Capa de
Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira, 3ª ed. ervista. Lisboa: Portugália Editora. 1963. (Contemporâena, 46). Capa de João da Câmara Leme.
Foto: ©
Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > "A uma mes de café, junto das docas de Bissau. Barbosa, o herói das emboscadas, o condutopr Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de garto convívio de gente que partilhava com ressignação os mesmos sacrifícios. A ver se tomamos uma
bica nesta mesma mesa daqui a 2 meses" (Beja Santos, que aparece na foto, em primeiro plano, do lado direito. O Barbosa faz-se acompanhar da sua inseparável boina...verde).
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Beja Santos (2006). Direitos reservados
Texto recebido em 8 de Novembro de 2006.
Caro Luís, conforme prometido, aqui vai mais uma contribuição semanal. Estou a escrever sobre Novembro de 1968. Começou o derramamento de sangue no Cuor. Mas há peripécias fartas, muito barro do quotidiano e começo a ter o pelotão fisicamente esgotado. Não me peças sugestões para ilustrações, pois não tenho mais nada a não ser a capa do livro
Uma Abelha na Chuva que hoje vai seguir pelo correio. Contudo, faço referência a uma fotografia que está em teu poder, com o furriel Ferreira, o Adão enfermeiro e o Barbosa da boina verde, entre outros. Tudo farei para nos encontrarmos no princípio de Dezembro e festejarmos precocemente o Natal (um bom Natal festeja-se todos os dias). A minha prenda será o meu livro
Este consumo que nos consome que entretanto já estará editado (Porto, Campo das Letras, 2006) (1).
Nada mais por hoje e recebe um grande abraço do Mário.
Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, o
Tigre de Missirá - como era conhecido entre os as chefias militares e os seus camaradas de Bambadinca-, ex-comandante do
Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).
Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)
por Beja Santos
À saída de Finete, onde vim depois de patrulhamento de Mato de Cão acompanhar as obras em dois abrigos, sou apresentado a Braima Mané. É um homem sorridente que me vem oferecer pepinos e ovos, nos trinta anos, de bigodinho bem aparado e, reparo, um braço tolhido. Bacari Soncó dá-me explicações. Braima foi uma das grandes vítimas do ataque a Missirá, em Maio de 1966, uma infelicidade monumental aconteceu-lhe: uma granada de morteiro destrui-lhe a morança e matou-lhe duas mulheres e dois filhos. A desgraça não ficou por aqui, pois Braima enquanto procurava salvar a família foi atingido no peito com estilhaços e um outro maior rasgou-lhe os nervos da mão e do braço, agora em irremediável imobilidade. Braima, que estava nas milícias, foi dado como incapaz para servir nas fileiras, e preferiu viver em Finete.
Combinámos que ele vai ser visto por David Payne, o novo médico de Bambadinca. E, na semana seguinte, ele irá a uma consulta a Bissau, e um dia ele regressará ao Cuor mostrando como os seus braços mexem e estão igualmente ágeis.
Cherno Suane, o novo guarda-costa do nosso alfero
Ieró, o meu precioso guarda costas, parte de férias e sugere substituto, Cherno Suane. Mal sei eu que vai nascer a mais gratíssima das amizades. Até agora, Cherno era o herói do morteiro 60, na noite de 6 de Setembro [de 1968]. A partir de amanhã será ele que me vai arrumar a morança com absoluto desvelo, lavar as botas de lona, engraxar as de cabedal, sacudir as esteiras e o folhelho do meu colchão, arrumar os livros, dobrar a roupa, remover as teias de aranha e sacudir a mosquitada.
Falamos do mesmo Cherno que, a 15 de Março próximo, se quer atirar para dentro de casa para salvar as coisas de
alfero (felizmente, foi impedido de se imolar nas chamas e nos rebentamentos subsequentes), se vai salvar milagrosamente na mina anticarro de Canturé, que me acompanhará em todas as operações, ombro a ombro. Este mesmo Cherno, não caberá nesta história, conhecerá o inferno com a independência e virá comigo para Portugal em 1991. É hoje cidadão português, passa temporadas na Guiné e trabalha como a segurança num armazém de electrodomésticos no Bairro Angola, em Camarate.
Casanova e o pequeno Braima, uma história de amor
Quero falar de uma outra história de amor e que envolve outro Braima. Este é raquítico e filho de Galem e Mariá. O furriel Casanova tomou a iniciativa de o alimentar. Um dia fomos a Bambadinca, a pretexto de termos de ir a Bafatá buscar os vencimentos dos caçadores nativos e dos milícias, o Casanova foi a uma farmácia comprar um biberão e uma lata de Nestogeno. Não vai ser invulgar o Casanova olhar para o relógio, chamar um miúdo que passa pela parada e dizer-lhe:
- Vai ali a casa da Mariá e dizer-lhe que são horas de o Braima comer. Serão meses de idílio, o Braima ganhará peso, ninguém se atreverá a brincar com os sentimentos do Casanova.
