1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2022:
Queridos amigos,
É sempre com satisfação que vos dou conta das boas surpresas que a literatura luso-guineense oferece. Este livro de Tony Tcheka é de leitura indispensável. Como escreve Pires Laranjeira no prefácio acerca destes contos aguerridos, há na escrita de Tony Tcheka, no seu processo produtivo uma matriz que lhe foi dada por ter vivido a pré-independência e agarrado com ambas as mãos a raiz patriótica, daí estar amplamente dotado para abordar, como desassombradamente aborda os sobressaltos provocados pelo 25 de Abril em gente com convicções que eram próprias dos assimilados, gente que acabará condenada a certas formas de autismo e dissolução, desencontradas com a história, inadaptados e rejeitados. Uma belíssima escrita, um tratamento delicado para um mundo de espectros bem incómodos para a história das primeiras décadas da Guiné-Bissau independente.
Um abraço do
Mário
Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (2)
Mário Beja Santos
A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante.
Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku".
Se o conto "Pekadur di Sambasabi" é arrepiante por nos revelar uma história de ódio, de abominável ajuste de contas e expor com total evidência que não houve vontade em criar uma atmosfera de reconciliação entre a força independentista dominante e aqueles que tinham servido a causa portuguesa (como se contou no texto anterior), vamos agora conhecer outra dimensão, discretamente ocultada, em torno daqueles que acreditavam estar a prestar serviço do lado justo, como se comportaram depois da independência. Tony Tcheka assombra-nos com descrições de tal modo verosímeis de degradação e aniquilamento, que nos deixa amargor pela descoberta, ou confirmação, de que muita gente, nascida ou não na Guiné, pagou bem caro pelo desprezo a que foram votados ou pela atmosfera de indiferença e humilhação a que foram sujeitos depois da independência.
Primeiro, o conto "Manito, O Patriota". Estamos em abril de 1974, Manito Ribeirinho, cidadão temido na cidade e arredores pela sua dureza de trato, teve sono agitado, e pela rádio chegam-lhe notícias indesejáveis, há reboliço em Lisboa, o escritor socorre-se de uma imagem onomatopeica: “Uma forte trovoada em tempo seco estoirando na sua cabeça”.
O inacreditável aconteceu, mas à sua volta tudo parece seguir na normalidade. É um homem que acredita num Portugal uno e indivisível, é adjunto do subchefe da terceira secção postal, nado e criado naquela terra (filho legítimo do gã-Ribeirinho de Cacheu). Confuso e desfeiteado, depois de lançar reprimendas a quem trabalha lá em casa põe-se a caminho, foi até à central telefónica dos CTT para telefonar ao sr. Administrador do concelho, não está, recomendam-lhe que fuja enquanto puder. Nem sossegou com o telefonema ao sr. Inspetor da PIDE, encontra a cidade em ebulição, para seu pavor a cidade de Bissau fervilhava de euforia, a PIDE em silêncio.
E enquanto Lisboa e Bissau preparam a independência da Guiné o casal Ribeirinho desembarcou em Lisboa. Vai começar uma via sacra, começa a beber uma pinga a mais, a família desintegra-se, “ao ponto de o genro chamar o sogro de catingoso”. Ribas, ou o Manito Ribeirinho, e a sua mulher, vão viver para a Quinta dos Mochos, isolam-se, os amigos de outras eras fecham-lhes a porta. É a descrição de um espectro, entre as recordações do salazarismo e os estímulos do álcool, é um fantasma do passado, um inadequado, anda para ali perdido, tem momentos de levitação patriótica.
Inevitavelmente, será engolido pelo alheamento, restam-lhe sombras e solidão.
Outro conto bem pungente é "Camarada, Melhor Amanhã". Tudo acontece num prédio bem situado no centro da cidade de Bissau, vive-se nos tempos de uma Guiné-Melhor, depois deu-se o recrudescer da guerra que provocou a debandada de muitas famílias metropolitanas e algumas guineenses, as de maior posse, o prédio conhece um novo quadro de mobilidade social, surgem tensões, “as desavenças só terminaram quando os novos passaram à situação de maioria, impondo as suas normas aos poucos sobreviventes da mudança. E de premeio também chegou a independência”.
