segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7245: Memória dos lugares (111): Ponte Caium: Mais fotos ... (Carlos Alexandre, CCAÇ 3546, Piche, 1972/74)



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Ponte Caium > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Foto nº 1: "O rio no seu auge, em plena época das chuvas..." 


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Ponte Caium > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Foto nº 2: "As máquinas da Tecnil destruídas por ataque do PAIGC... Esta empresa estava empenhada na construção da nova estrada Piche-Buruntuma"...



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Ponte Caium > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Foto nº 3: "O Carlos Alexandre é o primeiro a contar da esquerda... O Santiago, presumo que seja o segundo".





Fotos: © Carlos Alexandre (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




1.Mensagem do nosso camarada Carlos Alexandre (*):




 Luis Graça, boa noite. As fotografias prometidas  aqui estão:


A primeira mostra-nos o rio no seu auge.


A segunda as máquinas da Tecnil destruídas. Não me recordo como foram parar na ponte, mas tendo em conta a posição das viaturas, creio ter sido consequência de alguma emboscada entre Camajabá e Buruntuma. Liguei ao Serôdio camarada que na época era radiotelegrafista em Camajabá e tambem ele me diz que sim. 


A terceira para que se conheça o Santiago, já referenciado por engano numa foto enviada pelo Cristina. 


O camarada Arménio Estorninho que faz referencia ao nome do condutor Rocha tem toda a razão em dizer que se trata do Florimundo Rocha e que na sua terra é conhecido pelo Flor, já que eu próprio me lembro de em determinada altura o mesmo me ter dito isso.


Ainda nas referências à pequena capela (ou oratório) o camarada que enviou a fotografia e que está junto a ela, tira-me o resto das dúvidas relativamente ao texto (Nem só do pão vive o homem)... A pequena capela sofria na altura de muito mau trato e,  como estavamos com a mão na massa,  foi muito simples reparar com um pouco massa de cimento e fazer o mesmo texto desta vez recortando o próprio cimento.



Continuação de boa noite e obrigado pela possibilidade do contacto à volta de um assunto tão sério quanto rico na essência de homens tão nobres e silenciosos.


Carlos Alexandre (**) 






Peniche > Estaleiros Navais de Peniche, SA > Foto que me mandou o Carlos, com a seguinte legenda, em 5 do corrente: "Luis, bom dia. Ontem falei com o Mota que ao ouvir o teu nome reconheceu-te logo, diz-me que na altura trabalhava nas finanças, será? O local de encontro era a Humus. Junto envio uma foto do estaleiro, tirada julgo que em Março ou Abril deste ano, tendo em conta o barco verde que está a reparar e as obras do novo Plano Inclinado para construção de navios até 100 metros de comprimento. Vai ser inaugurado brevemente com duas unidades de aço já em construção de 56 metros, para Moçambique".

A empresa onde trabalha o nosso camarada Carlos Alexandre, e de que é presidente (e o maior accionista) um velho conhecido meu,  Carlos Mota, antigo oficial da marinha mercante e conhecida figura da oposição democrática da região oeste ao regime de Salazar-Caetano.  Desde 1973 que não o via. Revi-o agora, em grande forma, num vídeo do Jornal de Negócios. Quando vim da Guiné, encontrávamo-nos com alguma frequência na Livraria Húmus, cooperativa de que ele era sócio, fundador e dirigente (sem esquecer  outros jovens  de talento, irreverentes e combativos como o Zé Maria Costa, professor na Escola Industrial e Comercial de Peniche, de quem me lembro bem, e outros como o José Rosa, o Carlos Vital e o Adelino Leitão, de quem me lembro menos bem). A Húmus teve um papel de relevo na intervenção cívica e cultural de Peniche (se não me engano, terá sido encerrada por intervenção da PIDE/DGS, ainda antes do 25 de Abril, estava já eu a trabalhar em Mafra, ainda nas finanças, antes de voltar à Lourinhã e fixar-me, em 1975, definitivamente em Lisboa). 

Recordo-me de,  um dia (no verão de 1971 ou de 1972), o meu pequeno grupo de amigos da Lourinhã (onde se incluía o meu saudoso amigo Luís Venâncio Rei, na altura ainda estudante de medicina, mas também o advogado e conservador do registo predial Manuel Vasques, que trabalhava na Lourinhã e vivia em Peniche) ter lá levado o genial e também saudoso Mário Viegas (1948-1996), que costumava vir passar uns dias à Praia da Areia Branca, onde a família (de Santarém) tinha casa de verão. Não sei por que carga de água a sessão de poesia acabou ao rubro, com o truculento Zé Maria (se a memória não me atraiçoa ...) a "provocar" o provocador nato que era o Mário Viegas, estudante da Faculdade de Letras (justamente acabado de sair da tropa, e com quem tive oportunidade, nesse fim de semana, de falar da guerra na Guiné)... 


Nessa noite, para mim memorável, o Mário terá declamado, entre outros poemas que ele sabia de cor e dizer como ninguém, um excerto do  Manifesto Anti-Dantas, do Almada Negreiros (claro, não posso garantir, nem sei se nessa época o jovem Mário Viegas, então com 22 ou 23 anos, já tinha no seu reportório este extraordinário poema panfletário que é uma diatribe e um libelo contra a arrogância intelectual!...).

Carlos Alexandra, manda um abraço meu ao teu "patrão" e transmite os votos de bom sucesso para a empresa, cujo futuro é importante todos vós, para Peniche, para as nossas gentes do mar, para a nossa região, para a nossa economia, para o nosso país. E, como vês, camarada, o mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!

Foto gentilmente enviada pelo Carlos Alexandre (2010)  

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Notas de L.G.:


 (**) Último poste da série > 6 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7234: Memória dos lugares (109): Ponte Caium (Carlos Carvalho, CCAV 2749, 1970/72)


Guiné 63/74 - P7244: (Ex)citações (107): Ainda a questão dos netos do Alberto (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 6 de Novembro de 2010:

Não sei se faça disto um comentário ou um poste.
O que é que achas?
Um abraço
José Brás


AINDA A QUESTÃO DOS NETOS DO ALBERTO**

Deveria estar aqui exprimindo a perplexidade que a leitura do comentário de Carlos Filipe me soltou.
Esclareço que perplexidade não é porque salte do que lhe leio aqui, apenas, mas no contraste disso com o que lhe li antes no blogue, sobretudo o que escreveu como comentário a um poste do Luís sobre Turpin.

E começo a desconfiar que o motivo da estranheza não está nas diferenças do que escreveu então e agora, mas, talvez, na minha fraca capacidade de entender à primeira ou na de entender apenas o que desejo entender (esquizofrenia?).
É que da primeira vez gostei muito do seu desfio no sentido da não recusa de material mais elaborado no que se refere a acontecimentos e factos e nas interpretações que deles podemos tirar, ainda que para isso não se recuse alguma subjectividade. Aqui, neste seu comentário, desgosto porque me parece animado do contrário do que disse antes, parecendo ofendido com a carta de um hipotético cidadão exterior à nossa experiência de África e às nossas consequentes emoções, apenas porque atribui tal carta ao próprio Alberto e "o pecado original de toda a falácia e desonestidade mental" de meter tudo no mesmo saco.

Conheço Alberto Branquinho há muitos anos e dele tenho uma opinião muito positiva do ponto de vista do carácter e da inteligência, sem ter ele que ser o meu eco (ou eu o dele) em termos estéticos-ideológicos.
Do ponto de vista da capacidade criativa nem direi nada porque o que dele conhecemos todos no blogue é suficiente para me dispensar puxa-saquismo.