Tenho o pelotão exausto, muita gente doente, faço o possível para manter os patrulhamentos, pedi mesmo ajuda aos milícias de Finete, a escola funciona bem, com a intervenção do professor que fui buscar a Bambadincazinho mas também com o Ferreira, o Casanova e o Zé Pereira.
Sempre que posso, a meio da tarde, convido o Malã e Lansanâ para tomarmos chá. Lânsana mostra-me as suas poesias religiosas que ele desenha em árabe em tábuas de pau sangue e vai-me dando explicações:
- Esta oração quer dizer Deus abençoe a
bianda (refeição); aqui está escrito
alarramano melafo (obrigado Deus pelas boas chuvas que nos dão a comida deste dia) - . Mas quanto perguntei ao Abudu Soncó o verdadeiro significado desta expressão, ele disse-me que esta frase não existe... mas como a registei, peço a todos que aceitem com o mesmo sentido como me pareceu ter interpretado).
Escrevo para Lisboa a pedir a todos que mandem pelos oficiais, sargentos e praças que foram de férias comida natalícia, o que vai acontecer e será um bálsamo no nosso Natal desolador.
Aumentámos as medidas de prevenção pois a guerrilha tem-se intensificado e há flagelações por toda a parte. Amanhã, a
mulher grande de Missirá, Jaira, a octogenária mãe de Quebá Soncó, vai à consulta e peço ao David Payne para ver o que se pode fazer do seu corpo esquelético. Em sua companhia seguirá Sari, a mulher de Bacari Soncó, hoje régulo do Cuor. Sari está grávida de três meses e sofre de paludismo.
A morte, emboscada, em Chicri
Acaba de chegar o Teixeira com uma mensagem que diz "Cavalgue Berlim", o que significa "Pelo meio dia amanhã esteja em Mato de Cão". Informo os furriéis que, depois de pôr os doentes em Finete, sigo para Mato de Cão e depois vou fazer uma emboscada nocturna em Chicri. Saio de Mato de Cão pela uma da tarde, comemos o nosso farnel e seguimos para Chicri. Está um céu de chumbo, tem chovido muito, percorremos a velha tabanca à procura de indícios de passagem recente da gente de Madina/Belel.
À saída da tabanca, perto de uma estrutura rochosa, encontra-se um caminho bem pronunciado com marcas de pés calçados e recente. Anoitece e organizo com Bacari Soncó e Fodé Dahaba uma emboscada em meia lua, uma bazuca e um morteiro nos extremos, a meio eu, dois apontadores de dilagrama e de pé um vigia, para poder avistar uma eventual chegada a partir de Gambaná do grupo rebelde, e assim termos tempo de inverter o grupo emboscado.
É uma noite sem lua, não há o piar das aves, ao fundo o bruxulear das luzes do porto de Bambadinca. Depois de instalado o grupo, com auxílio do Domingos Silva explico aos 20 e tal homens (e Domingos precisa tudo em crioulo) que a ordem de atirar partirá de mim, que o primeiro fogo será de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, que a retirada será igualmente decidida por mim e que o itinerário a seguir passará por Gambaná, Canturé e Missirá, ninguém poderá ficar para trás, de meia em meia hora far-se-à uma paragem e a verificação dos presentes.
Todos a postos, o silêncio adensa-se, e pelas 7:30 da tarde Mamadu Camará avisa-me ao ouvido: - Está gente a aproximar-se, vejo sombras a sair da mata -. E de facto, um grupo de mais de uma dezena de pessoas avança de uma forma despreocupada (ou fui eu que pensei que a coluna rebelde não vinha com muita precaução).
Quando estão a cerca de 20 metros de nós, exactamente no trilho onde estava ajoelhado, levanto-me sem ruído e grito:
- Fogo, muito fogo! - E o fogo foi atordoador, logo com a bazuca, o morteiro e os dilagramas que alvejam quem ainda vem dentro da mata, aterrorizando, desbaratando, impedindo qualquer reacção. E assim como o fogo teve uma cadência infernal, assim se silenciou quando decretei a retirada.
