quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1279: Encontro com o IN: artigo sobre a viagem Porto-Bissau, publicado no boletim da A25A (A. Marques Lopes)

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Fotos: © A. Marques Lopes (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Cópia do artigo do nosso camarada A. Marques Lopes, sobre a viagem, de jipe, Porto-Bissau, no passado mês de Abril de 2006, publicado em O Referencial, nº 84, Julho-Setembro de 2006. Trata-se do boletim da Associação 25 de Abril, que tem como director Pedro Pezarat Correia. O artigo ocupa 2 páginas (a 6ª e a 7ª) e é ilustrado com várias fotografias.

O título do artigo é sugestivo: Encontro com o IN... O nosso camarada, que relata as peripécias da viagem por terra até à Guiné-Bissau (incluindo a apreensão de 200 kg de medicamentos, destinadas ao Hospital Nacional Simão Mendes, por parte das autoridades marroquinas, a pretexto de poderem ir parar às mãos da guerrilha da Frente Polisário do Sara Ocidental!...), não esconde a sua emoção ao ir à antiga base do PAIGC em Sinchã Jobel, e ao reencontrar o comandante Lúcio Soares, que 39 anos antes, no subsector de Geba, na Zona Leste, o tinha mandado 9 meses para o Hospital Militar Principal...

Trata-se de um resumo dos posts já aqui publicados no nosso blogue: vd. por exemplo, post de 16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXI: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes).

O nosso amigo e camarada A. Marques Lopes teve a gentileza de citar o editor do blogue que, na altura, escreveu o seguinte:

"Agradeço ao A. Marques Lopes e ao Xico Allen esta oportunidade, excepcional, de conhecer o rosto daqueles a quem chamávamos eufemisticamente o IN... Pois o IN tinha rosto, eram homens (e mulheres), de carne e osso, como nós, que combatiam pelas suas razões... Reencontrá-los, apanhá-los ainda vivos e lúcidos, pô-los a falar, ouvi-los, saber por onde andaram, reconstituir a sua estória de vida como guerrilheiros, sentir a pulsão das suas emoções, paixões, alegrias e medos, mexer com a sua memória, fazer as pazes come eles... é uma tarefa urgente e imprescindível para que a nossa missão, agora de paz, se cumpra definitivamente...

"Temos essa obrigação, a de dar voz (e imagem) a esses velhos guerrilheiros, caboverdianos e guineenses, que deram o melhor da sua vida e da juventude pela realização de um sonho, o sonho de Amílcar Cabral e de mais um punhado de homens e mulheres que queriam ser livres e donos da sua terra, e passar a falar connosco, em português, mas de iguais para iguais... O texto e as fotos que hoje inserimos marcam um momento muito simbólico da vida da nossa tertúlia... Perdõem-me o abuso do tempo de antena, mas eu, como editor do blogue, precisava de fazer esta pequena chamada de atenção. Obrigado Marques Lopes, Xico Allen, Lúcio Soares, Braima Dakar e irmãos Nabo" (....).

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)


Lisboa-Guiné > A bordo do T/T Niassa. Maio de 1968. Grupo de oficiais que viajaram com o A. Marques Lopes (o segundo a contar da direita, de óculos escuros e papéis debaixo do braço) , e entre eles o Almodôvar (o quarto a partir da direita), amigo do Torcato Mendonça e do Paulo Raposo. O Marques Lopes regressava do Hospital Militar Principal, em Lisboa. Depois de ter estado, em Geba, em 1967, na CART 1690, onde foi ferido, acabou o resto da sua comissão em Barro, na CCAÇ 3.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


1. Mensagem do Torcato Mendonça ao A. Marques Lopes, em resposta ao post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes):

Porque respondo hoje? Não é por ter chegado à Guiné em Janeiro de 1968 - no Ana Mafalda- , nem por ter passado pouco tempo em Bissau. É porque falas no Almodôvar. Ora se o Almodôvar era um Alferes, baixo, gorducho, sorriso fácil e bom jogador de poker, então é ele. Mas o tipo esteve no mato. Levou uma porrada. Se bem me lembro.

Claro que pode ter ficado esquecido em Bissau. Se é quem eu penso, sinteticamente digo: estudámos (6º e 7º) no Liceu de Beja, tirámos a especialidade juntos, estivemos no RAL 3 em Évora, em Lamego no CIOE e lá trocámos – com dois camaradas – e viemos formar Companhia para Évora, eles para Penafiel (?). Só que ele teve um problema num pé. Nós viemos para a Guiné, ele deve ter ficado na Estrela (Hospital Militar Prinicpal). Foi para a Guiné em rendição individual, um dia encontramo-nos lá. Já lá vão muitos anos…! É bom rapaz.

2. Resposta do A. Marques Lopes:

Respondi-lhe que o Almodôvar que eu conheci tinha, de facto, as características pessoais que ele refere. E admiti que posso ter sido mal informado sobre o destino que ele teve na Guiné, desejando, até, que o Torcato me facilitasse um contacto com ele para esclarecer a questão. E transmito-vos isto para que considerem também que me posso ter enganado, ou ter tido informações incorrectas.

A. Marques Lopes

3. Nova mensagem do A. Marques Lopes, enviada a toda a tertúlia:

Caros camaradas:

Enviei esta fotografia (ver acima) ao nosso amigo Torcato Mendonça e esta mensagem:

"Descobri esta fotografia, onde estão os oficiais que desembarcaram comigo em Bissau em Maio de 1968. Diz-me lá se algum destes é o Almodôvar que tu conheces. Eu sou o segundo a contar da direita (com papéis de baixo do braço). Estou muito interessado, pois não quero levantar falsos testemunhos sobre o Almodovar."

E a resposta dele foi a que deixo abaixo. Fiquei mais sossegado. E quero transmiti-lo a vós todos. E, já agora, vejam se conhecem alguém dessa fotografia. Abraços

4. Resposta, por fim, do Torcato Mendonça:

"É o 4º a partir da direita. Mais magro, o sorriso brincalhão e o olhar gozão.Não estás a levantar qualquer falso testemunho ou erróneo juízo de valor. Calma. Ele é bom rapaz. Quem o não é? Eu, tu, ele… tivemos azar, chutaram-nos para a Guiné. Não te preocupes. Obrigado pelas fotos.

Sabes, eu nunca mais volto à Guiné. Por várias razões. Talvez um dia escreva sobre isso. Respeito quem lá foi ou quer ir. Tudo bem e devemos fazer, tanto quanto possível, o que gostamos.

Meu caro amigo um abraço do

Torcato Mendonça

Guiné 63/74 - P1277: CCAÇ 5 (Gatos Pretos), Canjadude: os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são (Daniel Bizarro / José Martins)


Guiné > Zona Leste > Região do Gabu (Nova Lamego) > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Bandeira.

Foto: © João Carvalho (2006). Direitos reservados.


1. Daniel Bizarro escreveu a seguinte mensagem ao José Martins:

Eu sou Daniel Pessoa da Silva Bizarro, filho de António da Silva Bizarro que foi Furriel Miliciano em Canjadude e que faleceu há 22 anos em São João do Campo, Coimbra.

Tenho agora 30 anos e desde sempre quis saber mais sobre o meu pai por isso lhes envio esta mensagem. Tenho muitas fotos a preto e branco de Canjadude e Bissau que passarei pelo scanner se as quiserem.

Espero não estar enganado em relação a vós (se serviram na mesma altura que o meu pai, etc.) pedindo desde já as minhas sinceras desculpas, se for o caso. Não vos incomodarei mais. Obrigado pela atenção.

Daniel Pessoa da Silva Bizarro


2. Resposta do José Martins:

Neste momento posso mandar-te o que sei sobre o teu pai, já que estou a recolher elementos sobre a Companhia de Caçadores nº 5, à qual o teu pai pertenceu, entre mais de duzentos metropolitanos e muitos mais, ainda, africanos:

António da Silva Bizarro > Furriel Miliciano Atirador, número mecanográfico 12660871.

Foi aumentado ao efectivo da Companhia em 8 de Julho de 1972, assumindo as funções de Comandante de Secção.

Foi abatido ao efectivo da Unidade em Janeiro de 1973 por ter sido transferido para Bolama.



Há alguns textos no nosso blogue sobre a Companhia, escritos por mim e pelo Furriel Enfermeiro João Carvalho (1).

Um abraço e dispõe. Os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são.

José Martins
(Ex-Furriel Miliciano Transmissões,
CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70)

PS - Algumas das fotos do álbum fotográfico do teu pai poderão ter interesse (documental) para todos nós: podes mandá-las digitalizadas, em formato.jpg, para mim.
_____________

Nota de L.G.:

(1) Vd., entre outros posts, os seguintes:


4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P839: O valente Sargento Enfermeiro Cipriano, da CCAÇ 5, morto em Nova Lamego (José Martins)

12 de Maio de 20067 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

7 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXX: CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos de Canjadude (José Martins)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)

1 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCV: A história do Cancioneiro de Canjadude (José Martins)
28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

24 de Outubro de 2005 > Guiné 63/64 - CCLVII: A contabilidade dos mortos na operação de retirada de Madina do Boé (José Martins)

Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

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Capa do livro de Anatole France - Os Deuses tém sede. Lisboa: Portugália Editora. s7d. (Contemporânea,38). Tr. do fr [1912]. Capa de João da Câmara Leme.


Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Texto enviado em 20 de Outubro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Meu caro Luís, obrigado pelas tuas ilustrações. Para a semana, suspendo os trabalhos para fazer consultas aos meus ex-soldados e a partir de quinta estarei em Roma. Tenho lacunas na minha documentação entre Novembro e Dezembro. 1969 já não trará dificuldades, pois passarei o ano a ferro e fogo, a defender a minha honra, a refazer Missirá, a ir e voltar a Mato de Cão até que finalmente partirei para Bambadinca, como alferes de todo o serviço.

Fizeste bem em convocar o Abel Rodrigues (2). Conservo por ele uma amizade muito especial. Ele era e é reservado, é um daqueles transmontanos incapaz de passar para a face o que lhe vai na alma. Vivemos na mesma camarata com o nosso homem de Matosinhos. Se houver espaço para algumas reminiscências desses tempos, e sem prejuízo do que me competirá escrever ao longo de 70, agradeço que me informes. Vou mandar pelo correio Os Deuses têm Sede, de Anatole France, edição da época. Abraços do Mário.

Há o ir e o foguear, há o voltar e o cuidar
por Beja Santos

O mês de Outubro de 1968, tal como eu guardo nas minhas memórias, goza de versatilidade e ficou composto de múltiplas mudanças. Por exemplo, naquela noite em que o tempo estava borrascoso, o céu encoberto e pouco convidativo para vigiar os postos de sentinela entre a 1 e as 3 da manhã. Mas eu lá fui, conversei com Saco Embaló, Cibo Indjai, Mamadu Djau, o enfermeiro Adão e, quando cheguei ao posto de vigia sito junto dos depósitos dos combustíveis (separados por 20 metros, não viesse por aí uma granada incendiária produzindo fogueira gigantesca e perda absoluta de gasóleo e petróleo) , encontrei Sadjo Baldé num bom dormitar. Abordei-o falando de trivialidades, o olhar estava fixo e a postura indicava um sono bem ferrado.

Estamos a falar do mesmo Sadjo que vai casar dentro de dias no Cossé e ficar desfeito em 19 de Março de 69 (3). Grito-lhe colérico e Sadjo empina-se do banco de madeira como se tivesse havido uma descarga de 1000 vóltios. Segue-me até ao abrigo e dou comigo a olhar para um Sadjo irreconhecível pois os seus 50 e tal quilos parece que duplicaram, está inchado por infecções, tem as bochechas e o estômago contaminados, explica-me que o Dr. de Bambadinca lhe deu uma mezinha que o põe permanentemente zonzo. Tira do bolso a mezinha, é o mesmo Fenergan que me faz vergar, pairar entre o céu e a terra. Ele suplica que não o castigue, mais do que a prisão o que ele teme é não partir para férias. Faço a proposta de tudo ficar entre nós:
-Sadjo, o que fizeste é crime, toda esta gente dorme a confiar na tua vigilância. Até partires, tu vais descansar e tratar a doença. Quando voltares de férias, dirás aos furriéis que farás um mês de vigilância diária. Concordas?

Sadjo que era muito elegante nas suas maneiras, extremamente correcto no trato, procurou abraçar-me as pernas, gesto que ao princípio me deixava paralisado e que tomava como uma pura e dura lembrança colonial (como entrar na minha morança e descalçar-se, beijar-me a mão direita ou levá-lo à sua testa...), abracei-o e a noite prosseguiu sossegada.

Como estamos a falar de versatilidade, chegou uma mensagem a exigir que levasse de manhã o régulo Malã, de Nhabijão Mandinga, pois tinha morrido o seu filho mais novo. Ao amanhecer, peço a Umaru Baldé que prepare torradas com manteiga e doce e chá de cidreira e que peça ao régulo para vir conversar comigo com urgência. Ele chega ataviado na sua bela sabadora e com chapéu colonial. Sentámo-nos na messe, Umaru servia polidamente chá e torradas.
Recorri à velha habilidade de lhe fazer perguntas sobre as guerras entre Infali e Teixeira Pinto, falámos do Rio Gambiel e das suas palmeiras de Samatra, disse-lhe que precisávamos de ir a Bambadinca, a conversa ia deslizando sem porto à vista, e Malã com os olhos bem cravados em mim e nos ziguezagues desta comunicação sem rei nem roque.
-A que propósito é que me quer levar a Bambadinca agora que tenho de tratar da bolanha de Caranquecunda com a minha família e os Mané?

Sorvi o ar num longo hausto, desci a voz ao tom piano e dei-lhe a notícia do falecimento do seu filho mais novo, tanto quanto me recordo teria dois meses, segundo a mensagem recebida.
-Não tenho nenhum filho pequeno, os meus filhos estão em Missirá.

Eu não sabia o que havia de dizer mais, invoquei que certamente Bambadinca sopesara e avaliara quem trouxera a informação. O régulo continuou a tomar chá, o silêncio adensou-se até que ele se levantou atingido por uma recordação súbita:
-Ah, é verdade, comprei uma mulher há um ano e ela pariu. Pode ser que seja assim. Vamos.

E fomos mesmo, e Malã ficou em Bambadinca para o choro. Eu aproveitei para passar pela messe e trazer os últimos despojos esquecidos, móveis oferecidos pelo velho batalhão. Aproveitei para comunicar aos recém-chegados que tinha direitos de saque especiais, preço do isolamento:
-Ficam a saber que levo jornais desportivos para a minha malta, levo a Flama e o Século Ilustrado e depois devolvo.

Nasceu o terror da minha entrada na messe, tudo se escondia quando me sabiam em Bambadinca... fiz sempre o possível para que tal terror não fosse excessivo nem perdulário. Depois dos incêndios de Março [de 1969], quando chegámos praticamente nus a Bambadinca, aceitei o pacto de sairmos vestidos e eu pactuei negociando só levar um jornal de cada vez.
Nesse dia, entre os despojos da tropa [, do BCAÇ 1904,] que partira para Brá, aceitei trazer um papagaio de um capitão que se apaixonar por pássaros tropicais. Em Finete pedi ao Mazaqueu para tratar dele e entreguei-lhe dinheiro para comprar sementes. O papagaio chamava-se Pompílio, foi um ingrato, nunca quis comunicar comigo.

Chegou a altura de vos falar na Operação Meia Onça. Consta dos relatórios que tomaram parte as CART 1746, CART 2339, nós e o Pel Caç Nat 53, um grupo de combate da CCAÇ 2401 e uma Pelotão de Artilharia. Estava em Finete, em 12 de Outubro, quando chegou o Almeida que comandava o Pel Caç Nat 63. Comecei por barafustar:
-Almeida, estou farto de pedir para que quando vocês vêm fazer vigilância a Mato de Cão nos informem do dia e da hora. Pode muito bem acontecer que nos encontremos numa picada qualquer e quero saber quem vai responder pela mortandade deste triste incidente.

O Almeida respondeu descontraído:
- Pá, eu não vou nada para Mato de Cão, eu vou para Missirá e tu vais para o Burontoni.

Assim era, embora eu nada soubesse. Partimos para Missirá, alojei o pelotão do Almeida depois de lhe apresentar os meios de defesa, preparei 35 homens e nessa tarde apresentei-me em Bambadinca, tendo imediato pedido uma entrevista ao novo Major de operações, de nome Viriato Pires da Silva. Era um oficial extrovertido e com vozeirão:
-Ah, quer saber o que vai fazer ao Burontoni, não é? Não se preocupe que daqui a um bocado vou fazer a apresentação da operação, espere um pouco -. Respondi-lhe:
-Não, meu Major, antes do Burontoni vamos falar das idas a Mato de Cão. Eu e as milícias vamos lá praticamente todos os dias. Faz sentido, eu trabalho no Cuor. Se tenho outra missão fora do Cuor, eu devo saber quem vem, em que dia e a que horas. Entre Finete e Missirá, qualquer encontro é motivo de tiroteio. Em Finete não há rádio, se eu andar a patrulhar, poderá ocorrer uma calamidade. Proponho que ninguém entre no Cuor sem sua autorização e sem me dar conhecimento. Imagine que eu hoje estava acima de Mato de Cão e de repente me encontrava com a tropa do Almeida?

Diga-se em abono da verdade, que nunca mais houve deslocações aleatórias e espontâneas. Foi um bem para todos nós.

Por volta das 6 e meia da tarde, teve lugar a apresentação da operação. Recordo que o Burontoni foi apresentado como um santuário quase inexpugnável, dotado do melhor armamento, bem posicionado dentro de uma floresta, o Baio, entre vários rios. Sei que ia dentro do destacamento A, seis pelotões, parámos em Amedalai, e em Taibatá partimos a corta-mato acompanhados por dois guias.

Primeira surpresa: os guias informaram que não sabiam entrar na mata à noite, estavam desorientados. Irrompeu entretanto uma chuva torrencial, lá fomos a passo de caracol, de madrugada fez-se um alto para repouso e ao amanhecer continuámos a progressão. Talvez aí pelas 9 horas chegámos perto de um rio, o nosso guia disse que não podíamos passar não só porque o rio era profundo como tínhamos em frente uma ampla bolanha, havia que a flanquear dentro da mata. É precisamente quando estamos a entrar na mata do Baio que toda a floresta é sacudida de explosões. Parecia que uma aviação invisível lançava tapetes de bombas a 10 Km de distância. Pela rádio procurámos saber o que se passava e pouco depois a notícia chegou, estarrecedora: Mansambo estava a ser severamente flagelada. Ora toda a companhia de Mansambo estava nesta operação, o aquartelamento ficara entregue a milícias e à população civil. O estado de espírito da tropa era de cortar à faca. Do comando, por via aérea, chegou a ordem de retirar para Taibatá, o que veio a acontecer, e lá fomos a patinar na lama e depois regressámos a Bambadinca.

