quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19335: (D)outro lado do combate (41): Carta de Aristides Pereira a 'Nino' Vieira, escrita em Cassacá, em 22 de janeiro de 1964 (Jorge Araújo)


Cassacá em 2018. Foto do camarada Patrício Ribeiro, com a devida vénia [P18697].


Mapa de Cacine, Sector de Quitafine (Frente Sul). Cassacá, local onde foi manuscrita a carta de Aristides Pereira, em 22 de janeiro, e, também, o da realização do I Congresso do PAIGC, organizado entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, estava situada a quinze quilómetros a sul de Cacine e a trinta da fronteira com a Guiné-Conacri.



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974): coeditor do nosso blogue


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE  

CARTA DE ARISTIDES PEREIRA A 'NINO' VIEIRA, ESCRITA EM CASSACÁ EM 22 DE JANEIRO DE 1964, UM ANO DEPOIS DO ATAQUE A TITE
  
- AS ORIGENS DO PRIMEIRO CORPO DO EXÉRCITO DO PAIGC - 

Os relatos publicados nos P19254 e P19259 suscitaram-me particular interesse, do ponto de vista histórico, por recuperarem mais alguns dos episódios do período que antecedeu o início do conflito armado no CTIG, nomeadamente durante o ano de 1962, por permitirem identificar os principais actores de cada um deles. 

Estes e muitos outros que, na fita do tempo, se foram sucedendo acabariam por influenciar, para o bem ou para o mal, os comportamentos sociopolíticos em cada um dos lados em confronto, que culminaram com o ataque ao aquartelamento de Tite, localizado na região de Quinara, facto ocorrido em 23 de Janeiro de 1963.

No primeiro caso [P19259], o depoimento do ancião autóctone que surge no vídeo a falar da sua experiência e das suas memórias, e que se considera ser um dos primeiros sete ex-combatentes que tomaram a decisão de aceitar fazer parte do universo da guerrilha nacionalista, dá conta que uma das primeiras "barracas" [acampamentos] criada no Cantanhez, região de Tombali, foi em Caboxanque.

No segundo caso [P19254], é relevante o facto de ser reduzido o número de efectivos militares na Guiné, uma vez que a CCAÇ 153, comandada pelo, então, capitão e infantaria José dos Santos Carreto Curto, era a única companhia em todo o Sul da Guiné em 1961, com um pelotão em Buba e uma secção em Aldeia Formosa. Mais tarde fez deslocar um Gr Comb para Cacine. Estiveram também aquartelados em Cufar numa fábrica de arroz, bem como em Catió, até que a situação se agravou em termos operacionais [Vd. P19264 e P19291; notas de leitura do camarada Beja Santos].

Em função do vasto território em que se movimentou, particularmente nas Regiões de Tombali e Quínara, o capitão Carreto Curto, que no passado dia 30 de Novembro nos deixou, e a sua CCAÇ 153, viveu/viveram momentos difíceis e dramáticos, pois ficaram associados ao começo [oficial] da guerra no CTIG.


Entretanto, em 26 de dezembro de 1962, como reconhecimento da sua acção/ intervenção psicossocial, o capitão Carreto Curto foi agraciado com a Medalha de Prata de Serviços Distintos com palma [imagem ao lado], devido ao facto de "como comandante de companhia no Comando Territorial Independente da Guiné, desde Junho de 1961, ali vem exercendo, por meio de acções de reconhecimento e de objectivo psicossocial, uma actividade altamente meritória de que tem beneficiado todo o sector do batalhão [BCaç 237], revelando, a par de notáveis qualidades de organização e disciplina, excepcionais dotes de comando, de iniciativa e de audácia, transmitindo a todos os subordinados uma confiança ilimitada, o que permitiu criar e desenvolver na sua unidade [CCAÇ 153] um espírito de corpo tal, que a mesma pode ser apontada como exemplo de disciplina, de eficiência e de sacrifício no cumprimento do dever. Os serviços prestados por este oficial ao Exército e à Nação, na presente conjuntura da Guiné, devem ser considerados relevantes e distintos".

Quanto ao ataque ao aquartelamento de Tite acima referenciado, o nosso blogue tem um vasto espólio de narrativas que pode (e deve) ser consultado. Em cada leitura que se faça, descobre-se, por vezes, novos detalhes que suscitam outros pontos de interesse e investigação, que merecem ser aprofundados. É isso que vamos tentar fazer numa próxima oportunidade, triangulando conteúdos e adicionando-lhe novas informações contraditórias.

Recupero, a esse propósito, entre outras, a entrevista dada em 2001 por Arafam ["N'djamba" Mané; Bissau, 1945.09.29 / Madrid, 2004.09.04] ao jornal "O Defensor", órgão de Informação das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo da Guiné-Bissau e reproduzida em 2015 no sítio das FARP, por iniciativa do major Ussumane Conaté. Esta entrevista foi/está dividida em quatro partes, por diligência do camarada José Teixeira, 1.º cabo aux enf CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, Quebo, Mampatá e Empada; 1968/1970 – P16794; P16812; P16823 e P16851.

O testemunho do camarada Gabriel Moura [falecido em 2006], do Pel Mort 19, escrito em «Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra», pp 83/88, é outra leitura obrigatória, uma vez que ele foi o primeiro militar português a responder ao fogo da força que atacou o aquartelamento de Tite, pois encontrava-se de guarda naquela ocasião [P17649].

Com o objectivo de fazer a ponte ligando duas peças da historiografia da guerra: o ataque a Tite (23Jan1963) e o I Congresso do PAIGC (Cassacá; 13/17Fev1964), enquanto processo na organização e desenvolvimento da luta armada durante o ano de 1963, tomei a iniciativa de partilhar convosco uma carta manuscrita por Aristides Pereira, em Cassacá, e enviada a 'Nino' Vieira, a 22 de janeiro de 1964, ou seja, um ano após o primeiro evento.

A elaboração deste escrito do dirigente Aristides Pereira [Boavista, Cabo Verde; 1923.11.17 / Coimbra; 2011.09.22] dirigido ao principal Cmdt da guerrilha 'Nino' Vieira [Bissau; 1939.04.27 / Bissau; 2009.03.02 (assassinado)] surge na sequência de alguns acontecimentos que estão na génese da reunião magna [congresso]. 

Recorda-se, pela sua pertinência, por um lado, a visita de Luís Cabral [Bissau; 1931.04.11 / Torres Vedras; 2009.05.30] à zona de Quitafine e tabanca de Cassacá em finais de 1963, por outro, as informações recolhidas em todos os contactos estabelecidos com os combatentes e aquelas que lhe chegavam das frentes. 

Estes factos levaram a que o irmão [Amílcar Cabral (Bafatá; 1924.09.12 / Conacri; 1973.01.20, assassinado dez anos depois de Tite)] aceitasse, como necessária, a realização de uma reunião geral dos responsáveis pelo PAIGC, no sentido de se poder discutir e aprofundar estas questões, de maneira a tirar delas todas as lições para o futuro, numa altura que estava concluído o primeiro ano da luta armada.


Citação: (1965), "Desfile de combatentes do Exército Popular comandados por Nino Vieira", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43728 (2018-12-9)

A operacionalização de cada uma das diferentes acções projectadas para antes, durante e depois do I Congresso podem (devem) ser consultadas no livro de memórias de Luís Cabral: «Crónica da Libertação», (1984), Lisboa, Edições 'O Jornal', Publicações Projornal [Vd. trabalho de recensão realizado pelo camarada Beja Santos – P7216; P7223; P7232; P7241 e P7259].