Não te conheço a ti do mesmo modo, apenas porque a vida não nos fez cruzar senão neste lugar em que estamos agora e, mesmo assim, de curto convívio, pelo que nem sei como te falar do pouco saber que tenho sobre a teoria da criação literária, temendo fazer aqui o papel de parvo armado a pretenso intelectual, no diálogo com alguém que, afinal sabe disto muito mais que eu, ou, ao contrário, esmiuçando demais argumentos e explicações, que poderei parecer que falo com crianças de escola primária.

Uma coisa eu sei e parece-me de certeza certa, agarrada na leitura de textos de gente grande, sobretudo no teatro, Stanilavski e os seus conceitos de preparação do actor e da construção do personagem, diferentes e quase opostos aos de Brecht e do seu teatro épico que organiza o actor para se conservar ele próprio como contador da história ao mesmo tempo que se afasta de si para viver o personagem da história que conta.

Um escritor de verdade (e também os que gostariam de o ser) é uma espécie de actor prévio que cria (bem ou mal) outra gente num palco que é o livro, com seus tempos e ritmos, seus códigos, seus ais e suspiros, ainda que tal gente exista mesmo mas conhecida apenas pela parte de fora, pelo acto acidental, pelo que diz com ou sem convicção, pelos gestos quotidianos, mas escondido no dentro das suas crenças mais fundas, dos seus medos, das suas certezas, dos seus amores e raivas.

Dir-se-á, então, que o que o escritor cria não passa de exploração especulativa na alma de outro que até pode ser exactamente o oposto da criação.
Pois pode!
Mas é na qualidade da aproximação ao que poderia ser, nessa capacidade de leitura do possível humano, que se separam grandes de pequenos criadores e, ainda mais, a ficção do relatório.

Imaginemos!

O relatório dirá sumariamente que "no regresso da emboscada montada no dia tantos de tal, entre as tantas e as tantas horas, no atravessamento da linha de água tal, foram as nossas tropas fortemente atacadas em emboscada montada pelo IN, resultando um M, dois F com gravidade e três ligeiros".

Da verdadeira identidade de maiques e foxtrotes, o relatório não dá nem daria nenhum sinal, ainda que lá escarrapachasse nomes, datas e locais de nascimento.
E a verdadeira identidade de cada um deles está muito longe de se fechar naquele laconismo convencional, porque cada um deles nasceu, cresceu, fez-se homem e soldado, ou primeiro soldado e depois homem, em circunstâncias cheias de influências morais, culturais e sociais e, portanto, com aspirações, sonhos e pesadelos próprios que lhe marcam o ânimo e o moldam por dentro e também por fora, no abraço ou no estalo.

Será o escritor que assistiu ao seu respirar prolongado, às suas raivas, às suas pragas, e que depois o viu no último suspiro, que especulará sobre tudo isso e lhe dará a face humana que o relatório roubou como se fosse apenas mais uma GMC estoirada numa mina.

E ainda que a tal emboscada do relatório não tivesse acontecido e, menos ainda mortes e feridos, o escritor pode muito bem criar o ambiente que corresponda à possibilidade de ter acontecido, apenas, como ferramenta para pôr nas páginas e na alma de quem ler depois, uma verdade não menos verdadeira só porque inventada.
E o pior é o que está ainda por dizer sobre a relação entre o criador e a criação, isto é, os personagens vivos criados dentro das páginas e ao longo da trama,

Não vou aqui trazer Flaubert com a sua Madame Bovary, demasiado citados por dá cá aquela palha, numa repetição que por exagerada pode tornar-se mentira, do mesmo modo que mentira de tão repetida se torna verdade.
Contudo, creio bem que na literatura que ambiciona alguma qualidade, é quase impossível que cada pessoa, homem, mulher, polícia ou malfeitor, bom carácter ou péssima gente, não tenha uma marca dos muitos seres que habitam o criador, porque cada um de nós, escritor ou pedreiro, uno, é também e sempre múltiplo.

E chegado aqui é tempo de perguntar porque diabo perdi eu tanto tempo e palavras para dizer o que afinal teria sido tão simples de falar e que não é outra coisa senão, Carlos, porque não te puseste a ti próprio a hipótese de que o que atribuis (e bem) a Alberto Branquinho, não ser mais que a construção de um personagem que circula por dentro de tantos portugueses que de facto põe a questão que o manguelas amigo do Alberto acabou por colocar.

Eu conheço muitos que o fazem, por vezes mesmo com pouca delicadeza, ignorando que heróis fomos naquele tempo, de verdade, mesmo quando sem alardes guerreiros e suportando apenas a dureza daquela vida e as péssimas condições e modo de viver, com mais credo na boca do que pão.

Por fim, não te abespinhes por te ter escolhido como objecto deste escrito porque não o faço sob qualquer acrimónia pessoal, mas talvez mesmo mais para mim do que para ti, nesta pecha que tenho de me questionar a mim próprio, ainda que através de outros, nas dúvidas que sem complexos confesso que continuo a ter, talhando pelo meio de outras tantas certezas.
Além disso, digo-te que gostei de todos os comentários que li (o do camarigo de Monte Real está um mimo), incluindo aqueles com que não me identifico, com a excepção do teu que me pareceu azedo em excesso.

Abraços para ti que hei-de gostar de encontrar um dia destes e para todos como é vontade minha.
José Brás
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7130: (Ex)citações (101): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Vasco da Gama / José Brás)

(**) Vd. poste de 4 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7225: Contraponto (Alberto Branquinho) (17): Vão cuidar dos netos

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7243: (Ex)citações (106): Netos ou peluches, tudo por uma boa saúde mental! (António Matos)

Guiné 63/74 - P7243: (Ex)citações (106): Netos ou peluches, tudo por uma boa saúde mental! (António Matos)


1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos, em 8 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:
Guiné, netos ou peluches, tudo por uma boa saúde mental!
Afinal o problema da política no blogue quase se tornou um caso político!
Como se sabe, um caso político pode ser provocado e não faltariam exemplos para o demonstrar, mas para evitar tentativas veladas numa altura em que se começa a falar de campanhas eleitorais que terão lugar daqui a um valente par de meses, fico-me por aqui para não ferir susceptibilidades.
Já uma última reflexão sobre o uso do facebook merece atenção.
Hoje mesmo, a Comissão Europeia decidiu elaborar um conjunto normativo tendo em vista a protecção de dados dos cidadãos ao abrigo dos direitos e liberdades dos mesmos, uma vez que há sérias dúvidas sobre o bom uso e preservação das nossas intimidades.
É bom que todos o saibam que, uma vez inscritos como aderentes ao facebook, jamais os dados disponibilizados serão apagados!
Isto far-vos-à repensar o que já se escreveu sobre o assunto?
Na tentativa de, mais uma vez, prevenir antes de remediar, levanto o assunto para que aqueles que eventualmente estejam menos conscientes das implicações destas modernidades possam decidir em consciência.
Posto isto, e porque o que interessa é falar da Guiné e quem diz da Guiné diz dos netos, é com o chapéu de trisavô que tomo a palavra.
À semelhança de outros velhos babados que voltaram aos tempos de meninice jogando a bola em plena sala de estar com os biblôts a escaqueirarem-se,
os vizinhos de baixo a baterem com o toco da vassoura no tecto a pedir silêncio,
ou montando um estafermo dum cavalinho que relincha cada vez que se lhe apertam as orelhas e nunca mais se cala,
até à hora do banho onde o pantanal final pede meças aos dias em que se dá banho ao cão,
passando pela espectacular cagada que o puto fez na exacta altura em que se preparava para sair de manhã para a escolinha e ficou imundo e mal cheiroso até ao pescoço a necessitar de novo banho,
à semelhança deles, dizia, também eu lhes vou dando primazia em detrimento do blogue!
A verdade é que, não fossem estes faits-divers que fazem parte integrante da minha vivência e esbarraria sistematicamente em recordações duma força intimista potentíssima, é certo, mas destruidora dum salutar bem estar quotidiano que não se justificaria - a guerra do ultramar.
Tenho-a como uma experiência de mais valia não transacionável e que guardo com um carinho muito particular, mas está devidamente guardada numa gaveta do armário psicológico devidamente arquivada por datas, por assuntos, por amigos e camaradas, por antecedências, por consequências, por sonhos, por desgostos, enfim, por uma panóplia de separadores de fácil consulta mas em nenhum lado existe lugar para "pendentes"!
Para tanto colabora a exacta medida de importância que dou à importância que as coisas têm.
Os blogues e as redes sociais, entretêm-nos tanto mais quanto mais participativos nos tornemos e nesse sentido dou-lhes atenção.
Cada um com o seu conjunto de interesses, assim vai seleccionando opiniões, palpites, más-línguas, amizades virtuais, compondo parte do ramalhete que o forma enquanto cidadão vivo e activo.
E estarmos abertos a novas ideias só nos engrandece e enriquece.
É, pois, em jeito de homenagem que abraço o Branquinho e todos aqueles que lhe pegaram igualmente na genialidade do conselho para tratarmos dos netos (ou nos peluches se não tiverem netos ) colocando este post como testemunha.
Bem hajam!
António Matos
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

