1. Mais um excelente trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude,
1968/70), enviado ao Blogue em mensagem de 2 de Maio de 2020, subordinado ao tema "Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!", que nos traz alguns esclarecimentos/informações sobre as sepulturas dos nossos militares caídos em campanha na I Grande Guerra e Guerra do Ultramar, espalhadas em cemitérios por todo o mundo e, sobre as trasladações dos restos mortais levadas a efeito durante e depois das guerras terminadas.
Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!
Monumento ao Valor do Infante, em Mafra
Até às Lutas Liberais, em 1834, os soldados mortos nas batalhas ficavam insepultos, acabando mais tarde, pela generosidade das populações, por serem sepultados em valas comuns.
No caso das mortes ocorridas, no então Ultramar, a morte dava-se em território nacional; os soldados morriam pelo Rei, depois pela Republica, e mais tarde em nome de Portugal; portanto ficavam enterrados em solo Pátrio. Só a pedido e a custas da família, seriam trasladados.
O texto escrito, vai já para oito anos, sob o título
"Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!", refere, no terceiro post
[*] publicado no blogue, alguma da legislação que havia e que ao longo dos anos da guerra foi sendo alterada, além da forma como deviam ser tratados os corpos dos que tombaram.
Até a instauração do Regime Liberal, os mortos civis, militares ou eclesiásticos eram sepultados nas criptas das igrejas, ou, os nobres ou mais abastados, teriam o seu lugar em túmulos nas igrejas ou panteões, construídos ou adaptados para o efeito.
É pelo Decreto de 21 de Setembro de 1835, que o rei ordena a construção de cemitérios em todas as localidades mas, perante a continuidade do uso, já ancestral, de sepultar dentro das igrejas, por Decreto do Governo datado de 28 de Setembro de 1844, é imposto à população a proibição de sepultamento no interior das igrejas, e novas normas sobre os locais de enterramento.
É a altura de se iniciar a construção de cemitérios, primeiro nas imediações dos templos e, mais tarde, fora das localidades. É por esta altura que foi emitida uma Circular do Ministério do Reino, datada de 16 de Dezembro de 1890, que traz novas orientações a esta matéria. Só volta a aparecer nova legislação o Decreto 44220 de 03/03/1962 e o Decreto-lei 48770 de 18/12/1968.
Procurei estas peças legislativas, na tentativa de encontrar algo acerca das sepulturas dos militares que, tombados em África durante as últimas campanhas (1961/1974), foram trasladados para a Metrópole. Tinha a ideia de que essas sepulturas seriam perpétuas, não existindo o levantamento das ossadas dos mesmos, mas vim a constatar que, em vários locais, havia militares inumados desde a sua chegada, enquanto outros tinham sido trasladados para ossários ou, mesmo, os seus restos mortais tinham sido dados como abandonados.
Apesar dos cemitérios serem construídos a distância considerada bastante, para se manterem a certa distância das localidades, algumas foram crescendo e expandido a sua malha urbana, que acabaram os cemitérios por ficar envolvidos pelas habitações.
O espaço que, inicialmente, se vendia a título perpétuo, foi escasseando, uma vez que muitas famílias adquiriam o terreno para que se perpetuasse nas famílias e nelas se reunissem as futuras gerações, e faltavam terrenos que favorecessem o seu alargamento.
Entrada do Cemitério de Santo António do Carrascal, Leiria
Inaugurado em 1871
O Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, define os termos para a elaboração dos regulamentos de funcionamento dos cemitérios, fossem administrados pelas Juntas de Freguesia ou Municípios, sendo estabelecidos os emolumentos para os serviços a prestar por aquelas estruturas.
Mesmo que, nesses cemitérios, haja talhões e/ou campas privativas de organizações ou associações civis ou irmandades religiosas, essas ficavam sujeitas aos regulamentos instituídos, assim como ao pagamento das taxas a aplicar.
O caso que nos foi apresentado, para comentar, é o seguinte:
No cemitério paroquial de uma freguesia, existia um local onde foi inumado o corpo de um militar, natural ou residente na freguesia, em 1967. É muito provável que tenham destinado parte do terreno anexo para, eventualmente, serem inumados outros militares tombados no Ultramar. Até ao final da guerra só houve, nessa freguesia e com enterramento nesse espaço do cemitério local, mais um combatente, em 1968.
