos poetas"... 

Havia da nossa parte alguma irreverência, inquietação e inconformismo, próprias da idade e das circunstâncias da época. Acabei por exercer as funções de redator-coordenador deste jornal, quinzenário regionalista, que ainda hoje se publica. E que era propriedade do Patriarcado de Lisboa. Com0o muit0s outros...

Foi fundado ao em 1960, pelo padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994), um homem a quem a Lourinhã muito deve e que fez uma aposta forte na formação das elites locais, ou seja, na educação, para além do apostolado e do mister sacerdotal. Equipou o concelho com diversas igrejas novas, construídas de raiz: Seixal, Atalaia, Ribamar, Toxofal...

Foi o fundador e o primeiro diretor do Externato Dom Lourenço, que a partir de 1958 permitiu aos jovens do concelho da Lourinhã prosseguir os seus estudos depois do ensino obrigatório (que era apenas de 4 anos no meu tempo).

Até então e desde 1953, havia um colégio particular,  Dom Luís de Ataíde (fundado em 1953 pelo dr. Piçarra, que era do concelho vizinho do Bombarral). Funcionava num vivenda.  Umas escassas dezenas de rapazes e raparigas da Lourinhã puderam então estudar até ao 5º ano.  O 7º ano só nas capitais de distrito (Leiria, a norte, Lisboa, a sul).

O padre António Escudeiro fora igualmente fundador do jornal "Redes e Moinhos" (1954-1960) (donde fui encontrar, por exemplo, vário sonetos da Luiza Neto Jorge, 1939-1989, que em jovem vinha passar o verão à Praia da Areia Branca.)

Antes de vir para a Lourinhã como pároco, em 1953,  o padre Escudeiro estivera em Alcanena, terra ribatejana da indústria dos curtumes, onde fundara o jornal quinzenário "O Alviela". Será  entretanto suspenso pela censura por ousar publicar um artigo sob o título "A fome em Alcanena" (onde se criticava a banca pelos juros usurários que, no pós-guerra,  levavam à falência das empresas locais, ao desemprego e à fome)...

Estava-se em plena campanha eleitoral do general Norton de Matos. "O Alviela" retomaria a publicação depois de, mediante requerimento, ser expressamente autorizado a versar também "assuntos sociais" (sic).

Mas a verdade é que o padre Escudeiro ficou com ficha na PIDE.

À frente do "Alvorada", como redator-coordenador, durante mais de très anos (de 1964 a 1966), "fiz-me esquecido" e deixei de mandar o jornal à censura... A entrada de jovens fora uma pedrada do charco da pasmaceira e do conformismo em que se vivia nesta terra do oeste estremenho. A última do concelho do distrito de Lisboa. Tinha então 3 médficos, e um pequeno hospital da misericórida. Sem enfermagem, sem bloco operatório, sem banco de sangue. Mas onde se fazia já alguma cirurgia ambulatória... pro médicos que vinham de Lisboa ou Coimbra.

Estava-se em plena guerra do ultramar / guerra colonial mas já na fase de fim de ciclo da história..."Cadáver adiado", o regime do Estado Novo ainda estrebuchava e metia medo a muitos. Não admirava que o diretor do jornal tenha recebido um intimidatório ofício da direcção geral de censura a perguntar por que é que se permitia o luxo de ultrapassar a lei...

Metade do ofício, que era apenas de duas linhas, correspondia a uma assinatura em letra garrafal, símbolo máximo da arrogância  de quem se sentia dono e senhor deste país... A assinatura, ilegível, seguia-se à fórmula, obrigatória, no tempo do Estado Novo (1926-1974), "A bem da Nação, com que terminavam todos os ofícios (e todas as demais comunicações escritas, internas, incluindo discursos, requerimentos, petições, etc.)

O pobre do "senhor vigário" (como a gente o tratava), lá teve que arranjar uma desculpa esfarrapada aos senhores coronéis da censura e, a mim, puxou-me as orelhas... Doravante, tínhamos que mandar os artigos em duplicado para a tipografia, sita em Torres Novas, que por sua vez mandava uma cópia para a censura... E no entanto nunca nenhum de nós escreveu o que que fosse que pudesse pôr em causa a sagrada tríade "Deus, Pátria e Família"!...