Como dimensão histórica, cito uma passagem [P7232] onde é referido o seguinte:

 "Em finais de 1963, Luís Cabral faz a sua primeira visita ao Quitafine, a partir de Sangonhá, depois partiram para a base de Cassacá, onde foi recebido por Manuel Saturnino [da Costa; n-1942-]. Em Cacine estava instalado o primeiro quartel das tropas portuguesas [CART 496], a que se seguiu Gadamael [CART 640]. Segundo Luís Cabral, as tropas portuguesas estavam confinadas a Cacine".

Para um melhor conhecimento da evolução do contexto operacional desenvolvido pelas NT - unidades militares -, sedeadas naquela região, sugere-se a leitura do importante trabalho de investigação historiográfica elaborado pelo nosso camarada Manuel Vaz, ex-Alf. Mil da CCAÇ 798, iniciado no P19261, que saudamos.


2. A CARTA DE ARISTIDES PEREIRA A 'NINO' VIEIRA, ESCRITA EM CASSACÁ, EM 22 DE JANEIRO DE 1964

Neste segundo ponto apresentamos, de acordo com o acima exposto, a transcrição da carta, de quatro folhas, manuscrita em Cassacá, por Aristides Pereira, e enviada a 'Nino' Vieira, em 22 de janeiro de 1964.

Eis o seu conteúdo:

"Cassacá, 22 de Janeiro de 1964

"Meu caro Nino,

"É com imenso prazer que te saúdo, bem como a todos os camaradas, daqui deste ponto livre da nossa terra.

"Como sabes, devia encontrar-me contigo e com o Arafam ["N'djamba"] Mané, a 20 [Fev'1964], aqui na Zona. Com efeito, no dia 20 estava no interior, mas não foi possível fazer a reunião, dadas as novas condições que se apresentaram na tua [zona], grandemente atacada pelo inimigo [NT], e também porque o Arafam certamente se atrasou na missão.

"Entretanto, nós, em Conacri, em especial o Amílcar [Cabral], temos tudo preparado e desejamos que o encontro da missão do Arafam se faça o mais breve possível, não sendo possível neste mês, nos primeiros dias do mês de Fevereiro [1964].

"Seria bom se o encontro se pudesse realizar na tua barraca [acampamento], mas as condições não o permitem. Temos, pois, que nos contentar com um local mais próximo da fronteira [Sul], onde as condições de segurança dos presentes são maiores. Sugiro-te Cassacá, que já conheço. Entretanto, espero a tua resposta. Devo dizer-te que consideramos este encontro dos acontecimentos mais importantes na história da nossa luta e ele vai marcar uma nova etapa do nosso combate."


[Este encontro… é (foi) o I Congresso do PAIGC realizado em Cassacá, entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964].


Citação: (1964), "I Congresso do PAIGC em Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_85098 (2018-12-9)

Fonte: CasaComum; Fundação Mário Soares. Pasta: 07223.002.046. Título: I Congresso do PAIGC em Cassacá. Assunto: Amílcar Cabral e grupo de (dezanove) milicianos em Cassacá [região libertada do sul da Guiné-Bissau], por ocasião do I Congresso do PAIGC. Data: Fevereiro de 1964. Opaco/Transparente: Opaco Negativo/Positivo: Positivo. PB/Cor: Preto e Branco. Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade. Tipo Documental: Fotografias.

"Esperamos fazer vir para assistir no último dia da reunião [I Congresso; 17Fev1964], alguns jornalistas estrangeiros, aos quais seria distribuído um documento sobre os problemas tratados na reunião. Queremos ainda que no fim dos trabalhos e diante dos jornalistas, o Secretário-Geral do Partido faça o "baptismo" do primeiro destacamento do nosso Exército. Esse corpo teria cerca de 150 homens cujas fardas viriam ainda de Conacri.

"Estou certo que compreendes bem o interesse que esta reunião tem para a fase nova da luta que estamos vivendo, no plano interior, e no plano exterior, o que isso pode representar como reforço da nossa posição no plano internacional e sobretudo, junto dos países vizinhos, em especial o Senegal.

Tinha muito interesse em ver-te também para discutirmos o problema do material que te falta. Autorizei que fosse tirado do material do Norte, 10 carabinas e 10 cxs de balas 7,62 mm PM para te mandar. Não compreendo com o que se teria passado com as balas 7,62 mm. No barco em que vieste estavam 30 cxs para a Zona 11. Houve engano com certeza. Estão no barco 2 morteiros para a tua Zona, assim como algumas minas antitanque e antipessoal.

Continuo aqui na barraca do Manuel [Saturnino da Costa?], aguardando a tua resposta amanhã, para poder regressar depois de amanhã. O Embaná vai comigo para trazer as coisas [será que se trata do Fiere Embaná, que desertou do PAIGC e se apresentou no quartel de Tite, em Maio'1971, ao tempo do BART 2924 (P18746)?].


"O Zé traz uma grande barraca e 3 macas para doentes.

"Devo dizer-te que o Comité dos 9 soube reconhecer e avaliar os trabalhos do nosso Partido. Esperamos, no entanto, ainda, qualquer coisa de mais concreto.

"O segundo assunto importante que queria tratar contigo é o da vinda dos dois amigos que deviam vir ver e filmar coisas no interior. Eles chegam a Conacri a 29 [Jan de 1964] e devem vir, como combinámos, a 1 ou 2 de Fevereiro. Dá-me a tua opinião sobre o caminho que devem seguir. 

"Entretanto, sugiro que estejas em Sangonhá, que visitem Bricama para ver gente do povo no mato, sem casa. Vêm depois a Cassacá, onde fariam o resto do filme (combatentes, casas destruídas, etc.). Seria decerto mais interessante se lhes fosse possível ver a base central, mas não creio que isso seja possível. Diz o que pensas sobre o assunto. Eles regressariam de barco à República da Guiné."







Reprodução do original da carta de Aristides Pereira

Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/ 11002/fms_dc_39103 (2018-12-9).

Fonte: CasaComum; Fundação Mário Soares. Pasta: 07062.034.025. Assunto: Constituição do primeiro destacamento do Exército [Popular]. Visita do Comité dos 9 [OUA]. Vinda de "dois amigos" para filmar no interior. Remetente: [Aristides Pereira]. Destinatário: Nino Vieira. Data: 22 de Janeiro de 1964. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de BOAS FESTAS.

Jorge Araújo.

15DEZ2018.
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terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19334: Memórias dos lugares (382): Bissau, 1952, quando lá passei o meu primeiro Natal, aos 15 anos: uma tradição crioula que se perdeu, as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, que inundavam as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo, "tintim, tintim, kinkon, kinkon"... (Mário Fernando Roseira Dias, compositor musical, ex-srgt 'comando' reformado, Brá, 1963/65)


Portugal > s/l, algures, >  de Setembro de 2005 > Um reencontro de velhos camaradas, militares portugueses que estiveram na Guiné, tendo participado na Op Tridente (Ilha do Como, de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964)... Quarenta anos depois... Alguns dos bravos da mítica batalha do Como... Entre eles, está o nosso Mário Dias (o segundo, a contar da direita). ... Já agora aqui fica a legenda completa (Os postos, referentes a cada um, são os que tinham à época dos acontecimentos): Da esquerda para a direita: (a) sold João Firmino Martins Correia; (b) 1º cabo Marcelino da Mata (hoje tenente-coronel, na situação de reforma); (c) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (d) fur mil António M. Vassalo Miranda; (e) fur mil Mário Fernando  Roseira Dias (hoje sargento na reforma); (f) sold Joaquim Trindade Cavaco.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Angola > Luanda > 1963 (?)  >  Em primeiro plano, o fur mil 'comando' Mário Dias, em segundo plano, da esquerda para a direita, o fur mil Artur Pereira Pires, o sold Adulai Jaló e o alf mil Justino Coelho Godinho (estes três últimos já falecidos). No  aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG / CTIG. O primeiro grupo de Comandos do CTIG, sob o comando do alf mil Saraiva, particpou na Op Tridente (jan-mar de 1964).  

Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-fur mil,  Gr Cmds ‘Panteras’

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > A catedral de Bissau símbolo do catolicismo, que sempre teve fraca penetração num país  em que predominam o islamismos e o animismo.

Foto: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Mensagem de Mário Dias 

(i) Mário [Fernando Roseira] Dias [, foto de 2005, à direita]

(ii) nasceu em 1937 em Lamego;

(iii) foi pra a Guiné, com a família, em 1952, ainda adolescente;

(iv)  assistiu à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943;

(vi) conheceu, entre outros futuros dirigentes e combatentes do PAIGC,  Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959;

(vii) com o posto de fur mil, partiu, em 29 de outubro de 1963, para Angola, integrando num grupo de Oficiais, Sargento e Praças, do CTIG, a fim de frequentarem um curso de Comandos, no CI 16 na Quibala - Norte, e on se incluía o major inf Correia Diniz; alf mil Maurício Saraiva;  alf mil Justino Godinho, 2º srgt Gil Roseira Dias, fur mil cav Artur Pereira Pires, fur mil cav António Vassalo Miranda, 1.º  cano at inf Abdulai Queta Jamanca  e Sold. At. Inf.ª Adulai Jaló.

(viii) este grupo esteve na origem da criação, em julho de 1965,  da Companhia de Comandos do CTIG (CCmds/CTIG), tendo sido nomeado seu comandante o cap art  Nuno Rubim, substituído em 20 de fevereiro de 1966 pelo cap art Garcia Leandro;

(ix) em 1966, seguiu para Angola, onde prestou serviço, seguindo a carreira militar.
(x) depois de reformado dedicou-se à música: dotado de grande sensibilidade e talentos artísticos,  é mais  conhecido por M. Roseira Dias, no meio musical, é autor de inúmeros arranjos musicais de canções populares  a açoriana Olhos Negros, e tantas outras que por aí circulam em Portugal e no Brasil: são e  dezenas e dezenas de arranjos para coro, saídos do talento musical do nosso camarada: por exemplo, Granada, de Agustin Lara; Minha História, de Chico Buarque; Morte que mataste lira (Popular, Açores); Natal de Évora (Popular); Lembranças do Douro (Folclore do Alto Douro); Perdigão perdeu a pena (Cancioneiro da Alta Estremadura); Tempo suão (Cancioneiro da Alta Estremadura)... Mas não só arranjos como músicas orignais: por exemplo, Dança do vento (poema de Afonso Lopes Vieira); Regresso ao lar (poema de Guerra Junqueira); Cantiga das tristes queixas (poema de Afonso Lopes Vieira)...só para citar uns tantos exemplos.

Escreveu ele na altura, nas proximidades do Natal de 2005 (*):

(...) Aqui vai, não propriamente uma estória, mas o que poderemos chamar uma crónica ou memória de como era celebrado o Natal pelos rapazes (nunca vi raparigas a participar) de Bissau.

Caros camaradas de tertúlia:

Tintim, tintim, tintim,… “Bom festa pa tudo dgenti. Prança Deus bó iangaça tudo quê que bó misti”

Traduzo, ou não é preciso? Então lá vai: Boas-festas para todos. Queira Deus que alcanceis tudo quanto desejais.

Mário Dias

Nota do editor: Achámos por bem reproduzir aqui, hoje, esta sua descrição do Natal de Bissau de 1952. É reveladora da sua grande sensibilidade socioantropológica.  Com votos de bom ano de 2019 e um alfabravo fraterno ao Mário, que é dos um membros da nossa Tabanca Grande, da primeira hora. Muitos dos mais recentes grã-tabanqueiros nunca tiveram oportunidade de ler os seus notáveis textos (como por exemplo as crónicas da Op Tridente, 1964 ou as "memórias do antigamente" de Bissau ou "o segredo"..., o seu reencontro no mato com o amigo Domingos Ramos...)


2. Memória dos lugares > O Natal de Bissau nos tempos do "antigamente"

por Mário Dias

Tinha 15 anos no tempo já distante de 1952. Ia passar o meu primeiro Natal em Bissau (**) e nem calculava, nesses meus verdes anos, quão verdadeiro é o ditado popular: “cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.

Em casa de meus pais, reunida a família para celebrar a consoada, comecei a escutar na rua sons e cantigas que me eram de todo estranhas, bem diferentes das que, em Portugal, celebravam o Natal. Curioso, vim à varanda e deparei com um cenário que me encantou de tal forma que ainda hoje dele me recordo com muita saudade.

Toda a rua onde morava (ia dar à avenida principal, perto do cinema da UDIB) era um mar de luzinhas e de sincopados sons. Não resisti e fui ver. Não queria perder o espectáculo para mim novo e bem longe do que poderia imaginar pudesse existir.

Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor.

Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.

Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim…

Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: (por sinal bem afinados)

S. José, sagrada nha Maria,
e quando foi, quando foi para Belém,
a resgatar o Menino de Jesus,
lá ao pé, lá ao pé da santa cruz.


(refrão)

Adoro mistério sobrinho da minha alma (1)
sobrinho da minha alma louva o Senhor.
Coração Santo todo ruminado
Todo vez em quando sempre a chorar
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar,
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar. (2)


O Angelino, Angelino já morreu,
e não queria confessar senão do Papa,
e nem do Papa nem do Bispo confessou
para nos dar boas-festas boa sorte. (3)

(repetiam o refrão)

Terminada a cantilena, dirigindo-se aos donos da casa, soltavam o inevitável “partim festa” (dê-nos as festas), querendo com isso pedir dinheiro ou algo que lhes fosse útil. Um deles estendia a mão para o donativo que sempre surgia e enquanto iam a caminho de outra casa algum perguntava:

- Kanto qui dá-bo? (quanto te deu)
- Dôs peso e meio.
- Esse i bom branco.

Desta maneira corriam todas as ruas de Bissau, visitando as casas ou abordando quem passava nas ruas:

- Partim festa.
- Kanto que dá-bo?
- Só cinco patacon (20 centavos)
- Bé… rijo mon (bolas…que avarento)


Intercalados, outros grupos diferentes surgiam. Eram os rapazes do “Kinkon”. Traziam também uma garrafa para marcar o ritmo, (tintim, tintim, tintim,) mas o “chamariz” apelativo ao “partim festa” era outro. Um boneco recortado em papelão, com braços e pernas articuladas por um engenhoso sistema de cordéis e montado numa vara, era transportado por um dos miúdos que o fazia movimentar ao ritmo da batida na garrafa “tintim, tintim, tintim”.

O portador do boneco atirava:

- Kinkon, kinkon.

Respondiam os outros em coro:

- Rabada di kon.

De novo o líder:

- Kinkon, Kinkon.

Resposta do coro:

- Nariz di Kon.

E sempre alternando, líder e coro iam acrescentando à cega-rega diversas partes do corpo:

Kinkon, kinkon,
Cabeça di Kon.
Kinkin, kinkon,
Orelha di Kon.


Por vezes, os mais ousados lançavam alusões a partes anatómicas menos próprias. Alguns dos companheiros riam-se, outros não gostavam e protestavam:

-Abó ka t’a burgonho (tu não tens vergonha).

Mantinham a cantilena o tempo necessário a que alguém viesse oferecer as desejadas “festas” e seguiam para outro lado.

Por ali me quedava embevecido, admirando estas encantadoras cenas tão inesperadas e atraentes.

E por ter ficado de tal forma apaixonado com tão extraordinária tradição, todos os anos, mal se aproximava o Natal, não continha em mim a ânsia da sua rápida chegada, para mais uma vez veras crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, inundarem as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo: 

…tintim, tintim… São José, sagrada nha Maria…
…tintim, tintim… Kinkon, kinkon,… rabada di kon…


Certamente que muitos dos que passaram por Bissau assistiram a esta tradição e dela se devem recordar. Quanto a mim, já passaram mais de 50 anos e ela continua tão viva na minha memória que, quando chega o Natal, dou por mim a cantarolar aquela lenga-lenga e nos meus ouvidos ecoa o “tintim, tintim”. Involuntariamente sinto-me transportado ao passado e perante mim desfila, com toda nitidez e riqueza de pormenores, o encanto de cores e de sons que os rapazes de Bissau me proporcionavam.