Ainda hoje me interrogo sobre a forma como se preparou esta ida ao Burontoni, independentemente do triste acaso da flagelação a Mansambo, que marcou a corrente do jogo. Voltámos a Missirá, reacendeu-se o meu entusiasmo pelas obras, pelas aulas, pelas emboscadas nocturnas, eu estava cada vez mais disponível para ouvir as histórias dos Soncó, as suas origens, as suas lutas e alianças, o derrube da vida do regulado após a luta armada.

Episódios empolgantes estão para vir. O saudoso Pimbas [, o tenente-coronel Pimentel Bastos, cmdt do novo batalhão, BCAÇ 2852,] vem visitar dentro de dias o regulado. Vou descrever os preparativos para a pompa e circunstância. O Teixeira com os pés embrulhados em ligaduras vai refazer o plinto destruído à morteirada na curta flagelação de 26 de Setembro. Os metais vão ser brunidos, as fardas vão ser desencardidas, as botas engraxadas, Missirá e Finete serão engalanadas com os nossos parcos recursos.
Mas não menos importante que esta efeméride, lá para os fins de Novembro deu-me para uma odisseia: saímos de Missirá pela velha estrada que liga Enxalé a Porto Gol, vamos com duas viaturas a resfolegar mas cheias de vida, e aquela estrada que estava fechada desde 1964, juncada de viaturas retorcidas e casas arruinadas, vai ter visitantes deslumbrados. Foi um acto temerário, premiado com galinha frita em Enxalé. A gente de Madina/Belel [, base do PAIGC,]não gostou, nem sei mesmo se pensaram que a estrada estava a ser revitalizada, e flagelaram Missirá e Finete.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Posições das NT e da guerrilha (1969/71)
Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971

Infografia: © Luís Graça. Direitos reservados


Quero igualmente informar que só agora dei conta que ainda não vos falei da minha música, do meu Vivaldi e do meu Mahler. Se queremos ir ao fundo das coisas, aqueles sons musicais que atordoam em Missirá, têm que ser aqui convocados.

Ando cheio de entusiasmo com uma obra prima que estou a reler: Os Deuses Têm Sede, por Anatole France. Há quem o destaque entre os dez mais belos romances da literatura francesa de todos os tempos. Aborda a trágica grandeza e servidão dos homens que constróem história e por ela são devorados, tal como acontece em todos os países revolucionários.
A acção decorre no período da revolução francesa, no curto espaço que medeia entre o julgamento, o triunfo e depois o assassinato de Marat, a república democrática do Ano II e o 9 de Termidor quando Robespierre é guilhotinado. Emprestei este livro de Anatole France a muitos amigos depois do 25 de Abril, para verem que, para além das nossa originalidades, as revoluções somam e seguem..
O anti-herói deste romance é Evaristo Gamelin, um pintor imbuído pelos ideais revolucionários. Vamos assistir à escalada do terror e acompanhar a lógica fria deste revolucionário que aceita a sua imolação para que a república prossiga livre. Antes da sua execução, à volta do 9 de Termidor ele diz à sua noiva, Elódia:
-Não me censuro em nada. O que fiz, tornaria a fazê-lo por causa da pátria, excomunguei-me, sou amaldiçoado. Pus-me fora da humanidade, não reentrarei nela nunca mais. Mas a tarefa ingente ainda não terminou. Ah, a clemência, o perdão... Os traidores perdoam? Os conspiradores são clementes? Os parricidas crescem em número sem cessar... Imolamo-los, e logo os vemos em maior quantidade. Compreendes agora que deva renunciar ao amor, à alegria, ao encanto da vida, à própria existência.
Que grande tirada para justificar crimes monstruosos com a consciência serena do dever cumprido.

Hoje não vos falo do que ando a poetar, que não tem préstimo mas é sinal do tempo. O que vem aí é o entusiasmo da visita do comandante do batalhão. Ele vai ouvir, bem jantado, e na companhia do David Payne Pereira [, o oficial miliciano médico,] a versão integral da ópera Aída, com um elenco estrondoso, com um volume de som elevadíssimo para se sentir a magnificência da Marcha Triunfal e a despedida dilacerante de Radamés e Aída no fundo da cripta. Não resisto a contar.
____________
Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 6 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1252: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (19): O Soldadinho de Fogo em Missirá
(2) Vd. post de 13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1171: Abel Rodrigues, o primeiro ex-oficial miliciano da CCAÇ 12 a entrar para a nossa tertúlia
(3) Vd. post de 19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1191: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (17): A visita a Missirá do Coronel Martiniano
(...) "Regressamos a Missirá e tenho uma pequena encrenca à minha espera. Ao armar as coisas na minha casa, Sadjo Baldé entrega-me uma folha e afasta-se rapidamente enquanto eu leio o seguinte:
"- Agradecia o obséquio por amor de tudo o que é mais sagrado neste mundo e especialmente sua Excelentíssima esposa. O pedido é o seguinte: como o meu Alferes disse que tenho de ir gozar licença, gostaria que lembrasse aos meus colegas que me devem dinheiro desde o ano passado, e que até agora não pagaram, que eu não posso ir gozar licença sem levar dinheiro para os meus assuntos particulares que tenho que realizar na minha terra. Peço para fazer um desconto de 900 escudos ao soldado Mamadu Camará. Desde já, meu senhor, fico muito grato pela sua costumada atenção para comigo e obrigado" (...).

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1275: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (4): tropa-macaca, com três cruzes de guerra

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Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > Pel Caç Nat 53 (1970/72) > Antiga estrada do Saltinho-Aldeia Formosa(Quebo)

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Texto (1) do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72), enviado em 24 de Outubro de 2006 .

Aproxima-se o Natal de 70, já sei o nome de todos os meus camaradas do [Pel Caç Nat] 53, sinto mais tristeza e angústia nas cartas dos meus pais.

Em 23 de Dezembro, o Caco passa pelo Saltinho e pelos destacamentos da [CCAÇ] 2701, desejando Bom Natal.

Passei a época com uma grande neura e muitos uísques, sentia muita falta dos meus familiares. Soube que o meu lugar à mesa, na casa paterna, na noite de Consoada foi ocupado por um pobre homem abandonado pela família.

Nos últimos dias do ano fiz uma operação com dois grupos de combate de uma companhia independente de Aldeia Formosa, penso que formada por madeirenses. Viaturas do Saltinho foram buscar os grupos de Aldeia à cambança de Ura Candi ao fim da tarde, tendo jantado e pernoitado connosco. De madrugada arrancámos para a operação.

O Alferes mais antigo de Aldeia Formosa mostrou-se muito admirado com o fardamento de saída para operações do 53: havia bonés e gorros de várias cores, fardas nº 3 e camuflados. Antes que fizesse mais críticas disse-lhe que, no meio daquela mistura de uniformes, havia três Cruzes de Guerra.

Seguimos a pé até à tabanca abandonada de Contabane, cortando à esquerda em direcção a Madina do Boé, pela picada, agora transformada num estreito trilho.Verificou-se que este tinha sido utilizado recentemente e redobraram-se os cuidados.

Ao fim de umas duas horas, após Contabane, encontrou-se outra pequena tabanca abandonada, já no limite [da Zona de Acção] do batalhão de Aldeia Formosa, onde fizemos um pequeno alto.

Continuavam a aparecer vestígios de passagem recente de pessoas.Como o objectivo era ir até esta última tabanca, retrocedemos para Contabane, seguindo o Pel Caç Nat 53
para o Saltinho e os outros dois grupos de combate para Aldeia Formosa pela antiga estrada. Esta companhia de madeirenses(?) foi substituída pela CCAÇ 18, comandada pelo meu amigo Rui Ferreira.

Entretanto ía lendo uns livros que comprara em 11 de Setembro de 1970, sendo um deles Na Tua Morte, de João Palma Ferreira (2) do qual transcrevo:

"Os accionistas gostam, é humano, dizem. Sugere-se que o empregado aperte o parafuso com a mão direita, pinte com o pé esquerdo, desaperte o parafuso com a mão esquerda, raspe com o pé direito, dite uma carta com a boca e no cu talvez possa ter uma ventoínha para refrescar o ambiente". Ainda está actual.

Por vezes em patrulhamentos levava um livrito policial para ler nos altos para descanso.



Paulo Santiago

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

12 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1168: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (1): Periquito gozado

13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1170: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (2) : nhac nhac nhac nhac ou um teste de liderança

19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1192: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (3): De prevenção por causa da invasão de Conacri

(2) João Palma Ferreira (1931-1989): vd. nota biobibliográfica publicada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB). O livro Na Tua Morte foi publicado em 1970.