A boina verde do Barbosa
Lestos, correndo pela picada, alcançámos a estrada de Mato de Cão, aqui fez-se a contagem dos homens, o grupo estava coeso e arfante. Em passada rápida rumámos para Canturé, por dentro do mato, por sinal usando um trilho alternativo quando íamos para Mato de Cão. É aqui que se vai passar um episódio insólito. O Barbosa (que consta de uma fotografia ao lado do Quim motorista, do furriel Ferreira e do Adão enfermeiro), chega ao pé de mim e diz-me com voz trémula e quase ciciando:
- Meu alferes, perdi a minha boina verde em Chicri, não sei viver sem ela, vou voltar para a recuperar.
Seguiram-se alguns minutos amalucados em que eu procurava lembrar ao Barbosa que ele não podia comprometer mais de 20 vidas por causa de uma boina. Na noite escura, ele abanava a cabeça e insistia que não saía dali:
- Ou volto convosco ou vou lá sozinho!
Debalde os camaradas insistiam na insignificância da boina. A conversa arrastava-se num círculo delirante e tive que jogar o mais mirabolante dos acordos possíveis:
- Barbosa, nós vamos regressar todos a Missirá, e garanto-te sob palavra de honra que amanhã eu e os mesmos homens que aqui estão viremos contigo buscar a boina.
E assim foi. Só numa guerra daquelas é que era possível fazer um contrato de mais 25 km de perigos para ir procurar um objecto fetiche. Nessa noite converso com Lânsana e peço-lhe que reze por nós. O que ele respondeu eu não percebi, mas o Cherno explicou-me:
- O que o Marabu acaba de dizer é que Deus é grande. Ele vai rezar para que nada nos aconteça.
E de facto, nada aconteceu. A aproximação de Chicri foi penosa, à procura de qualquer sinal onde encontrássemos uma cilada à nossa espera. O terror que infringimos fora poderoso. Dois cadáveres jaziam a céu aberto. Foram enterrados mesmo com o ar contrafeito de tropa. A boina apareceu no local onde tínhamos estado emboscados e regressámos sem beliscadura.
Uma abelha na chuva.. em Missirá
Continua a chover a cântaros, andamos enlameados e procuro estar atento ao sofrimento físico dos militares. O Ramadão caminha para o auge e fui convidado para a cerimónia da mesquita. O irmão de Braima Mané, um alfaiate exímio, está a fazer-me uma sabadora com um belo bordado em azul e fio dourado. Irei usá-la (aliás, como todo o traje de cerimónia) nesse dia e tirarei uma fotografia ao lado de Malã e o seu séquito.
É muito importante que vos fale das minhas leituras, nesse momento. A razão é muito simples: acabei de ler um dos livros mais influentes da minha vida,
Uma abelha na chuva, do Carlos de Oliveira.
Este escritor neo-realista era um operário da escrita. A minha mãe tinha a primeira edição desta obra, li as outras duas edições seguintes, tudo diferente, o estilo cada vez mais castigado, as imagens mais ricas, o ritmo avassalador. A
abelha é uma história de timbre ultra-romântico e talvez o mais significativo romance com história rural até aos anos 60, em contexto modernista. É uma escrita que vai directa ao fim, mostrando a decadência de uma fidalguia provinciana obrigada a alianças de conveniência com os negociantes. Maria dos Prazeres é figura dessa fidalguia obrigada a suportar um marido cobarde, Álvaro Silvestre. A trama inclui uma paixão destruída pelo vingativo Álvaro Silvestre que, cavilosamente, desperta o ódio do pai de Clara que vai matar Jacinto numa das cenas mais empolgantes do romance (2).
Eu leio e releio a obra de Carlos de Oliveira nessas noites de Missirá, é o prazer da escrita é o saber pelos ambientes de fatalidade, é o saber que aquele mundo ainda existe mas que está em vias de extinção. Um dia de província asfixiante que arrasta todos os sonhos e projectos. E assim termina a obra:
"A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a ferirem-lhe o voo; sacolojões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra e a chuva espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas".
A ironia do destino é que a Cristina me mandou outra obra prima que a partir de agora vai andar sempre comigo, como se de uma nova pele se tratasse:
O Delfim, do José Cardoso Pires, publicado neste ano. Leio e degusto. Finalizo um capítulo e recomeço como se a emoção cheia fosse segura por uma cabeça vazia.
É uma história marialva passada na Lagoa que faz parte da Gafeira. Lá longe há um oceano, há dunas e até um mouchão, a vila estará a mais de 100 km de Lisboa. Personagens principais: o Engenheiro, Maria das Mercês, o narrador disfarçado de caçador e o maneta, uma espécie de escudeiro desse marialva que dá pelo nome de Tomás da Palma Bravo.