Eu acho que os censores embirraram sobretudo com os nossos jovens poetas. Não entendiam nada da poesia moderna e receavam à brava que os jovens lourinhanenses e outros, que colaboravam connosco, escrevessem também nas "entrelinhas", mandassem em código, entre si, perigosas, subversivas e dissolventes mensagens...

Nunca se sabe o que se passa no coração dos poetas nem muito menos na cabeça dos censores...

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Nota do editor:

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25838: Em busca de... (326): Camaradas do malogrado Fur Mil Op Esp Dinis César de Castro, da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2885, que morreu em combate, no dia 12 de Outubro de 1970, durante a emboscada a uma coluna auto no itinerário Mansoa-Infandre

1. Mensagem de Ana Marques Ribeiro, enviada ao nosso Blogue através do Formulário de Contacto do Blogger em 10 de Agosto de 2024:

Boa tarde, caro Sr. Luís Graça.
Sou amiga da prima do Furriel Miliciano Dinis César de Castro, morto na emboscada de 12 de Outubro de 1970, no trajecto Braia-Infandre, na Guiné-Bissau.
Os membros da família que o conheceram, em número muito escasso e pouco dados às novas tecnologias (daí ser eu quem descobriu este blog nestas férias e quem está a redigir este pedido), gostaria de entrar em contacto com alguns dos combatentes que o conheceram e que, eventualmente, possam ter registos fotográficos e testemunhos sobre a última parte da sua brevíssima vida.
Desde já, agradeço tudo o que puder fazer para dar informações aos primos, já idosos, que não esquecem o rapaz muito simpático, brincalhão , amigo do seu amigo, sempre bem disposto, alegre, e um filho único que nutria uma grande veneração pela sua mãe. A sua morte foi uma perda irreparável para a família.

Cumprimentos,
Ana Marques Ribeiro


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2. Comentário do editor CV:

Cara Ana Marques Ribeiro,
Muito nos sensibilizou a sua mensagem onde procura camaradas do malogrado Fur Mil Op Esp, Dinis César de Castro, que caiu em combate no dia 12 de Outubro de 1970, numa emboscada a uma coluna auto no itinerário Mansoa-Braia-Infandre.
Estou a publicar este post no sentido de se encontrar camaradas que queiram de algum modo lembrá-lo.

Entretanto pode encontar os textos publicados no nosso Blogue, referentes à fatídica emboscada à coluna auto no itinerário Braia-Infandre, de que resultou a sua morte, assim como à condecoração com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe com que foi agraciado, a título póstumo, clicando aqui: Dinis César de Castro.
Poderá assim informar os primos do Dinis das circunstâncias que levaram à sua morte e que eventualmente desconheçam.

Este dossiê foi elaborado pelo nosso camarada Afonso Sousa, ex-Fur Mil TRMS da CART 2412, a quem estamos gratos pelo seu trabalho de pesquisa.

Lembremos agora, a transcrição do Despacho publicado no OE n.º 022 - 3.ª Série, de 1971:

Furriel Milicianio de Infantaria Dinis César de Castro, CCaç 2589/BCaç 2885 - RI 15, Guiné > Cruz de Guerra de 4.ª Classe (Título póstumo)

"Agraciado com a Cruz de Guerra de 4.ª classe, a título póstumo, nos termos do artigo 12.° do Regulamento da Medalha Militar, promulgado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 21 de Junho findo, o Furriel Miliciano de Infantaria, Dinis César de Castro, da Companhia de Caçadores n.º 2589/Batalhão de Caçadores n.º 2885 - Regimento de Infantaria n.º 15.

Transcrição do louvor que originou a condecoração (Publicado na OS n. 024, de 17 de Junho de 1971, do QG/CTIG):

Que, por despacho de 09Jun71, o Brigadeiro Comandante Militar louvou, a título póstumo, o Furriel Miliciano, n.º 15398468, Dinis César de Castro, da CCaç 2589/BCaç 2885, porque, numa emboscada levada a efeito por um grupo inimigo numericamente muito superior e tendo a viatura em que seguia ficado na 'zona de morte', patenteou invulgares qualidades de coragem, decisão, sangue-frio e muita serenidade debaixo de fogo.