Guiné 63/74 - P1274: Conheci o Alf Rainha na cambança do Rio Corubal, entre Salltinho e Aldeia Formosa (Paulo Santiago)

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Guiné > Canoas utilizadas para cambar o Rio Corubal entre o Saltinho e Aldeia Formosa (Quebo)

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Mensagem do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72)

Luís

Após o meu comentário de 11 de Novembro último [post P1269] , lembrei-me do meu primeiro encontro com o Alf Mil Rainha. Como disse no meu P986 (1), ele tinha uma saúde frágil. Quando em fins de Março de 72 cheguei ao Saltinho, vindo de seis meses de Bambadinca, o Rainha estava para Bissau. Tinha ido a uma consulta externa.

Passados dois dias no Saltinho, chegou uma mensagem a Aldeia Formosa, informando que o Rainha tinha vindo no Nord-Atlas para aquele aquartelamento, sendo necessário a malta do Saltinho ir buscá-lo à cambança.

Estava com curiosidade de conhecer este Alferes. Pedi a Susuki Wolf ao meu amigo Abdu, chefe de tabanca do Saltinho, e arranquei em direcção a Ura Candi, tabanca à beira da estrada para o Xitole, cortando ali para a picada que conduzia ao Corubal. Quando cheguei à cambança já lá se encontravam o Rainha e alguns militares de Aldeia. Cumprimentámo-nos e ele comentou:
-Os tipos da [CCAÇ ] 2701 já me tinham dito que eras meio doido e apanhado,mas nunca pensei que aparecesses aqui,sózinho e de moto.

Passados uns dez minutos chegaram as viaturas do Saltinho, onde preferiu ir. A cambança ficava em zona amarela (duplo controle) e, meses atrás a FA [Força Aérea] tinha metralhado por engano umas canoas onde vinham civis e militares, felizmente sem consequências muito graves. Hei-de contar.

Era um bom camarada, o Rainha. Não o imaginava a ter um fim tão trágico (2). Lamento Sinceramente.

Paulo Santiago
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

(2) 10 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1265: Recordações do ex-Alf Rainha (Xaneco, para os amigos), da CCAÇ 3490 (Saltinho), morto há 20 anos (Maurício Vieira, CCS/3884)

Guiné 63/74 - P1273: Postais Ilustrados (11): Um típico e colorido mercado onde as mulheres é quem mais ordenam (Beja Santos)

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Guiné Portuguesa > Postal Ilustrado (1) > Legenda > 14. Mercado da Guiné. Impresso em Portugal. Lisboa. Edição Foto Iris. Bissau.
Postal ilustrado enviado, por avião, pelo Alf Mário Beja Santos (1) a uma pessoa amiga... Data e local: Missirá, 12 de Julho [de 1969]. Carimbo do correio de Bissau: Ilegível. Valor dos selos: 1$50 pesos.
No postal, Beja Santos escreve, entre outras coisas: (...) "Esperamos que possa ir este ano ainda a Lisboa. Mesmo com os grandes interesses que regem as minhas actividades humanas, preciso de matar saudades da Cristina e dos meus" (...).

__________

Nota de L.G.:


(1) Vd. post de 10 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1264: Postais Ilustrados (10): Bissau, melhor do que diz o fotógrafo (Beja Santos / Mário Dias)

domingo, 12 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1272: Álbum de fotografias do José Couto (CCS/BCAÇ 2893) (2): Com saudades de Cacheu para o Joaquim Ascensão

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Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > 14 de Fevereiro de 2005 > Imagens da cidade de Cacheu e do forte quinhentista, recentemente restaurado e reabilitado. O forte, na margem sul do rio Cacheu, no século XVI, dava protecção a uma das mais importantes feitorias no Noroeste da Guiné.. . Álbum fotográfico do José Couto (ex-furriel milicano de transmissões, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego) (1).

Fotos: © José Couto / Tino Neves (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Mensagem, com data de 27 de Outubro de 2006, enviada por Joaquim Ascensão:
 
Fui furriel miliciano nº 07539370. Estive na Guiné desde 22 de Setembro de 1971 até 15 de Dezembro de 1973. Para além do tempo dispendido no IAO, estive sempre em Cacheu, cerca de 25 meses.

Que saudades tenho dessa terra! Tantas boas e más recordações tenho de Cacheu.
A minha companhia participou na segurança à construção da estrada para Teixeira Pinto até à região de Capô. Como diria Camões, foi construida para além da força humana.

Quem me pode falar de Cacheu? Há condições para que se possa visitar? Não abro a caixa de recordações já lá vão muitos anos. Vou tentar enviar algumas fotografias.

Um abraço
Joaquim Ascenção


2. Comentário de L.G.: 

Olha, amigo e camarada, tens aqui umas fotos do José Couto para matar saudades de Cacheu, a região da Guiné mais antiga, em termos de conhecimento e experiência dos portugueses. Nunca andei por lá. Mas os nossos avoengos conheciam-na há mais de 500 anos. Sobre a questão que pões - a segurança -, espero que te mandem algumas dicas, aqueles de nós que por lá andaramn mais recentemente ou que que têm informações mais actualizadas do que eu. Diz-nos qual era a tua unidade e, já agora, fala-nos das tuas recordações, boas e más, de Cacheu. 
Um abraço.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1254: Álbum de fotografias do José Couto (CCS/BCAÇ 2893) (1): Quinhamel

Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

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Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > Niassa > "O barco está de partida" (1)

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A bordo do T/T Niassa > O Alf Mil Mexia Alves, a caminho da Guiné...

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T/T Niassa > Joaquim Mexia Alvs: "Lembro-me de ter ido jantar um dia com os soldados do meu pelotão, e ter ficado impressionado e chocado com as condições de transporte daqueles homens"...


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Guiné > Dezembro de 1971 > No fundo de uma LDG a caminho de Bolama

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Guiné > Dezembro de 1971 > Aspecto parcial da LDG, a caminho de Bolama
Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados. Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. A viagem, de barco, para a Guiné, será para todos os efeitos o cruzeiro das nossas vidas... As imagens da partida do Cais da Rocha Conde de Óbidos, num dos barcos da nossa marinha mercante, fretados pelo Exércitio - Niassa, Uíge, Alfredo da Silva, Ana Mafalda, etc. - não mais nos largaram ao longo da vida... Hoje é altura de recordarmos essa viagem que, para alguns dos nossos camaradas, foi sem regresso... Já aqui se publicaram alguns textos interessantes sobre esses cruzeiros que nos levavam directamente de Lisboa para Bissau... Vamos recuperá-los e esperar que outros camaradas nos enviem relatos inéditos... Alguns de nós ficaram a ver Bissau por um canudo: foi o caso por exemplo do J. Mexia Alves cujo batalhão (o BART 3873) foi directamente recambiado, em LDG, para Bolama, depois de passar o Natal a bordo do Niassa... O nosso camarada Mexia Alves vai ter o privilégio do ponto de saída desta nova série...

1. Texto do Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 passou por três unidades no TO da Guiné: pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ). A CART 3492 pertencia ao BART 3873
Caro Luis Graça:

Mais um relato da tropa!!!

Título: O humor do Estado Português ou a sua preocupação com o bem estar dos seus militares.

O titulo, que podes mudar à vontade, pode parecer estranho, mas a verdade é que só levando a coisa para o gozo é que podemos recordar certos acontecimentos da nossa vida militar.

Ao que julgamos saber, eu e mais todos os que me acompanharam na viagem do Niassa para a Guiné, foi a preocupação do Estado Português em nos proporcionar um Natal diferente e mais familiar, que nos fez embarcar no célebre Paquete de Luxo Niassa, no dia 21 de Dezembro de 1971, por forma a podermos celebrar, com a grande família militar, as festas natalícias desse ano, na certeza de que muito apreciaríamos esse gesto de carinho e interesse pelo nosso bem estar.

Claro, a maior parte de nós, há mais de 19/20 anos que passavámos o Natal com a família e, por isso, sabendo que estavamos enfadados com a rotina, decidiram dar-nos assim umas Festas diferentes.

Ao que me lembro, o Niassa transportava dois Batalhões (o de Bambadinca e o de Galomaro) e uma ou duas Companhias Independentes, o que já era uma população muito considerável para tão frágil navio.

Lembro-me de ter ido jantar um dia com os soldados do meu pelotão, e ter ficado impressionado e chocado com as condições de transporte daqueles homens.

No chamado bar de Oficiais havia uma banda de música, composta se não me engano por três indivíduos de idade avançada, pelo menos para mim, o que tornava o ambiente ainda mais surreal.

A mesa de pingue-pongue na varanda (não sei o termo náutico, tombadilho?), junto ao bar deixou rapidamente de ter clientes porque, julgo eu, devem ter acabado as bolas no Atlântico ao sabor das ondas.

Lembro-me ainda da excitação do pessoal quando se avistaram peixes voadores, porque tirando a experiência dos mais viajados, para a maior parte era algo que apenas pertencia aos livros de Zoologia.

Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, registado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979; com : mais de 151 metros de comprimento, tinha arqueação bruta de c. 10.700 toneladas, uma potência de 6.800 cavalos e uma velocidade normal de 16,2 nós. Dispunha dos seguintes alojamentos: 22 em primeira classe, e 300 em classe turística, num total de 322 passageiros. (Quando transportavam tropas, a sua lotação quadruplicava...). O nº de tripulantes era de 132. Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa . (LG)
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2004) (com a devida vénia...)