7 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7236: (Ex)citações (105): Netos, ká tem (Miguel Pessoa)

Guiné 63/74 - P7242: Blogpoesia (84): Por vezes... Regresso lá (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 15 de Outubro de 2010:

Caros Luis, Carlos, Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande.
Como não tenho netos e tenho que me entreter com alguma coisa, vou escrevinhando e desta vez um mal amanhado poema de gosto e qualidade duvidosa.
Poema? Se isso lhe poderei chamar.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


Foto: © Paulo Salgado (2010). Todos os direitos reservados.


POR VEZES...

Por vezes
Oiço o vento
São suaves murmúrios
Perfumes e aromas de outras paragens
Chove
O vento traz lembranças
Cheira a pinheiro
Da minha primeira vez
Mais tarde, a ruela estreita
O cheiro moreno
O corpo cálido
O assomo urgente
A calma que adormece
O tempo ameaça parar
Levanto-me
Saio devagar
Sou mero espectador
Vejo ou adivinho a imagens
Recordo as vozes e momentos
Os rostos misturam-se
Caminho lentamente
Cheira a terra molhada
Mancarra torrada
O doce ácido do vinho de palma
Acendo um cigarro
Aspiro até os pulmões protestarem
Olho o fumo que volteia
Tusso
O horizonte incendeia-se
Pintor louco escreve com lápis de fogo
O trovão ensurdece-me
Dobro-me sobre a terra
Instintivamente
E finalmente acordo

Por vezes
Regresso lá!


Juvenal Amado
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7140: Blogoterapia (161): Pensamentos e perguntas a nós próprios (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 3 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7219: Blogpoesia (83): Respeito, esse pau da bandeira foi colocado pelos Lassas de Cufar (Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P7241: Notas de leitura (167): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
A saga está quase a findar.
Aprecie-se ou não as memórias de Luís Cabral, elas fazem parte dos códices essenciais para estudos futuros. Há certamente omissões, excessos de apreciação, episódios deliberadamente truncados, para trazer benefício à imagem da direcção do PAIGC. Mas é um relato que tem princípio, meio e fim. Resta saber se Luís Cabral deixou outras memórias referentes a este período ou subsequente à sua deposição.

Um abraço do
Mário


“Crónica da Libertação” (4), por Luís Cabral

Beja Santos

A consolidação do PAIGC ao nível interno e internacional

Em 1965, o PAIGC ganhara indiscutivelmente prestígio: vinham jornalistas visitas às chamadas zonas libertadas, foram reduzidas as dificuldades na fronteira senegalesa, a coordenação da acção das organizações nacionalistas das colónias portuguesas eram um facto. 

É nesse contexto que Amílcar Cabral se deslocou a Cuba onde foi participar na Conferência Tricontinental e onde se encontrou com Fidel Castro que trouxe novos apoios para a luta armada. A intervenção de Cabral em Havana, como muito observadores disseram, trouxe a sua consagração como teórico, ao introduzir elementos inovadores no que toca ao proletariado rural e à liderança revolucionária da pequena burguesia. Fidel anunciou vários apoios: preparar combatentes para o desembarque em Cabo Verde, enviar pessoal e material sanitário bem como instrutores para a República da Guiné e zonas libertadas.

Em 1966, estava Amílcar Cabral no Boé, foi descoberta a preparação de um criminoso atentado, tal como escreve Luís Cabral:

 “Os elementos descontentes tinham já aliciado alguns combatentes dos quais um atirador de bazuca seria o autor do miserável atentado quando o Secretário-Geral do partido se tivesse recolhido à sua barraca, para ali passar a noite. Denunciado o atentado por um dos camaradas contactados, o grupo foi preso. Os responsáveis da justiça agiram prontamente, o processo foi organizado, a tentativa de crime comprovada durante o julgamento. Os chefes da monstruosa conspiração foram condenados à pena capital e executados”. 

Porque havia descontentamento, porque era necessário liquidar Amílcar Cabral, o autor não adianta as razões, o que é lastimável se acaso por detrás da tentativa de atentado estavam motivos semelhantes aos de 20 de Janeiro de 1973. Não deixa de ser curioso verificar, segundo Luís Cabral, que Amílcar terá convocado uma reunião de dirigentes em que lera uma declaração segundo a qual se tornasse necessária a tomada de decisões extremas em relação a companheiros, repetindo-se nova tentativa de atentado, ele se retiraria completamente da luta.

Também nesse ano se tomou a importante decisão de incrementar a luta na frente Norte. É nessa altura que Luís Cabral é transferido para Ziguinchor, no sentido de se imprimir uma nova dinâmica na região senegalesa. Mais tarde, Amílcar visitou o Norte e fez um grande comício na tabanca de Djagali, na margem esquerda do rio Farim. No Norte, foram criadas sete regiões autónomas e um órgão de direcção e coordenação. Na frente Leste, a vida tornara-se insuportável em Madina do Boé e Beli. Domingos Ramos que fora transferido do Xitoli para ali acabou por morrer depois de ter sido gravemente ferido, no ataque a Madina do Boé.

Quanto à preparação para um desembarque em Cabo Verde, Amílcar Cabral recuou quanto à oportunidade de tal operação. Luís Cabral e Chico Mendes reformularam a vida política e militar da frente Norte, resolvendo dois problemas: fazer chegar mais material e atravessar zonas perto de aquartelamentos portugueses e fazer chegar esse mesmo material a todas as regiões. Se é verdade que tudo melhorou, continuaram as carências de infra-estruturas de acolhimento para os combatentes evacuados.

Por esse tempo, deu-se a visita de uma delegação militar da Organização da Unidade Africana que visitou a frente Norte. A delegação constatou que era necessário que as forças do PAIGC dispusessem de um armamento mais potente. Mas o facto que Luís Cabral destaca foi a oportunidade de os oficiais do Senegal e da Guiné Conacri terem forjado excelentes relações, isto quanto a diplomacia entre os dois países era de grande tensão. 

A mudança táctica das autoridades senegalesas quanto à passagem de homens e armas trouxe um grande reforço à luta. Luís Cabral regista outros acontecimentos que reputa como fundamentais para o crescimento do PAIGC: a propaganda, sobretudo a radiofónica, com a inauguração da Rádio Libertação; a criação de cursos de enfermagem; a melhoria do abastecimento, o bom funcionamento das escolas. Em 1967, as populações sobre o controlo do PAIGC passaram a receber armas.

