1. Na impossibilidade de o nosso camarada José Brás colocar este texto como comentário no poste do outro nosso camarada José Belo, fica aqui a sua transcrição:
Comentário de José Brás* ao texto de José Belo** (Poste 5660)***:
"Algumas considerações sobre a descolonização"
Caríssimo José Belo
Não poderia concordar mais contigo quando dizes, e passo a citar:
"
Pelas dramáticas consequências, não só para Portugal nos milhares de refugiados, como para os novos países que, de imediato, se viram envolvidos em sangrentos conflitos internos, será, numa perspectiva de análise histórica futura, a descolonização, na sua forma e resultados, assunto de muito, e aprofundado, estudo. Talvez com menos "compreensão" para com alguns dos responsáveis."
E diria até mais, não deixando de colocar à frente de tudo a tragédia humana que aquilo foi, para Portugal que se viu em meia dúzia de meses com uma população muito acrescida por cidadãos sem nada para fazerem e a necessitarem de apoio, para os próprios que deixaram vidas de trabalho e esperanças e saíram escorraçados de uma terra que já consideravam sua, para os angolanos que se viram nos tais sangrentos e longos conflitos, mas também sem ninguém que soubesse construir, conduzir camiões, fazer paredes, cortar cabelos e barbas, costurar, manter as máquinas, porque eram brancos os motoristas e os pedreiros e carpinteiros e canalizadores e os barbeiros e os funcionários da estrutura administrativa e os donos de lojas e de barcos de pesca e de roças de café e, até, os cauteleiros e os donos das tascas nos musseques.
De facto, os locais que abandonámos, para além de pequenas tarefas como meter cana no engenho, nada sabiam fazer porque nada lhe ensinávamos.
A caminho de Lisboa os que sabiam produzir, Angola ficou sem ninguém para trabalhar de verdade, aceitando-se o conceito de que trabalho é a actividade que se destina a utilizar e multiplicar os recursos da natureza.
Assisti, porque transportei milhares de portugueses na ponte aérea que se estabeleceu então, vivi os seus dramas, olhei-os nos olhos. Grande é a minha dificuldade ainda hoje para, por palavras, descrever o tamanho e a profundidade da desilusão e da revolta que lhes vi.
Algumas vezes aterrámos na antiga Nova Lisboa com chamas na pista, combates na zona do aeroporto, dificuldades de peso para descolar, convivendo com portugueses analfabetos que trabalhavam em Angola como o faziam antes nas suas aldeias, olhando o pessoal de bordo como se fossemos seres de outro mundo.
Portugal, que durante séculos foi incapaz de desenvolver e aproveitar a sério das riquezas daquele território, ao contrário, portanto, da eficácia fria, desumanizada e rapaz, de verdadeiros colonialista que outros foram noutros locais de África, sacando até ao quase esgotamento da mina, Portugal que nem a metrópole era capaz de desenvolver, que poder tinha para comandar bem a descolonização em três frentes, tão importantes e longínquas?
E se não fomos verdadeiros colonizadores, como poderíamos ser verdadeiros descolonizadores?
Não serei eu a desculpar erros que dirigentes de então cometeram na pressa de "abandonar" e lavar as mãos.
Sei é que não vi por lá formas de evitar a maior parte da tragédia de que falas, perdidos e embrulhados no jogo das grandes potências por posições estratégicas globais.
E posso garantir-te que vi e vivi por dentro dessa realidade muito mais do que tu poderás imaginar.
Aliás, se tiver anos de vida e disponibilidade intelectual e da vontade, talvez que venha a escrever um dia qualquer coisa sobre isso, apesar de me parecer ainda hoje muito complicado fazê-lo.
Peguemos, por exemplo, nos militares profissionais de então, capitães, majores, tenentes coronéis.
Quantas comissões tinha já somado de mato, de tiros, de desilusões, de anos fora das famílias, vendo os filhos de dois em dois anos?
Que vontade tinha essa gente de prolongar estadias e responsabilidades após o destapar da panela de pressão?
