1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2019:
Queridos amigos,
Os ventos não sopram de feição para as unidades do BCAV 490, há um acréscimo de luta e da minha parte procuro contextualizar o que o bardo regista em verso. Confesso ser um dos aspetos mais estimulantes aqui do meu trabalho, andar a pinçar as diretivas e as instruções correspondentes a este período, e não escondo a surpresa de encontrar comprovativos de que os Altos Comandos, com os recursos disponíveis, procuravam firmar o dispositivo, ser ofensivos na manobra, proteger as populações, fazer ação psicológica; acontece que o PAIGC estava numa alta, consolidara posições na região Sul, em zonas do Corubal, possuía um bastião no Morés, havia largas manchas de floresta onde se concentrava a sua população fiel, e o seu armamento melhorava de dia para dia.
É ponto assente que uma guerra de guerrilhas se define pela desigualdade na presença dos contendores, um tem posições fixas, vive entrincheirado, patrulha ou nomadiza, precisa de reforços e às vezes de forças especiais para tentar desinquietar quem lhe é hostil; o guerrilheiro prima pela maleabilidade, dissimula os seus armazéns e armamento, por vezes distantes das suas casas de mato, espalha minas e a muito mais procede para aterrorizar quem vive nos campos entrincheirados.
O período em análise é a guerra das posições, ver-se-á adiante numa importante diretiva de Arnaldo Schulz, de 1966, de que há poucas ilusões de que aquele inimigo possa ser abafado ou anulado. Muito ainda há a estudar para nos aproximarmos com rigor da verdade histórica do que foram aqueles anos de que mais tarde Spínola dirá cobras e lagartos.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (33)
Beja Santos
“Foi ferido o Capitão Arrabaça,
Alferes Mota se atingiu
Inácio numa emboscada
com 7 colegas se feriu.
O sofrimento a continuar,
não sei até quando será,
temos 15 meses já
e não deixamos de penar.
Sorte tem quem escapar
de tudo o que cá se passa.
O inimigo ameaça
as nossas Companhias.
Ainda há bem poucos dias
foi ferido o Capitão Arrabaça.
Só nos pensam em matar,
fazem grandes espionagens,
não passam de uns selvagens
que nos querem desgraçar.
Emboscadas nos vêm armar,
como isto nunca se viu.
Um dia, um ataque surgiu,
ficando pouca gente mal
e junto a outro oficial
Alferes Mota se atingiu.
Foi-se ao mato novamente
e mais uma coisa ruim:
feriu-se o amigo Clarim
e junto a ele muita gente.
O inimigo estava à frente,
jogando muita rajada.
O Maneta, com uma granada
um ferimento grave fez;
e atingiu-se a primeira vez
Inácio numa emboscada.
No Batalhão de Cavalaria,
o Chicha, um homem valente,
oferecendo-se, voluntariamente,
muitas escoltas fazia.
Não era desta Companhia
mas há tempos cá adiu
o azar o perseguiu
e ao 70 também;
e o 16 em Jumbembem
com 7 colegas se feriu”.
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Estamos num período em que o bardo repertoria sucessivas penas, acidentes, feridas e feridos. O contexto em que tudo isto decorre não nos deve deixar indiferentes, já aqui se registou diretivas de dois comandantes-chefes, ordens de operações, o que se pretendia fazer na ação psicológica, sabe-se bem o papel desempenhado pelo BCAV 490 na Operação Tridente, consultada a documentação da Resenha Histórico-Militar sabe-se que os Altos Comandos não descuraram as regras em que devia assentar a autodefesa das populações, por vezes escrevem-se coisas curiosas, como esta, por exemplo:
“Para se compreender a atitude dos Fulas face à subversão, é necessário salientar que sempre se julgaram superiores aos outros povos da Província. Com o início do terrorismo, os Fulas sentiram um desabamento. Os seus régulos e cipaios, que dominavam em ‘chão’ alheio, acharam-se, de um momento para o outro, atacados, chegando muitos a serem as primeiras vítimas dos terroristas. Colocaram-se logo no início ao lado das autoridades. Com a evolução da luta armada, observa-se uma franca colaboração com as autoridades”.
E repertoriam-se as diferentes ações em que os Fulas procuraram combater os independentistas, logo em março de 1963, no mato de Catió. O governo de Salazar terá verificado da necessidade de dar armas à população, e assim em abril de 1963 o Secretário-Geral da Defesa Nacional propunha “por tabanca”, promover a criação de uma milícia sob a autoridade de um chefe respeitado pela população e o seu armamento deveria permitir-lhes que não se inferiorizassem perante o inimigo. E daí as instruções para a autodefesa das populações, preocupação que jamais abandonará as diretivas dos comandantes-chefes para os seus subordinados. O Brigadeiro Louro de Sousa redigiu com clareza as medidas a tomar no final do ano de 1963: continuar as ações no Oio e a vigiar os fluxos desta região; fechar a fronteira Sul; estabelecer um tampão na parte final do rio Geba; ocupar-se Gadamael Porto por uma Companhia, precedida esta de um desembarque de fuzileiros especiais; e ocupar as ilhas do Como.
Insista-se que enquanto decorre a batalha do Como, na península de Quitafine irá decorrer o chamado Congresso de Cassacá, tomam-se decisões fundamentais na organização, o ano militar irá superar de feição para os nacionalistas, melhorará o seu material militar, crescerá o número de efetivos a combater. O Brigadeiro Louro de Sousa anuncia em 2 de janeiro do ano seguinte o crescimento das forças terrestres, não obstante a presença do PAIGC no interior do território guineense passou a ser uma realidade. As populações à volta de Guilege deram a saber que tinham decidido ficar, o destacamento foi reforçado. A ocupação de Guilege, Cumbijã e Ganturé moralizou as populações. O PAIGC quando não tem apoio dos chefes gentílicos não hesita em ameaçar. Nicolau Correia, do PAIGC, enviou ao régulo do Cuor, Malan Soncó, duas mensagens com conteúdo semelhante, era instado a mandar retirar as tropas de Missirá, caso contrário haveria futuramente um ajuste de contas, nem que demorasse dez anos.
Ainda em janeiro de 1964 foram publicadas instruções para a colaboração dos nativos nas operações militares, enquadra-se os módulos da instrução e dão-se indicações para remunerações e subvenções.
Estava dado o ponto de partida para a africanização da guerra.
Arnaldo Schulz é o substituto de Louro de Sousa, chega à Guiné em 21 de maio de 1964, remexe no dispositivo, cria-se um batalhão de reserva do Comandante-Chefe, há três Comandantes de Agrupamento localizados em Mansoa, Bafatá e Bolama. Cada agrupamento era constituído por três batalhões. Bula, Farim, Mansoa, Fá Mandinga, Bafatá, Nova Lamego, Tite, Buba e Catió são as sedes militares mais importantes das forças terrestres.
Dá vontade de recuar um pouco até ao passado, dar voz a um militar, neste caso a um furriel de armas pesadas de nome Joaquim Fernando Santos Oliveira que chegou a Bissau no dia 19 de setembro de 1964 e que em 2019 publicou as suas recordações no livro
“A Guiné no meu tempo”, Chiado Books, 2019. Parte para Tite, veio em rendição individual, será integrado no Pelotão Independente de Morteiros 912, que regressará em outubro de 1965. Este pelotão colaborara na Operação Tridente e permanecerá no Como no destacamento de Cachil, Santos Oliveira irá calcorrear um pouco do Sul, andará pelo Enxudé, Tite, e depois cai-lhe na rifa o destacamento de Cachil, irá contar com algum detalhe o ataque do PAIGC com Nino Vieira à frente ao anoitecer de 16 de novembro de 1964, ajudou a contribuir para o desaire dos nacionalistas, como escreve:
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Santos Oliveira |
“Na manhã de 17 de novembro, o balanço da flagelação era dantesco. Massa humana do atacante por entre fragmentos de armas, pedaços de armas, a orla da mata tinha recuado de 30 a 40 metros (as palmeiras ou não tinham ramagem ou estavam partidas), apenas um corpo mais ou menos inteiro do elemento inimigo em muito mau estado, uma PPSH e, o mais espantoso, entre três Poilões dispostos em triângulo e que formavam uma espécie de salão inexpugnável (a Morteiros) e que denominávamos enfermaria, um Unimog recolheu duas cargas de ligaduras sanguinolentas e alguns apetrechos médicos”.
Conheceu o futuro capitão João Bacar Djaló em Catió, trocaram cortesias. Dá-nos um repertório de imagens íntimas, por ali perpassam ternura, a vida dos aquartelamentos, não esconde a deceção por faltas de camaradagem e por não ter visto o seu labor militar convenientemente reconhecido.
É tempo de relembrar que em Binta está a CCAÇ 675, liderada pelo Capitão do Quadrado, dependente do BCAV 490, sediado em Farim. Entraram na guerra em turbilhão, quando se lê o diário de JERO, a partir do mês de julho de 1964, são golpes de mão, limpeza de picadas, emboscadas bem-sucedidas, contatos com a população senegalesa, o mês de agosto também se revela imparável, com nomadizações, destruições de casas de mato, participa-se numa operação ao Oio, mas a 5 de agosto o Capitão do Quadrado acidenta-se, é ferido em combate, JERO dá pormenores:
“Apesar de recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo levou-o a disparar a morteirada com tal precipitação que a granada foi rebentar num ramo alto de uma árvore do lado esquerdo, crivando de estilhaços o lado direito onde se encontrava o nosso capitão e alguns soldados. Encostado ao tronco de uma árvore com a mão no ombro esquerdo, o nosso capitão deixou-se escorregar lentamente para o chão. Um jato de sangue saía em repuxo do local que comprimia com a mão, sem poder evitar um esgarro de dor”.
Segue-se uma descrição de profunda estima, a consternação manifestada na evacuação do comandante de companhia é um belo momento de prosa, como iremos ver.
(continua)
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Notas do editor
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Guiné 61/74 - P20361: Notas de leitura (1237): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (2): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)