A apresentar mensagens correspondentes à consulta Rio Colufe ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta Rio Colufe ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 16 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6000: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (1): Por onde andaram e com quem estiveram?

Os Marados de Gadamael
e os dias da
Batalha de Guidaje

Parte I


Daniel de Matos*

Unir as Pontas da Memória


(À laia de introdução)

É estranho e deveras angustiante participarmos em cerimónias fúnebres de camaradas que morreram ao nosso lado, coladinhos ao nosso corpo, no mesmo buraco, mas há… 36 anos e meio! Ainda por cima quando além de camaradas de armas eram já amigos do peito e quando, devido a circunstâncias que demoram a explicar, tivemos de os enterrar algures no mato, sem a convicção absoluta de que os depositávamos nas suas últimas moradas, tendo todas as incertezas do Mundo quanto ao destino que poderiam levar os respectivos corpos.

O regresso e a devolução às respectivas famílias dos corpos do furriel Machado, do primeiro-cabo Telo e do soldado Geraldes, as honrarias militares a que tiveram direito junto ao “Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar”, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém/Lisboa, e as homenagens que lhes foram rendidas nos funerais efectuados nas respectivas terras natais, – em Valpaços, no Paul do Mar/Madeira e no Vimioso – vieram reactivar memórias que repousavam no arquivo dos tempos idos. Já antes, durante a bem organizada campanha para a exumação e trasladação de alguns dos outros corpos sepultados em Guidaje, e quando os três pára-quedistas da CPP 121 regressaram a Portugal e às suas famílias, algo voltou a agitar as nossas consciências e nos fez recuar no tempo e no espaço. É que, vistas desta maneira, afinal as coisas não decorreram assim há tanto tempo, foram ontem, estão mesmo a acontecer, agora.

Existem múltiplos relatos dos acontecimentos de Maio de 1973 em Guidaje – livros, depoimentos diversos, testemunhos, documentos na internet, – e, no entanto, que eu conheça, em lado nenhum figuram referências à CCaç 3518. Excepto… nas campas! E isso tem conduzido muita gente a perguntar por que raio estaria nesses dias tanto pessoal de Os Marados de Gadamael em… Guidaje? O que fazia, como foi lá parar? Quem foram Os Marados e, se o nome próprio refere outro local, o que os levou a Guidaje numa altura tão crítica como a que por lá se viveu durante esse mês?

Eu próprio, em conversa (por e-mail) com um grande e velho amigo, – o coronel A. Marques Lopes, agora na reserva, – ao informá-lo que tinha estado em Guidaje e fora “utente” do infausto abrigo de que muitos hoje falam, mas de que (felizmente para os próprios) poucos lhe conheceram os horrores, recebi dele a seguinte resposta: “o coronel Ayala Botto, que foi adjunto do Spínola, e foi com ele a Guidaje em 1973, põe em dúvida que a tua companhia estivesse em Guidaje na altura do cerco. Diz mais coisas. Ou escreve para o Blogue!!! A. Marques Lopes” (o blogue a que se refere é o conhecidíssimo, e de grande mérito, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que contém uma quantidade apreciável de textos, fotografias e testemunhos, muitos dos quais de relevância e interesse históricos).

A verdade é que estão inventariadas em inúmeros textos as unidades que participaram na batalha de Guidaje, sendo omissas referências à nossa companhia. Bem, mas se para alguns é duvidosa e difícil de explicar a presença d’Os Marados de Gadamael tão em cima da fronteira norte com o Senegal, pior se tornará se tentarem explicar como raio é que no cemitério improvisado de Guidaje ficaram enterrados três dos mortos que ali sofremos!...

O reavivar do assunto, devido ao processo de trasladação das ossadas em 2009, e esperando que este hiato de tempo tenha esfriado a sensibilidade dos familiares para que hoje em dia já se possam confrontar melhor com a realidade dos acontecimentos – que, confirmou-se durante as recentes exéquias, até então desconheciam, – leva-me a redigir estas linhas que serão um misto das memórias desse tempo, – sempre falíveis graças à “PDI” (toda a gente de geração mais avançada sabe o que isso é). Mas por recear as traições dessa mesma memória, houve que ligar algumas pontas, que a misturar com o resultado a consultas diversas e com o cruzamento de informações que por aí circulam, disponíveis na comunicação social, em livros e na web.

Porém, que fique claro que esta nem é a História d’Os Marados, longe disso, muito menos a dos acontecimentos de Guidaje, embora espere que possa contribuir com alguns dados para historiadores que saibam da poda e queiram um dia pegar neste assunto. Não sendo um especialista, certamente serei perdoado por eventuais imprecisões (espero que não as tenha em demasia). Do mesmo modo, este texto não advém de um diário (que nunca escrevi), não visa enaltecer nem as nossas aventuras nem as desventuras, muito menos acicatar a rivalidade imbecil entre unidades daqui e dacolá. Até porque, – valha-nos isso! – integrámos uma companhia do exército (“tropa macaca”), que tal como todas as outras (de todas as armas) foi composta por gente normalíssima, sem a mania das grandezas, mas com a sorte de não contar no seu seio com gabarolices de heróis de pacotilha nem com falsos protagonistas, em resumo, uma companhia sem “rambos” nem “schwarzeneegers” obtusos.

Com estas linhas pretendo, tão-só, escrevinhar alguns apontamentos que, na minha óptica, respondam às dúvidas que muitos camaradas colocam amiúde sobre o que realmente se passou em Maio de 1973 naquela região e, já agora, explicar como apareceram Os Marados de Gadamael nesta crise…

Provavelmente não acrescentarei nada de novo ao que já é conhecido. Mas se este trabalho contribuir para que alguns ex-combatentes nele se revejam e dele se sirvam para contar aos netos o que nos custou aquilo tudo, terá valido a pena e dar-me-ei por satisfeito. Também nunca foi meu hábito escrever na primeira pessoa do singular. Só que, para se contar esta história, forçosamente tem de haver um narrador. Por isso, aqui vai…


Por onde andaram e com quem estiveram Os Marados?

“Os Marados de Gadamael” foi a divisa – não muito abonatória, é certo, – escolhida para e pelo pessoal da Companhia de Caçadores Independente nº 3518, formada no Funchal (no Batalhão Independente de Infantaria nº 19/BII 19) durante o segundo semestre de 1971 (formalmente, a 15 de Novembro, “destinada a combater no Ultramar nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei º 49107, de 7 de Julho de 1969”).

Como companhia “madeirense” (de onde são naturais os soldados atiradores e o capitão miliciano Manuel Nunes de Sousa, – que as praças especialistas e os graduados vieram do Continente), receberia o guião das mãos do presidente da Câmara Municipal de Santana, a 16 de Novembro de 1971.

Houve também entre os “Marados” dois açorianos e dois guineenses: o furriel miliciano Nuno Álvares Brasil Pessoa, – que faleceu depois do regresso à ilha natal de S. Jorge; vindo em rendição individual, em 27 de Julho de 1972, o soldado atirador António Henrique Paiva Valente, de Santa Maria, então como hoje, distinto locutor do Clube Asas do Atlântico, em Vila do Porto; o guineense, de ascendência cabo-verdiana, Florentino José Lopes de Almeida, (para os amigos, o Fontino), furriel miliciano de operações especiais; e ainda o soldado Malan Seidi, – veio transferido da CCaç 3.

Com destino à Guiné Portuguesa, a companhia embarcou na cidade do Funchal no dia 20 de Dezembro desse ano, às 3 da madrugada (!), tendo chegado a Bissau no dia 24 seguinte (embora já estivéssemos ao largo do rio Geba desde as 23 horas do dia 23, quem poderá esquecer-se de tão bela consoada?). No mesmo paquete, – o Angra do Heroísmo, – e com igual proveniência, viajaram a CCaç 3519 (que iria parar a Barro) e a CCaç 3520 (cujo destino foi Cacine), mais o BCaç 3872, que já embarcara em Lisboa e que viria a instalar-se em Galomaro. Pisámos terras da Guiné a partir das 15 horas.

Passámos o dia de Natal a desfazer malas e no dia 26 registou-se a cerimónia de boas-vindas, presidida pelo comandante-chefe, – General António de Spínola, figura grada entre os soldados, ou não fosse também ele um madeirense e, ainda por cima, um líder –perante quem desfilámos e que em seguida nos passou revista. A 22 de Janeiro de 1972 terminámos o IAO (Instrução e Aproveitamento Operacional) no CMI (Centro Militar de Instrução), situado no Cumeré. No dia seguinte, a bordo de uma LDG, às 19 horas, abalámos do porto de Bissau – ao lado do histórico cais de Pindjiguiti, – para Gadamael Porto.