As forças portuguesas estavam agora a receber helicópteros que semeavam o pânico quando largavam ou recolhiam as tropas especiais que atacavam as bases. A resposta foi a criação do Corpo de Comando e a utilização de melhores peças de artilharia. Segundo ele, as bazucas T-21 constituíram um importante elemento dissuasor.

Em 1968, em Fevereiro, um grupo de combatentes fez uma incursão durante a noite até Bissalanca de onde lançou fogo de morteiro sobre as instalações militares do aeroporto. Aumentou a pressão sobre os aquartelamentos portugueses, nomeadamente no Sul e no Leste. É neste contexto que Schultz termina a sua comissão e é substituído por Spínola. 

Luís Cabral enumera as diversas reuniões internacionais em que participou Cabral e o seu crescente prestígio. Quando, no início de 1969, desapareceu Madina do Boé, a pressão intensificou-se em todo o Gabu. As forças portuguesas concentravam-se, o PAIGC tinha que responder da mesma maneira. Mas Spínola não trazia só uma nova lógica para a manobra militar, pretendia captar as populações. A libertação de Rafael Barbosa que anunciou o seu arrependimento, foi um grande choque para o PAIGC. Ele escreve: 

“O antigo presidente do partido tinha sido, afinal, mobilizado pelos nossos inimigos e prontificara-se a trair o nosso povo e o PAIGC em troca da liberdade. Vários outros antigos militantes seguiram o mesmo caminho. Uns pondo-se abertamente ao serviço dos colonialistas, outros procurando anonimamente a sua segurança e bem-estar nas fileiras da Acção Nacional Popular… Os outros camaradas que participaram connosco na fundação do PAIGC tinham já sido libertados anteriormente. Eram eles Elisée Turpin e Júlio Almeida. Um e outro voltaram à sua vida, este como técnico agrícola, aquele dedicando-se a actividades comerciais e industriais de pequena envergadura, aproveitando-se das facilidades que a nova política do governador lhe facilitava”. 

Para Luís Cabral, Rafael Barbosa estava completamente desprestigiado e muito provavelmente estaria a denunciar militantes que actuavam em Bissau. Spínola procurou acções ofensivas, atacando quartéis do PAIGC dentro do Senegal. É neste contexto que chegou uma nova arma de grande potência, o GRAD-P. Os foguetões iam fazer a sua entrada na guerra de guerrilhas.

(Continua)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7237: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (4): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (2) 31 de Outubro

Vd. último poste da série de 6 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7232: Notas de leitura (166): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7240: José Corceiro na CCAÇ 5 (18): Insubordinação na CCAÇ 5, dia 8 de Novembro de 1969

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 2 de Novembro de 2010:

Caros amigos,
Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.
Comprometi-me no post P5978, que daria o meu testemunho sobre a rebelião dos Gatos Pretos africanos em Canjadude. Eis-me pois, a descrever o sucedido segundo o meu pulsar, apoiando-me na memória e nos registos que fiz na época.
Publicarão, caso entendam, que tem algum interesse para o blogue; se optarem pela publicação poderia ser o dia 8, data em que se completam 41 anos após o acontecimento.

Um abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (18)

INSUBORDINAÇÃO NA CCAÇ 5, NO DIA 8 DE NOVEMBRO DE 1969

Foto 1 > Um pelotão da CCAÇ 5 no aquartelamento de Cabuca a reforçar a segurança. É o pelotão do Alferes Varela, que quando foi destacado para Bolama, os seus homens que o estimavam choraram. O Varela hoje é advogado em Almada.

Quando fui mobilizado para ir para a Guiné em rendição individual, cheguei a Canjadude à Companhia de africanos CCAÇ 5, no dia 13 de Junho1969, era sexta-feira e dia de Santo António. O Comandante da Companhia era o Capitão Pacífico dos Reis, já com um ano de comissão e tinha-se empenhado em juntar os pelotões da CCAÇ 5 todos em Canjadude, porque andavam dispersos por vários locais. Durante a minha comissão na nesta Unidade, que se dilatou por 25 longos meses, conheci ao todo quatro Comandantes de Companhia.

O Capitão Pacífico dos Reis iniciou a sua formação castrense no Colégio Militar. Durante os quatro meses que foi meu comandante da Companhia, saí muitas vezes para o mato em operações com o Capitão, e devido à particularidade de eu ser de Transmissões, quer na progressão nos trilhos das bolanhas, quer emboscados nas matas, eu ficava sempre muito próximo dele.

Pelo que observei, intui e escutei, durante essa vizinhança, formalizei um juízo que me autoriza a tecer algumas considerações, sobre o militar Capitão Pacífico dos Reis, atendendo àquilo que me foi facultado presenciar. Registei na altura o seguinte: Militar destemido com capacidade de comando, rigoroso no exercício de impor disciplina, mas com a percepção dos limites até onde pode soltar a rédea, e a quem a solta, operacional arrojado, sempre disponível e combativo na linha da frente a comandar os seus homens, não se poupando a esforços para não dar oportunidade a que o inimigo se instale no território marcado… não deixa o crédito por mãos alheias.

Assisti algumas vezes, durante o dia, a actos do Capitão, cujas decisões eram arriscadas, subia no jipe e saía do aquartelamento juntamente com quatro ou cinco militares da Secção dos Dragões, (militares de Comandos africanos que eram guarda-costas do Capitão) embrenhavam-se afoitos na mata, em volta do aquartelamento e regressavam cerca de meia hora depois. No dia 12 de Setembro de 1969, houve coluna a Nova Lamego, e veio um Pelotão para Canjadude para manter segurança ao destacamento, porque havia uma operação a nível de Companhia no dia seguinte. Na coluna rebentou uma mina, na viatura que a encabeçava e na qual ia o Capitão, eu estava como operador de transmissões na viatura a seguir, houve 15 feridos, alguns dos quais com muitíssima gravidade, pedi evacuação por heli para 10 feridos. O Capitão sofreu alguns ferimentos, mas aparentemente nada de grave.

Foto 2 > À saída do aquartelamento, para o lado nascente a 150/200 metros, do arame farpado, tínhamos logo a bolanha alagada, isto não é rio. Corceiro, Pita, Ferra, Matias, Marques e Medeiros.

No dia 13 houve operação de três dias, comandada pelo Capitão Pacífico dos Reis, cujo objectivo era o Siai, eu também fui. Foi uma progressão no terreno muito difícil, devido a termos que caminhar muito tempo em terrenos alagados, algumas vezes com água pela cintura. Emboscámo-nos para passar a noite e devido à proximidade que mantinha com o Capitão, apercebi-me que esteve em padecimento e gemeu muito durante toda a noite, provavelmente devido aos ferimentos e efeitos provocados pela mina do dia anterior.

Ainda o alvorecer se escondia envergonhado e já todos de pé e enlameados, mastigávamos a bucha e bebíamos da lata o leite achocolatado. Era preciso avançar, estava o caminho à nossa frente à espera, senão ficava tarde. Continuámos a progredir por trilhos alagadiços, tendo parado 3 ou 4 vezes devido ao cansaço do pessoal, rumávamos em direcção a Ganguiró onde à chegada nos emboscámos, era já quase meio-dia. Neste local houve necessidade de pedir meia dúzia de evacuações, uma das quais para o Capitão, o pessoal estava todo estoirado.

O Capitão tinha sensibilidade especial para lidar militarmente com a tropa nativa, não ajuízo se era por formação ou por carácter, ou quiçá brio devido à admiração que os nativos nutriam pelo exemplo de operacionalidade e segurança que ele lhes inspirava, que os cativava, e tinha-os disciplinados e controlados, e eles por sua vez retribuíam com estima, respeito e obediência, para com o seu Capitão, no qual muito se apoiavam e o consideravam um valente. Cheguei a assistir a ligeiros desentendimentos entre militares metropolitanos e nativos, e estes ameaçavam logo que iam falar com o Capitão.