Constava que esse espaço, era um talhão pertença das Forças Armadas. Não tenho conhecimento de que tal aconteça, na medida em que os talhões privativos que existem nos cemitérios, são cedidos a Associações de Bombeiros, Liga dos Combatentes ou confissões religiosas que não católicas e, todos eles, além de cumprir as normas do próprio cemitério, cumprem, também, as normas da entidade a quem foram cedidas a título perpetuo ou temporal.
Estava em curso a Guerra do Ultramar e, desde sempre foram consideradas parte integrante do território nacional, tese defendida durante a Monarquia e a Republica, razão pela qual o país travou as Campanhas de Ocupação, entrou na Grande Guerra e reforçou os territórios durante a II Grande Guerra. Por igual razão respondeu aos Movimentos de Libertação guarnecendo, entre 1961 e 1974, com mais de um milhão de militares aqueles territórios
É provável que, após o primeiro funeral em 1967, tenha havido a intenção de se proporcionar um local com alguma dignidade, não só a este, mas aos que eventualmente
“fossem escolhidos pela morte”, um local onde ficassem todos juntos, seguindo o lema de
“unidos na guerra, unidos na paz”.
Se anotarmos as causas das mortes ocorridas, no caso do Exército, nos Teatros de Operações – Angola, Guiné e Moçambique – vamos encontrar muitas causas, causas essas que ocorrem muitas vezes numa sociedade civil: doença, com as mais variadas causas; acidentes, desde os de viação, em ambiente ferroviário, até aos de aviação, porque havia transporte de tropas de uma zona para outra; afogamentos, em rios ou mar; e outras causas, que podiam ser comparados a
“acidentes de trabalho” como queda do cimo de árvores, electrocussão, queimaduras nas cozinhas ou na trasfega de líquidos inflamáveis, etc. As outras causas, mais violentas, foram os mortos em combate e os acidentados com arma de fogo.
Se, nas causas apontadas na primeira abordagem, podiam provocar deformações no corpo dos combatentes, as segundas, as mais violentas, poderiam provocar, não só deformações muito acentuadas, como até a sua dispersão.
Efeitos de mina num Unimog 411
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
Durante o tempo em que a guerra durou, e mesmo para além desse tempo, houve como que um pacto de silêncio entre os que lá estiveram. Porque, no regresso, era tempo de esquecer; era tempo de reavaliar os projectos que se tinham, de acordo com as perspectivas que nos se apresentavam; era tempo de voltar a aprender a viver. Mesmo entre os que lá estiveram, levaram muito tempo a abrir o
“baú”, e começar a partilhar memórias, vivências e factos.
E quando os
“baús” se foram abrindo, foi com alguma discrição. Cada um ia retirando aquilo que era menos doloroso; aquilo que estava já mais assumido; aquilo que não colocasse em risco a memória dos camaradas. Ou seja: vai surgindo, para os que estavam ávidos de
“bombas relógio a explodir”, aquilo que não dava para um estoiro de bomba de santos populares.
Só havia uma possibilidade: abrir os baús que se mantinham fechados. Aqueles que chegaram entre lágrimas e gritos sufocados e encerrados a sete palmos abaixo do chão. Foi uma
“corrida” desenfreada. Todos, os que não estiveram na guerra e que não tinham ninguém entre os que tombaram, queriam arrancar
“esqueletos do armário”, para
“reabilitar a verdade”…
Muitas urnas não continham partes ósseas identificáveis. Continham pequenos fragmentos e pedras. Tudo o resto já tinha desaparecido. Outras, a parte óssea, apenas.
Faltavam a muitos o conhecimento do que é a
“pensão de sangue”.
Não é um prémio, não é uma condecoração, não é uma reparação. Muitos dos que a receberam, preferiam mil vezes não a ter recebido. A
“pensão de sangue” que, com outra designação já existia há muito tempo no nosso país, era uma reparação, pequena e muitas vezes simbólica, para tentar suavizar as necessidades, não a dor, daqueles que tinham perdido alguém na guerra: viúvos, filhos e pais.