Falando há tempos com um amigo que lá esteve recentemente, por ele fui informado que esse costume se perdeu e que as actuais gerações nem o conhecem. Se assim for, é pena. Nenhum povo deve esquecer e, menos ainda, menosprezar as sua tradições.

Caros amigos guineenses: Vamos restaurar esta tão bela tradição?

Torna-se talvez conveniente explicar o significado da cantiga que, como devem ter reparado, não é crioulo. É pretensamente cantada em português, com versos de cânticos religiosos que os rapazes, na sua ingenuidade deturparam.

Notas do autor:

(1) “Adoro o mistério sobrinho da minha alma…” corresponde a: “Adoro o mistério sublime da minha alma…”

(2) “Coração santo todo ruminado, todo vez em quando, sempre a chorar” é do cântico “coração santo, tu reinarás, o nosso encanto, sempre serás”.

(3) Quanto a esta alusão ao tal Angelino, nunca consegui saber do que se trataria.
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P19333: Parabéns a você (1548): Ismael Augusto, ex-Alf Mil Manut do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19326: Parabéns a você (1547): Fernando Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Guiné, 1970/71)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19332: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (12): O nosso editor Luís Graça, régulo da Tabanca de Candoz...




Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 > Duas fotos, tiradas com a minha nova máquina reflex, Nikon D5300... Parabéns ao Porto por este magnífico equipamento urbano, projeto do arquiteto paisagista Sidónio Pardal!... Faço votos para que, em 2019, se enchem os 80 hectares do parque com tertúlias de caminheiros... (À consideração dos régulos das tabancas de Matosinhos, da Maia e dos Melros e ainda do bandalho-mor do Bando, para que se empenhem também na promoção do envelhecimento saudável e ativo dos  nossos camaradas tabanqueiros e bandalhos.)

Fotos (e legenda): © Luís Graça  (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


"So(r)neto" natalício
das tabancas de Candoz & Madalena:



Natal todo o ano ?... 
Não, muito obrigado!

por Luís Graça


Com duas sílabas e cinco letras,
Se escreve a nossa palavra Natal.
Como nos ensinaram as nossas mestras,
É das mais belas que há em Portugal.

Mas, sendo a vida filha de putice,
Por favor, não façam Natal todo o ano,
Que grande freima, que grande chatice,
Seria um logro, um cruel engano.

É bom p’rás baterias carregar,
O Natal no solstício do inverno,
Pode-se comer, beber, orar… e amar.

Três dias é d’mais como o Carnaval,
Mas Natal todo o ano seria inferno,
E só nos poderia fazer mal!...




Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, e Madalena, Vila Nova de Gaia,

22 e 23 de dezembro de 2018

Luís Graça

Post scriptum ou adenda (muito importante) - Recomendação dos filhos e netos aos pais e avós:



Tanto crime contra a mãe-natureza,
Pelas nossas gerações cometido!...
P'ró ano, queremos ter a certeza
De que o nosso futuro está garantido!

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Guiné 61/74 - P19331: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (11): José Belo, na terra do Pai Natal e das Auroras Boreais, régulo da Tabanca da Lapónia, ex-alf mil inf da CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)




Festas Felizes desde a terra do Pai Natal e das Auroras Boreais. [Fotos: Joseph Belo, 2018]

1. Mensagem do José [Joseph] Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:


Domingo, 23/12, 13:49



Para Ti e Família,assim como para todos os Amigos e Camaradas, envio desde o extremo do extremo norte da Suécia um grande abraço com votos de Festas Felizes.


(i) tem c. 130 referências no nosso blogue

(ii) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381,Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70;

(iii) cap inf ref;

(iv) é jurista, vive na Suécia há 4 décadas, e onde formou família;


(v) reparte o seu tempo entre a Suécia, a Lapónia Sueca e os EUA, onde família tem negócios.
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Guiné 61/74 - P19330: Memórias de Gabú (José Saúde) (75): Marcelino da Mata, um homem que deu o corpo às balas (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 


Gabu em memórias 



Marcelino da Mata, um homem que deu o corpo às balas 



De herói a vilão 


O tema poderá, eventualmente, considerar-se polémico. Reconheço o atrevimento, mas não o é considerado por mim nefasto. Respeito o contraditório. Tanto mais que falamos de uma temática onde o conteúdo da guerra tem dois opositores. Por conseguinte, alerto que me cinjo exclusivamente ao heroísmo de homens que não esconderam “a cabeça na areia” como faz a avestruz. 

A minha longa vida como jornalista (iniciada em fevereiro de 1983), também escritor com oito obras publicadas, sempre a pautei pela dignidade. Ouvir, e saber ouvir, deu-me “estaleca” e ânimo, acessórios que indicam uma força enorme na destreza de bem caminhar numa “picada” que considero, até hoje, limpa. 

Ouvir as partes é um direito do código deontológico e rege literalmente as frações envolventes. Sei, porém, que a energia de uma narrativa nem sempre agrada a gregos e a troianos. E mexer com a “coisa” incomoda. 

Camaradas, na condição de jornalista fui, por duas vezes, sujeito à condição de réu. Escrevi publicamente a verdade, somente a verdade, mas eis que essa visível verdade não era a verdade dos queixosos. Não lhes convinha. Mentes mesquinhas que por vezes se julgam senhores da razão, não sabendo, porque assim o querem, distinguir “o trigo do joio”. A honra do homem é impagável e primo por essa nobreza. A retidão faz parte do meu ADN. Ninguém se assuma superior ao parceiro do lado. 

Aguardei, calmamente, a decisão do tribunal. Sabia que não havia cometido nenhum crime de lesa a pátria, ou que mexesse com a honestidade moral de alguém. Entretanto, lá fui submetido aos princípios de um conjunto de impedimentos que usurparam o meu quotidiano ao longo de um processo que terminou com a minha absolvição. 

Conheço, e muito bem, a força do conteúdo das palavras e como elas são entendidas por quem se julga o único portador da razão. Hoje, sou, tal como sempre o fui, amigo desses companheiros que compreenderam, mais tarde, que o móbil da decisão não estava, nem podia estar, do seu lado. Pediram-me desculpas pelo incómodo e nossa amizade mantém-se. 

Arrisco, e a vida é feita de riscos, trazer ao nosso blogue a opinião, que é minha, sobre um antigo guerrilheiro que combateu ao lado das NT no conflito da Guiné. Aliás, foi através de pequenos textos lançados no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné que consegui desarticular tabus que entretanto ainda se consomem no ego de camaradas que não admitem inequívocas realidades por todos nós conhecidas. Lembro, a talho de foice, os “filhos do vento” e o impacto mediático que causou, não só a nível nacional como internacional. Bem-haja a arriscada ideia e as consequências que dela resultaram. 

Não tive a oportunidade em combater ao seu lado. Não me foi dada essa missão e a oportunidade esvaziou-se no infinito de um horizonte onde o serpenteado das cores visíveis no infindável céu guineense era deslumbrante. Todavia, a mensagem da sua bravura passava de aquartelamento para aquartelamento a uma velocidade alucinante. 

Todos, ou quase todos, lhe atribuíam dotes de combatente de primeira água. Falava-se dele amiúde e esse falatório obrigava a malta atribuir-lhe míticos feitos, uns verdadeiros, outros salpicados de “pozinhos” recheados de meras imaginações. Diz o povo “quem conta um conto, acrescenta-lhe mais um ponto”. Compreendo. 