Ligeiramente ferido num braço logo aos primeiros tiros, reagiu prontamente, tentando a todo o custo aproximar-se da testa da coluna, onde o número de baixas era mais elevado, sendo mortalmente atingido quando prestava ajuda a um camarada que se vira cercado por quatro elementos inimigos.

Com o seu acto, pleno de generosidade, demonstrou o Furriel Castro uma compreensão nítida dos seus deveres que o levaram até à dádiva da sua própria vida, o que além de constituir exemplo inesquecível, ficará a merecer a maior admiração e o respeito de todos."

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 5.° volume: Condecorações Militares Atribuídas, Tomo VI: Cruz de Guerra (1970-1971). Lisboa, 1994, pág. 491.

Guiné > Região do Oio > Trajecto Mansoa - Braia - Infandre > 12 de Outubro de 1970
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Vamos dar conhecimento da sua mensagem aos nossos camaradas, ex-Cap Mil Jorge Picado, ao tempo Comandante da CCAÇ 2589 a que pertencia o Dinis e ao ex-Fur Mil Sapador César Dias, que pertencia à CCS do Batalhão 2885. Pode ser que se lembrem dele.

Por uma questão de salvaguarda da sua privacidade, não publico os seus contactos. Quem a quiser contactar pode e deve utilizar os endereços do Blogue para nós encaminharmos para si.

Muito obrigado por se nos dirigir e creia-nos ao seu dispôr.
Carlos Vinhal
Coeditor

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Nota do editor

Último post da série de 27 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25453: Em busca de... (325): O ex-cap inf Manuel Figueiras, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); cor inf ref, morava em Faro em 2005 (Humberto Reis, ex-fir mil op esp, CCAÇ 12, 1969/71)

Guiné 61/74 - P25837: Verão 2024: olá, nós por cá todos bem! (2): O novo livro de Joaquim Costa, "Crónicas de Paz e de Guerra" (Rio Tinto, Lugar da Palavra Ed., 2024, 221 pp.): "A sorte a Guiné ditou,/ Estúpida guerra enfrentou, / Três gritos por quem lá ficou, / Pelo povo se emocionou"

 


Dedicatória do editor do blogue: "Para o camarada e gransde amigo Luís Graça, o meu novo livrpo sobre a paz e sobre a guerra, em que esta cada vez mais se sobrepõe àquela. Um grande abraço, 6/8/2024".


Capa e contra capa do novo livro do Joaquim Costa, "Crónicas de paz e de amor: do Minho a Tombali (Guiné)... e o Porto Por perto". Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp, il



1. Mensagem do Joaquim Costa: (i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74); (ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, com mais de 7 dezenas de referências no blogue; (iii) engenheiro técnico (ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto), foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar: (iv) minhoto, de Vila Nova de Famalicão, vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo; (v) tem página no Facebook;  e, por fim, e não menos importante,  (vi) perdeu recentemente a sua querida Isabel.


Data - Terça, 6/08/2024, 19:35
Assunto -Livro: Crónicas de Paz e de Guerra

Boa tarde,  Luís

Espero que tudo esteja bem contigo.

Acabei de te enviar, por correio, o meu novo livro: "Crónicas de Paz e de Guerra". 
Integra parte do primeiro, com alguns textos revistos.

Há novos textos sobre as vivências na minha aldeia, onde o Minho acaba e o Douro começa, bem como crónicas sobre as minhas andanças por várias escolas, algumas já publicadas no Blogue.

Como já te tinha referido,  o nosso camarada e amigo Beja Santos teve a gentileza de deixar a sua marca num posfácio.

Podes colocar este por cima da pilha que vais levar para férias!

Boas leituras e boas férias

Um grande abraço, Joaquim Costa

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Guiné 61/74 - P25836: Verão 2024: olá, nós por cá todos bem (1): Um "haiku" à minha moda (António Graça de Abreu)


O poeta, algures no Império do Sol Nascente, s/l, s/d, com "o monte Fuji abrimdo-se em rendilhados de neve".

Fonte: Facebook do António Graça de Abreu > 12 de agosto de 2024,  23:19

1

. No tempo em que havia férias, em que fazia sentido haver férias, em que a rapaziada ainda trabalhava (alguns, como eu, que só me reformei quase a fazer os 71, no final do ano letivo de 2017/2018) ...), os editores do blogue pediam aos nossos leitores que lhes mandassem um "bate-estradas", um postal ilustrado dos destinos exóticos por onde a malta parava, ou simplesmemnte uma mensagem a dizer "Olá, nós por cá todos bem"...