Foto 6> Cumeré - 26 de Dezembro de 1971 > O General António de Spínola passando revista ao 2º pelotão da CCaç 3518, no Cumeré.

Após o transbordo em Cacine para uma LDM, (aí se despedindo dos camaradas da irmã gémea CCaç 3520 – “Estrelas do Sul”), e em duas levas de dois pelotões cada, a primeira alcançou o pequeno desembarcadouro de Gadamael, no rio Sapo (afluente do Cacine), pelas 15 horas do dia 24 de Janeiro, onde a companhia ficou uma temporada em sobreposição com a unidade que foi render (a CCaç 2796, que depois marcharia para Quinhamel), integrada no dispositivo de manobra do BCaç 2930, depois do BCaç 4510/72 e, depois ainda, do COP 5 (Guileje).



Foto 12 > O autor, junto às águas do Rio Sapo (afluente do Cacine, que banhava Gadamael Porto).

Juntamente com Os Marados, estiveram em Gadamael os homens do Pelotão de Reconhecimento Fox nº 2260,  “Unidos Venceremos” (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria Alexandre Costa Gomes e pelos furriéis milicianos Manuel Vitoriano, José Soares, Joaquim Manso, José António Barreiros e António Rio). A 28 de Abril de 1972, após cerimónia de despedida, presidida in loco pelo governador e comandante-chefe Spínola, o pelotão marcha para Bissau, a fim de aguardar aí transporte de regresso à metrópole.

O Pel Rec Fox 2260 foi substituído oito dias antes (21 de Abril) pelo Pelotão de Reconhecimento Fox 3115/Rec.8 (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria José Manuel da Costa Mouzinho e pelos furriéis Sérgio Luís Moinhos da Costa, Alfredo João Matias da Silva, José de Jesus Garcia e Fernando Manuel Ramos Custódio).

Também em Gadamael, estiveram adidos à companhia o 23º Pelotão de Artilharia, (comandado pelo alferes miliciano de artilharia José Augusto de Oliveira Trindade e pelos furriéis milicianos Armando Figueiredo Carvalheda, António Luís Lopes de Oliveira (este, logo substituído pelo furriel miliciano João Manuel Duarte Costa), e ainda os Pelotões de Milícias 235 e 236. O comandante de pelotão 235 era Mamadú Embaló e os comandantes de secção, Camisa Conté, Abdulai Baldé e Mamadú Biai; o comandante de pelotão 236 era Jam Samba Camará e os comandantes de secção, Satalá Colubali, Amadú Bari e Mussa Colubali. O Camisa Conté, – quanto a mim a mais bem preparada de todas as milícias, de grande inteligência, disponibilidade constante e invulgar simpatia, – morrerá na célebre “batalha” de Guileje, diz-se que num “acidente com arma de fogo”, (ouvimos em Bissau alguém contar que foi a tentar desmontar uma mina) a 12 de Maio de 1973. Por outro lado, o Jam Samba viria a morrer em combate, dias mais tarde, também em Guileje, a 18 de Maio de 1973.

Foto 9 > Dois dos melhores soldados milícias que nos acompanharam em Gadamael. O da direita, Camisa Conté, viria a falecer em 1973 quando das batralhas de Guileje e Gadamael.

Nas acções de guerrilha que em Maio e Junho de 1973 viriam a culminar no abandono de Guileje e na tentativa de cerco de Gadamael Porto, morreriam igualmente em combate os soldados milícias do pelotão 235, Corca Djaló, Abdulai Silá e Malan Sambú e, do pelotão 236, o Braima Cassamá. Enquanto estivemos no sul, todos eles acompanharam os pelotões da CCaç 3518 nas patrulhas e demais operações efectuadas. Desses, recordo com maior saudade o Braima Cassamá, que foi meu aluno nas aulas do Posto Escolar Militar nº 23 que funcionou em Gadamael. Eu e o soldado africano Ricardo Lima da Costa e, mais tarde, com os também monitores escolares, primeiro-cabo Manuel Nuno de Sousa e o soldado António Henrique Paiva Valente, fomos os professores diurnos de perto de quarenta crianças da população. À noite, nas noites em que não estávamos de prevenção ou naquelas em que não teríamos de sair para o mato na madrugada seguinte, demos aulas a uma dúzia de voluntários adultos, praticamente todos da milícia. E como era difícil explicar matérias a quem mal entendia o português! Isto, sem falar noutros assuntos que constavam no programa de ensino, – mas que obviamente não respeitávamos, como o fazer os africanos empinarem as linhas ferroviárias, (ninguém sabia sequer o que era um comboio), ou as cordilheiras da metrópole (aquelas crianças nem um monte viram ao longo das suas curtas vidas na Guiné)! Na prática, o que todos queriam era aprender a ler e escrever em português (alguns já o faziam em árabe, quanto mais não fosse para lerem a “Tábua de Moisés”). O Braima, excelente rapaz, era dos mais interessados e não me lembro que alguma vez tenha faltado a uma aula. Em separado, devido à compreensão da língua, dei aulas aos soldados. Tínhamos mais de trinta praças da companhia que não possuíam a 4ª classe quando foram incorporados, algumas eram mesmo analfabetas. No final da comissão quase todas fariam o exame e seriam aprovadas (já na escola primária de Bafatá), o que se revelou vital para os seus futuros (muitos soldados pretendiam emigrar para a Venezuela e África do Sul mal se vissem livres da tropa) ou, quanto mais não fosse, para poderem tirar a carta de condução.

Foto 8 > Imagem exterior do PEM (Posto Escolar Militar) n.º 23, Gadamael, que ficava ao lado da pista de aviação nova, junto à tabanca.






No Posto Escolar Militar nº 23 (PEM-23, Gadamael) frequentaram as aulas da instrução primária algumas dezenas de jovens alunos (também alguns adultos da população).Não era fácil dar aulas a muitos que não falavam português (nem em crioulo se exprimiam), mas registaram-se muitos casos de bom aproveitamento, concluindo a 4ª classe.

Enquanto em Gadamael, o território operacional e os locais de minagem, patrulhamento e montagem de emboscadas foram essencialmente os seguintes: antigas tabancas de Viana, Ganturé, Bendugo, Gadamael Fronteira, Missirá, Madina, Bricama Nova, Bricama Velha, Tambambofa, Jabicunda, Campreno Nalú, Campreno Beafada, Mejo, Tarcuré, Sangonhá, Caúr e Cacoca.

A zona fronteiriça com a Guiné-Conacry e a picada para Guileje (estrada que outrora ligava a Aldeia Formosa e ao Saltinho) foram os locais com mais frequente número de operações.

Todo o abastecimento por via terrestre às unidades e população instaladas em Guileje se efectuava, durante a estação seca, através de colunas efectuadas a partir de Gadamael Porto, sendo o nosso pessoal responsável não só pelas viaturas que transportavam para Guileje os géneros que os batelões descarregavam em Gadamael, mas também pela segurança de metade do percurso. Por diversas vezes, pelotões da companhia, o pelotão Fox e os pelotões da milícia passaram temporadas em reforço das unidades locais (como, por exemplo, da CCaç 3477, “Os Gringos de Guileje”, até Dezembro de 1972, e a CCav 8530, na parte final da nossa estada no sul).

Ao recordar aqui quem connosco palmilhou longas distâncias em patrulhamentos, montou emboscadas e alinhou em segurança a colunas no sul da “província ultramarina”, seria injusto não mencionar os guias (suponho que havia dois), mas muito especialmente o Queba Mané, expoente máximo em simpatia e disponibilidade fosse para o que fosse, e de grande resistência física, pois num africano os cabelos brancos denunciam muitas vezes a avançada idade e nunca dei por que se sentisse fatigado. Uma ou outra vez o capitão enviou-o sozinho ao outro lado da fronteira, com a missão de recolher informes sobre a presença, guarnição e movimentações IN. Contornava sem dificuldade as armadilhas que eu e o Ângelo Silva tínhamos sempre montadas no caminho (algumas dezenas em toda a zona operacional).

Outros homens importantes foram os caçadores nativos, à conta dos quais nos deliciámos inúmeras vezes com peças de caça, especialmente os bifes de gazela de tão boa memória. Um deles era o experiente nº 4/65, Aliú Jaló; o outro, Ussumane (Baldé?), que viria a distrair-se e a pisar uma mina antipessoal já perto do cruzamento de Ganturé (debaixo de um velho e já meio ressequido limoeiro bravo). Certa altura, ao cair da noite, ouvimos um rebentamento que logo identificámos como proveniente de um desses engenhos.