Mas havia, e assim continua a haver, pressupostos que são indispensáveis para a sua concessão seja possível.
Um documento que justifique o infausto acontecimento, as condições em que ocorreu e, mais importante para a família, um corpo. Sem o corpo, não há morte; sem o corpo não há luto; sem o corpo, não há enterro.
Não há ninguém, desde o soldado ao general, que não saiba que a guerra vai gerar mortos; mas não há ninguém, desde o general ao soldado, que o deseje.
Pelos pressupostos citados, quando havia uma morte mais violenta, causada por engenhos explosivos, em que os corpos se tornavam irreconhecíveis, que todos tentavam que nada ficasse na terreno, buscando e recolhendo num espaço único, o que restava de camaradas seus, de que só saberiam a quantidade e identidade, após a chamada aos presentes. Muitos não responderam à chamada, não porque não estivessem vivos, mas porque tinham sido aprisionados.
A tropa, no seu sentido mais genérico, não formava especialistas em todos os serviços de que necessitava. Muito menos nos serviços funerários.
Não pretendo historiar os casos que real e/ou hipoteticamente aconteceram, ampliados por uma comunicação social que procura
“manchetes bombásticas”, esquecendo que, para que muitas famílias não ficassem desamparadas, foram dados como mortos muitos militares que, mais tarde se veio a verificar estarem prisioneiros. Se surgissem dúvidas, caso fosse feita uma declaração de desaparecimento, anos levaria a que os mesmos fossem considerados
“desaparecidos” ou
“falecidos” por um tribunal. Isto sem colocar a hipótese de o juiz que julgasse o caso, decidisse considerar o militar
“desaparecido” como desertor, por insuficiência de provas.
Que estes parágrafos, ou notas, não sejam consideradas
“libelo”, nem de acusação nem de defesa de ninguém. A guerra é feita por humanos, e por isso é cruel e imperfeita.
Portugal, desde a sua fundação até à actualidade, esta mesma actualidade que estamos a viver, sempre teve mortes geradas pelas mais diversas razões.
Poderia terminar, aqui e agora, o texto que estou a redigir, mas, mais uma nota que se prende com os que ficaram, e outra com os que ainda estão entre nós.
Após a Grande Guerra, houve alguns concelhos que pensaram em trasladar e juntar num único local, os seus mortos. Rápido se constatou que seria uma operação que, além de dispendiosa era quase impraticável. Havia militares sepultados por vários cemitérios de vários países, onde se tinham dado os combates. Muitos estariam
“desaparecidos” ou mal identificados.
Foi então que, e pela primeira vez, os estados promoveram a construção de Cemitérios Nacionais, reunindo num só local os seus militares mortos.
É criada a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra que entre o ano de 1924 e 1938, através do Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro, composta por oficiais do Exército e com a colaboração do Cônsul Português, em Arras, Louis Lantoine, reúne no Cemitério de Richebourg, os corpos de 1831 militares (238 não estão identificados) e provenientes dos cemitérios franceses de Le Touret, Ambleteuse, Brest, e Tournai (Bélgica) e os corpos dos militares que morreram na Alemanha, durante o cativeiro. Não foi possível trasladar todos os corpos para Richebourg, havendo campas de militares portugueses na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Inglaterra, não só por questões sanitárias mas, também, por constrangimentos orçamentais. Para substituir as cruzes que ficavam nas cabeceiras das campas, foram colocadas lápides que apenas indicam o nome dos combatentes, quando conhecido.
Em 4 de Fevereiro de 1966, aprovadas que foram as "Normas Reguladoras de Trasladação de Ossadas de Militares", estabelecendo a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares, da Metrópole e Ilhas, falecidos no então ultramar, as trasladações poderiam ser efectuadas, ou a pedido das famílias a quem seriam entregues ou, por outro lado, por iniciativa do Exército que, neste caso, as recolheria num Ossário Militar Central, localizado em Lisboa. Os militares falecidos dos então Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, teriam também, em cada ex-província, o seu Ossário em local a definir, provavelmente, nas respectivas capitais.