O calor, quando entrámos no Golfo da Guiné, era insuportável, e somado ao barulho constante das máquinas do navio e ao cheiro a vomitado que tomava conta dos corredores, tornou o Natal a bordo algo de inesquecível, dando razão àqueles que, preocupados com o nosso bem estar, nos fizeram embarcar naquela data para a Guiné.

Chegados ao largo de Bissau, descemos directamente para as LDG, que nos transportaram para a ilha de Bolama, (pelo menos o meu Batalhão), onde fomos recebidos com cânticos do folclore autóctone, nomeadamente, a por demais conhecida canção Periquito vai no Mato.

Ficámos em Bolama cerca de um mês, mas isso é estória para depois.

Junto fotografias que documentam o acontecido das quais poderás escolher o que interessar.

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1141: As (des)andanças do TT Niassa em Dezembro de 1971 (Lema Santos)

sábado, 11 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1270: Foto de Bafatá: flor de mancarra, não, mas de gergelim (Mário Dias)

Caro Luis:

Acabo de ver uma fotografia no post P1265 (1) em que se encontra o Maurício Vieira no meio de uma bela plantação de gergelim. É uma oleaginosa que, me recordo, estava a ser introduzida experimentalmente na região de Bafatá-Gabú.

Não se trata de mancarra, que é uma planta rasteira, com flores amareladas ou brancas. À primeira vista a planta da mancarra até se confunde com a do tremoço.

Talvez um dos nossos amigos, Pepito ou Estácio, nos possa elucidar melhor.

Um abraço
Mário Dias


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Guiné > Zona Leste > Bafatá > CCS do BCAÇ 3884 (1972/74) > O Mauríco Vieira nos arredores de uma tabanca de Bafatá, no meio de um campo de gergelim (e não de mancarra). (LG)
Foto: © Maurício Vieira(2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Comentário de L.G.:

Segundo o dicionário, gergelim (do Árabe, jurgulan) é um s. m., Bot.> Planta oleaginosa da família das Pedaliáceas; semente dessa planta; também significa bolo feito com semente da mesma planta. A nossa cultura geral vai aumentando... 

Guiné 63/74 - P1269: Sentida homenagem ao ex-Alferes Rainha, da CCAÇ 3490 (Paulo Santiago)

Mensagem do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72)

Luís:

Não estava à espera de uma tal notícia: o assassinato do Rainha (1),que conheci no Saltinho: vê post P986 (2). Despedi-me dele no Xitole. Ele regressava de uma consulta e eu vinha para Bissau com a comissão acabada.

Paulo

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1265: Recordações do ex-Alf Rainha (Xaneco, para os amigos), da CCAÇ 3490 (Saltinho), morto há 20 anos (Maurício Vieira, CCS/3884)

(2) Vd. post de 25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)


(...) O meu primeiro contacto com o capitão-proveta Lourenço deixou-me uma péssima impressão, mas não havia outra solução, caso o Pel Caç Nat 53 continuasse no Saltinho, senão aguentar, resistindo e discutindo, quando fosse necessário.

Quanto aos Alferes Milicianos, só me lembro do nome de três: o Armandino (2), o Rainha e o Garcia. O Armandino e eu, infelizmente, convivemos durante poucos dias. Era uma pessoa excepcional, com uma cultura acima da média, membro do Orfeão Académico de Coimbra, com o qual tinha ido à Expo de Osaca em 70, salvo erro.

Segundo me disse, ele representava a oposição ao Ganho (conhecido defensor do regime) dentro do Orfeão, daí a sua chamada prematura para a tropa.Tirara o curso de Operações Especiais em Lamego. Foi ele quem me convenceu a ficar no quartel, não indo de imediato para Contabane, onde tinha alguns homens, e de onde vinha uma viatura ao quartel buscar as refeições para o pessoal branco do 53, que lá se encontrava.

O Rainha era bom tipo, tinha uma saúde frágil, nunca deveria ter ido para o mato e muito menos para atirador. Mas influências da PIDE levaram-no, também prematuramente, às fileiras da tropa e àquela especialidade.

O Garcia era uma merda, queria apanhar uma hepatite para ser evacuado, então bebia
uma bazooka [garrafa de cerveja de 0,6 l], acompanhada por uma banana ao pequeno- almoço. Era um irresponsável, estava-se cagando para os soldados, estes por sua vez não lhe ligavam puto, a sorte era o grupo de combate ter bons Furriéis.

O Alf Armandino conseguiu desanuviar, em parte, a tensão inicial que nascera entre mim e o Lourenço. Eu tinha férias marcadas com início em 2 de Abril [de 1972]... A 30 de Março apanharia a avioneta no Xitole, e, assim faltavam meia dúzia de dias para largar o camuflado durante um mês. Já imaginava os copos que iria beber na aldeia, dia 3 de Abril, 2ª feira de Páscoa" (...)

Guiné 63/74 - P1268: Homenagem ao ex-1º Cabo Comando A. Mendes (Mário Roseira Dias, ex-sargento comando)

Mensagem do Mário Dias, aliás, ex-sargento comando Roseira Dias, um dos fundadores dos comandos na Guiné, e um dos participantes na Batalha do Como (1964)

Tenho seguido com muito interesse os relatos dos vários intervenientes dos acontecimentos do cerco a Guidaje mas com especial atenção os do 1º cabo comando A. Mendes porque o conhecei pessoalmente e com ele trabalhei, não na Guiné (não estava lá nessa altura) mas mais tarde no regimento de Comandos, na Amadora.

Certamente que ele, se por acaso ler ou já leu alguma das minhas intervenções no blogue (1), não liga o nome à pessoa porque, no Regimento de Comandos onde estive desde 1975 a 1986, com um interregno de 1981 a 1984 em missão de serviço em Macau, eu era tratado e conhecido por Roseira Dias.

Pronto Mendes: Daqui te envio um grande abraço e a minha admiração pelo teu passado enquanto militar e comando. Recordo-me perfeitamente de ver o teu aprumo e eficicência na instrução dos Cursos de Comandos onde também eu participei como instrutor de sapadores (navegação fluvial; construção e transposição de obstáculos; e explosivos, minas e armadilhas).

Espero ver-te um dia e, até lá, mantém vivo o nosso código, não te esquecendo de seres sempre generoso na vitória e paciente na adversidade...

Um abraço extensivo a todos os tertulianos.
Mário Dias
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. por exemplo os posts do Mário Dias sobre a Batalha da Ilha do Como (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964):

15 de Dezembro > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias).

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias).

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

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Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Alguns camaradas aceitaram, de imediato, a minha provocação para contar estórias de Bissau (1), as impressões (necessariamente breves e fragmentadas) de quem, como a maior parte de nós, por lá passou, a correr, a caminho do mato, ou do regressso do mato (leia-se: da guerra)...
Mesmo os que fizeram a guerra do ar condicionado têm direito à palavra, embora eu não me lembre de ter aparecido até agora, na nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, nenhum felizardo que tenha estado toda a comissão em Bissau, na guerra dos papéis... Se quiser aparecer, posso assegurar que não será hostilizado... Eu sei que, já naquele tempo, uns eram filhos e outros enteados: era o caso, por exemplo, do Almodôvar, aqui evocado por Marques Lopes. Vieram juntos no mesmo barco: um, o felizardo ficou no QG; o outro, o desgraçado, foi para Barro...

Já tenho aqui duas mensagens, a do Humberto Reis, meu camarada da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) e do A. Marques Lopes que, para chegar a coronel, teve que comer o pão que o diabo ia amassando, de Geba a Barro: nove meses de Hospital Militar Principal foi quanto demorou o parto (distócico) que o levou à sua... segunda comissão, em Barro, na região do Cacheu!

2. Mensagem de Humberto Reis:

Luís:

Comprei a minha 1ª máquina fotográfica, uma Petri, na Foto Serra em Bissau, em 1969. Nessa altura a Foto Serra era numa esquina mesmo em frente ao Forte da Amura, onde se apanhavam os transportes para o QG.

Um abraço
Humberto

Comentário de L.G.: Bendita compra. Apanhaste o gosto da fotografia e hoje, graças a ti, temos excelentes provas, irrefutáveis, da nossa passagem pela Guiné...

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Região do Xime > O Humberto Reis, assinalado com um círculo a vermelho, numa das muitas piscinas de água aquecida que havia no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole... (Aqui, com o seu pelotão, o 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 , deslocando-se numa bolanha em zona controlada pela guerrilha do PAIGC)...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.



3. Texto do A. Marques Lopes:

Caros camaradas,

Vou responder ao desafio do Luís e falar sobre a minha experiência em Bissau. Foi curta, porque de alguns dias apenas, lá passados: (i) antes de embarcar para o puto (quando cheguei à Guiné passei do Ana Mafalda (2) para uma LDG e fui de imediato rio Geba acima...); (ii) quando esperei para ser colocado em Barro, depois de regeressar do HMP; e (iii) quando lá estive de passagem no final de 1968... Mas foi uma experiência intensa, porque aproveitada como primeira oportunidade de esconder mágoas e frustrações, porque tive necessidade de, também ali, dar largas à loucura que se apossara de mim durante todo o tempo em que estive no mato.