Não vou, como é óbvio, ser minucioso na sua forma de atuar, ou delinear o modo como enfrentava o IN. Foi comando, eu ranger, e muitas vezes me indaguei sobre a sua capacidade em agir quando o zumbido das balas pareciam não ter fim. Ou, a sua sagacidade na sapiência em resolver o conflito por ora deparado. 

A guerra proporciona momentos de inquietação, sobretudo quando falamos na componente guerrilha. Enfrentar o inimigo, sem rosto, onde a surpresa amiúde acontecia, era um flagelo para jovens soldados atirados para as frentes de combate sem dó nem piedade. Jovens forçados a combater, sem “escola”, nem tão-pouco uma aprumada capacidade de ação, sendo o intuito prioritário salvar a pele. “Matar para não morrer” era o lema. 


Recordo Marcelino da Mata, um guineense que nasceu em Porta Nova, Guiné, no dia 7 de maio de 1940 e que presentemente ostenta a patente de Tenente Coronel. A sua incorporação no exército português teve lugar a 3 de janeiro de 1960, em Bolama, mas acidentalmente, uma vez que acabou por ser agrupado no Centro de Instrução Militar em lugar do irmão. 

Ofereceu-se, depois, como voluntário, sendo o fundador das tropas de operações especiais e membro ativo nos comandos africanos. 

Segundo registos da História do Exército Português, o antigo combatente terá participado em 2412 operações e que lhe confere o direito em sustentar o título de militar português mais condecorado. 

Aconteceu que das várias operações em que as NT levaram a ação ao extremo, e com baixas registadas ao IN, entre recuperações de material bélico e não só, deparamo-nos com nomes de graduados de alta patente como gestores da operacionalidade, sendo que pouco se falava do Marcelino da Mata nessas ditas reuniões. Admito, e aceito o perverso descuido que certamente era intuito, uma vez que a preparação da operação era delineada em gabinetes entre os graduados superiores, como é óbvio, sendo ele, no entanto, a arma “secreta” no terreno em determinadas operações. 

Com o fim da guerra, graças ao 25 de Abril, Revolução dos Cravos, a nossa atividade guerrilheira teve o seu términus. O Marcelino “arrumou” as armas e fixou-se em Portugal. Mas, a sua vinda para Pátria à qual muito deu, ter-lhe-á virado as costas e, nessa altura, considerado como um ser humano alegadamente indigente. 

Os movimentos revolucionários que então proliferavam num Portugal livre, e democrático, trancou-lhe as portas e o herói, “não morto, e nem tão-pouco posto”, caiu em desgraça. Numa entrevista dada ao jornalista Duarte Branquinho e publicada no jornal “O Diabo” de 1 de janeiro de 2015, segunda edição, sendo a primeira divulgada a 29 de julho de 2014, dizia: “Portugal esqueceu-se de mim, mas os amigos não”. 

Marcelino da Mata adianta nessa entrevista, que sublinho com a devida vénia, quando o tema era o seu sentir por parte das Forças Armadas portuguesas, opina: “Tenho a impressão que há aí uma dor de cotovelo. Porque um preto que vem do Ultramar, da Guiné, do mato, e sou mais condecorado que os oficiais da nação, é uma vergonha para eles. Isso caiu mal”. 

Leva-me a narração dos factos recuar aos tempos revolucionários e transpor mais uma dica sobre se houve, ou não, sensibilidade na sua prisão: “Parece que não existiu, mas eu fui preso e torturado que nem um cão. Foram a minha casa e não me encontraram. Foi a minha falecida mulher que me disse que lá tinham estado tropas à minha procura”. 

E conclui: “… mandaram-me encostar à parede e eu recusei-me, dizendo que um militar não bate num militar, que se queriam deviam participar de mim. Mas agarraram em mim e encostaram-me à parede. Foi o fim da minha vida! Levei tantas que só Deus sabe. Depois de desmaiar, atiraram-me com um balde de água em cima e continuaram. Nem quero falar mais disso…”. 

Recuso, perentoriamente, comentar tais factos, sei, melhor, sabemos que tudo terminou com perseguições e a sua subsequente fuga para Espanha, regressando a solo português após o Golpe de 25 de Novembro. 

Reflito, convictamente, sobre o Tenente Coronel Marcelino da Mata e a sua destemida bravura na guerra da Guiné, deparando-me com várias Medalhas de Guerra, 1ª, 2ª e 3ª Classes, de entre outras condecorações com que foi agraciado. 

No dia 2 de julho de 1969 foi nomeado Cavaleiro da Ordem Militar da Torre, do Valor, Lealdade e Mérito. 

Cito, também, o nome de algumas operações para que a memória futura jamais esqueça: “Operação Trindente”, ilha do Como - “Operação Cajado” - “Resgate de 150 portugueses cativos em território senegalês” - “Operação Mar Verde” – “Operação Ametista Real”. 

Marcelino da Mata foi várias vezes ferido na ocorrência de combates, mas quando na noite de 24 para 25 de abril de 1974 se ouviu “E depois do Adeus” pela voz de Paulo de Carvalho, o antigo combatente, tal como as tropas lusas que se encontravam nas três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné –, cessou a sua atividade operacional. 


A sua história é vasta e as opiniões sobre o seu caráter como combatente poderão, eventualmente, não coincidirem. Numa pesquisa internauta fiquei a conhecer melhor o homem que tinha conhecido no meu quartel na então Nova Lamego em princípios do ano de 1973. 

A sua vida não foi fácil e enterrar o “machado de guerra” é coisa muito vaga. Veja-se a forma como fora tratado já num Portugal onde os “Cravos” desabrochavam. Mas, o toque de alerta soou e o Exército Português que fez dele o atual Tenente Coronel. 

Para trás ficam as memórias e o improvável regresso, mesmo como visitante, ao solo que o viu nascer: Guiné-Bissau. 

Concluindo: este é um pequeníssimo texto onde deparamos com combatente guineense que passou de herói a vilão!... 

Um abraço, camaradas 
José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 

Fotos: Com a devida vénia e agradecimentos ao jornal TAL & QUAL. 
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

18 DE DEZEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19303: Memórias de Gabú (José Saúde) (74): Na Messe de Sargentos em Quadra Natalícia. Natal de 1973 (José Saúde)

Guiné 61/74 - P19329: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LVII: Festas de Natal e Ano, Nova Lamego 67, São Domingos 68


Foto nº 1 > Jantar e Ceia de Natal de 1967, na messe de oficiais em Nova Lamego.


Foto nº 2 > Continuação do Jantar e Ceia de Natal de 67, na messe de oficiais em Nova Lamego. Ao fundo, no topo da mesa, o Virgílio Teixeira.


Foto nº 3 > Dezembro de 1967 >  "Feliz Natal: Noite de Natal, Noite Fria, tão gelada / Tocam os sinos / É noite de Consoada... Guiné 67". Desenho e texto do furriel miliciano Rocha, o "Algarvio",


Foto nº 4 > Kantar de fim de ano na messe de oficiais,  o Comandante à civil, a brindar a todos. Os protagonistas são os mesmos, vê-se de óculos, o alferes comandante do Pelotão de A.M. Daimler 1143. Foi a última fotografia que tenho do nosso Comandante.


Foto nº 5 > – O mesmo jantar, agora a foto tirada do outro extremo da mesa, já apareço eu, e em grande destaque o nosso Major Henriques, aquele que me queria fazer a vida negra e nunca o conseguiu.



Foto nº 11 > Jantar e Ceia de Natal de 1968, na messe de oficiais em São Domingos.


F12 – Outra visão da mesa de jantar de Natal de 1968, com os outros protagonistas.


Foto nº 13  > – Noite de Natal de 1968, junto dos nossos militares na sua caserna, com uns copos à mistura.