Vamos conhecer outro espectro, Epuíno Ermelindo Mendonça, um entusiasta confesso da Guiné-Melhor, expedito a datilografar, tratando todo aquele maquinismo com desvelo, é um homem marcado pela religião e pela tradição, Tony Tcheka, em admirável arquitetura da escrita, dá-nos conta do definhamento, aos poucos vão desaparecendo as joias, os bibelots, ficaram as fotografias, as lembranças de almoçaradas e jantaradas.
Resta a Epuíno a cadeira antiga de balouçar, estrategicamente colocada na varanda do sobrado. Recusou sempre as propostas de trabalho na antiga metrópole, lá se foi adaptando aos novos tempos da independência, ele pertencera ao pessoal civil da manutenção militar, procurou desenrascar-se, trabalhou na câmara municipal, revoltou-se quando passaram a tratá-lo por camarada, foi depois trabalhar na área das pescas, foi uma época feliz:
“Todas as semanas, caixas e caixas de peixe, moluscos e crustáceos, davam entrada na casa dos Mendonça. A vida estava a mudar. O camarada inspetor partiu para Portugal beneficiando de um estágio.”
Aqui permaneceu um ano e quatro meses e desembarcou em Bissau rigorosamente uniformizado, com crachá ao peito: “Camarada Comandante Inspetor Geral”.
A seguir deu-se o grotesco e o burlesco, meteu-se numa lancha patrulha, foi tudo enjoos e vómitos. Morre a mulher, a espinha dorsal da casa, os filhos vão partindo para outros rumos, desapareceram os desempregados, veio a reforma, ainda procurou socorrer-se de expedientes, biscates, era insuportável viver com uma reforma de miséria:
“Passou a ser visto na zona do Registo Civil e dos tribunais de Comarca de Bissau, sempre munido da sua maquineta. Safava alguns casos, aconselhava procedimentos, escrevia cartas, preenchia documentos e com isto, no final do dia, recolhia algum dinheirito.”
Ainda escreveu cartas de amor para um comandante militar, plagiou Camões e Florbela Espanca, escreveu que havia neve na Guiné, tudo acabou bem para os arrulhados, menos para Epuíno que nem para o casamento foi convidado.
Foi vendendo o que restava lá em casa, ficou reduzido ao indispensável, acabou por vender a máquina de escrever e o final desta dolorosa trama é pungente que se farta:
“Ao não entrar mais em casa, a maquineta parece ter levado a alma do seu dono. Entristeceu-se mais. Dobrou-se. Não voltou a descer os degraus do sobrado. Confinou-se a um cantinho da varanda que alternava com a cama de lençóis sebentos já sem cor. E o último a sair foi o camarada Melhor Amanhã. Antes do suspiro final, ainda se queixou da dor da ingratidão no coração magoado ruidoso – a sua maior doença, aquela que lhe apertava o peito e secava a alma. Numa das últimas visitas do médico que foi seu colega no liceu Honório Barreto, antes de ingressar nas fileiras dos nacionalistas e ser enviado para a URSS estudar medicina, e à pergunta sobre o que lhe doía, respondeu secamente: A vida. Hoje é a vida que mais me dói.”
Fora deste contexto de dolorosas mudanças que revelaram a incapacidade de reconciliação guineense e a transformação de gente em espectros, devido a complexidades da inadaptação, Tony Tcheka aborda no seu último conto algo que tem a ver com o peso da tradição em duro confronto com este novo mundo de direitos humanos: a excisão genital feminina, que aqui se reportará no termo da leitura desta admirável obra.
Bissau-Velho na atualidade
O centro de Bissau no tempo colonial
(continua)
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Notas do editor:
Vd. post anterior de 20 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 24 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25558: Notas de leitura (1694): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4) (Mário Beja Santos)