Devido ao entrosamento existente entre o Capitão Pacífico dos Reis e os militares nativos, tornava-se difícil a integração e rendição, que não se afigurava pacífica, para o novo Comandante que o viesse substituir no na companhia, a não ser que tivesse um perfil idêntico.

Era uma Companhia que não se podia aquilatar o comportamento dela como se fosse uma força de metropolitanos, havia muitas especificidades que era necessário respeitar minimamente, além dos factores de ordem sociocultural e económico. Grande parte dos cerca de 220 militares africanos da Companhia, estavam próximo dos 30 anos de idade, ou mais, tinham as mulheres e os filhos a viver com eles, eram desarranchados, já tinham 6 ou 7 anos de tropa com guerra e só meia dúzia deles sabiam ler. Era necessária habilidade para compreender e avaliar a complexidade cultural da CCAÇ 5, que era uma amálgama sociável. A diversidade de tradições e costumes dos nativos da Companhia era admirável, pois englobava todas as etnias da Guiné.

Dia 30 de Setembro, chegou a Canjadude o Capitão que substituiu o Pacifico dos Reis, neste mesmo dia chegou também o Furriel José Martins, creio que veio de férias da Metrópole.

Dia 6 de Outubro de 1969, o Capitão José Manuel Marques Pacífico dos Reis (hoje Coronel na reserva) deixou de ser o comandante da CCAÇ 5. Houve coluna a Nova Lamego e todos os pelotões queriam ir para levar o seu Capitão, foram dois pelotões, eu também fui. Na parte da tarde no regresso a Canjadude, durante o percurso, choveu torrencialmente e chegámos ao aquartelamento, todos encharcadinhos.

(Email que recebi da Guiné dia 01-11-2010)

Boa Tarde
Fiquei muito contente por ver a fotografia de meu Capitão Pacifico dos Reis.
Eu estive no 2.º Pelotão de Alferes Gomes

Atentamente
Paulo calos Media

Dia 7 de Outubro, escrevi na minha agenda, como era habitual escrever todos os dias: - “ Tive que me levantar cedo porque estou de serviço, 1.º turno no Posto de Rádio. O dia está fresco e aos poucos chove, mas nada parecido com a aguaçada que apanhamos ontem. Para não alterar o ritmo, o almoço foi salsicha com arroz e o jantar será arroz com salsicha… Estamos a ficar “fodidos” com a alimentação! Já quase um mês que o comer é pouco e de má qualidade. O que me tem safado é o pão, alguma lata de fruta enlatada e os conteúdos das encomendas que os meus pais me têm enviado, aproveitando o acordo existente entre os correios e Movimento Nacional Feminino. Aqui não há nada que eu possa comprar para comer, além das latas da fruta em calda. Espero que este novo Capitão faça alguma coisa de forma a melhorar a alimentação. Por aquilo que me disse o “Tripa” (soldado nativo), os tropas africanos não vão à bola com a cara do novo Capitão… (teceu mais considerações). Está em Canjadude o homem da foto-cine, passou o filme que eu já tinha visto, - In Ginocchio da Te - com o Gianni Morandi.

Foto 3 > Em Canjadude pessoal a partir e acarretar pedra. O Corceiro está sentado em cima duma pedra a descansar, o Silva está com a marra na mão.

Destaques resumidos de alguns acontecimentos, que escrevi nas agendas nos dias subsequentes:

Dia 8, o Capitão obrigou todo o pessoal das praças a trabalhar no destacamento a fazer uma limpeza geral, que a avaliar pelo que é pretendido executar, vamos ter trabalho para mais de dois meses, sem contar com as construções de abrigos que estão em curso, que tem dado muito trabalho ao pessoal. O Capitão começou logo por alterar o horário laboral, suprimindo uma hora na parte da manhã e outra na parte de tarde, ao período do descanso, horas que foram implementadas aos períodos do trabalho. Está um Pelotão em Nova Lamego, todas as noites sai um Pelotão para o mato, o pessoal anda cansado mal alimentado... que mais querem de nós!? Os militares nativos andam revoltados, deitam chispas pelos olhos…
Dia 9, foi o dia de receber o pré.
Dia 10, houve operação para o mato por dois dias, o Capitão não foi, eu estou de serviço no Posto de Rádio. O pessoal que ficou no destacamento, anda tudo a toque de caixa a trabalhar…
Dia 12, houve coluna a Nova Lamego. Regressou o Pelotão que estava ausente. Começa a fazer calor.
Dia 14, operação para o mato dois dias, o Capitão não foi…Tem havido algumas flagelações inimigas aos aquartelamentos aqui das redondezas.
Dia 17, operação com três pelotões durante dois dias, o capitão não foi e os que ficam são obrigados a trabalhar desalmadamente. Era regra quando se regressava das operações do mato, descansar no dia seguinte… essa regra acabou!
Dia 18, veio a DO trazer o correio e vieram dois militares Rádiomontadores, para afinar e reparar equipamento de transmissões.
Dia 23, operação de dois dias, com três pelotões, o capitão não foi. Eu fui nesta operação, que foi muito cansativa, devido ao estado pantanoso em que os terrenos que palmilhámos estão, caminhou-se muito tempo dentro de água, e no dia 24 de manhã, houve necessidade de fazer duas evacuações. Todo o pessoal se queixa que o trabalho está a ser exaustivo, os graduados estão a fazer muita pressão sobre quem trabalha…Dia 27, houve coluna a Nova Lamego, foi uma coluna azarada, no regresso tivemos nove furos nos pneus das viaturas, e o “Tripa” caiu duma viatura em andamento, ficou todo escavacado, o corpo parecia um “Cristo”, mas não perdeu a animosidade e o humor que o caracteriza, dizendo ele: - “Que isto lhe aconteceu num momento agoirado da sua vida, porque Alá fechou os olhos e passou pelas brasas, e não o pôde amparar, na queda.”
Dia 30, saída para o mato com 3 pelotões, por dois dias.
Dia 2 de Novembro, vimos uma grande cobra dentro do abrigo de Transmissões, que não conseguimos apanhar. Durante o dia há muito calor…
Dia 5, saíram dois pelotões para o mato, por três dias. Anda muito calor, os africanos dizem que já passou a época das chuvas.

Na tabanca, os civis e os militares andam interiorizados com as orações do Ramadão, vivem estes momentos de devoção com tanta convicção, que dá para cogitar! Os Islamizados, que creio que são praticamente todos, durante o período do Ramadão, não podem comer nem beber nada durante o dia, desde o alvorecer até ao crepúsculo, não podem fumar, não podem ter relações sexuais nem alimentar maus pensamentos ou desejos, assim como não devem alimentar maus sentimentos (ira, revolta, vingança, traição), enquanto durar o Ramadão, intervalo de tempo entre duas fases lunares de lua nova…

Foto 4 > Militares e civis, na tabanca de Canjadude, a orar segundo as suas devoções, durante o Ramadão.

Foto 5 > Corceiro, vestido à civil na tabanca de Canjadude, durante o Ramadão, no meio de alguns civis.

Resumo condensado do que escrevi, no dia 6 de Novembro de 1969:
"Anda tudo cansado com o trabalho no destacamento e há muita pressão dos superiores, as idas para o mato a caminhar em bolhanhas alagadas são uma constante, saídas nocturnas consecutivas, falta tempo para dormir e descansar, a alimentação é péssima, os africanos estão no seu tempo de reflexão e oração, andam muito inactivos e apáticos, por um lado, mas por outro estão agressivos, contrariando o ciclo da tolerância e meditação que impõe o Ramadão, a somar há ainda a instabilidade devido à tensão sexual contida. O Capitão hoje deu duas bofetadas ao Luís Có, (nativo) humilhou-o perante os camaradas, já fora do horário de trabalho, e pelos vistos já não é a primeira vez que bate em africanos….”