Nesse período, conheci pouco de Bissau, apenas restaurantes, o QG e o Pilão. Muito boas recordações dos restaurantes, onde fiz grandes tainadas e apanhei grandes bebedeiras com outros camaradas, tão necessitados como eu. Mas, quanto a nomes, só me lembro do Bento - a famosa 5.ªRep -, centro de conversas dos velhinhos regressados do mato e de histórias das suas guerras, perante os olhos e, sobretudo, os ouvidos atentos dos miúdos que ali engraxavam as botas dos militares por 1 ou 2 pesos.

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Guiné > Região de Cacheu > Barro CCAÇ 3 > Barro > 1968 > O Alfero Lopes, despois do seu regresso do HMP, com alguns dos elementos do seu novo grupo de combate, Os Jagudis, de etnia balatanta.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa (um quarto apenas...) dormi algumas noites, numa cama onde dormia também o bébé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, me fez, uma noite a proposta de eu trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes:
- Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.

Boas noites lá passei, uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:
- Está ocupado! - e eu a ajudava dizendo:
- Estou eu, vão pra outra!

Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que tive de sair a meio. É que o bébé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, tive de lhe dizer:
- Fatinha, já não dá. Vou-me embora.

Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha uma filhas mulatas (não me lembro do nome dele). A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Fui lá uma ou outra vez, só para beber, porque, perante aquela situação, senti que o raio da consciência ainda me zurzia.

Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Extremamente desagradado fiquei, como não é difícil calcular, quando, depois de vir do HMP [Hospital Militar Principal] (3), procurei que não me enviassem para o mato, que estava mal dos ouvidos, etc...
- É pá, há um gajo que tem de ser substituído lá em cima. - E mandaram-me para Barro. Mas o Almodôvar (o nome por que eu o tratava), um gajo que tinha chegado comigo, filho de um latifundiário alentejano, ficou no QG.

Depois, quando por lá passei em finais de 1968, fui encarregado, na passagem de ano, de montar uma emboscada perto do aeroporto de Bissalanca. Pensava-se num ataque do IN. Deram-me um grupo de maçaricos recém-chegados, com alferes e tudo. Achei por bem esvaziar os carregadores de todos, menos os dos furriéis e o do alferes. Mas o desagradável foi outra coisa: antes de partirmos para a missão, fui até ao bar da messe de oficiais do QG beber umas coisas. Estava calmamente assentado num maple com as bebidas em cima duma mesita e eis que o gerente da messe, o tenente-coronel Lavrador (assim lhe chamavam por se preocupar muito com a horta da messe), se me dirige:
- Você não pode estar aí.
- Porquê!? - espantei-me eu.

Apontou e criticou-me a camuflado sujo, debotado, com alguns buracos:
- Está a sujar o maple.

Bem - foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?... - levantei-me e virei-me a ele. Não chegámos a vias de facto porque o Major Fabião, que estava ao balcão, veio prestes separar-nos. Acabei as bebidas e arranquei para levar o grupo para o aeroporto. No caminho, quando passámos junto da Associação Comercial, vi que havia lá grande festa, muita música e, pensei, com certeza bailarico. Ali estão os gajos que me fazem estar aqui. Mandei parar as viaturas. A minha primeira ideia foi ir lá e foder aquilo tudo (assim pensei, sic). Mas acabei por estar alguns minutos a falar sobre o que íamos fazer e como actuar. Fraqueza ou bom senso, ainda não sei.

Mas houve algumas coisas giras quando passei pelo QG, antes do regresso à metrópole. Algumas noites, eu e mais alguns farrantes dos restaurantes de Bissau, pegávamos em algumas garrafas das bebidas que de lá ainda tínhamos trazido, gritávamos Ataque!, e lançávamo-las sobre os telhados de zinco das camaratas ao pé da messe de oficiais. Era um grande gozo ver o pessoal a sair esbaforido e em cuecas!

E, um certo dia, o Almeida Santos (não é esse!...), meu amigo e parceiro de borgas, requisitou um jipe e convidou-me para dar uma volta por fora de Bissau. E lá fomos os dois até Nhacra. Aí parámos numa baiúca para nos atestarmos. Bem comidos e bem bebidos, decidimos que podíamos ver mais coisas, e decidimos ir estrada fora. E fomos, fomos sempre... até chegar a Mansoa! Vimos um jogo de futebol entre os elementos da companhia que lá estava. Entrámos na festa no fim do jogo e bebemos mais umas coisas.

Quando se fez tarde, achámos por bem regressar a Bissau. Demos boleia a um fuzileiro que lá estava (a fazer não sei o quê), o Almeida Santos a conduzir, eu no banco ao lado e o fuzileiro no banco de trás. Foi uma viagem agradável, pôs-se escuro rapidamente, era melhor acelerar e eu achei por bem animar o pessoal, levantei-me e, com as mãos no pára-brisas, comecei a cantar algumas canções do festival de San Remo. Estava giro. Só que, antes de chegarmos à base aérea, o Almeida Santos perdeu o controle do jipe e foi contra uma árvore que estava a dez metros da estrada.

Eu fui projectado, voei e aterrei dentro do capim, não desmaiei e tomei consciência de mim, passados alguns segundos. Olhei para trás e vi o jipe a arder. Levantei-me e fui lá para ver. Havia dois corpos ao pé: o fuzileiro gemia, o meu amigo não dizia nada. Peguei-lhe na cabeça e fiquei com as mãos cheias de sangue. Merda! O fuzileiro disse-me que lhe doía o peito. Que vou fazer? A resposta foi-me dada pelas luzes de duas viaturas que vi aproximarem-se vindo da base aérea. Tinham visto o fogo e vinham ver o que se passava. Foram eles que nos levaram para o HMR 241. Como eu não tinha nada fui mandado em paz. O fuzileiro ficou lá com duas costelas partidas, o Almeida Santos com um lanho na cabeça e uma ferida grossa na barriga da perna.

No dia seguinte, fui contactado para ir ao local com um major que fora encarregado de instruir o processo de acidente. Eu era testemunha. O Almeida Santos, que requisitara o jipe, que ia a conduzir e que era mais antigo do que eu, era o arguido. Quando lhe disse que o jipe saíra da estrada porque tinham falhado as luzes, o major riu-se muito. Fiquei a saber, mais tarde, que o arguido tinha levado 10 dias de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe (cerca de 300 contos na altura) e, o pior, não embarcou quando devia embarcar. Antes de apanhar o barco de regresso, fui ao hospital visitá-lo: estava de cabeça ligada, uma perna pendurada ao alto e (estava sempre na maior!) a beber uma cerveja pelo gargalo.

E uma que me deu muito gozo. Tinham-me dado o processo de um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG. Escandaloso, claro, inadmissível. Na véspera do meu embarque de regresso, ao preparar as minhas coisas, olhei para o processo e achei que não devia ter futuro. Rasguei-o aos bocadinhos e meti-o num caixote de lixo. Ninguém me perguntou por ele, sequer.

Muitas considerações e reflexões há a fazer sobre o que vos conto. Eu já as fiz, mas prefiro, agora, contar-vos os factos friamente. Até porque sei que todos pensarão nos quês e nos porquês de tudo isto.

Um abraço
A. Marques Lopes
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1264: Postais Ilustrados (10): Bissau, melhor do que diz o fotógrafo (Beja Santos / Mário Dias)

(2) Vd. post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(A. Marques Lopes)

(...) " Às 16h00 do dia 15 de Abril de 1967 o Ana Mafalda chegou ao porto de Bissau. A 16 de Abril a companhia passou directamente do navio para LDGs e seguiu pelo Geba acima até Bambadinca.

"Foi engraçado e giro, como devem calcular, para o pessoal que ia enfiado, ouvir os fuzileiros que nos levaram ir dizendo, em cada curva ou ponto mais apertado do rio:
- Olhem que aqui costuma haver ataques!...

"A 17 de Abril seguimos de Bambadinca para Geba em coluna auto. E fomos render a CCAÇ 1426, do Belmiro Vaqueiro" (...)

(3) Vd. posts de:

30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara (A. Marques Lopes)

(...) "E já agora, aqui vai um exemplo das dificuldades para chegar a Banjara. Digo-vos também que foi no caminho para lá que eu fui ferido e fui, por isso, para uma estadia de nove meses no Hospital Militar Principal da Estrela [,em Lisboa] "(...)

5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLVI: Em memória dos bravos de Geba... (A. Marques Lopes)

(...) Sempre que possível, fiz-me acompanhar de um atirador-fotógrafo, que atirou algumas fotografias sempre que pôde. E pôde poucas vezes, é claro, como podem calcular. Algumas das fotografias não corresponderão, provavelmente, às operações relatadas, porque já não as consigo situar, mas servem de ilustração do que era normal em todas elas [vd. também Banjara e Cantacunda].

"Era uma zona muito propícia a azares, como têm visto. Também me calhou a mim (não era mais que os outros, claro, apesar de ter estado 24 horas no campo do inimigo... "teve de ser assim", como disse o Comandante Gazela). Um dia, quando ia no caminho de Geba para Banjara, fui ferido (e sortudo, mais uma vez), assim como o soldado Lamine Turé, do meu grupo de combate ; na mesma altura morreu o comandante da CART 1690, que quis ir comigo nessa viagem, o capitão Manuel C.C. Guimarães (tinha 29 anos, era filho de um sargento-ajudante e sobrinho da Beatriz Costa), e morreu o soldado Domingos Gomes, também do meu grupo de combate.