Aconteceu muitas vezes sentirmos rebentamentos originados pela passagem de animais (os de maior porte) que pisavam minas ou accionavam armadilhas e morriam. Por exemplo, uma hiena – em vão, ainda tentámos alimentar durante uns dias, com leite em pó, um dos filhotes que sobreviveu ao rebentamento; um leopardo, – infelizmente para o Lopes Silva, que bem tentou “baratinar” o Camisa Conté a retirar-lhe a pele para mandar curtir e enviar à namorada, mas já tinham passado três ou quatro dias quando lá fomos e naquele estado de decomposição o persuadido negou-se; houve pintadas (galinhas-do-mato) que arrastaram fios-de-tropeçar, e, num belo dia, ao fundo da pista velha, um lindíssimo e corpulento gorila sucumbiria aos ferimentos duma mina AUPS.

Na manhã seguinte, bem cedinho, a família de Ussumane (tinha várias mulheres) entrou pelo aquartelamento dentro a reclamar que o fôssemos buscar a Ganturé, pois de certeza teria sido ele, saído na caça, quem accionara a mina. Lá me levantei da cama, mobilizei uma secção do 2º pelotão e fui a esfregar os olhos picada adiante, com as mulheres a algaraviar atrás de nós (infrutíferas as tentativas para que se calassem ou nos ficassem a aguardar pelo caminho). No local não encontrei corpo algum, só um monte cintilante de formigas negras e luzidias. Depois de as vergastarmos com arbustos e ramos de árvore é que começou a aparecer o corpo do caçador. Tinha um pé amputado e devia ter perdido muito sangue durante a noite. Porém, a expressão com que se finou sugeria que a causa da morte devia ter sido a asfixia, devido aos milhões de formigas que se apoderaram do corpo ainda vivo mas imobilizado no chão, cobrindo-o literalmente.

Há muito esperados, chegaram em três lanchas os homens da rendição, era o dia 8 de Fevereiro do ano da graça de 1973! Os periquitos ficaram connosco durante um período de sobreposição. Assim, fomos rendidos no subsector de Gadamael pela CCaç 4743/72, de origem açoriana, comandada pelo capitão miliciano de infantaria, Manuel Bernardino Maia Rodrigues, Seguimos para Bissau no dia 4 de Março, a partir das 7 horas (a bordo de uma LDG), onde efectuámos também um período de sobreposição e rendemos a CCaç 3373. Os Marados de Gadamael passaram a efectuar a protecção e segurança das instalações e populações da área e a colaborar em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim. Uma dessas colunas, envolvendo dois pelotões nossos, “estendeu-se” a Binta e a Guidaje, aí permanecendo sitiada durante quinze dias.

É a memória testemunhal, e também opinativa, desses longos dias, que vou tentar transcrever nas páginas seguintes. Tentarei integrá-la no contexto histórico que se vivia na Guiné no já longínquo mês de Maio de 1973, embora a generalidade das explicações se destine, como é óbvio, sobretudo àqueles que por lá não passaram e nunca tiveram qualquer familiaridade com a Guiné nem as causas e efeitos da tão dura quanto injusta e desnecessária guerra que ali se travou.

Algumas das unidades (ou partes delas) com quem os dois pelotões da CCaç 3518 estiveram, ou com quem se cruzaram durante tão malfadado período: Companhia de Caçadores 19 (africana, sediada em Guidaje, criada em Dezembro de 1971), Companhias de Caçadores nº 3, nº 14 (também africanas), Companhia de Comandos nº 38, Pelotão de Artilharia nº 24, Companhia de Caçadores Pára-quedistas nº 121, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 7, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 1, Pelotão de Morteiros nº 4247, Batalhão de Caçadores 4512, Companhia de Cavalaria 3420, Companhia de Caçadores sediada em Cuntima, Batalhão de Comandos Africanos e Grupo Especial do Centro de Operações Especiais do alferes Marcelino da Mata (entretanto, coronel na reserva).

A companhia viria a ser substituída a 5 de Julho de 1973 no subsector de Brá (COMBIS) pela CCaç 3414, tendo sido transferida para Bafatá na semana seguinte (dia 11) a fim de substituir a CCav 3463. A 13 de Julho de 1973 (dia do meu 23º aniversário em que exagerei nos festejos, estando de sargento de dia, e em que ia sendo preso, mas isso é outra história!) a companhia assumiu a responsabilidade do subsector de Bafatá e, cumulativamente, a função de intervenção e reserva do BCaç 3884, tendo ainda actuado em reforço de outros sectores da Zona Leste, por períodos curtos. Os quatro pelotões da companhia estiveram frequentemente deslocados e reforçaram temporariamente unidades das regiões vizinhas (missões de serviço com as companhias do BCaç 3884, CCaç 3549, BArt 6523/73, CCaç 3548, CAOP 2, etc., mantendo actividade operacional nomeadamente em locais como Contuboel, Geba, Sonaco, Sare Banda, Xime, Xitole, Alimo, Canquelifá, Sare Bacar, Ponta Guerra, Porto Gole, Bambadinca Tabanca, Cheque, Cantauda, Bigine/Colufe, Maum de Meta, Cheual, Bajocunda, Sincha Bakar, Enxalé, Ponta Luís…

Entre 15 e 22 de Dezembro de 1973 os quatro pelotões participaram nas grandes operações “Dragão Feroz” e “Tudo Verde”. Na primeira, estivemos com o BArt 3873, CArt 3493 (então, em Fá Mandinga), CCaç 12, CCaç 21 (de Bambadinca, na altura comandada pelo tenente Jamanca), 20º e 27º pelotões de artilharia (10,5 e 14) e os Gemil’s 309 e 310; na segunda, todas com quatro grupos de combate, participaram ao nosso lado a CArt 3494, mais uma vez as CArt 3493 e CCaç 21, bem como o 27º pelotão de artilharia (14 mm), instalado em Ganjuará.

Nestes dias de emboscadas, golpes-de-mão e combates causaram-se baixas ao IN (um morto e vários feridos confirmados e, a julgar pelos rastos de sangue abundantes, mais mortes não confirmadas) e capturou-se algum material (por exemplo, uma espingarda semi-automática Simonov). Houve dois feridos graves das NT, evacuados de helicóptero, que não pertenciam à nossa companhia.

No percurso Mansambo/Jombocari/Mina, vários soldados foram vítimas de intoxicação alimentar, e vários deles desmaiaram, devido à má qualidade da ração de combate (nº 20) que lhes tinha sido distribuída. O principal objectivo da segunda operação seria destruir um suposto hospital IN que, diziam as informações, estaria a funcionar em Fiofioli (de facto, antiga base guerrilheira, ainda nos anos sessenta). Todavia, quando após várias peripécias chegámos ao destino, nada se confirmou, nem sequer havia quaisquer vestígios IN no local.

Estas informações, geralmente não se obtinham através dos serviços especializados do exército, era a PIDE/DGS que dizia obtê-las através de informadores próprios. A polícia política praticamente determinava as operações que as forças armadas deveriam efectuar. À excepção do chefe Allas, – que há quem diga ter sido tecnicamente competente nesse domínio (por se comportar mais como militar do que como polícia), – pelo menos na região de Bafatá, enquanto lá estivemos, as informações vindas daquelas bandas revelaram-se na esmagadora maioria das vezes uma grande treta, falsas ou ineficazes, criadas provavelmente só para mostrar serviço. O certo é que bastava qualquer agente “botar faladura” no comando operacional que esta, em vez de mandar confirmar as tais fontes, fazia a vontade à corporação e lá íamos nós feitos otários à pesca de cubanos e gajos loiros no mato, à cata de “armazéns do povo” e hospitais, como quem vai aos “gambuzinos”…

Também dizem os especialistas que a polícia política teve, durante determinados períodos, alguns informadores e agentes infiltrados nas fileiras do PAIGC, inclusive em contacto ou com acesso aos mais altos responsáveis do partido, (e isso viria a confirmar-se a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacry), mas nós ficámos sempre com a ideia de que os informadores a um nível mais baixo deveriam ser muito fraquinhos.

Na Guiné, a PIDE tinha uma delegação em Bissau, sub-delegações em Bafatá, Mansoa, Bissorã, Bula, Teixeira Pinto, Cacheu, Farim, Cuntima, Cambaju, Sare Bacar, Pirada e Nova Lamego, e ainda postos em São Domingos, Ilha Caravela e Cacine. Os quadros nem eram muitos (entre 75 e 85 no ano de 1973): cinco inspectores e inspector adjunto, dois subinspectores, sete chefes de brigada, dezoito agentes de primeira classe, vinte e oito de segunda e estagiários, quatro motoristas e três guardas prisionais. Possuía ainda meia dúzia de funcionários técnicos (rádio-montadores e rádio-telegrafistas), outros tantos contínuos e serventes, além de quatro escriturários para as folhas de caixa e processamento de salários, subsídios extraordinários e ajudas de custo. Depois, é claro, havia uma rede de informadores e, para sua vergonha, os comandos militares tinham instruções rigorosas de como proceder com eles (na Guiné, instruções dimanadas da Directiva 63/68.SECRETO.AM).