Foto nº 14  > Almoço do dia de Natal de 1968, juntamente com todo o pessoal de todas as companhias e pelotões independentes


Foto nº 15 >  Messe de sargentos da CCS, esperando a hora do jantar de fim de ano de 1968.


F16 – Espectáculo programado para o dia de Novo Ano de 1969, com todos os militares a participar na festa. Brancos, negros e população civil, todos foram convidados.


Foto nº 17 > Outro lado do mesmo espectáculo, com outros protagonistas, pode ver-se o Capitão Cardoso, o novo comandante da CCS, o Major Correia ao lado da esposa do Médico, e o sempre omnipresente Capitão Martins, com o seu pingalim!

Guiné > CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >  Natal e Ano Novo

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil,SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) (*)

[Foto à esquerda, o Virgílio e a esposa Manuela, na Tabanca de Matosinhos, Restaurante Espigueiro (ex-Milho Rei), 5 de setembro de 2018 (Foto: LG).


T089 – FESTAS DE NATAL E ANO NOVO
NOVA LAMEGO 67
SÃO DOMINGOS 68

I - Anotações e Introdução ao tema:

Aproveito esta época para além de desejar os melhores êxitos e muita saúde a todos, apresentar mais algumas fotos que seleccionei de uma centena delas, e que são alusivas às festas de Natal e Ano Novo dos anos de 1968 (50 anos) e de 1967 (51 anos).

Foram estes dois anos festivos que passei no CTIG, o primeiro ano de 1967 em terras do Gabu – Nova Lamego – e no segundo ano mais para o extremo ocidental da Guiné na povoação e circunscrição de São Domingos.

Como é natural, no primeiro ano de 67 fizemos o jantar de ‘Ceia de Natal’ na messe de oficiais, e seguidamente confraternizei com os camaradas da messe de sargentos, e muito em particular com o pessoal da pesada, os soldados e cabos. Eu fiz isso, os outros não sabemos. Neste ano tudo foi presidido pelo nosso Comandante de Batalhão – Tenente Coronel Armando Vasco de Campos Saraiva, pessoa de uma rara delicadeza e personalidade.

No segundo ano de 68, já assim não aconteceu, o trágico desfecho de uma mina A/P em 20 de Novembro de 68, levou-o definitivamente para a Metrópole, onde após operações sucessivas, conseguiu sobreviver e se encontrou passados mais de 15 anos com os seus militares num almoço realizado em Tomar.

Neste ano presidiu às festas e cerimónias, o nosso 2º Comandante, provisoriamente na função de 1º Comandante, o Major Américo Correia..

Em ambos os anos, houve sempre a Seia de Natal, o Almoço de Natal, o Jantar de Fim do Ano, e o primeiro almoço do dia 1 de Janeiro. Com animação, dentro das possibilidades que a situação o permitia.

II – As Legendas das fotos:

F01 – Jantar e Ceia de Natal de 1967, na messe de oficiais em Nova Lamego – Gabu.

Pode ver-se no topo da mesa o nosso saudoso comandante, fardado, ladeado, como ele gostava, de duas senhoras, a mulher do Tenente Médico Cortez, e da mulher do Alferes Figueiredo, recrutado na Guiné, onde vivia. Perto dele, os dois Majores, Américo Correia e Graciano Henriques, bem como o médico.

Podem ver-se os Capitães – comandante da CCS – Capitão Figueiral, o oficial de informações – Capitão Martins, o oficial de pessoal e reabastecimentos, e outro que não conheci muito bem.

No outro topo da mesa, está o pessoal menor, os alferes milicianos.

Foto captada em Nova Lamego, na noite de 24 de Dezembro de 1967

F02 – Continuação do Jantar e Ceia de Natal de 67, na messe de oficiais em Nova Lamego.

O autor, eu, estou no topo, numa das raras vezes com um blusão, sinal que devia estar mais fresco, era Dezembro. Ao lado outro alferes de blusão, julgo que pertencia aos quadros da aviação, pois tínhamos ali estacionado vários meios aéreos permanentes.

Ao lado esquerdo o Tenente SGE Albertino Godinho, a seguir o alferes Azevedo ‘ O Morteiros’ o a alferes Carvalheira do Serviço da ‘Ferrugem’, o alferes Carneiro, Tesoureiro.

Não consigo identificar mais, além dos nossos ‘gourmet’ os soldados condutores.

Foto captada em Nova Lamego, na noite de 24 de Dezembro de 1967

F03 – Cartaz com uma mensagem de Natal, obra produzida e realizada pelo Furriel Miliciano Rocha. ‘O Algarvio’ . 

O Rocha fez várias de outros formatos, ele desenhava, escrevia o poema, depois arranjava os cenários. Da minha parte fiz pelo menos uma centena de fotos destas, e de outros formatos, mudava apenas o personagem o resto era igual. Depois cada um mandou para as suas famílias um postal ilustrado. Coloquei esta, mas há muitas mais. O fotógrafo era eu.

Foto captada em Nova Lamego, provavelmente na primeira ou segunda semana do Dezembro 67,

F04 – Jantar de fim de ano na messe de oficiais o comandante à civil, a brindar a todos. 

Os protagonistas são os mesmos, vê-se de óculos, o alferes comandante do Pelotão de A.M. Daimler 1143.

Foi a última fotografia que tenho do nosso Comandante. Foto captada em Nova Lamego, na noite de 31 de Dezembro de 1967

F05 – O mesmo jantar, agora a foto tirada do outro extremo da mesa, já apareço eu, e em grande destaque o nosso Major Henriques, aquele que me queria fazer a vida negra e nunca o conseguiu.
Foto captada em Nova Lamego, na noite de 31 de Dezembro de 1967

F11 – Jantar e Ceia de Natal de 1968, na messe de oficiais em São Domingos.

Os protagonistas mudaram, face à evacuação do nosso Comandante, em 20NOV68.

O Major Américo Correia preside às cerimónias, curiosamente quase nunca vi o nosso Major Correia vestido à civil, estava sempre fardado. Ao lado o Major Henriques que quase nunca andava fardado, fora de horas, sempre à civil! Agora numa função de 2º comandante.

Vê-se a mulher do Capitão Cortez, Médico, e de costas uma jovem menina em Lua-de-mel, esposa do novo comandante de Companhia da CCS – Capitão Cardoso, visto o nosso anterior ser chamado a altas funções no QG. Em pé o nosso Cabo Pita, auxiliar de mesa, condutor e impedido do Major Henriques.

Foto captada em São Domingos, na noite de 24 de Dezembro de 1968

F12 – Outra visão da mesa de jantar de Natal, com os outros protagonistas. Vê-se agora o novo casal, o novo Capitão da CCS, e a sua esposa, jovem e bonita.

Do lado esquerdo junto à parede o nosso Capitão Martins, do Serviço de Informações! Diz-se que era o torcionário dos turras capturados. Esteve no último encontro em Viseu, 2017, nos anos em que fizemos 50 anos de partida. É General reformado.

Foto captada em São Domingos, na noite de 24 de Dezembro de 1968

F13 – Noite de Natal de 1968, junto dos nossos militares na sua caserna, com uns copos à mistura.

Vê-se uma imagem de uma Nossa Senhora!

Foto captada em São Domingos, na noite de 24 de Dezembro de 1968, no refeitório das praças, conforme está escrito naquele tempo na fotografia.

F14 – Almoço do dia de Natal de 1968, juntamente com todo o pessoal de todas as companhias e pelotões independentes.

Pode ver-se entre outros, o alferes Gatinho e alferes Almodôvar, o Capitão Martins, e ao lado o nosso 1º sargente Carvalho da CCS.

Foto captada em São Domingos, no dia 25 de Dezembro de 1968, num espaço previamente arranjado para o efeito.

F15 – Messe de sargentos da CCS, esperando a hora do jantar de fim de ano de 1968.

Pode ver-se o Vagomestre Furriel Paiva Matos, e outros furriéis.