"Levei o corpo do capitão, porque me pareceu que estava ainda vivo, e o Lamine, directamente para Bafatá... porque em Geba não havia médico, vejam lá! Não levei o do Domingos Gomes, porque ficou aos bocados, não deu tempo nem tive condições para os recuperar. De Bafatá fui evacuado para o HM241 [em Bissau], primeiro, e para o Hospital Militar Principal,[em Lisboa], passada uma semana.

"Lá se foi, pois, o régulo de Geba... (gostei desta, amigo Luís Graça!). Não há relatório desta situação, obviamente, uma vez que não ficou quem o pudesse fazer.

"Falar-vos-ei, depois, da CCAÇ 3 [Barro, 1968], onde fui colocado depois da minha estadia no HMP, embora dela não tenha senão a minha lembrança e as fotografias que um outro atirador-fotógrafo teve oportunidade de atirar" (...).

Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): "Cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira)

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Montemor-o-Novo > Ameira > Herdade da Ameira > Café do Monte > 14 de Outubro de 2006 > Confraternização de camaradas da Guiné que se acabaram de se conhecer: ao fundo, o Vitor Junqueira, de óculos escuros, mais a filha, ladeados por Virgínio Briote e esposa. De costas, da esquerda para a direita: Victor David, Fernando Franco, António Baia e Paulo Santiago.

Foto: © Manuel Lema Santos (2006). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do Vitor Junqueira:

Luís,

O Blog tem estado muito pesado. A guerra é assim, morteiradas, cadáveres, destruição, sofrimento ...

O episódio que relato a seguir, é autêntico e poderá ajudar a descomprimir um pouco a enorme tensão que posts recentes certamente desencadearam na mente de alguns camaradas. Se achares que é publicável. E até pode acontecer que outros adiram à ideia.

Saudações cordiais,

Vitor Junqueira


2. Resposta do editor do blogue:

Vitor: É uma obra-prima!... Uma maravilha!... Vem mesmo a calhar, vou já publicá-la esta noite! Eu já desconfiava que tu tinhas muito talento para a este tipo de escrita… (que não é para todos, o saber contar uma bela estória!)…

Este é daqueles posts que vão figurar numa futura antologia do nosso blogue… Dou-te mais do que as cinco estrelas: dou-te o firmamento todo… Obrigado, Vitor, estava mesmo a precisar de ler uma short story assim, antes de dar uma aula sobre “métodos qualitativos de investigação social e em saúde” aos meus alunos do mestrado de saúde pública…

Fico com água na boca, à espera de mais.... Enfim, da receita do cabrito pé de rocha farás mais uma estória, para deleite da nossa tertúlia… E decerto terás outras, tão ou mais divertidas do que esta, relacionadas com os nossos encontros e desencontros com aqueles povos simples, hospitaleiros e amigos…

Arranja lá um título para a tua série… Como já viste, há várias: estórias de Dulombi (Rui Felício), estórias cabralianas (Jorge Cabral)… O Rui e o Jorge são dois dos nossos melhores contistas… Mas há outros, com talento... Fico à espera. Se não disseres nada, escolho um título apropriado, desde que bata certo com a tua personalidade, ou pelo menos com a imagem que eu tenho de ti, como pessoa que está bem com a vida, positiva, frontal, solidária...


3. Cabrito pé de rocha,

por Vitor Junqueira (1)


Quando a minha Companhia [, a CCAÇ 2753,] aterrou em Bissau, após uns dez dias de viagem no velho N/M TT (era mais ou menos esta a sigla para navio motor transporte de tropas) Carvalho Araújo (*), fomos acolhidos no cais do Pidjiguiti por malta que eu não conhecia de lado nenhum, que soltava uns pius esquisitos cuja razão de ser não entendia. Soube ali que eram os choferes, velhinhos, das camionetas que nos haveriam de conduzir ao destino. As viaturas, alinhadas em coluna ao longo do cais, estavam a ser carregadas enquanto as entidades superiores tratavam da papelada. Até ao desembaraço da Companhia, e enquanto carrega, não carrega, os pius acossavam-nos de todos os lados. Comecei a ficar enervado e com apetite!

Naquela zona portuária, que se poderia chamar marginal da Amura, existiam umas tabernas semelhantes às que poderíamos encontrar em qualquer lugar do Portugal de então: um garrafão de cinco litros ou um ramo de louro pendurado na frontaria, e uma tabuleta com os dizeres, casa de pasto, vinhos e petiscos.

Seriam para aí umas quatro da tarde quando entrei numa delas. Pela primeira vez na vida dirigi-me a alguém de outra ... etnia. A situação era nova para mim e um pouco estranha. Meio tonhó, perguntei num português escorreito e pausado a uma negra, com estatura de bisonte, que se encontrava sentada num mocho do lado de dentro do balcão:
– Boa tarde,  minha senhora, tem alguma coisa de que possa fazer uma sandes?
– Tem. Tem sim. Olha, tem cabrito pé de rocha, tem ...
– Cabrito?
– Sim, cabrito, é muito bom. Ainda está quente.

Virou-me as costas e dirigiu-se para um canto da baiúca de onde regressou com um pequeno tacho de barro na mão contendo uns pedacitos de carne guisada, com bom aspecto e um cheiro capaz de fazer um morto babar-se. Perguntou-me o que queria beber e falou-me em coisas estranhas, Fanta, Coca-qualquer-coisa ... Pedi uma laranjada.

Ali fiquei encostado ao balcão a vê-la rasgar a carcaça e nela acomodar o conduto. Ia magicando com os meus botões o quanto as aparência iludem. Aquela mulher enorme era um monstro de simpatia, nos gestos, no brilho do olhar, na doçura da voz. Acho que começou ali a minha paixão pela Guiné. Serviu-me com delicadeza numa pequena mesa de pinho, carunchosa e coxa, que só se mantinha de pé porque estava encostada à parede.

Comi. E que bem me soube. Ao fim de tantos dias a comer a lambeta de bordo, que nem era má, mas à qual o balanço do navio retirava todo o requinte, aquele petisco caiu-me que nem ginjas. Paguei em escudos, recebi o troco em pesos e saí animado com a perspectiva das vindouras patuscadas de cabrito pé de rocha que já se perfilavam no meu horizonte de expedicionário. Fosse parar aonde quer que fosse, não faltaria caça daquela, pois se até na cidade se encontrava ao dispor ... Aquele cabrito era mesmo delicioso. E o apelido pé de rocha? Devia estar relacionado com o habitat do animal. Altas montanhas com os picos cobertos de neve, pensei eu. O Kilimanjaro devia ficar ali perto, provavelmente.

Juntei-me ao resto da guerra, a quem dei conta das minhas descobertas e lá vou com a tropa toda, sob um altíssimo astral, direito ao AGRBIS (eu sabia lá o que isso era!). À nossa espera estava um hangar, sem portas, sem janelas, sem luz e com milhões de mosquitos, gordos e ferozes. Nos oito dias seguintes dormimos em cima dos ferros das camas porque colchões também não havia para distribuir. E quanto à bianda, ração de combate ao almoço, ração de combate ao jantar. Sobremesa, sempre à base de mancarra que umas garotas apareceram por ali a vender dentro de uns penicos que transportavam à cabeça.

O problema maior era a água. Na altura grassava uma epidemia de cólera no território pelo que nos aconselharam a beber só água engarrafada. Resultado, ao terceiro dia estava não só falido, como via as dívidas a acumularem-se. É que a única água engarrafada disponível que havia era a Perrier, usada no tratamento do whisky, que eu comprava a oitenta mil réis cada garrafa, no bar dos oficiais do Depósito de Adidos que ficava ao lado. Escusado será dizer que, por essa razão ou outra qualquer, houve caganeiras monumentais.

E eis que recebo guia de marcha para ir comandar os destacamentos de Safim e João Landim.

Força instalada, faço o reconhecimento da zona e concluo que no que respeita a infra-estruturas de apoio como tasca, restaurante, animação (batuque e bajudas), posso considerar-me um homem de sorte. Tenho ao dispor um fundo de maneio e o seu parente, o inevitável saco azul. Agora sim, tinha qualidade de vida. Permitíamo-nos comer quase à la carte. Além disso, por ali não se ouviam tiros. Perfeito ...

É neste contexto que, estando um dia a bater uma galharda sesta, sou acordado subitamente por um militar que me vem perguntar se pode ir lá fora dar um tiro com a G3 ???
– A quem? – perguntei.
– Não sei bem de que se trata –  diz ele –. É um gajo da população que está ali à porta de armas a pedir que vá alguém à tabanca abater uma peça de caça.
– Alto e pára o baile –  disse eu, meio desconfiado. – Quem lá vai sou eu.

Visto os calções num ápice, enfio os chinelos, pego na canhota que tinha dependurada à cabeceira da cama e, todo nervoso, antecipando um presunto de gazela para o tacho, dirijo-me ao cavalo de frisa que servia de porta de armas.

Lá estava o homem. Pareceu-me inofensivo. Pediu-me que o seguisse, enquanto num crioulo que eu já começava a entender, me explicava que se tratava de um cabrito pé de rocha que andava por ali a vaguear. Nisto aponta para o cocuruto de uma árvore e diz:
– Pessoal, olha ali. Por favor mata ele ...