Chegámoa até a criar algumas sérias mais apropriadas ao "dolce far niente" associado à canícula do verão:

  • "Passatempos de verão"
  • "No versão de 2015 mandem-nos um bate-estrada"
  • "O nosso querido mês de agosto, pós-pandémico: o que é ser português, hoje?"...

Hoje já não há férias, nem o "nosso querido mês de agosto", porque todos  os meses do ano parecem iguais... E depois, com as alterações climáticas, já não sabem0s se é verão ou inverno...

Dito isto, sabe-nos bem receber um miminho como este que o António Graça de Abreu nos manda de São Pedro do Estoril (ou já da China ?). 

Um "haiku". Aliás, vários "haikus a meu modo"...

Aprendem também com ele (e os poetas japoneses) a fazer um "haiku" (Vd. aqui,  "como fazer um haiku")

(...) "O Haiku teve a sua origem no Japão no séc. XVII. No princípio era considerado como um jogo de palavras ou ideias mas só com Matsuo Basho (1644-1694) é que passou a ser considerado como literatura. 

"Considerado poesia contemplativa, o Haiku valoriza a apenas três versos. natureza, as cores, as estações do ano, os contrastes e as surpresas. Desenvolveu-se num verso que é capaz de expressar sentimentos profundos pela natureza, incluindo os seres humanos. Isto responde à ideia tradicional japonesa que defende que o homem faz parte do mundo natural e deverá viver em harmonia com esse mundo". (...)

Tem 3 regras, simples: Regra n.º 1 – As quatro estações do ano; Regra n.º 2 – Reflete o teu mundo e o teu coração; Regra n.º3 – Capta um momento...

Nada melhor para estrear a nossa série de partilha de mensagens de "Verão 2024: olá, nós por cá todos bem" (subtítulo roubado a um filme do Fernandes Lopes, de 1977,  com música do Sérgio Godinho).

Caros leitores: mandem-nos "haikus à vossa moda", tanto pode ser uns versinhos, como um "postalito", ou meia dúzia de linhas com as vossas  impressões dos dias  que correm neste versão do nosso (des)contentamento... Aqui, hoje em Portugal ou nos arredores, tanto faz...: nas América(s), em Timor, na China, ou na Guiné, neste mundo ou no outro...

2. Mensagem do António Graça de Abreu, poeta, viajante, sinólogo, e sobretudo nosso amigo e camarada da Guiné (já não precisa de apresentação, já cá está há muito, tem 350 referências no nosso blogue):



Com Ueshima Onitsura, nascido em 1661, contemporâneo de Bashô.


Jantar com Onitsura,
o cricrilar do grilo,
o ronronar do gato.

Vem, outra vez
ao meu encontro.
Borboletas voando.

No céu, o monte Fuji,
abrindo-se em rendilhados de neve.
Todo o Japão.

Quantas sílabas
tem o cantar do cuco?
Neblina na lua.

Dia de Primavera,
o banho dos pardais
na areia do rio.

Na tepidez do Verão.
os deuses dançando
na brisa do entardecer.

O sonho de Outono,
acordo com o grasnar dos corvos.
A viagem para o vazio.

O Inverno gelado.
Duas ou três palavras
para aquecer a noite.



António Graça de Abreu, 12/8/2024

Guine 61/74 - P25835: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (130): Algarve, 2 de agosto de 2024: juntando à mesa amigos e camaradas, da CCAÇ 2585, CCAÇ 14, 27ª CCmds... (Manuel Resende / Eduardo Estrela)



Algarve > Albufeira >  2 de agosto de 2024 > Do lado esquerdo,  eu, Marreiros Alves, Eduardo Estrela e António Rosa: do lado direito,  Malaquias Ferreira, Cristo e Pargana 


Algarve > Albufeira >  2 de agosto de 2024 > Da esquerda para a direita, Malaquias Ferreira, António Rosa, Cristo, Marreiros Alves, Eduardo Estrela, Pargana  e Manuel Resende... O fotógrafo deve ter sido o Hugo Furão.
 