Foto captada em São Domingos, no dia 31 de Dezembro de 1968, na messe de Sargentos do Batalhão.

F16 – Espectáculo programado para o dia de Novo Ano de 1969, com todos os militares a participar na festa. Brancos, negros e população civil, todos foram convidados.

Foto captada em São Domingos, no dia 01 de Janeiro de 1969, na sombra dos grandes e pequenos mangueirais.

F17 – Outro lado do mesmo espectáculo, com outros protagonistas, pode ver-se o Capitão Cardoso, o novo comandante da CCS, o Major Correia ao lado da esposa do Médico, e o sempre omnipresente Capitão Martins, com o seu pingalim! E curiosamente está como Oficial de Dia! Não me calhou a mim.

Foto captada em São Domingos, no dia 01 de Janeiro de 1969, na sombra dos grandes e pequenos mangueirais. Julgo que se trata de um lugar perto da Oficina da Ferrugem, ou cemitério de viaturas.

NOTA FINAL DO AUTOR:

# As legendas das fotos em cada um dos Temas dos meus álbuns, não são factos cientificamente históricos, por isso podem conter inexactidões, omissões e erros, até grosseiros. Podem ocorrer datas não coincidentes com cada foto, motivos descritos não exactos, locais indicados diferentes do real, acontecimentos e factos não totalmente certos, e outros lapsos não premeditados. Os relatos estão a ser feitos, 50 anos depois dos acontecimentos, com material esquecido no baú das memórias passadas, e o autor baseia-se essencialmente na sua ainda razoável capacidade de memória, em especial a memória visual, mas também com recurso a outras ajudas como a História da Unidade do seu Batalhão, e demais documentos escritos em seu poder. Estas fotos são legendadas de acordo com aquilo que sei, ou julgo que sei, daquilo que presenciei com os meus olhos, e as minhas opiniões, longe de serem ‘Juízos de Valor’ são o meu olhar sobre os acontecimentos, e a forma peculiar de me exprimir.#

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».

Acabada de legendar hoje,

Em, 2018-12-14

Virgílio Teixeira
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Nota do editor:

(*) Último poste da série  > 15 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19293: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LVI: E tudo o vento levou... O furacão de 20 de agosto de 1968, em São Domingos

Guiné 61/74 - P19328: Blogoterapia (290): O Medo - como nunca pensei que sentisse (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 21 de Dezembro de 2018:

Carlos e Luís
Após a leitura do livro do nosso camarada António Martins de Matos e em especial o capitulo escrito pela psicóloga Teresa Matos sobre o medo, resolvi fazer uma pequena viagem sobre o meu medo ou medos.
Junto vai uma foto onde estão vários dos que seriam sobreviventes da emboscada do Quirafo em Abril de 1972. De notar que o que está na primeira fila ao centro é o condutor único sobrevivente da primeira viatura. Ao lado dele, à nossa esquerda, é o condutor da segunda.

Um Feliz Natal e um próspero Ano Novo para todos os membros da tabanca mais para as suas famílias.

Abraços
Juvenal Amado


O MEDO

No dia 24 de Dezembro faz 47 anos que desembarquei em Bissau integrado no meu Batalhão 3872, o que quer dizer, que no momento que escrevo estas linhas navegava ou estava ao largo da ilha da Madeira. Não tive medo quando fui mobilizado, nem quando embarquei, nem quando desembarquei. Havia um misto de curiosidade e distanciamento, que quase parecia que não me estava a acontecer aquilo e que era um simples observador.

Mas na noite do desembarque, já no Cumeré, provei o medo como nunca pensei que existisse tal sentimento. A violência da guerra chegou até mim, que tinha dado duas dúzias de tiros de G3 e era esse o som mais próximo que tinha dela. Não sabia na altura que a espiral do medo tinha tantos patamares e que, aquele som das antiaéreas, a fazer batimento de zona, que faziam tremer o chão, não era nada comparado com som de um ataque onde as explosões e o matraquear das armas ligeiras têm um resultado tão aterrador.

O medo tolda-nos os sentidos, desfaz-nos o discernimento, penetra perniciosamente nos músculos, tolhe-nos as passadas, encharca-nos a roupa com suor gelado, deixamos de ver e ouvir com clareza, por vezes não se tem controle sobre as mais elementares necessidades fisiológicas, a irracionalidade sobrevem à amálgama de sensações descontroladas, em que nos tornamos seres sem quereres nem vontades próprias. Desse estado, saímos em várias direcções e soluções impensáveis, quando, no estado da razão de que normalmente somos proprietários, faríamos ao contrário .

Ao longo da vida passamos por diversos medos por ou ignorância rotulamos de medo, pois o medo na infância do escuro, do professor, do resultado do exame, o medo de ser rejeitado, o medo do ridículo, em nada é equiparado ao medo que nos descontrola ao ponto de nada mais ter interesse que a preservação da vida.

O medo como escreve a psicóloga clínica Teresa Matos* (vale a pena ler) é bem mais complexo do que até aqui eu pensava. Envolve a produção ou ausência de substâncias que na nossa condição de humanos produzimos. Escreve ela, que sujeitos ao medo o nosso corpo se transforma com reacções físico-químicas, que nos preparam para receber em antecipação o impacto de qualquer agressão que nos ponha em perigo.

Depois respondemos ao medo por ordem de um superior, porque por vezes existe o medo hierárquico, que suplanta o medo do inimigo. Se assim não fosse, como se explicaria, que à ordem de comando um soldado salta para a frente afrontando cortinas de balas?

Noutras, o individuo reage em autodefesa, porque é necessário responder à agressão. Finalmente o medo pode tolher de tal maneira o individuo que nada fará para se defender.

No principio da guerra, falou-se de quem se matou após a mobilização com medo de morrer na guerra, quando afinal dessa forma certeira cumpriu o destino que temia mas, que lhe era incerto.

“o medo tem alguma utilidade, mas a covardia não”. Mahatma Gandhi

Quem esteve em situações de combate, ou participou em colunas em que minas mataram camaradas, sabe do terror que se sente após os acontecimentos, a dificuldade de abandonar a vala e em especial, em mexer os pés do sítio onde nos abrigamos na urgência.

Conheço um camarada que tendo sofrido uma emboscada onde morreram vários companheiros (Quirafo - Saltinho) sofre de stress pós-traumático e o medo apodera-se dele de tal forma que não consegue responder-lhe, não dorme, é visitado pelos acontecimentos e as caras dos que morreram não lhe saem da cabeça. Os sons da tragédia compõem a banda sonora do que poderia ser um filme. Neste caso são os psicólogos e psiquiatras a administrar químicos em substituição dos que não se produzem naturalmente de que fala a autora Teresa Matos. O organismo do nosso camarada não consegue responder ao medo que se pegou a ele de forma visceral. Cumpre-me aqui informar, que já não falo com o camarada desde que ele começou a ser tratado e por isso, não ter real conhecimento do seu estado hoje.

Alguns destes camaradas sobreviveram à emboscada do Quirafo. O que está na primeira fila ao centro é o condutor único sobrevivente da primeira viatura. Ao lado dele, à sua direita, é o condutor da segunda

Naquele tempo também sofri do medo real e em antecipação ao que poderia acontecer quando ia em colunas mas por outro lado pernoitei em sítios onde só alguma inconsciência da minha parte, permitiu ignorar o perigo. Conheci quem com medo dos ataques, só se deitava após as 11 horas da noite, pois era norma que se não nos atacavam até aquela hora, já não fariam com medo de serem apanhados pela madrugada na retirada.

Fez no dia 1 de Dezembro anos que fomos atacados ao arame farpado. O sentinela na dúvida se eram cabras a pastar ou guerrilheiros, não quis disparar com medo de levar uma porrada do comandante. Valeu-nos outro camarada que pegou na G3 e despejou o carregador sobre os vultos.