Dia 7, (para dia 8) durante a noite, o Capitão foi fazer uma ronda surpresa, visitando todos os postos de vigia, segundo consta apanhou um militar num posto da tabanca a dormir. O Capitão chamou o furriel (Sargento de Dia) e disse-lhe que ia participar dele, porque não sabia controlar os homens que tinha sobre a sua responsabilidade. Passado uma hora ou duas, sem que ninguém previsse, o Capitão voltou a fazer nova ronda, apanhou novamente num posto da tabanca um sentinela a dormir, o Capitão pegou na G3 do sentinela e levou-a consigo.

Dia 8, Sábado, logo de manhã, o Mascarenhas (nativo) foi ter com o Capitão e pediu para lhe devolver a sua G3. O Capitão deu-lhe à vista dos presentes dois murros que o deitou ao chão.

Foto 6 > Corceiro, sentado na pedra à saída do posto de rádio, como era seu hábito.

Ao meio da tarde, eu estava de serviço no Posto de Rádio, sentado no exterior na pedra que nos serve de assento. Nisto, vejo vir todos os militares nativos fardados e equipados com todo o armamento, e em silêncio, formam alinhados na parada, cerca de 220 militares. Três deles, encabeçados pelo João dos Comandos (nativo), destacam-se e vão falar com o Capitão, que lhes deu pouca atenção, virou-lhes as costas e dirigiu-se para o abrigo, o grupo dos três vêm comunicar algo à formatura, no dialecto deles que eu não percebi, retiram-se novamente, dirigem-se agora, ao abrigo do Capitão, onde estiveram uns minutos, saíram e encaminham-se para a parada, comunicam algo ao pessoal da formatura, de imediato e apressados arrancam todos em direcção a Nova Lamego, armados até aos dentes, com bazucas, morteiros, todo o armamento da CCAÇ 5. A percepção que me atormentou, é que ninguém está a dar a devida importância ao caso, invadindo-me a sensação que não há consciencialização do confronto que está em curso, não vejo ninguém a preocupar-se, e voluteia a fantasia que isto é um problema de africanos, e eles que se desembaraçassem, tudo se refugia nos abrigos a enterrar a cabeça na areia, mais parece que tudo pensa - que a pimenta no cu dos outros é refresco quando o cu que está a arder é o nosso… Fico com a percepção que ninguém acreditou que ousassem tomar esta atitude…

Foto 7 > João, (dos Dragões) está sentado no meio das duas cadeiras. Foto tirada em cima do abrigo dos graduados.

Foto 8 > Alferes Sousa e Furriel José Martins, no campo de futebol de Canjadude. Atrás, do lado direito, o Furriel Gonçalves que era o Sargento de Dia a 7 de Novembro.

Foto 9 > Sargento Enfer. Cipriano

O Furriel José Martins, não sei se saiu da secretaria ou não, tropeçou com o grupo dos sublevados, quando começaram a abandonar a parada, e ao dar-se conta do acontecimento, talvez para os demover dos intentos, ou talvez até nem acreditasse que os revoltosos levassem a acção em frente, e naturalmente bem intencionado porque efectivamente até poderia acontecer uma tragédia, disse-lhes: - Saiam para fora do arame farpado e metam-se na picada, que vem algum bombardeiro e vos manda alguma bojarda. Mas os insurrectos não ligaram, nem olharam para trás, e rumaram acelerados para a picada em direcção a Nova Lamego, onde desapareceram…

O Furriel Carvalho viu os militares desaparecerem, na saída de Canjadude para Nova Lamego e foi para o abrigo dar conhecimento ao Alferes do seu pelotão, Alferes Sousa, que por acaso era o 2.º Comandante da Companhia, porque o Alferes Gomes estava de férias. O Alferes Sousa foi ao abrigo do Capitão. Posteriormente mandaram chamar o Sargento Enfer. Cipriano (nativo), cujas relações já não eram muito sadias com o Capitão, o Sargento Enfermeiro até deixou de dormir no quartel e foi dormir para a tabanca. O Capitão, o Alferes Sousa, o Sargento Cipriano e mais dois ou três Furriéis, saíram do aquartelamento no encalço dos revoltosos, numa viatura…

A nossa atitude, éramos meia dúzia de gatos-pingados no aquartelamento, foi tentar vigiar os civis da tabanca, para não deixar sair ninguém a levar informação ao IN sobre o acontecimento, caso não tivesse saído já, o fim da tarde aproximava-se veloz e começamos a organizarmo-nos para ir para os postos de vigia.

A viatura com o Capitão e os militares que o acompanhavam interceptaram o grupo dos militares revoltosos, já a mais de 1,5km de distância de Canjadude. No sucesso do diálogo entabulado, foram de capital importância, para os convencer a retroceder, as boas influências do Sargento Enfermeiro Cipriano (nativo), que algumas vozes diziam, que terão sido as suas manobras instigadoras que levaram os militares a originar a rebelião. Não foi de menos importância, a acção persuasiva do Alferes Sousa, junto do seu Grupo de Combate, mas que se viu forçado a arriar as calças, e a comprometer-se solenemente perante todos os rebeldes, garantindo-lhes que ia desencadear um processo, para que o General Spínola viesse a Canjadude falar com eles, caso desistissem da intentona de ir para Nova Lamego. A presença do Capitão foi pouco ou nada interventiva, limitou-se a ouvir.

Por mero acaso, quando o pessoal já estava de regresso ao aquartelamento, foram sobrevoados a baixa altitude por dois bombardeiros T6, exercício que acontecia frequentemente, devido às visitas regulares que os T6 faziam à zona de Madina do Boé, passando sempre a baixa altitude por Canjadude.

Os militares regressaram a Canjadude com semblante triunfalista…

Foto 10 > Em Canjadude, sentados no assento da viatura. Na linha da frente, com toalha ao pescoço: 1.ºs cabos Saldanha (Cabo Verde), Camilo; atrás do lado direito: 1.ºs cabos Martins, Jorge (nativo), Leitão, os dois nativos do lado esquerdo não me ocorre o nome.

Foto 11 > À direita o Barbosa, o outro militar não me ocorre o nome.

Ao chegarem ao Aquartelamento foram pedir justificações ao Furriel José Martins, para esclarecer qual a razão porque tinha chamado os T6, pedido que nem o Furriel Martins nem ninguém fez.

Os 1.ºs cabos Barbosa e Saldanha (nativos, o último era cabo-verdiano), que foram elementos preponderantes e dinâmicos na organização da insurreição, vieram perguntar-me se eu tinha mandado alguma mensagem via rádio, a pedir a intervenção dos T6. Eu respondi que não, o que efectivamente era a verdade. Sensibilidade pessoal: para mim, o 1.º Cabo Saldanha, era entre os militares nativos de Canjadude, o mais educado, correcto, respeitador e instruído, do qual eu era amigo e continuei a ser.

O Alferes Sousa não pode cumprir a promessa, já tinha havido com ele há tempos, quando desempenhava as funções de Comandante da Companhia, um episódio “irrelevante” mas divertido, que ficou conhecido como “o very-light”. Embora fosse, e é, o Sousa uma excelente pessoa, teve algumas dificuldades a partir daqui com os militares africanos, aos quais teve dificuldades em segurar o pulso até ao fim da sua comissão.

Foto 12 > Dois milícias, com os livros da instrução primária, 2.ª classe, na mão.

Foto 13 > Picada para Nova Lamego, à saída do arame farpado de Canjadude.

Os militares africanos ganharam muita força, houve dias agitados…

O Capitão tinha comandado a polícia em Coimbra, quando da crise universitária de 1969.