 
Algarve > Albufeira >  2 de agosto de 2024 > Da dierita para a esquerda: Cristo, Pargana e Hugo Furão



Algarve > Albufeira >  2 de agosto de 2024 > Da esquerda para a direita,  Manuel Resende, Marreiros Alves, Eduardo Estrela e António Rosa

Fotos ( e legendas): © Manuel Resende (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




1. Mensagem de Manuel Resende (ex-alf mil, CCaç 2585/BCaç 2884  Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto,  1969/71); régulo da Magnífica Tabanca da Linha:
 



Data - sexta, 2/08, 23:31

Assunto - Algarve, 2024, Amigos da Guiné

 
Caro Luis, não podia passar sem te dar esta notícia, não seria hoje, pois ainda estou no Algarve, mas como o Eduardo se adiantou, aqui vai:

No ano passado por esta altura fui passar uns dias ao Algarve, perto de Albufeira, e como tenho alguns amigos lá que foram Furriéis da minha Companhia, a CCAÇ 2585, resolvi falar com o Marreiros Alves, que nos arranjou um bom e barato restaurante na zona para nos reunirmos. 

Estivemos presentes 5 pessoas embora só 3 fossem camaradas. Um que aparece nas fotos que te envio foi meu colega no Seminário e vive em Portimão e também está indirectamente ligado à tropa, mais no transporte, pois trabalhou nos Paquetes Vera Cruz, Timor e outros, que levavam as tropas ao seu destino. Seu nome é Malaquias Ferreira e está na mesa à minha frente. O outro é meu Genro e que me acompanha.

Não houve fotos, era o 1º Convívio... Este ano voltei, combinei com o Alves, falámos a outros e juntámo-nos no mesmo restaurante. 

Já fomos 8, tirei algumas fotos, conheci o Eduardo Estrela pessoalmente,  e o António Rosa, comando da 27ª de CCmds. 

Veio também o furriel Cristo,  da minha Companhia (recém operado ao coração), mas fez questão em vir.

Muito bom e assim vamos mantendo as amizades.

Na foto onde estamos todos (8) à mesa, são: à esquerda - eu, Marreiros Alves, Eduardo Estrela e António Rosa; direita - Malaquias Ferreira, Cristo, Pargana e Hugo Furão.


Um abraço
Manuel Resende
https://photos.app.goo.gl/g2YKy8wufQ7Rfsni6
 

 2. Comentário do editor LG:

Eduardo Estrela


Obrigado Manuel, obrigado, Eduardo... Obrigado, restantes camaradas. 

Era uma ocasião a não perder. O Eduardo deu-me a notícia em primeira mão, por telemóvel,  estava feliz por ter encontrado o Manuel Resende, o famoso régulo da Magnífica Tabanca Grande.  Foi ele que usou a expressão: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... e Grande!".

E o Manuel também, feliz, por conhecer mais uns tantos camaradas da Guiné, o Eduardo, da CCAÇ 14, e o Rosa, da 27ª CCmds, além de rever os seus camaradas da CCAÇ  2585, o Marreiros Alves, o Cristo e o Pargana... sem esquecer o Hugo Furão (que foi o fotógrafo de ocasião, e que deve ser o genro 
do Manel), e ainda o amigo Malaquias Ferreira, antigo colega de seminário, e tripulante de míticos navios da nossa gloriosa marinha mercante como o "Vera Cruz", o "Timor", etc., e outros onde fizemos "o cruzeiro das nossas vidas"...

E eu fico também feliz por, não  indo ao Algarve há muitos anos (e muito menos a banhos nas águas gélidas do meu "Mar do Cerro"),   vos ver a todos com bom ar.  Continuem a curtir o nosso "querido mês de Agosto" e prometam-me que, para o ano,  lá voltam ao "local o crime", que é,  afinal,  o da amizade, o da camaradagem... , um "crime" que não tem castigo...

Fica aqui o convite para os restantes se juntarem ao Manel Resende e ao Eduardo Estrela que nos honram com a sua presença na Tabanca Grande, sentados (e bem) à sombra do nosso fraterno e já velhinho poilão. As melhoras para o Cristo. 