Em suma, “autóctone que se apresente para prestar informações exclusivamente à PIDE/DGS deve ser considerado informador secreto, canalizado para o agente local ou, não existindo, deve-se providenciar o transporte para Bissau e entregá-lo na delegação desta polícia”. É expressamente proibido fazer interrogatórios a estes informadores! Ao arrepio dos interesses e da estratégia militar, a PIDE chegou a ser considerada responsável por provocações sangrentas com o objectivo de criar ondas de terror e responsabilizar o PAIGC.

Em Novembro de 1965, em Farim, teria mandado lançar uma bomba para o meio de uma festa popular, provocando a morte de uma centena de pessoas, para colocar a culpa nos “terroristas” e revoltar os cidadãos locais. A propaganda, ou notícia de choque sobre a “explosão terrorista”, chegou à opinião pública internacional, mormente através das páginas do New York Times…

Os serviços de “Informações e Operações de Infantaria” revelaram-se muito mais eficientes na observação dos movimentos IN, enviando às “zonas libertadas” ou aos outros lados das fronteiras, milícias, caçadores nativos, guias, etc., até a pretexto de irem visitar familiares e, no regresso, ficávamos a conhecer, por exemplo, o número de efectivos, as deslocações havidas, o armamento recebido. Aliás, o PAIGC fazia rigorosamente o mesmo, no sentido contrário.

Nos dias seguintes (23 a 31 de Dezembro de 1973) a companhia executou o plano “Bafatá Impenetrável”, do BCaç 3884, que contou com diversas operações, e, já em 1974, na mesma zona de acção, as operações “Garota Nua”, “Madeirense Teimoso”, “Zorro Galante”, “Indomáveis Patifes” e “Leme Seguro” (cito apenas as operações em que participámos lado a lado com outras unidades e não todas as que efectuámos ao longo da prolongada comissão de mais de 27 meses).

Embora terminando a comissão em Outubro de 1973, após diversas datas prováveis para o regresso ao Funchal, (sempre com a frustração do desmentido posterior), a 15 de Fevereiro de 1974 fomos rendidos pela CArt 6252/72, recolhendo ao Cumeré para aguardar o regresso. A CCaç 3518 embarcaria no paquete Niassa a 28 de Março, com destino à Madeira, onde desembarcou a maior parte das praças e o capitão, tendo o pessoal do Continente alcançado a Rocha do Conde d’Óbidos (Lisboa) a 3 de Abril de 1974.
__________

Notas de CV:

(*) Daniel Matos foi Fur Mil da CCaç 3518 (1972/74) que esteve em Gadamael

Vd. poste de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5981: Tabanca Grande (208): Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5513: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (19): Referências a lugares

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2009:

Caro Carlos:
Desta vez o atraso no envio da estória deve-se a muitos factores: Uma ida ao “meu” Nordeste, uma ida a Espanha, etc.

Mais uma vez te digo que esta estória parece grande mas só porque tem muitas fotos. Acredita que gostaria de pôr mais algumas, mas irão noutra altura.

Gostaria muito que o Humberto Reis mostrasse as fotos à D. Rosa e sua família, onde penso que estariam as suas filhas e me dissesse alguma coisa.

É o primeiro Natal que passo na Tabanca Grande (e na Pequena também).
A todo o pessoal das duas tabancas (e das outras também), sem excepções, desejo para esta quadra (e para as outras também) o que, neste mundo, há de melhor.


Um grande abraço a todos.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

19 – Referências de Bafatá – Lugares


Já numa outra estória referi que os alferes do Agrupamento iam fazer as refeições no Esquadrão, ali ao lado. Primeiro a messe era gerida, mensalmente, por cada um de nós. Porém, quando em Novembro de 69 esse Esquadrão foi rendido por outro, comandado pelo Cap. Fernando Vouga, este determinou que a messe dos 6 ou 7 alferes, fosse gerida por um sargento. Um desastre.

Como o Esquadrão tinha uma horta de onde vinham algumas hortaliças e em Bafatá havia carne e peixe à disposição, podia-se comer muito bem. O Sr. Sargento é que teria outras ideias em mente e os pratos à base de carne gordurenta de porco (a mais barata) sucediam-se.

No último mês da minha comissão comecei a sentir-me doente do estômago, ou do fígado ou das duas coisas. Outros alferes também andavam descontentes e acabaram, como eu, por desarranchar-se. É assim que surge o primeiro lugar a descrever.


O Café Restaurante Transmontana

Quando já não conseguia reter no estômago qualquer refeição mandada confeccionar pelo Sr. Sargento resolvi, in extremis, passar a comer no Transmontana, só peixe e frango cozidos com arroz. Felizmente ao fim de dois dias chegou a mensagem para vir embora.

Neste Blog já foi muito falado o Transmontana, situado numa esquina da avenida principal, à esquerda quem descia. Muitos já se referiram ao bife com batatas fritas e ovo a cavalo que ali se servia mas eu nunca antes tivera necessidade de lá ir comer. Ia, sim, muitas vezes tomar café ou comer uma sande, embora o pão fosse mau, parecia borracha.

Uma vez estava sentado na esplanada com a minha mulher que começou a conversar com o empregado Infali. Era muito simpático mas tinha um ar muito triste. Durante a conversa referiu que tinha quatro mulheres. Talvez fosse essa a razão da tristeza…

Na esplanada do Transmontana com o empregado Infali.


As três tabancas

Ah, se fosse agora, com as máquinas fotográficas digitais…Muita pena tenho de não poder descrever por imagens, o muito que vi nos meus passeios às três tabancas. Muitas fotos tirei mas muitas mais ficaram por tirar.

A tabanca da Rocha, onde tive casa, situava-se na parte alta da cidade, ao nível dos quartéis do Agrupamento e do Esquadrão. Era a mais extensa, aquela onde havia melhores casas e também a mais populosa.

Por lá ter vivido pude assistir a muitos actos sociais dos nativos como choros, batuques, cristãos e balantas, casamentos (em que a maior parte das prendas consistiam em meias cabaças) e outras festividades.

Na época própria, creio que em Dezembro, chegavam, pela estrada do Gabú, carregamentos de mancarra em burros todos engalanados com motivos florais, muito coloridos.

Era também na tabanca da Rocha que se situava o bordel bataclã, numa rua paralela à estrada para Bambadinca. Na altura nunca o ouvi designar como tal; talvez o nome tivesse surgido com a telenovela Gabriela.

A tabanca da Ponte Nova, assim chamada por ficar na “estrada” que ligava Bafatá a Geba e em que existia a ponte mais recente da cidade, desenvolvia-se ao longo do caminho e ao lado do rio Geba. Nela havia uma comunidade de saracolés, que tingiam os panos de azul. Estes podiam ver-se ao longo da tabanca, pendurados, a secar nas vedações e nas beiradas das palhotas. Nessa tabanca ficava ainda a oficina do ourives Chame.

A tabanca da Ponte Nova. Ao fundo o Geba e a foz do Colufe.

A Ponte Nova (ou Salazar como não podia deixar de ser), que deu o nome à tabanca próxima.

A tabanca do Nema era a mais pequena. Ali ia de vez em quando assistir, ao fim da tarde, à saída dos morcegos (muito negros com 50 a 60 cm de envergadura) para as suas noitadas. Logo que saíam iam, em voo rasante, beber água ao rio. Recentemente li, num livro de contos mandingas, que não iam propriamente beber mas sim molhar a pelagem do peito donde, posteriormente lambiam a água. Durante o dia ocupavam duas ou três grandes árvores que, consequentemente, quase não tinham folhas.


O Mercado

Considero-o, no seu estilo neo-árabe, como o verdadeiro ex-libris de Bafatá. Como já lhe dediquei uma estória (poste 4769) não acrescentarei mais nada.

O mercado


Zona das lavadeiras

Perto do mercado e dum arranjo ajardinado onde existia um parque infantil, era uma zona sempre visitada. Ali atracavam grandes barcos que faziam a rota Bissau-Bafatá e que, a meu ver, tinham arremedos de veleiros. Mas eram as lavadeiras, em grande número, que atraíam mais pessoal.

As lavadeiras, os barcos e o Geba com as suas canoas.


A piscina

Entre o mercado e o rio havia uma piscina, um luxo para aquele tempo…No entanto a sua água não seria mais limpa que a do Geba.

Na piscina (uma varanda sobre o Rio Geba).


