Guiné > 1968 > A bordo do Uíge: da esquerda para a direita, os alferes milicianos Raposo, David, Felício e Rijo, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852. O Uige transportava dois batalhões, o BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852. Largou em finais de JUlho de 1968 do Cais de Conde de Óbidos, em Lisboa e chegou a Bissau nos princípios de Agosto. A CCAÇ 2405 seguiu depois para Mansoa onde chegou à noite, sendo saudada com um salva de artilharia pelos velhinhos da CCS do BCAÇ 1911 (1).
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Continuação (cronologicamente, neste caso, antecipação) das estórias de Dulombi (2)... O Rui Felício foi alf mil na CCAÇ 2405, juntamente com o Paulo Raposo e Victor David, outros dois membros da nossa tertúlia. Os três estiveram em Mansoa, no início da comissão da respectiva unidade, a CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, de Agosto a Dezembro de 1969.
MANSOA III
CCAÇ 2405
Agosto de 1968
O Vitor David e eu, juntamente com os nosso respectivos Grupos de Combate, fomos destacados para dirigir e fazer a segurança de cerca de 200 trabalhadores balantas, recrutados pelo Chefe de Posto de Mansoa para procederem à capinagem da estrada Mansoa-Jugudul.
Era um autêntico exército de homens armados de catanas, enquadrados por meia dúzia de cipaios que os obrigavam a não perder o ritmo do trabalho.
O mato na Guiné cresce a um ritmo alucinante e, quando menos se espera, devora as bermas e até a própria estrada se esta não fôr utilizada regularmente.
Para prevenir emboscadas do IN tinha que se fazer a capinagem desse mato umas duas ou três vezes por ano, limpando uma faixa de cerca de 50 a 100 metros de cada lado da estrada.
A tropa requisitava mão de obra para o efeito à autoridade administrativa que se encarregava de a mobilizar.
Era um trabalho duro, realizado sob um sol escaldante, desde o amanhecer até ao pôr do sol…
Os homens brandiam ritmadamente as catanas contra os tufos de capim e arbustos, provocando um som cavo que inundava os ouvidos durante todo o dia, e os seus corpos negros, musculados, luzidios de suor, brilhavam sob o tórrido sol da Guiné…
E tinham que beber água muitas vezes para matar a sede e prevenir desidratação…
Por isso, eram colocados ao longo da estrada, mais ou menos de 30 em 30 metros, bidons de 200 litros cheios de água, para que, quem quisesse, ali se dessedentasse.
Sucede que esses reservatórios eram nem mais nem menos que bidons usados de combustivel, que depois de esgotados serviam para encher de água e levados para a capinagem.
E, claro, quando não havia cuidado na sua lavagem, a água neles despejada podia misturar-se com alguns restos de combustível que tivessem ficado no fundo.
Pois foi exactamente isso que aconteceu com os bidons que estava a ser usados na tal capinagem de que falamos.
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Inesperadamente, um dos balantas assomou-se junto ao David e disse-lhe num crioulo arrevesado:
- Alfero! Água num stá bom! – e, para melhor traduzir o que dizia, fazia uma careta de vómito….
O David, pensava para os seus botões:
- Esta gajo é muito fino… Deve querer água Perrier, com certeza…
Tentou despachá-lo:
- Está bem, está bem… Vai mas é continuar o teu trabalho e deixa-te de esquisitices!
Mas o homem não desistia:
- Alfero! Bardadi! Água num sta bom mesmo! Num sabi!
- Eh pá.. Explica lá de uma vez o que é que tem a água - condescendeu o David.
E o balanta, num esforço para se fazer compreender, puxou dos seus rudimentos de português e despejou:
- Água sabe a gasolina, Alfero!... Bardadi!
Uma flash iluminou o cérebro do David que rapidamente compreendeu o que se passava… Aqueles bidons tinham sido mal lavados e ainda continham restos de combustivel…
Não querendo admitir essa falha (a tropa portuguesa precisava demonstrar a sua grande capacidade de organização…), o David, inspirado, rematou:
- Claro que sabe a gasolina.. É de propósito e para vosso bem! Assim, vocês no trabalho, andam mais depressa e cansam-se menos, percebeste?
Nunca saberemos se o pobre do trabalhador balanta acreditou na justificação do David ou se, entre dentes, lhe rogou alguma praga… A verdade é que acenou afirmativamente com a cabeça e voltou ao trabalho.
E, passado pouco tempo, veio de novo beber água com gasolina do bidon.. A tal que fazia andar depressa…
Rui Felício
Ex Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
Mansoa
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Notas de L.G.
(1) Vd. posts de
7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
(2) Vd. posts anteriores:
9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
(...) "O Natal aproximava-se… Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito….
"O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…
"O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos.
"Natural de Bissau, de etnia pepel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné" (...)
14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili
(...) "O Carvalho Araújo já estava em Bissau para nos levar de volta à Metrópole… Viera cheio de tropa para substituir os velhinhos, ansiosos pelo fim da sua comissão.
"O tempo custava a passar para finalmente se dar a rendição, e por isso, cada um à sua maneira ia encontrando formas de apressar o tempo, de esquecer a lentidão inexorável do relógio…
"Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado" (...).
19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
(...) "20 de Julho de 1969. Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo.
"Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.
"Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas" (...).