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Nota do editor: 

Último poste da série > 16 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25647: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (129): Manuel Serôdio, eu fui o ferido mais grave da segunda armadilha, em 16 de julho de 1968, no decurso da Op Escudo Negro (CCAÇ 1787, CART 1660, CCAV 1749 e 5ª CCmds): estive um ano no hospital (Carlos Parente)

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25834: Notas de leitura (1717): Crioulo guineense, qual a tua origem? (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Tanto quanto me lembro, a primeira vez que aqui falei sobre o crioulo foi a propósito do livro de Benjamim Pinto Bull "O Crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria". Muitos outros autores se têm debruçado sobre o crioulo. No termo do texto que hoje vos envio vem um interessante artigo de Luigi Scantamburlo sobre a grafia do crioulo e anexo os trabalhos de Jean-Louis Rougé, que trabalhou na Guiné-Bissau e nos países periféricos. É inesgotável a discussão sobre a origem do crioulo, o mérito deste livrinho é procurar a multiplicidade de aportes que chegam aos diferentes vocábulos, são meramente ilustrativos, já há dicionários de crioulo-português, prossegue a discussão se o crioulo devia ser classificado como língua oficial ao lado do português, compreende-se o amor próprio de quem o fala mas há que atender que é através do português que a Guiné-Bissau chega ao mundo global.

Um abraço do
Mário



Crioulo guineense, qual a tua origem?

Mário Beja Santos

Diversos autores da área da filologia, marcadamente da etnolinguística, têm procurado conhecer as raízes desta língua veicular. Um deles, é o reputado universitário Jean-Louis Rougé, com vastíssima obra sobre o estudo de algumas línguas da costa acidental africana, vale a pena darmos atenção a este Pequeno Dicionário Etimológico do Crioulo da Guiné-Bissau e Casamansa, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1988. Logo no prefácio, o autor questiona as razões deste dicionário etimológico. Pretende-se fazer um equívoco muito divulgado de que o crioulo é um português mal falado. São indiscutíveis as relações que ligam o crioulo ao português, é elevadíssima a percentagem de palavras do crioulo que têm origem portuguesa, o que não obsta a originalidade da língua veicular. O propósito do autor neste dicionário etimológico é procurar seguir o encadeamento dos diferentes factos pelos quais as palavras tomam a sua forma e valor.

O crioulo nasceu na faixa litoral da Guiné, do Senegal à Serra Leoa, alguns grupos africanos tentavam aprender o português para fazer comércio ou também porque trabalhassem em estreita relação com os navegadores e os comerciantes. Instituiu-se, assim, um sistema que servia de comunicação entre portugueses e africanos, tanto a bordo como em terra, era seguramente a língua dos “lançados”, aqueles que se atreviam a entrar no mato profundo e a conviver com as populações nativas. Havia igualmente os “grumetes”, fixavam-se à volta das Praças, formavam uma sociedade na qual o sistema de comunicação tinha a base do português com uma enorme variedade de incorporações, era este crioulo que se falava nas praças (Geba, Cacheu, Ziguinchor, Bissau ou Farim). É impossível apresentar dados precisos sobre a constituição do crioulo, sabe-se que aquele que é falado em território da Guiné-Bissau também é usado na Baixa Casamansa, é língua comum. Com o aumento de falantes de crioulo graças à expansão de Bissau, ao seu uso, diríamos permanente em ambos os lados da guerra da Guiné, e naturalmente aceite no país independente e usado pelos representantes do PAIGC nas diferentes regiões, havia dialetos ou acentos, o crioulo de Bissau não era exatamente o de Ziguinchor ou Cacheu, em Bissau havia mesmo o costume de distinguir dois tipos de crioulo, o “Kriol fundu” (profundo) e o “Kriol lebi” (ligeiro ou suave).