O Delfim é a agonia de uma ruralidade mesclada pelas incursões de uma industrialização e de um ciclo de progresso que está a asfixiar a velha ordem personificada por esse engenheiro culto, tradicionalista e amigo da sua gente que teme e repudia os novos valores que começam a chegar à Gafeira.
Não será a última vez que iremos falar aqui desta obra prima. Só depois, já em Lisboa, me vou render à escrita de Nuno Bragança e Maria Velho da Costa. Com os anos 80, irei admirar Saramago e Lobo Antunes. Mas naquela Guiné este livrinho que ainda hoje guardo apodrecido por tantas andanças e sacolejos foi bálsamo e revelação definitiva do mundo que vai morrer em 25 de Abril de 74.
Daqui até Dezembro iremos viver outras atribulações. Aproxima-se o Natal e eu vou viver o presépio de Chicri. Não sei se terei a coragem de contar.
_________
Notas de L.G.:
(1) Nota da editor,
Campo das Letras, Porto:
"
Este consumo que nos consome / Mário Beja Santos [
ver biografia]
"O mais recente livro do professor universitário Mário Beja Santos, pioneiro da defesa dos direitos do consumidor em Portugal, Assessor Principal do Instituto do Consumidor, editor do Jornal dos Consumidores e fundador da Plataforma Saúde em Diálogo.
Este livro não é um ensaio nem um manual prático dos direitos dos consumidores. Trata-se de um compêndio de diferentes olhares em torno das realidades do consumo no mundo actual. O funcionamento da sociedade de consumo mudou radicalmente, e é preciso dizer como, onde e em quê. O principal desafio a que me propus foi oferecer a todos os interessados pelo consumo uma explicação abrangente e não alinhada acerca das transformações a que este fenómeno aparece associado no nosso tempo (Beja Santos).
(2) Vd. último post desta série > 30 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé
(...) "Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego" (...).
(3) Extractos de Uma abelha na chuva, de Carlosd e Oliveira, 3ª ed. rev. Lisboa, Portug´+alia Editora, 1963, pp. 136-139:
Saíram-lhe no rasto, cautelosos como dois ladrões. E foram acoitar-se entre o arvoredo, ao pé da fonte.
- Quem é que está com ela ? – quis saber o velho.
- Nãos e vê quase nada, mas penso que é o ruivo.
- O cocheiro do Silvestre ?
- parece-me que sim.
- Parece-te ou é mesmo ?
Marcelo firmopu a vista no crepúsculo:
- É ele.
O cego puxou-lhe pela manga:
- Toca para a azinhaga.
- Fazer o quê, mestre António ?
- Há-de por lá passar o cão no regresso da fonte.
A chuva engrossava pouco a pouco. Ao longe, o céu abriu-se ao fogo dum relâmpago.
- Aí vem a trovoada, mestre. Sente-a?
- Não.
Rodearam a fonte e, cortando pelas terras de cultivo, caíram na azinhaga.
- Já é noite cerrada ?
- Quase.
Estiveram em silêncio algum tempo, abrigados nas moitas. E depois, Marcelo perguntou, um pouco receoso:
- Que vamos nós fazer ao ruivo?
O velho perdeu a paciência:
- Estás a roer a corda, malandro? Queres ou não queres a rapariga?
E Marcelo calou-se. A chuva, cada vez mais pesada, ia ajoujando os sillvedos. O vento crescia e arrastou da distância o marulho dum trovão maior.
- Ouviu agora, mestre ?
Mas o cego deu-lhe uma cotovelada rápida:
- Cala-te, ladrão. O que eu oiço são passos.
Ficaram alerta, de respiração suspensa. O velho ciciou:
- Vai agarrando no cacete, Marcelo.
O vulto surgia ao topo da azinhaga. Uma sombra móvel entre montões de espinheiros derreados de água. Cantarolava. Reconheceram-lhe a voz e mestre António segredou ao moço:
- Arreia-lhe a matar.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anónima e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas. Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia.
A cajadada de Marcelo apanhou Jacinto pela cabeça:
-Ai!
Abriu os braços e foi de escantilhão aninhar-se no lamaçal da estrada. Chape. Inerte como um pedregulho.
Mestre António ordenou:
- Temos de o deixar escondido no silvado e dar um pulo a casa, não vá a rapariga suspeitar da ausência. Come-se o caldo e, mal ela disser as boas-noites, saltamos ao palheiro. Traz-se o jumento, como quem não quer a coisa, põe-se-lhe o corpo em cima e ala para o mar. As águas lá se encarregam de lhe dar sumiço.
E assim fizeram.