Não falarei de milicianos, oficiais e sargentos, nem de soldados porque a esses estava ainda mais longínqua a capacidade de determinar formas e modos.
Nos hotéis onde ficavam as tripulações da TAP, convivíamos de muito perto com toda a fauna de indivíduos de língua inglesa, francesa, russa, castelhana, e com gente armada que se guerreava dentro do próprio hotel.
Tivemos culpas?
Claro que tivemos e muitas, ainda assim.
Luanda foi sempre uma cidade turbulenta, mesmo nos anos anteriores a setenta e quatro.
Não havia noite de estadia em que não ouvisse tiros e batalhas entre gang's do "feijão verde" e da noite marginal.
Muito antes do ano de Abril, já taxistas incendiavam musseques e lutavam com Pára-quedistas, Fuzileiros e Comandos.
Naquela situação de caos, com três movimentos no seu interior da cidade, cada qual com sua origem e realidades, odiando-se como só sabem odiar-se aqueles povos na ressaca de sociedades tribais vindas da subsistência recente, todos interessados em correr com brancos, o caldo estava temperado que bastasse.
De tão clara esta verdade, nem vale nem aproveita a pena negar que dos altos responsáveis militares e políticos portugueses, a simpatia ia maioritariamente para um dos movimentos, embora este se apresentasse à data profundamente dividido, fragilizado e quase desarmado.
Concordo contigo, também, com a leitura que fazes da passagem dos militares de uma cultura castrense para a pretensão de liderar a revolução "bolchevique", e concordando, acho que está aí, também, um dos factos que mais pesou na decisão política desencontrada que se ia tomando em Lisboa para aplicar numa Luanda que provavelmente não tinham entendido nunca na sua profundidade social e que agora se queriam afastar a todo o custo e rapidamente.
Nas minhas obrigações profissionais, pude conviver também com a sociedade portuguesa de Joanesburgo.
Com amizades femininas no mundo da moda e da beleza local, nos ambientes das discotecas e bares, pude observar com alguma profundidade as misturas que por lá se faziam com a "intelegentzia" do Estado sul-africano da época, os jornais portugueses e as suas ligações, etc.
Posso garantir-te sem qualquer dúvida que muitas mentiras foram aí forjadas, muitas manobras, muitos documentos e correspondência falsa, muitas acusações infundadas e tendenciosas em ralação a responsáveis portugueses.
Evidentemente, não tenho qualquer vontade de te convencer, seja do que for, nem aos camaradas que connosco convivem na Tabanca Grande e que têm um visão diferente da minha, umas vezes, outras vezes da tua, algumas outras diferentes da minha e da tua.
Aliás, nem tenho a certeza se não é a mim próprio que tento convencer de certezas que podem não ser assim tão certas.
A minha única vontade real que tenho é dizer-te que estou contigo na grande abordagem à tragédia que representou a descolonização portuguesa, quer para Portugal, quer para Angola, quer para os portugueses, quer para angolanos, e, também contigo, denunciar a rapina profunda de que Angola foi vítima por parte de insuspeitos amigos de Peniche, em terra e nos mares e o racismo e ódio aos negros que vi daqueles de quem eu esperava a solidariedade.
Não estou de acordo e penso que também tu não estás, é acerca das dúvidas sobre a madrugada de Abril. Tão bem ou melhor que eu, sabes da inevitabilidade das perdas quando acontecem mudanças sociais e políticas como as que aconteceram então, agravadas ainda pelo prolongamento da situação anterior, muito para além do que era esperável e necessário.
Um grande abraço
José Brás
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Notas de CV:
(*) José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68. É autor do romance "Vindimas no Capim", Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.
(**) José Belo foi Alf Mil Inf na CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente é Cap Inf Ref e vive na Suécia.
(***) Vd. poste de 16 de Janeiro de 2010 >
Guiné 63/74 - P5660: Da Suécia com saudade (16): Algumas considerações sobre a descolonização (José Belo)
Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5042: (Ex)citações (49): Réplica ao camarada José Belo (António Matos)