De um ponto de vista etimológico, o vocabulário do crioulo divide-se em duas grandes categorias: a das palavras emprestadas a uma língua pré-existente (o português ou uma ou outra língua africana); e as palavras criadas pelo próprio crioulo. Os empréstimos não vieram exclusivamente dos portugueses. O português que serviu de fonte ao léxico do crioulo não é o português atual, era o que se falava nos séculos XV, XVI e XVII, isto sem prejuízo de que a intensidade da presença portuguesa durante a guerra colonial trouxe importantíssimas adições. Observa o autor que há certos termos do crioulo que têm por étimo termos portugueses que hoje na sua própria língua caíram em desuso ou evoluíram. Por exemplo, misti (querer) vem do antigo português é mister, que hoje praticamente não se usa; a palavra janta significa almoçar, perdeu o sentido que o seu étimo tinha na época, hoje usa-se em português para falar de jantar. Mas há outros inputs como a linguagem dos marinheiros, os termos trazidos das viagens dos portugueses em três continentes e também há que ter em conta o vocabulário da região católica. É o caso da palavra kriston que mais do que significar cristão refere-se a civilizado.

E depois há a incorporação das línguas africanas. As línguas africanas da região que nos interessa, a antiga Guiné, pertencem a dois grandes grupos linguísticos, ambos saídos da família Níger-Congo: as línguas oeste-atlânticas e as línguas Mandé. O conjunto oeste-atlântico compreende diversos grupos: as línguas do Norte (Wolof, que se pode aportuguesar em Jalofo, Serer, Peul, que se designa em português Fula); as línguas Bak (Djola, Manjaco, Mancanha, Papel, Balanta); mas também as línguas Tenda-Nun, onde podemos incluir os Cassangas, os Biafadas e os Nalus; e as línguas do Sul, onde encontramos o Mansoanque e o Baga. Com a exceção do Fula, estas línguas são faladas exclusivamente nos territórios do Senegal, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e Serra Leoa. As línguas Mandé faladas na região são essencialmente o Mandiga, o Sosso e o Soninqué.

O autor também recorda empréstimos do crioulo às línguas africanas, muitos destes termos devem-se aos viajantes portugueses, caso de Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha, muito especialmente os nomes de vegetais. Obviamente que foram aparecendo termos à medida que o crioulo se constituía como língua autónoma e preenchia as faltas do sistema de comunicação provenientes da língua portuguesa. O autor espraia-se nestes empréstimos e as respetivas mudanças fonéticas. Segue-se uma apreciação sobre a transformação gramatical e a semântica destas incorporações e depois tem lugar o pequeno dicionário de que aqui se dão alguns exemplos: abakati (do português abacate), abridor (é o novo nome para aquele que abre, vem da palavra portuguesa abridor), ansalmas (nome antigo do português para almas; bagabaga (o mesmo que térmita) em Bambara diz-se baga, em Mandiga baabaa. Donelha, a propósito das formigas da Serra Leoa diz-se explicitamente: “há outras que chamam bagabagas”; bana (vem do português abanar; baraka, associada a barraca do fanado vem do português barraca; bentu (vem do português vento); cigada (vem do português chegada); temos os números, como por exemplo, des ku kwatru (catorze), des ku nobi (dezanove), des ku oytu (dezoite), des ku seyis (dezasseis), desanobi (dezanove); dimistrador (proveniente do português administrador); dwensa (vem do português doença); es (vem do português este); falesi (vem do português falecer); feredu (vem do português ferreiro); futseru (vem do português feiticeiro); gagisa (vem do português gaguejar); ingratesa (ingratidão); jambatutu (nome de um pequeno pombo, termo curiosamente apropriado por várias línguas, caso do Mandiga mas também pelo crioulo; kaberdianu (vem do português cabo-verdiano).

Resta dizer que Jean-Louis Rougé, professor emérito em Orleãs, conclui este seu interessantíssimo trabalho pondo em anexo um projeto de ortografia e separação das palavras em crioulo, mostra-nos as letras fundamentais, caso do k, w e y, as letras de apoio que podem ser necessários para empréstimos recentes do português, as vogais nasais e as consoantes pré-nasais, como se processa a escrita e a leitura do crioulo, etc.

Penso que, no mínimo, este trabalho do cientista da filologia nos traz recordações da língua veicular sobre a qual, seguramente, ouvíamos, percebíamos este ou aquele termo, mas no essencial algo nos encantava, havia ali um português antigo que alguns, vindo de remotas aldeias, gostavam de escutar.

Jean-Louis Rougé
Uma aula em crioulo, parece que a senhora professora está a atender uma chamada
Uma imagem de Bolama na proximidade do seu porto
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Nota do editor

Último post da série de 9 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25824: Notas de leitura (1716): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1870) (15) (Mário Beja Santos)