Mas o medo também é motor da actividade humana. O medo de ficar para trás, o medo que pareça mal, o medo da solidão e da incompreensão, o medo da velhice quando afinal devíamos ter mais medo de não chegarmos a velhos.

Assim existem vários patamares para o medo. O medo é um sentimento que se revisita como nenhum outro, pois há quem tenha medo de ter medo.

“Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com a coragem”. Jean Paul Sarte

Um Feliz Natal em paz é o meu maior desejo para todos os camaradas

(*) - Livro de António Martins de Matos Voando Sobre Um Ninho de Strelas, capitulo 42
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19145: Blogoterapia (289): Aquele toque a finados é uma coisa que me arrepia... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

Guiné 61/74 - P19327: Notas de leitura (1134): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,

Oxalá o realizador guineense Flora Gomes encontre inspiração nesta bela narrativa para fazer um filme único sobre o homem do cinema que encheu os confins da Guiné com risos e lágrimas.

Manuel Joaquim teve vários requisitos que permitiriam um filme assombroso: as mudanças operadas na Guiné com as comunicações e depois com a guerra; a relação que manteve com a administração e os colonos no mato; o caçador e o comerciante; e aquela espantosa vida familiar, a família em Lisboa e ele a chegar ao aeroporto da Portela na época da chuva sempre em calção, para fúria da Julinha, e temos o meio familiar desse colono que ele julgava vigiar noite e dia, pura ilusão.
Que belíssima narrativa!

Um abraço do
Mário


Com o Manuel Joaquim, o cinema chegou a toda a Guiné (2)

Beja Santos

É possível questionar se a obra “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes, edição da Alfarroba, 2018, é um romance, um relato memorial ou uma investigação de caráter biográfico. Um homem dos sete ofícios, apaixonado pela mecânica, parte da Europa para Cabo Verde e daqui para a Guiné, já com família constituída. A narrativa de Lucinda Aranha Antunes começa num quase presente e num quase presente desagua, num tumulto de revelações e mágoas. É um texto intercultural, o crioulo está sempre presente, Manuel Joaquim e Julinha, a sua amada esposa, pontificam, com filharada, criadagem, amigos certos e desertores nas horas incertas.

Manuel Joaquim não era só o homem do cinema, desenrascava no setor público e no setor privado, a autora conta uma história bem curiosa:

“Certa vez, em 1964, a Central Elétrica de Gabu teve uma avaria que deixou a cidade às escuras por quinze dias. Em desespero, o secretário Barros e o administrador Faria Leite mandaram-no chamar.

Chegou, pela manhãzinha, mandou desmontar o motor, viu as avarias, reparou-as e supervisionou a montagem do motor. Pelas seis horas, já ao lusco-fusco, deu-se o milagre da luz. A criançada, em círculo, batia palmas, dançando e gritando a compasso, Manel Djoquim, Manel Djoquim. O Aguinaldo Évora, o encarregado da Central, dizia para quem o queria ouvir, é um mecânico de mão-cheia, o melhor de toda a Guiné. A ele recorria a própria Central Elétrica de Bissau para a produção de peças, porque não tinha grandes oficinas (…) Pelo trabalho de iluminar a Guiné não cobrava nada, mas em troca os governantes facilitavam-lhe a projeção dos filmes, publicitavam a sua chegada e, frequentemente, encarregavam-se mesmo de fazer vender os bilhetes”.

A sua chegada a qualquer local gerava uma atmosfera de euforia, fosse qual fosse o destino onde arribasse, tocava duas buzinadelas, o altifalante jorrava música. “Era único. A miudagem, de cabeça perdida, batia latas e entoava uma música que corria por toda a Guiné e que marcava o início do momento solene, a chegada do cinema:

A la Manel Djoquim i na bimA la Manel Djoquim cú seu cinema
Olalé, olelá.”

A administração tocava o tantã, o homem do cinema merecia todas as honras:

“Os administradores e os chefes de posto encarregavam-se de anunciar a vinda de Manuel Joaquim, os sipaios, alguns feitos homens-sanduíches, publicitavam o cinema em todas as localidades, os régulos também avisavam toda a gente, afixavam-se cartazes nas árvores. Caso a publicidade não chegasse, lá estavam os sipaios para ir buscar, forma simpática de dizer, os espectadores às tabancas”.

Manuel Joaquim era um moralista, escolhia nos catálogos segundo critérios cinematográficos rigorosos, nada de beijos prolongados, havia cuidados com a toilette, evitava a todo o transe excessos indecorosos.

“As escolhas recaíam em musicais, dramas românticos, comédias, filmes históricos, bíblicos, de capa e espada, de guerra, de aventuras, de terror (…) Eram êxitos garantidos os filmes do Charlot ou do Tarzan, cujo grito de guerra a criançada e até muitos adultos imitavam, e em que a Chita era uma mais-valia, as comédias portuguesas, o Cantinflas, o Totó, o Fernandel, o Jerry Lewis, com gargalhadas a esmo, o Joselito, que fazia sempre as senhoras verterem lágrimas copiosas”.

A narrativa de Lucinda Aranha Antunes multiplica-se em pormenores, em peripécias, assistimos às grandes alterações de Bissau, a luta armada, no início, parecia que não ia bulir com o homem do cinema, as dificuldades surgiram, em Lisboa, a família começa a aperceber-se por quem chegava dos imensos riscos, nas longas temporadas que passava na metrópole Manuel Joaquim levava a família a reboque para passeatas. Regressava à Guiné e a guerra passou a ser um assunto sempre presente nas andanças, a autora desvela o que mudava no território e na sociedade, a própria comunicação social dera muitas voltas, desenvolvera-se a rádio, Bissau tinha cinema na UDIB e no quartel-general. Manuel Joaquim meteu-se em negócios ruinosos, a saúde começou a faltar, começaram os tempos difíceis, os falsos amigos desertaram, um AVC derrubou o homem do cinema, é um rosário de intrigas, de desfeitas, de mudanças radicais.

É uma bonita homenagem que se presta ao homem do cinema da Guiné, mostrar um mapa da colónia e apercebermo-nos que ele percorria todo aquele território com filmes de todos os géneros, deu alegria e alimentou sonhos, jamais se repetiria tão espantosa experiência desse senhor que tinha a sua própria carripana, com atitudes de autossuficiência, mecânico exímio, caçador e negociante, guiava-se por um amor extremo à vida do mato, fugia ao aliciamento citadino e na época das chuvas desembarcava em Lisboa em calções, meia alta e sapato grosso, para desespero da Julinha, pouco dada a exibicionismos.

Lucinda Aranha Antunes dá-nos o contexto familiar em pinceladas sóbrias, onde não falta o colorido das observações em crioulo. E temos os cenários dessa Bissau que se desenvolve e prospera na economia da guerra, um Bissau velho pejado de coisas fartas, há muito dinheiro para as comprar. E também o desânimo desse colono com princípios que era prestável, ingénuo nos negócios e nas amizades, só se apercebeu de muito oportunismo de quem com ele se relacionava nos tempos difíceis, derrubado pela doença. Um percurso humano de alguém que desde criança adorava desmontar máquinas, se embevecia com o celuloide e encheu os matos da Guiné com horas de fantasia, entre a comédia e o drama. Uma belíssima narrativa que devia chegar rapidamente a Cabo Verde e à Guiné, tão poderoso é o texto intercultural e a mensagem inerente a este audaz homem do cinema.

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Notas do editor:

Poste anterior de 17 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19300: Notas de leitura (1132): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19313: Notas de leitura (1133): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19326: Parabéns a você (1547): Fernando Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Guiné, 1970/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P13921: Parabéns a você (1546): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Guiné, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS do STM/QG/CTIG (Guiné, 1968/70); Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira e José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679 (Guiné, 1970/71)