O restaurante do Sr. Teófilo

Embora já referido na estória anterior, nunca é demais realçar a sua posição estratégica numa encruzilhada de caminhos. Era muito agradável assistir da sua esplanada ao desenrolar da vida de Bafatá. Crianças a caminho da escola, mulheres a caminho do mercado, homens transportando as mercadorias mais diversas, militares que entravam e saíam de Bafatá. Também dali se viam chegar aviões e helis e, rumo aos celeiros, viam-se passar os burros engalanados carregados de mancarra.

Ao fundo o restaurante do Sr. Teófilo, na saída para Bambadinca

Da esplanada do Sr. Teófilo viam-se as crianças a ir para a escola, mulheres para o mercado…


Sintra de Bafatá

Era assim designado um caminho pouco conhecido, praticamente utilizado só pelo pessoal do Agrupamento e do Esquadrão, quando se queria chegar à parte baixa de Bafatá, gozando de uma sombra que não era possível utilizando a avenida principal. Do Agrupamento descia-se um desnível de 10 a 15 metros, junto à residência do Comandante do Esquadrão (a uns 50 m). No fundo situava-se a mãe de água que abastecia toda a cidade e um fontanário, à europeia, do qual já vi uma foto publicada no Blog. A água sobrante formava um riacho que se transpunha por cima do tronco de uma árvore caída. Junto da mãe de água partia um caminho, quase em linha recta até à parte baixa de Bafatá. Passar por ali era sempre interessante. Viam-se crianças a brincar e macacos à espera que alguém lhes desse algo para comer. Também era frequente ver lagartos com cerca de 1/1, 5 m atravessarem à nossa frente, de um lado para o outro, mas absolutamente inofensivos…

Entre a Mãe de Água e a casa do Cap. do Esquadrão existia uma zona com mesas para piqueniques. A esposa do Cap. Comandante do Esquadrão costumava dar, nesse local, umas festas de que falarei mais à frente.

Sintra de Bafatá. A caminhar da parte baixa da cidade para a Mãe de Água.

Na Sintra de Bafatá transpunha-se um pequeno riacho…


O cinema

Na rua paralela ao rio e mais perto deste, tínhamos um recinto, ao ar livre, onde se exibiam alguns filmes. Por causa das luzes, projectores, etc, surgiam inúmeros insectos que eram um bom repasto para os imensos morcegos que surgiam também, urinando frequentemente em cima dos espectadores. Já em tempos referi aqui que me tornei sócio do Sporting Clube de Bafatá, ao qual o cinema pertencia, para poder usufruir de entradas mais baratas. Creio que as sessões eram semanais e eu era frequentador assíduo. Passei a conviver com o porteiro Braima. Tivemos várias conversas sobre os mais variados temas locais pelo que aprendi muito com ele. Não sei quem escolhia os filmes mas, dum modo geral, os que ali se exibiam eram muito bons, até demais…Numa das sessões foi exibido o “Deserto Vermelho” de Antonioni. Após o intervalo a assistência ficou reduzida a metade…

O cartão de sócio, um bilhete de entrada e uma senha da cota mensal.


O café da D. Rosa

Quase em frente à sede do batalhão, era muito conhecido. Mas o que se pode achar um pouco estranho, e disso peço desculpa à D. Rosa, é que nunca lá entrei. Não recordo se alguma vez vi ou não a D. Rosa, mas as filhas penso que sim. Como era sabido eram umas belas adolescentes. Não sei se haveria libanesas feias, mas as que conheci quer em Bafatá, quer em Nova Lamego, eram duma forma geral belíssimas. Quando eu vim embora, um Alferes do Agrupamento, o Vaz (alentejano), estava para casar com uma moça libanesa, penso que de fora de Bafatá, e que era duma beleza extrema.

Quanto às filhas da D. Rosa penso que as conheci muito bem, pois costumavam participar nas festas que a esposa do Cap. do Esquadrão costumava dar na zona de piqueniques da Sintra de Bafatá, ao lado da sua casa, onde se comia, bebia e… dançava.

À esquerda a sede do Batalhão e à direita o café da D. Rosa.

Um dos piqueniques, na Sintra de Bafatá, em que penso poderem estar as filhas da D. Rosa.

Um grupo de convivas no mesmo piquenique.

Fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados


Não prometo ser “até para a semana”. O mais certo ser “até para o ano” camaradas...
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5384: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (18): Referências de Bafatá - Figuras típicas

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5262: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (16): O baptismo de fogo da Regina, ou um Capitão não é um Capitão

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro Carlos:
Mais uma estória para a série A Guerra Vista de Bafatá. Parece grande mas é por causa das fotos. Se a publicares, agradecia que mantivesses a sequência texto/fotos, pois está tudo interligado. As fotos só terão sentido dessa maneira.

Ainda outro assunto: Tenho reparado que algumas frases que tenho mandado em itálico não aparecem postadas dessa maneira. Penso que isso terá mais a ver com a NET e que não chegará aí o dito itálico. Se me pudesses dizer algo sobre isso muito agradecia, pois nesta estória a parte em itálico das legendas reporta-se à correspondente parte do texto.

Desde já agradeço.

Um abraço.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

15 – O meu (dela) baptismo de fogo, ou um Capitão não é um Capitão

Duas notas prévias:

1 - Esta estória, como sempre autêntica, é toda da minha inteira responsabilidade, apenas coloco a narrativa na voz da minha mulher, por ter sido por ela vivida. Só lamento não ser ela própria a contá-la pois imprimir-lhe-ia uma melhor qualidade e sobretudo uma sensibilidade que eu não conseguirei exteriorizar.

2 - Os versos incluídos são de Sérgio Godinho, da faixa Fotos do Fogo do CD Tinta Permanente.



Nos anos sessenta não havia a liberdade de que agora usufruímos. Recordo, como exemplo, que quando era professora em Braga para adquirir certas revistas, consideradas de esquerda, como os Cadernos Gedoc e a Seara Nova, ia ter com um livreiro meu conhecido que mas entregava já devidamente embrulhadas e fora das vistas dos demais clientes.

Toda essa falta de liberdade trazia como consequência que as notícias relevantes, ou não chegavam a ver a luz do dia, ou eram deturpadas pelos homenzinhos do lápis azul. Quero com isto dizer, que qualquer notícia menos favorável ao regime vigente e oriunda da Guiné, e não só, vinha sempre por caminhos enviesados, logo, tanto podia ser mais ou menos verdadeira, como redondamente falsa.

Um dia, de 1969, com o meu marido na guerra, na Guiné, chegou-me aos ouvidos, por intermédio de uma amiga em quem depositava bastante confiança, que a Província tinha sido tomada pelos guerrilheiros nacionalistas. Penso que nessa altura seria o culminar de outras notícias, em surdina, referindo alguns reveses das nossas tropas (dezenas de mortos no Ché Che, etc.) em contraponto com a habitual falta de informação estatal sobre a verdadeira situação.

Coincidência das coincidências: Já há alguns dias que não recebia os habituais aerogramas do Fernando, meu marido, e cúmulo dos cúmulos, telefonando de imediato para o Comando de Agrupamento, onde ele se encontrava, uma telefonista (pois nessa altura as ligações passavam por várias), disse-me que de momento não era possível estabelecer a ligação com a Guiné pois havia um corte nas comunicações. Pânico, desespero, raiva… entorpecimento. Penso que passei por todos os estados de alma possíveis.

Com uma troca de telegramas tudo se esclareceu. Tinha havido apenas uma avaria nas comunicações.

Foi um pouco debaixo desta tensão que fui duas vezes à Guiné passar umas temporadas com o Fernando.

Da primeira, fui passar as minhas férias de Agosto e Setembro. O Fernando estava em Bissau à minha espera e acabámos por ficar instalados em casa duns amigos, a família Taveira, situada junto ao Estádio de Futebol, não longe do bairro do Pilão.

Por volta da uma da manhã estávamos já no primeiro sono quando fomos acordados, ao que pensei, por três ou quatro fortes rebentamentos ali muito perto. Sentados na cama não ouvimos mais qualquer ruído estranho e nem dentro de casa os nossos anfitriões deram sinais de si. Estranho… Ainda pensei que seria o meu baptismo de fogo, como na tropa se dizia.

Logo o Fernando me foi dizendo que deviam ser os obuses a fazer tiro para o outro lado do rio Geba, para a zona de Tite. Como já me tinha falado nos obuses de Piche que até se ouviam em Bafatá, fiquei mais calma. Soube depois que me dera aquela explicação para me acalmar pois acreditava serem rebentamentos na cidade, a primeira flagelação a Bissau. Também depois me disse que não ficou preocupado connosco pois achava que a tropa toda que estava na zona de Bissau resolveria a situação. Assim eu, na ignorância, e ele com mais de um ano de Guiné adormecemos novamente.