Fiz um único disparo. Aos meus pés caiu um bruto babuíno (macaco-cão) que devia pesar para aí uns trinta quilos. Dispensei a minha quota-parte da caçada! (**)




Guiné > Zona Leste > Sector L2 > Geba > CART 1690 > Destacamento de Banjara > 1968 > Quando a fome é negra, até "cabrito pé de rocha" se come... Só que em Bissau o periquito Vitor Junqueira estava longe de imaginar que o dito cabrito era... macaco-cão!

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.



República da Guiné-Bissau > Macacos Africanos > Selo de 1 peso > 1983 > Babuíno-hamadrias
(Papio hamadryas)

Fonte: © Franclkim Ferreira (2001-2006) . Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto > Franclim F. Ferreira > Filatelia - Mamalia (5) (com a devida vénia...)

___________

Notas do autor

(*) Esta foi a última viagem do Carvalho Araújo. De Lisboa para Bissau, navegou notavelmente adornado a estibordo. No regresso, ouvi dizer que chegou pelo seu pé a Cabo Verde, tendo sido depois rebocado até ao seu destino final.


(**) Voltei a comer cabrito pé de rocha, muitos meses depois e, desconhecendo a ementa, numa acção de Psico. Outra delícia! Um dia destes mando a receita.

_________

Nota de L.G.:

(1) O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Vive hoje em Pombal, onde é médico.

Vd. posts de:

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1265: Recordações do ex-Alf Rainha (Xaneco, para os amigos), da CCAÇ 3490 (Saltinho), morto há 20 anos (Maurício Vieira, CCS/BCAÇ 3884)

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Guiné > Zona Leste > Bafatá > CCS do BCAÇ 3884 (1972/74) > O Mauríco Vieira nos arredores de uma tabanca de Bafatá. Ele está num campo de cultivo que eu não sou capaz de reconhecer. Amendoím (mancarra) ? De que cor era a flor da mancarra ? O comandante do seu batalhão era o tenente-coronel Correia de Campos , um grande militar já aqui evocado e elogiado por mais do que um dos nossos tertulianos (1) (LG).

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O ex-soldado de transmissões Maurício Nunes Vieira, nosso tertuliano desde Outubro de 2005. Trabalha em Sintra, na respectiva Câmara Municipal. Procura memórias do seu amigo Xaneco.

Fotos: © Maurício Vieira(2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem do Maurício Vieira (com quem já falei uma vez ao telefone):

Camarada Luís Graça, quando colocas as minhas fotos na Fotogaleria? Julgo que chegaram em boas condições, aliás já comprovado por ti, pelo que gostaria de as ver lá, não obstante compreender as inúmeras tarefas que tens no dia a dia, são emails e muito trabalho que te enviam.

Aproveito para lançar um apelo, a alguém que tivesse privado ou simplesmente conhecido o alferes Rainha (Xaneco):

Nome completo: Alexandrino José Fialho Correia Rainha.
Unidade BCAÇ 3872 - Galomaro (1972/74); CCAÇ 3490 - Saltinho (O Cmdt de Companhia era o capitão Lourenço) (2).

Lanço um apelo aos que o conheciam. Foi assassinado há quase vinte anos, era um grande amigo e leal companheiro. Julgo que o Sousa Castro, o Albano Costa e o Luis Carvalhido poderão ajudar. Desde já o meu muito obrigado a todos pelas eventuais informações que me possam prestar.

Um dia destes vou-te conhecer pessoalmente, será para mim uma honra poder conviver com alguém que, de alma e coração, muito tem contribuído para unir camaradas que sofreram na pele as agruras da guerra colonial. Um abraço e até breve.

Maurício Vieira 
CCS/BCAÇ 3884
Bafatá 72/74

 
2. Comentário de L.G.:

Tenho cá as tuas fotos desde 2 de Outubro de 2006. Estão OK e já foram inseridas na fotogaleria. Já lá estás, todo janota: podes mostrar os netos, que ainda são os únicos que te ouvem, te dão importância e te vão chamar herói...

Sobre o teu pedido àcerca do Rainha, já agora podias dizer-nos em que circunstâncias ele foi assassinado, há 20 anos. Sobre a minha modesta pessoa, só posso dizer-te que faço a minha obrigação... Mas as tuas palavras, simples e sentidas, são também um bom incentivo para levar para a frente, com a colaboração dos cento e tal camaradas e amigos que já temos, este projecto, bonito e solidário, de nos pormos todos a falar em voz alta, antes de demais uns para os outros, na nossa caserna... Bem hajas, pela tua contribuição, amizade e camaradagem.
Aparece, quando te apetecer. Sabes onde trabalho, sabes o número de telefone do meu gabinete de trabalho, na Escola Nacional de Saúde Pública, na Av Padre Cruz, junto ao Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a seguir ao Estádio do Sporting e da estação de serviço da BP: Gabinete 2A 47, telefone 21 751 21 38 (directo) (habitualmente, das 8.30h às 16.30h).

 
3. Esclarecimento imediato do Maurício Vieira:
 
Caro Luis Graça: 
O Alf Rainha (Em Carrazeda de Ansiães, Trás-os-Montes, tratávamo-lo por Xaneco) era uma pessoa muito popular, divertida e amigo do seu amigo. O seu pai era farmacêutico, tinha uma irmã também farmacêutica, possuíam em Carrazeda de Ansiães duas Farmácias [uma delas, a Farmácia Rainha]. Ele era, enfim, de família abastada.

Tinham uns terrenos que confinavam com um de um vizinho pouco recomendável, conflituoso e quase sempre com o álcool. Um dia o tal indivíduo implicou com o Rainha nesses terrenos e, acto contínuo, puxou da pistola e disparou à queima-roupa, tendo o meu amigo morte imediata.

Sem exagero, todo o concelho chorou a sua morte, era muito benemérito, deixou órfãos uma filha de 11 anos e um filho de 9, a esposa é fisioterapeuta, de forma que com o seu trabalho e património (que felizmente possuíam), conseguiu formá-los, a filha farmacêutica como é tradição da família. Eis, em resumo, o trágico fim de quem era muito querido e popular.

Um abraço
Maurício Vieira

 
4. Comentário de L.G.:

Essa estória do teu amigo e nosso camarada Rainha é triste. Como é que um homem, que sobreviveu à guerra da Guiné - o nosso Vietname - vai morrer, deixa-se morrer, de morte matada, na sua terra, em Trás-os-Montes... Não vou especular sobre a cultura da honra que leva, por vezes o transmontano a puxar de armas de fogo para resolver conflitos que ele acha insanáveis noutras instâncias e que têm a ver com o orgulho de macho, a territorialidade, a propriedade, a honra...

Seguramente, temos aqui tertulianos que conheceram o teu amigo (e, presumo, teu conterrâneo) Xaneco (aliás, Rainha). Há camaradas nossos que o devem ter conhecido, no Saltinho, a começar pela malta da sua companhia, como o Joaquim Guimarães (que vive hoje nos EUA)... Mas também malta de outras unidades que conviveram, seguramente, com ele: o Paulo Santiago (do Pel Caç Nat 53), o Martins Julião e o Carlos Santos (da CCAÇ 2701), e outros.
_____________
 
Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 9 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIV: Camaradas do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74), procuram-se!

(...) "Gostaria de contactar com ex-combatentes do BCAÇ 3884, do qual faziam parte a CCAÇ 3547, CCAÇ 3548 e CCAÇ 3549, estacionadas em Geba, Fajonquito e Contuboel, respectivamente .

"Eu fazia parte da CCS, que estava sedeada em Bafatá (1972/74). Era comandante o tenente coronel Correia de Campos, o 2º comandante era o conhecido major Vargas (ligado ao Ginásio Clube Português).

"Eu era radiotelegrafista (...). Telemóvel: 914614074; Telefone de serviço > 219236088 (Câmara Municipal de Sintra)" (...).
____________

Notas de L.G.:

(1) Sobre a figura do então tenente-coronel Correia de Campos, um dos heróis de Guidaje, vd. posts de:

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1235: Coronel Correia de Campos: um homem de grande coragem em Sambuiá e Guidaje (A.Marques Lopes)

(...) "Eu conheci o tenente-coronel António Correia de Campos num dia de 1968, quando eu estava com a CCAÇ3 de Barro, durante uma operação realizada no corredor de Sambuiá e por ele comandada (foi nessa altura também o comandante do COP3).

"No meio do fogachal de uma emboscada vi a sua figura insólita, para as circunstâncias, de pingalim de cavaleiro, pistola e coldre à cowboy, seguros com um fio à volta da coxa direita, sempre em pé e gritando:
- O morteiro está à direita, uma bazucada para lá!... Fogo intenso para o lado esquerdo, é lá que está o RPG!" (...)

28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais (Alves de Jesus)

24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...

(...) "Assisti durante os ataques a um espectáculo insólito: enquanto durava o fogo, um oficial, nesta caso o Comandante, caminhava sereno pelo meio da confusão dando ordens e tentando manter a calma, alheio aos ataques e aos gritos. Esse senhor era o Coronel Correia de Campos, que comandava o COP3 ao qual a minha companhia ficou dependente enquanto esteve em Guidaje.

" (...) O Comandante achou perigoso a coluna seguir nesse dia pois fazia-se noite e concerteza o IN iria estar emboscado à nossa espera. CDurante a noite sofremos mais ataques. Creio que no total e no curto tempo que aqui estivemos, sofremos pelo menos 15 ataques ao destacamento" (...).