Para lavrar o auto da insubordinação, veio de Bissau num DO, um Major e um Furriel, no dia 17 de Novembro. Muitos de nós fomos inquiridos. O Major e o Furriel deixaram Canjadude o dia 24.

O Capitão deixou Canjadude, o dia 28 de Março de 1970, foi colocado em Bissau, foi promovido a Major e ficou a desempenhar na Guiné, as funções de responsável pela educação (ensino). Para substituir o Capitão, veio comandar temporariamente a Companhia, o Capitão que comandava a CCS do Batalhão de Nova Lamego, porque ainda não tinha vindo substituto da metrópole.

Boa saúde e um abraço para todos.
José Corceiro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7181: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (11): Lisboa a viver num apartamento com mais três estudantes (José Corceiro)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

Guiné 63/74 - P7239: Memória dos lugares (110): BII 19, Funchal (José Vermelho, ex-Fur Mil, CCAÇ 3520, Cacine; CCAÇ 6, Bedanda; CIM, Bolama, 1972/74)








Região Autónoma da Madeira > Funchal > Alguns dos belos painéis de azulejos que existem espalhados pela cidade. Estas são imagens de 2005...Em contrapartida, não tenho nenhuma do BII 19, unidade mobilizadora de muitas companhias (ditas madeirenses) que estiveram no TO da Guiné. Faltam-nos memórias do BII 19 (e do Funchal)... Convidam-se os nossos camaradas que por lá passaram a colmatar estas lacunas... Felizmente temos agora o J.L. Mendes Gomes a evocar os tempos, já longínquos (1963), em que por lá passou... Mas também o José Vermelho (1971).

Fotos: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. 



1. Comentário (*) do nosso camarada José Vermelho (que aqui reproduzo, enquanto aguardo a concretização do meu convite pessoal para ele integrar a nossa Tabanca Grande; na foto à esquerda, ele está de T-shirt às riscas, com o seu e nosso camarada Vasco Santos, em convívio recente do pessoal da CCAÇ 6, Bedanda)

Caro Mendes Gomes: Que delícia de relato. Mais uma vez reavivas as memórias que guardo das 2 vezes que aportei à Madeira a bordo do paquete Funchal. 

Há, no entanto, uma diferença bem grande no que diz respeito ao BII 19. Estive lá de Julho a Dezembro de 1971 e, felizmente, não o conheci com as instalações que descreves mas sim já com novas instalações, perfeitamente adequadas ao fim militar a que se destinavam. Ficava a meia encosta e estava rodeado por campos e bananais.

Voltei lá no ano passado, 38 anos volvidos, para o Almoço anual da minha companhia e que decorreu no quartel. Tivemos honras de 2º Comandante, toques militares, e uma 2ª Sargenta (?), mestre de cerimónias e de refeitório (mas que senhora militar...No nosso tempo não havia Sargentos daqueles). Que emoções!

Afinal desviei-me do tema. Era só para dizer que os campos e os bananais à volta do BII19... desapareceram!!! Agora é só casas e mais casas a toda a volta.

Ah! e desculpa lá, mas o espada preto e o atum gaiado dispensava-os bem, na altura.

Espero novos textos teus. Um abraço para ti, extensivo a todos os camaradas

José Vermelho

Ex-Fur Milº
CCaç 3520 - Cacine
CCaç 6 - Bedanda
CIM - Bolama

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de  8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66 (**).


Oficial e cavalheiro (4): O Porto Santo ao longe

Pouco depois de amanhecer, já corria que mais um pouco e a ilha do Porto Santo se iria ver. A manhã estava transparente em todos os sentidos.

O bombordo era o lado preferido de todos os madrugadores. Com os olhos postos ao longe, já se sentia necessidade de ver terra firme para quebrar o primeiro e natural acesso de monotonia. Um vulto mais escuro começou a divisar-se, longe, para a frente do barco, a estibordo, a sair, lentamente, da superfície imensa do mar.

Mais um pouco e um grande lagarto se estendia matreiro e preguiçoso, de areias refulgentes sob o dorso, mais o filhote soerguido, ali, ao pé. Lentamente, foram ficando para trás, sem se esconderem de novo, curiosos. Cada vez mais pequenos.


Agora, era um grupo de vultos ponteagudos que iam avançando para o ar e crescendo em tamanho para os lados mais baixos, esverdeados, a descer em grandes rugas pedregosas, até à tona das águas, rendilhadas de brancura. Com a ajuda de binóculos, tão na moda, pudemos antecipar a visão do que pouco depois se alcançava a olho nú. Encostas serranas, bravias e muito alcantiladas, vestidas de verde, a rigor, pareciam tapar qualquer hipótese de ser animado. Um ermo, como era quando a frota do Gonçalves Zarco [c. 1390-1471] lá chegou, séculos atrás [vd. foto da estátua, no Funchal; estátua da autoria de .

Os primeiros barcos a motor, quais formigas brancas, atrevidas, surgiram no horizonte das águas, a dar-nos as boas-vindas e ficaram a rodopiar à volta, sem esforço e destemidos, até ao termo. Um pouco mais adiante ia abrir-se o deslumbramento inesquecível. Uma mancha salpicada de casas brancas e telhados vermelhos, disseminadas, sem regra, pelas encostas ao sabor da mais pequena reentrância natural da encosta, estendia-se cada vez mais densa, desafiando o alcantilado das serras; aqui e ali era o cocuruto de uma igreja que parecia desafiar as alturas da encosta, vigilante das bem contadas ovelhas do seu redil; veredas estreitas serpenteavam por entre aquele casario, orladas de mil flores refulgentes de cor; uma maviosa sinfonia de beleza perfumava e fascinava o nosso olhar boquiaberto.

Apetecia saltar sobre as ondas mansas e correr para aquele pedaço de terra escondido atrás do mar imenso e sem fim. Não demorou muito e o barco, já habituado, entrava docemente num recanto pacato, que fazia de salão de visitas, duma cidade viva e gaiata, a estender-nos os braços acolhedores. Insensivelmente, dei comigo a apertar-me as carnes, procurando provar que tudo aquilo não era um sonho divinal.

O ar, fresco e rico entrava por nós dentro, inebriando-nos dos perfumes da terra, nunca antes saboreados. O imenso quadro polícromo que se desdobrava diante de nós não podia ser mais harmonioso. O fortim secular, altivo e muito bem colocado a meio da encosta foi o primeiro a arrrebatar os meus olhos. Fez-me imaginar as repetidas escaramuças com os visitantes predadores daquele éden, vindos das brumas das águas. A torre da Sé [v. foto acima] erguia-se afável do seio do casario por ela abençoado. As ruas cercadas de frondosas ramagens sulcavam toda aquela metrópole, misto de sabor ocidental e africano, buliçosa nas gentes e nos carros automóveis e, ainda, puxados a bois…

Uma vontade enorme de sair nos invadia e arrebatava. Tivemos de esperar desensofridos as formalidades da ordem. De novo, um carro militar nos aguardava atento e nos trouxe, depressa, para o B.I.I.19 [, Batalhão Independente de Infantaria nº 19], bem dentro da cidade. Depois foi o primeiro contacto com as pessoas já habituadas à surpresa dos recém-chegados. Em cada momento que passava, inflamava-se e acescentava o nosso contentamento, geral e irresistível.


Oficial e cavalheiro (5): O Quartel do B.I.I.19

O carro militar que nos transportava, saíu da rua que contorna o porto e entrou no seio da cidade. A abundância de árvores e jardins, com sabor verdadeiramente tropical e a predominância abundante, de turistas nórdicos, refastelados pelos bancos públicos e nas amenas esplanadas, os grandes e festivos paquetes cor de rosa, de tamanho duplo do nosso Funchal, tornados verdadeiros hóteis flutuantes a bordo, encostados ao cais, foram as primeiras notas de que tínhamos chegado a uma terra, diferente, cheia de encanto, quase irreal.