Na manhã do dia seguinte perguntamos ao senhor Taveira, que já tinha saído à rua, se sabia o que tinha acontecido. Resposta breve:

- Já não é a primeira vez que os Fuzileiros vêm fazer desacatos no bairro do Pilão e desta vez rebentaram lá umas granadas…

Mais tarde, em Bafatá, viemos a saber que o Geneneral Spínola mandou esses Fuzileiros para uma operação de oito dias na ilha de Como.

Destas estadias na Guiné já dei conta em estórias anteriores. Vivi lá momentos inolvidáveis. A África, sempre a África, os odores tão característicos, o vermelho da terra de tom tão singular, a pureza das gentes, o olhar e o sorriso das crianças, o colorido das vestes, o verde das matas, os pescadores nas suas canoas, o transbordar dos rios na época das chuvas, as tempestades diárias mas belas com o seu relampejar ao longe.

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e de corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

………..
………..

Foto 1 > O vermelho da terra de tom tão singular. Na tabanca da Rocha em frente à minha casa. Atrás de mim era a casa do Cap. protagonista desta estória.

Foto 2 > A pureza das gentes. Tabanca da Rocha (foi a partir deste momento que ficámos a saber, eu e o Fernando, que os bebés africanos nasciam completamente brancos e só depois iam escurecendo.

Foto 3 > O olhar e o sorriso das crianças. Na tabanca da Rocha em Bafatá.

Foto 4 > O colorido das vestes. No Mercado de Bafatá.

Foto 5 > O verde das matas. Algures entre Bafatá e Candemba Uri.

Foto 6 > Os pescadores nas suas canoas. No rio Geba em Bafatá.

Foto 7 > O transbordar dos rios na época das chuvas. Na ponte do rio Colufe com a água a chegar aos meus pés.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


…………
…………
O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas

…………
…………

Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas


Na segunda ida à Guiné fui passar as férias de Natal de 1969. Mais uma vez fiz escala na ilha do Sal em Cabo Verde e mais uma vez tive aquela sensação estranha ao sair do avião: A terrível humidade, que trespassando a roupa tornava todo o corpo pegajoso. O Fernando já me tinha marcado um lugar no Dakota desse dia pelo que, e já não sendo periquita, iria sozinha ter com ele a Bafatá. Quando já estava a entrar para o avião, aparece um oficial de patente algo elevada, que em atitude nada elevada foi dizendo que eu não podia embarcar pois ele e a esposa, mesmo sem marcação, tinham que ir sem falta.

Mais tarde vim a saber que era o actual Comandante do meu marido, Coronel Neves Cardoso. Telefonei ao Fernando, tendo ele vindo nesse mesmo Dakota ter comigo. No mesmo dia fomos para Bafatá, penso que num quadrimotor Eron, civil.

Chegados lá à tarde, o Fernando foi trabalhar para o Agrupamento e eu fiquei a rever o que foi a nossa primeira casa. Parte da tarde passei-a à conversa com as crianças já minhas conhecidas, o Carlos o Adrião e a Angelina e entreguei-lhes os presentes que trouxera.

Perto da nossa casa, na tabanca da Rocha morava agora um casal, um Capitão e a esposa. Esse Capitão estava lá há pouco tempo pois em Setembro não o tinha visto por lá. Numa atitude simpática convidaram-nos para jantar com eles essa noite.

Como o Fernando trabalhava todos os dias até às oito da noite fui mais cedo para a casa do senhor Capitão.

Seriam umas sete e meia quando se começaram a ouvir rebentamentos. O Capitão foi à rua e logo tornou a entrar dizendo que pelo som das explosões e porque se viam os rastos das granadas e dos projecteis tracejantes, estariam a atacar Bafatá. Disse que se ia a apresentar no quartel e que nós as duas fechássemos tudo e nos agachássemos junto de uma parede mestra.

Ali estava eu agora, com o meu baptismo de fogo. Desta vez era a sério. Um Capitão é um Capitão. Era pois um ataque e o Fernando não estava ali. Em nossa casa ele tinha um pequeno arsenal, para uma possível defesa, ali só uma parede mestra…

Às oito aparece o Fernando, nas calmas, pois tinha trabalhado até essa hora, pôs-nos à vontade e foi-nos dizendo que não tinha sido nenhum ataque a Bafatá mas sim ao aquartelamento da tabanca de Geba, distante uns dez quilómetros. O meu marido já tinha assistido a vários.

Para a semana, por falar em Geba e outra vez na primeira pessoa, vou contar a minha ida lá, propositadamente para olhar na cara o que achava que seria um nazi fugido depois da segunda guerra mundial. Poder-me-ia ter saído muito caro….

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5232: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (15): Uma estória de faca e alguidar

domingo, 2 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P654: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (6): as primeiras Chaimites para o Exército Português

Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 (1969/71> Viatura Chaimite anfíbia com canhão. As primeiras que foram distribuídas às NT. © Manuel Mata (2006)


Texto do Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47 > VI Parte da História do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (*)

Junho de 1970:

Mês trágico para o Furriel Mil Humberto Sertório Fonseca Rodrigues que sofre um acidente no quartel ao deslocar-se ao gabinete do Comandante do Esquadrão (na altura Capitão de Carreira Fernando da Costa Monteiro Vouga, hoje Coronel na reforma), para atender um telefonema de Lisboa, da mãe.

E enquanto almoçava, este, ao entrar a correr no gabinete fez estremecer o soalho, tremeram os móveis, caiu um dilagrama que estava exposto em cima de um dos móveis e que explode. Esse dilagrama era um de dois por mim encontrados, junto da ponte do rio Colufe, numa tarde de pesca com tarrafa (rede de lançamento, cónica), não sendo este conhecido no nosso exército, na altura.

O Capitão, quando o viu na arrecadação de material de guerra e aquartelamento, pediu-me que, antes de os depositar no paiol subterrâneo, lhe desse um para observação.

Ainda hoje, quando recordo esta cena, vendo um corpo a rolar no chão, sinto alguma angústia, embora o Humberto Sertório se encontre bem, continuo com alguma dor… (Certamente alguns dos camaradas desta caserna, deste blogue, conhecem este camarada, foi Fundador e Presidente de ADFA – Associação dos Deficientes das Forças Armadas).


Agosto de 1970:

Mais um elemento do Esquadrão evacuado por doença, o Apontador de CCM 47, João Vicente Pereira Constantino.

Verificou-se ainda neste mês, no itinerário Piche – Nova Lamego, uma emboscada pelo IN a uma viatura civil. Acorreram os homens do Pel Rec que, ficaram surpreendidos por se tratar de uma viatura civil. Explicação do motorista: ultimamente não tinha entregue a sua contribuição (sacos de arroz e feijão) aos homens do PAIGC da região.



Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 (1969/71)> Uma das oito Viaturas White distribuídas ao Esq Rec Fox 2640. Rápida também em picadas, com bom poder de fogo devido ao carril onde as metralhadoras eram montadas, podendo deslocar-se para qualquer ponto frontal ou lateral da viatura, era ao mesmo tempo um excelente abrigo devido à sua forte estrutura metálica. Tornava-se, porém, difícil a sua deslocação na época das chuvas. © Manuel Mata (2006)


Setembro de 1970:

As oito viaturas White, distribuídas ao Esq começaram a ter problemas mecânicos, não havia material sobressalente em armazém, para reabastecimento, tendo esta situação leavdo a uma diminuição da nossa actividade operacional.

Neste mesmo mês um camarada do Esq é punido, com quatro anos e seis meses de presídio militar, por insubordinação (ameaça de lançamento de granada de mão ofensiva durante a noite, ou de G3 em posição de rajada, na caserna, quando todos estavam a descansar, etc.)... Lá fugia toda a malta em cuecas para a parada, com medo do Mouraria, que acabava a rir à gargalhada!!!

Conclusão: seguiu para Bissau, com destino ao Forte de Elvas, donde saiu beneficiando de uma amnistia pela morte de António Oliveira Salazar (1), não sendo por nós conhecida a sua situação desde essa data.


Mês de Outubro de 1970:

O Pelotão destacado em Piche fez mais uma das muitas escoltas, a Nova Lamego, sofreu uma forte emboscada, as viaturas White reagiram de imediato pelo fogo e movimento. Uma delas foi atingida por sessenta tiros e um dos nossos atiradores teve uma reacção inesperada e de grande bravura, sai da viatura para o meio da picada de bazuca em punho, mantendo-se ali de pé até disparar todas as granadas que havia de momento...

Apenas sofreu queimaduras ligeiras no rosto o nosso bravíssimo camarada Eduardo Pereira Subtil (mais conhecido pelo Minhoca). Houve um outro militar ferido mas sem gravidade. As forças escoltadas sofreram um morto e sete feridos.

Notava-se na zona um aumento significativo das ameaças e flagelações pelo IN, basta recordar o dia 25 de Outubro, mais uma em Piche sem consequências para o Pelotão Rec, mas o mesmo não aconteceu aos militares do Batalhão que sofreram um morto e um ferido, e também quatro feridos da população.
Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 (1969/71)> Algum do material de guerra capturado ao IN ao longo dos meses na zona de Piche.

© Manuel Mata (2006)

No mesmo período outro Pelotão ao fazer uma escolta Bafatá – Xime – Bafatá foi atacado pelo IN com morteiro e armas ligeiras. As nossas forças reagiram em colaboração com as forças estacionadas no Xime, não tendo havido consequências, para as NT.

Logo, a seguir 5 de Dezembro, foi atacada a tabanca de Bambadinca. Neste período é de salientar a vinda à Metrópole de um Alferes, do Primeiro-Sargento Mecânico, e de cinco Praças, afim de receberem cinco viaturas Chaimite, destinadas a este Esq. Havia uma certa expectativa pois eram as primeiras viaturas do tipo para o Exército Português.

Estava assim decorrido o primeiro ano de Guerra e eis que chegou o segundo Natal na Guiné. Algumas mensagens para a família pela rádio e pela televisão, toda a gente em fila indiana numa corrida para o microfone (Sou o …, de …, Minha querida Mãe e Pai, e restante família, estou bem, até ao meu regresso!), lá fica toda a gente mais feliz.

Não podemos esquecer a lembrança posta na Bota, entregue pelo MNF Português(carteira contendo um maço de tabaco e um isqueiro)... Para muitos de nós era humilhante, tratar assim quem tudo dava incluindo a própria vida, por uma causa que não era nossa.

Para os amigos que gostam de quadras com algum sentido crítico/satírico, já comecei a publicar algumas, que são da autoria do meu amigo José Luís Tavares, homem de transmissões, companheiro do Esquadrão e das lides de organização dos convívios anuais (3).
______________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores
2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (5): Foguetões 122 mm no Gabu
2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXI: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (4): Elevação de Bafatá a Cidade

25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (3)

3 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (2)

2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

(2) Salazar morreu em 27 de Junho de 1970. Poucos de nós, na Guiné, demos pela ocorrência e menos ainda a lamentámos.

(3) Vd post de 31 de Março de 2006 >

Guiné 63/74 - DCLXV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (1): Obras em Piche.

Guiné 63/74 - DCLXVI: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (2): Piche, BART 2857

sábado, 25 de março de 2006

Guiné 63/74 - P633: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (3)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1970 > Vista aérea da sede de concelho de Bafatá, elevada a cidade em Março de 1970. Vista da bela mesquita local.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).





Texto do Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47 > III Parte da História do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (*)


Guiné > Bafatá > 1970 > Vista aérea em época seca, vendo-se a posição do aquartelamento do comando do Agrupamento e do Esquadrão na parte superior da foto. © Manuel Mata (2006)


Guiné > Bafatá > Vista parcial do quartel do Esquadrão. À esquerda oficina, messe de sargentos e messe de oficiais ao fundo e gabinete do Comandante, onde ocorreu o acidente do Furriel H. Sertório (vd. sinalética na foto seguinte). © Manuel Mata (2006)

Guné > Bafatá > Vista parcial do quartel. À direita depósito de géneros e caserna do pessoal de comando e serviços. Ao fundo duas casernas dos pelotões operacionais e residência do comandante junto das árvores. © Manuel Mata (2006)



O Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) era constituído por:

1 Pelotão de Comando e Serviços;
3 Pelotões de Reconhecimento, equipados com as seguintes viaturas:

- Três Auto Metralhadoras DAIMLER
- Duas Auto Metralhadoras FOX
- Um Granadeiro com blindagem lateral sendo a sua guarnição composta por atiradores.
- Um Unimog cuja secção tinha um morteiro 81.



Guiné > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 > Vista parcial. Entrada da cozinha e refeitório do lado esquerdo; viatura Fox frente à oficina e paiol ao fundo do lado direito. © Manuel Mata (2006)


Pelo Comando do Agrupamento Leste 2957 foi entregue o plano de operações Cavalo Veloz das quais faziam parte entre outras, (i) efectuar patrulhamentos de reconhecimento, (ii) manter contactos com as populações, (iii) participar na defesa próxima de Bafatá em colaboração com o Batalhão aí sediado, (iv) ter em permanência um pelotão de Reconhecimento em Piche em coordenação com o Batalhão ali estacionado, (v) realizar escoltas solicitadas pelo Comando do Agrupamento, (vi) fazer segurança à pista de aviação, (vii) assegurar a liberdade de movimento nos itinerários que irradiam de Bafatá, com destaque a estrada de Bambadinca – Bafatá – Nova Lamego, sempre em estreita colaboração com a rapaziada do Batalhão de Bafatá e de Galomaro, no sentido de controle das populações num raio considerável. Exercendo assim um esforço de acção psicológica sobre as populações, tendo sempre por objectivo uma campanha educativa e de formação social.


Guiné > Bafatá > Esq Rec Fox 2640 > Vista parcial, canto da sucata e parte do ringue de futebol 5 ao fundo do lado direito. Pista de aviação ao fundo e casa do serviço meteorológico.
© Manuel Mata (2006)

Em 26 de Novembro de 1969 segue para Piche o 3º Pelotão para render o Pelotão ali destacado pelo Esq 2350 (certamente terão também estes camaradas muito para nos contar da sua passagem pela Guiné, aguardamos…), pelotão esse que veio a ser rendido em 26 de Dezembro acusando um enorme esforço pelo trabalho efectuado ao longo do mês, salientando as patrulhas efectuadas às tabancas de: Madina Bonco, Sinchã, Assumani e Tabatô, onde foram detectadas e levantadas 21 minas A/P e uma A/C. O esforço reflectiu-se particularmente nas viaturas pois algumas vieram a reboque, tal era o seu estado!

No dia 29 de Dezembro de 1969 este Pelotão, destacado em Piche, teve o seu baptismo de fogo, foi uma flagelação com certa gravidade, não tendo os nossos homens sofrido qualquer baixa ou ferido. Estes mostraram a sua garra, patrulharam activamente as picadas da tabanca de Piche, no sentido de expulsar o IN infiltrado durante a flagelação. As tropas estacionadas em Piche sofreram 3 mortes e 2 feridos graves.

Em Janeiro de 1970 recebe o Esq a missão e montar guarda permanente à ponte do Rio Colufe, perto de Bafatá, com alguma estranheza pois estava o Esq preparado e motivado para actividades mais dinâmicas.


Guiné > Bafatá > Ponte do Rio Colufe com a sua celebre estrutura em troncos de palmeira, junto da qual foram encontrados os dois dilagramas. © Manuel Mata (2006)


Dia 29 de Janeiro é rendido o Pelotão Rec. destacado em Piche, continuou a acentuar-se significativamente o esforço dispendido por homens e viaturas, assim foi continuando a vida do Esq. (mina aqui e acolá, levantada ou destruída sem estragos pessoais, patrulhas e escoltas permanentemente).

Nesta mesma data o Comandante-chefe General Spínola visita as tropas de Bafatá reunindo em formatura geral na sede do Esq. Rec. Feita a apresentação da formatura, ditas algumas palavras pelo General Spínola, de boas-vindas, juntou os militares ao seu redor e ali falou ao coração dos praças, chegando mesmo a comentar a dificuldade em homens e material de guerra para a defesa da zona. Era a decadência visível do sistema aos olhos de todos!

Lá foram decorrendo as semanas, os meses, com muitas escoltas, patrulhas, psicos, flagelações constantes na zona de Piche, felizmente continuavam os nossos destemidos homens com as viaturas a cair em pedaços, a fazer o que parecia impossível, mas sempre havia tempo para ir ao Café do Tofico, beber uma cerveja!

Quando se chagava a Bafatá, para retemperar forças lá vinha um fim-de-semana, uma folga, que era reconfortante, com uma ida ao cinema, ao café da D. Rosa, do Teófilo (1), da Transmontana, ao Bataclã, à piscina da nossa bela Bafatá que, em 12 e 13 de Março de 1970, teve as cerimónias de elevação a cidade, onde esteve presente o Ministro do Ultramar.


Guiné > Bafatá > Bataclã, um dos pontos de lazer e divertimento da rapaziada.
© Manuel Mata (2006)
(Continua)
__________
Nota do autor
(1) Café do Teófilo: À saída de Bafatá, na estrada para Bambadinca. Este homem era sobrevivente de um grupo desterrado para a Guiné nos anos 30. No período da guerra era apontado como sendo informador do IN. Foi pessoa com quem me dei particularmente bem, pois tinha pelos alentejanos (em especial de Portalegre) um carinho especial. Era sítio que eu visitava com alguma regularidade, tomava-se uma cerveja gelada, com alguma descrição, acompanhada de uma breve conversa. Era uma pessoa de parcas palavras.
_____

Nota de L-.G.

(*) Vd post anteriores:

2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

"No ano de 1969, mês de Agosto, com a apresentação no Regimento de Cavalaria 8, em Castelo Branco, foram mobilizados, para o T.O. da Guiné, os 142 militares que vieram a formar o Esq Rec Fox 2640, mais o Pelotão Rec Fox 2175, este independente e composto por 38 militares.

"Terminado o período de organização do Q.O. da unidade, veio a I.A.O. [Instrução de Aperfeiçoamento Operacional] durante o mês de Setembro de 1969. Aí começou a guerra: o exército não tinha viaturas AM Fox, disponíveis para instrução na Metrópole, as poucas AM Daimler tinham feito Pum!!!, na última instrução de especialidade de 1969.

"Ficámos então esclarecidos da razão que levou à nossa mobilização, os 16 apontadores de Carros de Combate M47, coisa que ainda não tinha acontecido até então, em todo o período de guerra. Como não podia haver especialidade de apontador AM Fox e AM Daimler, socorreram-se dos apontadores CCM47, do RC 4, de Santa Margarida, grupo de especialidade terminada em Maio de 1969 (...)"

3 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (2)

quinta-feira, 28 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P8: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1)

Extractos de História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 1-3.


Capítulo II - Actividade da CCAÇ 12 no TO da Guiné

1.Intervenção ao Agr 2957 (Zona Leste)

Atendendo à origem étnico-geográfica das suas praças africanas, e por sugestão do Comando-Chefe, a CCAÇ 2590 ficou radicada em "chão fula", em Bambadinca, constituindo uma unidade de intervenção ao agrupamento 2957 (hoje COP 2) e ficando pronta a actuar à ordem de qualquer dos sectores da Zona Leste (em especial nos Ll, L3 e L5).

A partir de Janeiro de 1970, a CCAÇ 2590 passaria a designar-se por CCAÇ 12 por ter sido considerada uma unidade da guarnição normal.

Durante a actual comissão [ Maio de 1969 / Março de 1971 ], a CCAÇ 12 actuou no Sector L1 às ordens do BCAÇ 2852 (até Maio de 1970) e do BART 2917 (até Fevereiro de 1971), tendo estado uma única vez em reforço temporário a outros tectores (l Cr Comb no L2 durante a 1ª quinzena de Agosto de 1969).

2. Sector Ll

2.1. Referências - Cartas 1/50.000


NAMBOCÓ / BAMBADINCA / BAFATÁ
FULACUNDA / XIME / DUAS FONTES
XITOLE / CONTABANE

2.2. Generalidades

Podemos caracterizar o Sector Ll [ vd o respectivo mapa ] pela importância estratégica que representa tanto para o IN como para as NT a charneira RCeba/Corubal. Constitui a "chave" das comunicações terrestres e fluviais da Zona Leste.

Para uma avaliação geral da situação militar, dividimos o actual sector em 3 partes: uma, a (i) norte do RGeba, compreendendo os regulados do Cuor e parte do Enxalé; outra formando (ii) o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole;
e uma outra, (iii) a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, que engloba os regulados de Badora e parte do Corubal. As duas primeiras correspondem a áreas afectadas, actuando o IN só esporadicamente na última.

0 Sector LI foi redefinido em Agosto e Outubro de 1969, ficando a ZA a este e sudeste de Badora sob a responsabilidade do COP 7 e passando a englobar, a Norte do RGeba, a área do Enxalé que fazia parte até então de Mansoa.

2.3. Terreno

2.3.1. Relevo e hidrografia

0 terreno caracteriza-se genericamente pela ausência de relevo e por uma grande rede hidrográfica, orientada para os Rios Colufe, Geba e Corubal, o que origina uma predominância de bolanhas e lalas no N e NW do sector e um nivelamento das águas dos rios e bolanhas, durante o tempo das chuvas, tornando a maior parte das vias de comunicação intransitáveis.

2.3.2. Vegetação

Podemos distinguir dois tipos de vegetação no sector:

(i) uma floresta tropical,com palmares cerrados sobretudo nas nascentes dos cursos de água, coincidindo com a área definida pelos RGeba/Corubal onde o IN se encontra instalado;

e (ii) outra de savana arbustiva, mais para o interior, com núcleos de floresta muito espelhados.

Nas bacias hidrográficas do Geba e Corubal, a população sob controle IN cultiva as bolanhas e lalas mais propícias à rizicultura, como a bolanha do Poindon que é considerada um dos "celeiros" do IN no sector.

2.4. Inimigo

2.4.1. Sector 2

O Sector LI corresponde na divisão territorial do IN ao Sector 2, também conhecido por região de Xitole (hoje incluída na Frente Xitole/Bafatá) e cujo Comando está localizado em Mina.

Nesta região o IN mantém uma estrutura politico-administrativa organizada, numa vasta área correspondente aos regulados de Xime e Bissari donde irradia a sua actividade de guerrilha que se caracteriza por (i) ataques e flagelações aos aquartelamentos e destacamentos das NT e às tabancas em autodefesa, (ii) acções de barragam à navegação, (iii) emboscadas e (iv) minagem dos itinerários.

2.4.2. Zonas de instalação

No Sector L1 consideram-se como zonas de instalação permanente do IN a área compreendida entre a margem direita do RCorubal e a linha geral Xime-Xitole (regulados de Xime e Bissari) e a região a norte do RGeba (Cuor).

0 IN tem-se instalado temporariamente no regulado do Corubal a fim de desencadear acções contra as tabanacas em autodefesa de Corubal, Cossé e Badora.

2.4.3. Linhas de infiltração e irradiação

Podemos considerar as seguintes linhas de infiltração e zonas de actividade do IN:

(i) a norte da estrada Bambadinca-Bafatá, da área de Madina / Belel sobre Enxalé, Missirá, Finete e baixo curso do RGeba Estreito;

(ii) A sul da estrada de Bambadinda-Bafatá, dos regulados do Xime e Bissari sobre os regulados de Corubal, Badora e Cossé, e ainda sobre os RGeba e Corubal.

2.4.4. Efectivos referenciados

(i) Nos regulados de Xime e Bissari:

5 bigrupos distribuídos pelas áreas de Poindon/Burontoni (1), Culobo/Galo Corubal (1), Mina (2), Ponta Luís Dias/Tubacuta (1), além de 1 grupo de artilharia (Mort 82, Canhão s/r 75 e 82) e 1 grupo especial de bazuqueiros em Mamgai. Os efectivos deste sector poderão ser reforçados por unidades da Frente Sul, e em especial da Região de Quinara.

(ii) No regulado do Cuor, a norte do R Geba:

1 bigrupo em Madina/Belel. Esse bigrupo pode ser reforçados por Sara-Sarauol, região a que Madina/Balel se encontra intimamente ligada para efeitos operacionais e logísticas.

2.4.5. Possibilidades do IN

(i) No plano militar:

(i) Manter as acções de fogo sobre os aquartelanentos das NT;

(ii) Intensificar as acções de guerrilha preferencialnente sobre as tabancas em autodefesa, pelotões de milícia e seus itinerários de socorro;

(iii) Realizar acções de reconhecimento nos regulados de Badora e Cossé, a partir dos regulados de Xime, Bissari e Corubal;

(iv) Utilizar as linhas de infiltração que do Boé conduzem aos regulados de Xime e Bissari através da faixa norte do regulado do Corubal, e que da área Xime-Mansambo conduzem à estrada Bambadinca-Mansambo;

(v) Efectuar acções de barragem á navegação no RGeba, em especial nas áreas de Ponta Varela e Mato Cão;

(vi) Reagir à acção de contrapenetração das NT.

(ii) No plano político e psicológico:

(i) Intensificar o esforço de propaganda junto das populações fiéis às NT ou sob duplo controlo, explorando as “contradições objectivas” da nossa acção psicossocial.

(continua)


Abreviaturas

CCAÇ = Companhia de Caçadores
COP = Comando Operacional
IN = Inimigo
NT = Nossas Tropas
RCorubal = Rio Corubal
RGeba = Rio Geba
TO = Teatro de Operações
s/r = Sem recuo (canhão)
ZA = Zona de Acção