Os Ossários não saíram do papel e, por isso mesmo, foi sendo protelado o cumprimento das normas aprovadas e, oito anos após a sua aprovação, quando chegou a altura de iniciar as negociações de paz, ninguém, quer os militares que tinham tomado a decisão e aprovado as normas, quer os militares que tinham assumido o poder, nem sequer se
“lembraram” de que, sob a terra que pisavam, estavam os corpos de militares que aguardavam a sua trasladação.
Agora, mais de quarenta anos depois de ter terminado a guerra, os que foram e regressaram, os combatentes, é que não esquecemos os camaradas que lá ficaram e temos uma ténue ideia das condições em que estarão as suas campas.
Na altura o Estado Português podia delegar no Exército a tarefa de trasladar os mortos, mas presentemente é quase impraticável. Os antigos territórios são hoje países independentes; têm os seus governantes, que já não são os que negociaram a independência; as regras do jogo são diferentes e, as leis que regulam esta matéria, também já não são as mesmas. Hoje só é possível proceder a uma trasladação, caso a caso, e por decisão de cada família, tomar a decisão de abrir o processo.
Os pais dos nossos camaradas que tombaram, muitos já não existem ou já terão uma idade avançada; os outros familiares dos que caíram – viúvas, filhos, irmãos – que tomaram a decisão de recuperar os restos mortais dos seus entes queridos e puderam, já os foram lá recolher, apesar dos custos financeiros e de alguns desagradáveis casos, pois só procediam à exumação na presença dos mesmos, quando pensavam que estariam já na capital do antigo território, e ali tratariam de tudo.
Apesar de não ser essa a vontade, senão de todos, dum a grande parte dos combatentes, os nossos camaradas ficarão por lá, juntando o seu destino ao de muitos outros combatentes, que tombaram, ao longo dos séculos, em África.
Como última questão, mas não menos importante, é o número de combatentes que ainda se encontram entre nós. Não só o seu número, mas também a sua distribuição geográfica, etária e condições de vida, a fim de que, quem entregou a sua juventude à Pátria, agora pudesse receber o apoio, e não só o agradecimento, de que é credor.
Quantos somos, efectivamente? Como se poderá obter essa informação?
Pois bem.
Nem todos os combatentes são membros da Liga dos Combatentes; muitos nunca se inscreveram na mesma, por não encontrarem razões para tal; outros nem sequer imaginam fazê-lo. Portanto, por aqui, não é o caminho.
Talvez fosse possível obter esse número através dos pagamentos efectuados pela Caixa Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações ou outros organismos (bancários, advogados, etc), mas estariam em falta os oficiais e sargentos do quadro permanente assim como as forças de segurança, assim como os combatentes que optaram pela emigração e por lá se encontram.
Poderia ser através das Associações de Combatentes, de âmbito local ou nacional mas, nem todos os combatentes estarão inscritos nessas associações e, alguns, poderão estar inscritos em mais do que uma associação.
As autarquias poderiam dar uma ajuda (sugestão que vi no facebook), mas não teriam pessoal para desenvolver um trabalho destes, mesmo com a ajuda de voluntários e, não sei se o poderiam fazer. Mantêm as listagens para as eleições, que não referem se o eleitor foi ou não combatente. Nas localidades com mais habitantes, muitos residentes nem sequer são conhecidos dos autarcas eleitos.
Como no próximo ano (2021) é ano dedicado aos censos da população. Poderia ser uma oportunidade mas, neste momento é tarde. Os folhetos do recenseamento já foram aprovados e não são susceptíveis de serem alterados.
Mesmo que pudessem, será que todos responderiam? Muitos combatentes não revelariam esse facto ou mesmo o ocultaria por questões pessoais.
Além do mais, existe desde 1994, uma Comissão Nacional de Protecção de Dados que colocaria decerto algumas objecções.
Perece que, como até agora, só podemos basear-nos em
“projecções”, porque o direito à privacidade impede que, por muito boa vontade de muitos, possamos acudir com o necessário para que muitos camaradas nossos possam terminar os seus dias com a dignidade que todo o ser humano – homem ou mulher, velho ou novo – merecem.
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4 de Outubro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
5 de Outubro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)
e
6 de Outubro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)
José Marcelino Martins
Odivelas, 1 de Maio de 2020
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de abril de 2020 >
Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)