Subimos por uma rua estreita, à esquerda e parou-se ao meio de muro elevado, bem rentinho àquela. Um militar avançou da guarita e começou a mover a espingarda, que segurava diante de si, em jestos de braços e pernas, decididos e respeitosos. Uns 3 ou 4 vieram, de dentro, postar-se a seu lado, perfilados, também com a arma no ombro, altivos. O carro entrou pelo portão, para uma parada de aspecto sombrio e pardacento.

A primeira sensação foi de pobreza e acabrunhamento, perante as diversas entradas que davam para aquela parada, tosca, de terreiro de pedras negras e irregular. A porta larga que dava para uma cozinha térrea, com cobertura a verem-se os caibros do telhado, enegrecido e gordurento pelo fumo que saía das bocas do fogão gigante e das panelas enormes, os tanques rudes de cimento, junto à parede, para lavagem de todas as loiças e talheres de alumíneo do batalhão, os cozinheiros e seus ajudantes, destacados, por missão ad hoc, com os barretes brancos sujos, nas cabeças e tamancos de madeira engordurada.
Um quadro sombrio que, na metrópole, nos faria remontar à idade média… A adaptação pareceu-me impossível, mas estava muito enganado. Outra porta dava para a oficina dos carros da tropa, em modelos antiquados, com muitos milhares de km a mais que os previstos na origem. Ferramentas ultrapassadas, com muito recurso a cordas e muito madeirame encardidos pelo óleo queimado. Outro quadro de oficina muito recuada nos tempos, já muito ultrapassados no continente.

E o lugar para instrução? Aquela parada seria necessariamente pequena para um batalhão. Outra surpresa. Entrava-se por um túnel interior, coberto pelas instalações dos serviços administrativos, militares, salas de oficiais e sargentos, alguns gabinetes; descia-se para um primeiro terreiro interior, ao jeito do claustro conventual, que fora, outrora, cercado de uma beirada de telhado protector nas alturas de chuva, rara; desse terreiro, passava-se, sucessivamente, para mais dois, com a mesma configuração.

Era neles que toda a instrução militar dos vários pelotões se tinha de desenrolar, com muita improvisação. Alguns soldados de aspecto um tanto desalinhado cirandavam por ali. Olharam-nos com um ar nublado de inesperada timidez. 

Fomos levados para a sala de oficiais, depois de percorrermos um corredor e subirmos umas escadas em madeira já muito gasta e empenada. Um pequeno bar, despretensioso, mas com uma óptima esplanada com vista sobre a encosta verde da cidade, servido por um magala mais aprumado. Umas mesas e cadeiras espalhadas. Revistas e jornais com atraso de alguns dias, ao dispor. O transporte do continente ainda era feito apenas pelas carreiras marítimas regulares.

O aeroporto era, ainda, um sonho ou um projecto em concurso. Lembro que as terras de Santa Catarina ou do Paúl da Serra eram as duas hipóteses em confronto. Os camaradas mais antigos começaram a chegar e a meter conversa connosco. A maioria era madeirense e formada por ex-seminaristas do Funchal. Eram uns senhores, para o círculo apertado da cidade. Tinham gozado das bênçãos da venerada herarquia clerical; disfrutavam, agora, das não menores que a farda militar, ali, lhes oferecia. 

Nós beneficiámos, logo, daquela honra acumulada. A nossa chegada até teve honras de notícia, com os nomes e categorias, nos jornais do dia seguinte. Fomos chamados ao gabinete do Comandante do Batalhão, um coronel, já de idade madura, ali, habilmente, acoutado pelas hostes continentais, para cumprimentos de boas-vindas.

Foi agradável e cerimoniosa a recepção. O alojamento tinha de ser custeado por nós, num dos quartos que as gentes do Funchal estavam habituadas a dispensar aos oficiais de passagem. O custo era reduzido, mas a nossa mesada era um suplemento que lhes sabia bem. Eu, o Gomes e o Gonçalves fomos parar a casa de uma solteirona, solitária, com mais de 50 anos, de olhar matreiro… Só dormir e roupa lavada. Andava por lá um cinquentão, vigilante…

As portas estavam à nossa conta. O almoço era por conta da tropa. O jantar era pago, com preços firmados, na hora, pelo antigo cozinheiro, de voz rouca, de um navio mercante. O que pagávamos constituía o bom engodo ara o manter ao seviço na cozinha. Ainda hoje me lembro dos saborosos filetes de espada preto e de bifes de atum, como nunca mais provei.

Os primeiros dias foram para conhecer os bares, cafés, ruas e costumes da cidade, em uniforme militar, como convinha. O café Apolo, com uma boa esplanada, ali juntinho à velha Sé, não podia ser mais acolhedor e melhor situado. Visita diária obrigatória para a nata do Funchal. O Sunny-Bar, na formosa Avenida do Mar [, e que ainda hoje existe]. A rua de Fernão Ornelas, a mais recheada de montras e de comércio, exótico, fervilhante.

O mercado dos lavradores [, foto à esquerda, pormenor de azulejo], mercado municipal, pegado àquela artéria central, onde vinham desaguar as suculentas hortas do campo, em fruta tropical, flores e tudo o mais. O terreiro, ladeado de uma protecção simples, em tubos de ferro forjado, saído da avenida do mar avançava uma centena de metros pelas águas do porto dentro. Era o festivo ponto de encontro de toda a gente, especialmente, no final da tarde e noite dentro. Ponto de mira para as longínquas desertas, erguidas sobre as águas azuis do oceano e, sobretudo, para a vista total da cidade que se estendia mansamente, pelas encostas íngremes da serra, exposta num abraço largo, de beleza surpreendente.

Para as pessoas do Funchal, um passeio descontraído por estes recantos, à mistura com os turistas sempre renovados, sobretudo, pelos regulares paquetes nórdicos, era uma necessidade diária e embriagante.O liceu, as escolas particulares e uma superior de música refrescavam, de juventude, de costumes ainda bem controlados, toda a vida da cidade.

Os carros turísticos de bois, engalanados como os seus boieiros e ajudantas, com as cores garridas das vestes típicas, iam semeando de aromas odorosos, bem tolerados, as lajes escuras das artérias principais. Os jardins recheados de árvores tropicais e abundantes flores exóticas.

O de Santa Catarina, de vegetação luxuriante e labiríntica, lá ao cimo da avenida do Infante, sobranceiro ao porto e à cidade, a dar saída para a Câmara de Lobos, o centro piscatório mais próximo; o da Senhora da Esperança, de vegetação densa e cheio de chafarizes a irradiar frescura, mesmo no coração do Funchal.

As duas ribeiras íngremes a escorrer da serra, cobertas por um manto de verdura e flores constantes, cortando as ruas da cidade, até ao mar. As bordadeiras coloridas, a laborar em bancos pequenos, em plena rua, à vista curiosa de quem passava.

As esquinas da Sé e da fortaleza central eram embelezadas pelas vendedoras de formosas orquídeas, tecidas pela mão da natureza, em veludo natural, desenhadas em linhas de traço impecável. O Funchal era uma festa rija e permanente. O trato das gentes era doce e afável, mas envolvido numa subtil resignação, oculta e insular. Tal como a musicalidade da sua voz e o falar entoado e castiço. Difícil de entender, nos primeiros tempos.

 

[Continua]

[ Revisão / fixação de texto / selecção de fotos / título:  C.V.]

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Notas de C.V.:

(*) Vd. último poste da série > 15 de Outubro de 2010


Guiné 63/74 - P7131: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (3): Oficial e cavalheiro: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal






(**) Vd. postes da série Crónica de um Palmeirim de Catió:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu