sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Messe e instalações dos oficiais > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (1968/70). Irá casar-se em Abril de 1970 com Cristina Allen.

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas" (BS).


Lisboa > Julho de 2007 > Finalmente o Queta Baldé deixou-se apanhar pelo fotógrafo... Ei-lo aqui com o seu antigo comandante Beja Santos. Tem sido um precioso "auxiliar de memória" do nosso camarada, autor de Na Terra dos Soncó, Diário de Guerra (1968/69), a editar proximamente pelo Círculo de Leitores.

Fotos: © Beja Santos (2007). Direitos reservados


Texto enviado em 25 de Julho último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Caro Luís, aqui vai o episódio nº 2 da nova série. Tudo farei para te deixar em stock quatro textos para Agosto. Um abraço, Mário



Operação Macaréu à Vista - Parte II

Texto nº 2 - Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido
por Beja Santos (2)


(i) Muitas lembranças de Finete e as memórias do Queta

O Queta apresentou-se ao princípio da manhã, diz que a alvorada é muito boa para manter as recordações que traz do sono, sai depois da Praça do Saldanha e ruma para o Rossio para ir comunicar com a sociedade guineense que se reúne ali para o Largo de S. Domingos. Propus uma agenda farta para a nossa reunião de hoje: quem vivia em Finete?; a sua versão das duas operações Pato Rufia, que se realizaram na última semana de Agosto e na primeira de Setembro, de 1969, na região do Xime; como era Missirá em 1967, quando lá chegou o Pel Caç Nat 52.

O mais glorioso dos artistas do batuque, agora septuagenário, que percorreu a palmo Enxalé, Cuor, Mansomine, Joladu, Oio, Badora e Cossé, para além de toda a região entre Xime e Bambadinca, mantém a sua memória praticamente intocável. A prova disso, veio de um mail recentemente enviado pelo Matos Francisco, o primeiro comandante do nosso pelotão. Sentado diante da imagem posta à sua apreciação, o Queta olhou-me com um sorriso e esclareceu sem uma hesitação:
- Trata-se do Capitão Amna Nonça, que vivia em Porto Gole e era régulo de Enxalé. Comandava a polícia administrativa e morreu em 1967, em Bissá, de uma roquetada que o matou mais seis homens. Era um homem justo, que acreditou na bandeira portuguesa.

Não me deu tempo a fazer-lhe perguntas sobre Finete, ele hoje queria contar-me mais um episódio da sua vida. Começara na milícia em 1964 no pelotão de Bazilo Soncó, na Ponta do Inglês:
- Já naquele tempo o Bazilo vivia para a fatiota: roupa sempre engomada, as divisas a brilhar, o pingalim que ele agitava como se fosse um grande senhor, levando os dedos ao bigode lustroso. O Bazilo era o homem mais vaidoso do mundo. Vaidoso e medroso.

Depois de três meses na Ponta do Inglês, aquele pelotão de milícias foi deslocado para Finete, pois o régulo Malã Soncó, seu irmão mais velho, pedira a Bafatá que houvesse protecção para o população civil que cultivava a extensa bolanha de Finete:
- Há poucas terras mais ricas, nosso alfero. Todos aqueles quilómetros de Malandim até Ponta Nova, subindo de Finete até Boa Esperança e à volta de Gã Joaquim, até Aldeia de Cuor, dá arroz com fartura. A população de Finete fugira para o mato no princípio da guerra. O régulo vivia em Missirá mas deslocou muita gente para Finete, e depois da vinda da milícia, veio também mais povo ali viver, originário de Canturé, Chicri, Sansão e Aldeia de Cuor. Havia ali muitas lojas de comércio, brancos e cabo-verdianos, que vinham buscar a mancarra, o arroz e o coconote. Todas essas lojas desapareceram com a guerra. Fiquei em Finete até 1966, altura em que fui tirar a recruta em Bolama. Nunca disse a nosso alfero mas em Finete havia gente que informava os familiares em Madina, o que fazíamos, o que construíamos, o armamento que tínhamos. Esta noite estive a pensar muito tempo sobre a pergunta que me fez sobre as razões por que é que eles não nos atacavam em Mato de Cão. Não nos atacavam por que nosso alfero ia lá a toda a hora. E se começassem a atacar Finete, certamente que haveria mais emboscadas mortais como a de 3 de Agosto. Madina queria que as colunas de reabastecimento não tivessem problemas. Em Setembro, lembro-me bem, Missirá e Finete voltaram a ser atacadas, aqueles ataques pareciam brincadeira, umas morteiradas e roquetadas e nada mais.

Eu também estava convencido que Madina vivia desorientada com as nossas permanentes andanças pela mata e não queria aumentar a tensão à volta de Finete, aquele corredor estratégico devia permanecer despercebido.

Já de pé, o Queta que hoje vai tirar uma fotografia comigo, não me deixa de dar informação útil:
- Nosso alfero, Finete tinha duas fileiras de arame farpado, foi graças a si que se fizeram cinco novos postos de vigia e que as Mauser foram substituídas por G3. Não tínhamos morteiro. Já em 64 usávamos granadas defensivas. E lembro-me de uma história. Uma das primeiras vezes que o nosso alfero atravessou a bolanha a pé ficou alertado para os barulhos de rebentamentos dentro dos arrozais. Explicámos que eram os meninos a apanhar peixe. Nosso alfero proibiu que os meninos usassem granadas. Não gostámos, mas nosso alfero fez bem.

(ii) A Operação Pato Rufia

A ideia desta operação nasceu no dia em que foi capturado um guerrilheiro pelos pára-quedistas, na região de Mansambo (3). Interrogado, confessou vir de um acampamento situado na estrada entre Xime e Ponta do Inglês, dizendo que havia lá quarenta homens armados com um grupo especial de apontadores de RPG2 que tinham a missão de atacar a navegação no Geba.

A 24, a meio da tarde, na sala de operações de Bambadinca, o Major Sampaio explicou aos oficiais presentes que haveria dois destacamentos que trabalhariam conjugadamente com os pára-quedistas. Sairíamos pela meia noite do Xime com dois guias e o prisioneiro. Eu comandaria metade do 52, fazendo parte do destacamento que ficava à espera que os guerrilheiros fugissem no rescaldo no ataque às casas de mato.

O Queta lembrava-se muito bem daquele calvário. Saímos de uma noite escura, amanhecia e ainda andávamos às voltas, com os guias desorientados:
- Quando amanheceu, vi perfeitamente que estávamos ao pé da Ponta do Inglês, ora nosso alfero tenha falado em Ponta Varela e Gundagué Beafada, qualquer coisa como quatro quilómetros atrás. Amanheceu cheio de nevoeiro, ninguém via nada.

De facto, assim foi. E a aviação não pôde largar os pára-quedistas, pelo que a meio da manhã se iniciou uma retirada, e é já a caminho de Madina Coelho que o prisioneiro reconheceu os trilhos de acesso, numa altura em que tudo desaconselhava o golpe de mão. Foi um regresso muito difícil até ao Xime, pois os picadores detectaram anti-pessoal, certamente ali metidas desde que os pára-quedistas tinham aprisionado o nosso informador. Assim terminara, com muita canseira e sem nenhuma glória, a primeira Pato Rufia, que se irá repetir a 7 de Setembro. Nessa segunda versão, como veremos, haverá três destacamentos de tropa do exército, e ficaremos com os pelotões 53 e 63.

(iii) Um casamento por procuração que é quase um trabalho sem esperança

Nunca visitei tanto Bafatá como nas últimas semanas. Os papéis para o casamento por procuração estão sempre engatados: pedem-me um bilhete de identidade que ardeu em Missirá, bem como outras certidões; dizem-me que não me posso casar sem a morada do sogro e que só pedi a convenção antenupcial mas que me esqueci de falar na separação de bens. Haverá um momento em que o administrador me pôs a mão no ombro e me felicitou pois por ali eu já estava casado. Mas na semana seguinte recebi a indicação de voltar lá com urgência. Ali chegado, o administrador pediu-me para ir buscar duas testemunhas que confirmassem a minha identidade. Não aceitou nenhum dos meus acompanhantes, avançou mesmo a sugestão que o nome de dois superiores resolveriam a questão de vez. Enquanto conversamos, entra o Coronel Hélio Felgas que, para minha surpresa, avança sorridente para mim, dizendo ter ouvido que eu ia casar e precisava de uma assinatura de um superior.

Naquela sala que parecia uma estufa, com população acocorada à espera de vez, oiço-o transido dizer-me que tem muito apreço pelo meu desempenho militar e que me quer no Agrupamento de Bafatá. E falou mais alto para toda a gente ouvir:
-Faça a rapariga feliz, vou louvá-lo, é pena que tenha havido aquele contratempo, espero vê-los em Lisboa.

Volto a sair de Bafatá aturdido e desorientado, na certidão correspondente ao meu casamento por procuração faço representar-me pelo Ruy Cinatti, fica esclarecida a separação de bens, assinei a convenção antenupcial. Em Bambadinca, um pouco antes de partir para Missirá, escrevo à Cristina:
- Não te esqueças de me avisar quando for teu marido.

Recebera uma carta do meu amigo José Manuel Nogueira Ramos, de quem a Cristina gostava muito, a informar-me do preocupante estado de saúde da mãe e peço à Cristina para visitar a Dnª. Raquel no Campo Pequeno, 11, 2º Esq., telefone 775204. Despeço-me fingindo que estou cheio de saúde, sem deixar de referir que as picadas estão de novo intransitáveis, que voltou a faltar o arroz e que morreu a mulher de um soldado milícia de Missirá.

Capa do romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary. Lisboa: Estúdios Cor. 1960. (Ed. orig. em fr., 1857). Trad. de João Pedro de Andrade.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados


(iv) Madame Bovary sou eu!

A semana de leituras trouxe-me à vida. Em primeiro lugar, li um assombroso romance policial, Maigret e o seu morto, de Simenon. Assombroso na estrutura, na inovação formal, na narrativa trepidante. Enquanto entrevista uma alucinada no seu escritório, vão sucedendo-se telefonemas de um homem que se apresenta como marido da Nina, dizendo-se perseguido. Os telefonemas caem. Maigret vai para a rua, procura refazer o itinerário do perseguido. Ele vai aparecer morto em pleno centro de Paris. O inquérito mobiliza tudo e todos, até se descobrir que uma quadrilha de carniceiros checos o liquidou por ele saber a sua identidade.

A tradução de Lima Freitas é um primor e a capa do Cândido da Costa Pinto não lhe fica atrás. Simenon usa na plenitude todos os seus recursos imaginativos: o suspense da caçada, um agente da polícia que se transforma em taberneiro, Madame Maigret a fazer telefonemas profissionais, Maigret a receber patifes em casa e a enfiar um murro no verdadeiro chefe da quadrilha. Para quem desvaloriza a literatura policial, recomendo que leia e releia este Simenon, e depois conversamos.

Li também na colecção Miniatura os contos Biombo Chinês por Somerset Maugham. As histórias dos Mares do Sul de Maugham são um encanto. Agora é a China e estas pequenas pinturas, águas-fortes de sentimentos, olhares, vivências. Maugham guardou tudo num diário da viagem que fez em 1920. Refez as suas observações nestas obras-primas da pequena história que consigo ler em todos os bocadinhos que tenho disponíveis. Mas o grande tiro de artilharia que li esta semana foi Madame Bovary, de Flaubert.

Dizem os estudiosos que Madame Bovary é o primeiro grande livro realista da literatura mundial. O que está em causa nas minhas noite de Missirá, na primorosa tradução de João Pedro de Andrade, é o arranque de uma toada da emancipação feminina, o fim do silêncio sobre o adultério, a passagem da mulher do meio puramente rural para o sonho cosmopolita. Carlos Bovary, o marido de Ema, é um homem monótono e pouco arrebatado. Ema, pelo contrário, sonha com a paixão, lê Balzac, quer emoções. Terá amantes e profundas decepções. A tragédia irá desenvolver-se em torno desses arrebatamentos e dessas amarguras até chegar à sua morte, a que se seguirá a de Carlos. O dinheiro vai desaparecendo, a filha de ambos, Berta, ficará na miséria.

Leio entusiasmado estas centenas de páginas, tendo em conta que a obra-prima data de 1857. A edição é linda, corresponde a um período glorioso de Estúdios Cor, de quem tive muitos livros, lembro uma edição ilustrada por Júlio Pomar para o Gargantua de Rabelais. Madame Bovary é a modernidade, percebe-se facilmente a barafunda que causou, envolvendo tribunais, a igreja, os colegas de Flaubert. Os acessos românticos e a grande amorosa, os amores transviados, o ilícito amoroso ganharam nova expressão com Flaubert.

Este é um mês com muitas dores à minha espera: a nova Pato Rufia e um morto transportado em padiola improvisada, uma cena digna de um drama wagneriano; novos tiros sobre Missirá; as peripécias de um casamento ainda não realizado; os camaradas que partem e chegam com notícias da Cristina; Finete flagelada, felizmente só houve feridos ligeiros; mais uns tiroteios em Chicri; até recebi um louvor dado pelo Felgas e depois pelo Comandante Militar da Guiné. A acabar o mês, imprevistamente como um tufão, o colapso nervoso do Casanova foi horrível de presenciar. Mas o mais horrível foi a solidão que me deixou a partida em evacuação Y do meu mais precioso auxiliar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(2) Vd. post de 13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

(3) Vd. posts de:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, frente ao Convento de Mafra, no grupo dos quais se integrava o Paulo Raposo, que viria a ser mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/69).

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça, de 1 de Setembro de 2007:

Estimáveis Camaradas:

Segue um anexo com 48 páginas [Estórias do José - Parte I] (1). As fotos são das Foto Falantes que tem o nosso Camarada Luís Graça. Paro um bocado, por isso o envio triplo. Estas estórias já tinham sido enviadas, em parte. Acrescentei outras e índice.

Chegado Setembro, espero voar seguindo o voo das aves e rumar a Sul… espero ser capaz. A idade e não só… Façam dessas palavras juntas o que entenderem.

Boa saúde, bom trabalho e recebam um forte abraço do,
Torcato Mendonça

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(...) "Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez. Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez porque não podíamos fugir ao tema" (...) (TM)

MILITAR, NÃO! por Torcato Mendonça (1)

Olhem para mim com ódio… cabeça levantada… bate o pé com força… força… levanta os joelhos… isso… mais, mais… braço à altura do ombro… mão fechada… o punho. porra…encosta a arma ao peito… isso, isso… está fria… não está… não há frio…!

E marcha e marcham os Cadetes, ainda não autómatos mas a serem torneados, despersonalizados, humilhados. Marcham na ordem unida. Batem os pés com força no chão e, com força redobrada, à voz de olhar, à direita ou à esquerda, para encarar o Capitão-Comando. Com ódio, com desprezo ou indiferença? Ainda conseguem achá-lo um ser deformado. Um Capitão de camuflado, emblemas no peito - Comandos – preso no ombro… olhar vesgo… ou tique nervoso?

Certo é que quer, ou querem, levar aqueles jovens ao desespero e à ausência de vontade própria! Certo é que quer, ou querem, transformá-los em autómatos, em máquinas, em hipotéticos condutores de homens para, no futuro, servirem numa qualquer Colónia, onde serão cabeça de grupo de carne para canhão.

Que raio de instrução e de especialidade. Atirador de Artilharia. Logo no primeiro dia de instrução, a caminhada, a sede, a fome, a noite fria, de Janeiro, em pleno Alentejo. Urinar nas mãos aquece e fê-lo.

Noite longa, não dormida e por fim o alvor na madrugada gelada. O Comandante de instrução, tronco nu, fazia a barba. Louco!? Os Cadetes olhavam e sorriam. É o Capitão. Baixo, calças de camuflado, tronco seco de carnes. Seminu ficava mais pequeno. Os emblemas e crachás, no peito e ombro e o dólmen camuflado, tornavam-no mais alto.

A dureza de uma instrução diferente tinha começado. Equipas de cinco, sentido com punhos cerrados, descansar com pernas direitas, olhar para o alto e mãos atrás das costas, marcha com arma cruzada no peito. Mas que é isto? Não há horas para nada. Só para estar pronto – já!

Aos poucos foram amolecendo, perdendo a vontade de resistir e simultaneamente aumentando os índices na aplicação, no empenho da instrução. Aos poucos, o Capitão e alguns instrutores iam conseguindo atingir o objectivo. Temos autómatos!

Marchem… olhem para mim com ódio… bate o pé com força… salta… rasteja...rabo em baixo… rápido… cambalhota… a arma… não larga… faz parte do corpo… corre… corre no pórtico… salta o galho… fácil… não doi…desce a corda… as mãos estão boas…!

Eram talvez sessenta. Terminaram cinquenta? Tantos!?

Espalharam-se Aspirantes por vários Quartéis do País e a vida militar continuou…

Um dia, mais de trinta anos depois voltou a ver o Capitão Comando. Vestia à civil, o mesmo tique na cara, olhar baço e amarrotado… Subira na hierarquia militar, tinha o posto de General e era Presidente da Liga de Combatentes.

Como sócio da Liga convidaram-no a vir a este encontro. Missa, visita ao melhorado talhão dos Combatentes e almoço de trabalho. O habitual. Foi. Entrou no Largo, viu aquele ajuntamento, certamente de antigos Combatentes. No meio o General, a conversar… mas tinha o mesmo tique…ou era vesgo?

De repente deixou de o ver. Já não era civil nem General e ele já não estava no Largo da Igreja. De repente sentiu-se na Parada de Vendas Novas. Lá estava o Capitão Comando: - Olha para mim com ódio… salta… força…

Sentiu marteladas na cabeça. Olhou e disse:
- Safa! Voltou as costas e rapidamente afastou-se. Não! MILITAR, NÃO!

Não é ficção. É realidade. Em Janeiro de 66, um grupo de cerca de noventa Cadetes e cerca de duzentos a trezentos Instruendos do Curso de Sargentos Milicianos, entraram na Escola Prática de Artilharia – Vendas Novas, para tirarem as especialidades de atirador, IOL e PCT.

O Comandante de Instrução era Capitão Comando, mais direccionado para os atiradores. Hoje é General, certamente na reforma, e foi Presidente da Liga de Combatentes.

Apesar da dureza da instrução ou talvez por isso, quase todos os graduados da minha Companhia passaram por lá, acho-a determinante no desempenho que tivemos na Guiné.

Este texto, com as devidas adaptações, passou como Crónica numa Rádio. Terminava, como todas as minhas crónicas:
- Bom dia e façam o favor de ser felizes.

Pretendia ser, uma resposta a pseudo debate havido nessa rádio, onde os antigos Combatentes não eram correctamente tratados.Quando da gravação pediram-me o escrito e ofereci-o. Por isso, este texto foi escrito recorrendo à memória e tentando reproduzir essa crónica.

Olha, salto um pouco no tempo e digo-te: a guerra pode deixar-nos também, indirectamente, marcas.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

Guiné 63/74 - P2121: Questões politicamente (in)correctas (33): Dulce et decorum est pro patria mori ? (J.A. Lomba Martins)

Quintus Horatius Flaccus (65 a.C. - 8 a.C.). Fonte: Wikipédia (2007). Imagem do domínio público.

1. Mensagem de J. A. Lomba Martins (1), com data de 20 de Maio de 2007:

DULCE ET DECORUM EST PRO PATRIA MORI [É belo e é uma honra morrer pela Pátria] (2)


Depois da queda de Dien-Bien-Phu, depois de um número incalculável de mortos na guerra do Vietname, depois de os militares portugueses prisioneiros em Goa, após a invasão da União Indiana, terem sido vilipendiados, o então Presidente do Governo e do Partido da União Nacional declarou em discurso solene: “Havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem”, esperando uma luta sem quartel para a rápida pacificação de Angola.

Depois das guerras pelas independências da Guiné, Angola e Moçambique, seguidas de lutas fraticidas, depois do terrível sofrimento do povo de Timor Lorosae para obter a independência da Indonésia, depois das limpezas étnicas na antiga Jugoslávia, depois das guerras do Golfo e do Iraque, hoje é ponto assente que aos militares compete fazer a guerra, eticamente, com o menor número de baixas.

A questão fulcral que sempre se nos colocou – oficiais do quadro permanente – neste passado recente, era saber se deveríamos cumprir, sem pestanejar, as ordens de atacar e de defender, de aguentar e de retardar, de matar e de morrer!!!

Houve quem o objectasse e tivesse sido expulso do Exército e preso pela PIDE.

Será que poderíamos aceitar as grandes deficiências físicas, as doenças mentais e as mortes generosas dos nossos amigos e camaradas, bem como de vítimas inocentes e de militares conscritos, naquelas longas horas em África, sem perspectivas de soluções políticas e logísticas?

Dos três objectivos utópicos da Revolução de Abril para o Ultramar – DDD: descolonizar, democratizar, desenvolver – sabemos que os dois últimos ainda não foram alcançados. Valeu a pena? “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. A alma de quem, dos mortos ou dos vivos?

Se a guerra é a continuação da política por outros meios, sempre esperamos que, no mínimo, a esfera política fosse competente, coerente e decisiva na busca de uma solução moderna e justa: PROCURAR A PAZ E O PROGRESSO para todos os campos envolvidos.

Quando a política falha, como falou, nos seus apoios de retaguarda e internacional, será que Dulce et decorum est pro patria mori ?

José A. Lomba Martins – Ten Coronel Inf (Ref)
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Notas de L.G.:

(1) É um dos co-autores do livro A Geração do Fim. (Lisboa: Prefácio, 2004). É hoje tenente coronel de infantaria, na reforma. Ao todo são 21 oficiais do quadro permanente, da arma de infantaria (1957-2004) que, como militares e cidadãos, foram actores e testemunhas de acontecimentos de grande relevo nos últimos cinquenta anos da história da nossa pátria, desde a invasão, pela União Indiana, dos territórios de Goa, Damão e Diu até ao 25 de Abril de 1974, ou da guerra da Guiné ao 25 de Novembro de 1975...

Vd. post de 23 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1624: Bibliografia de uma guerra (17): A geração do fim ou a palavra a 21 oficiais de infantaria, de 1954/57 (Miguel Ritto)

(2) Expressão latina, da autoria do poeta romano, Horácio (Séc. I a.C.), Odi [Odes], III, 2, 13. É a divisa da nossa Academia Militar (antiga Escola do Exército, cuja origem remonta a 1837).

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2120: Álbum das Glórias (27): Reconstruímos Missirá com alegria (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 >Abril de 1969 > Reconstrução da tabanca e destacamento, depois do ataque e incêndio de 19 de Março de 1969 (1).


Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Foto com legenda do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70). Enviada, com data de 13 de Julho último, para o nosso Álbum das Glórias.

Caro Luís:

Mais uma fotografia que enviei à minha Mãe.Em Abril de 1969, era este o estado de ânimo, o optimismo reinava em todos os corações. Foi um momento gigante da minha vida, irrepetível.

Estão aqui Mamadu Djau, o mais exímio bazuqueiro do mundo (2), o Mamadu Camará, bravo entre os bravos (3) , e o Benjamim Lopes da Costa, o mais culto dos meus cabos, preparado na missão católica de Bissau, mais tarde enfermeiro (4). Onde quer que estejam, guardo-lhes uma saudade positiva pelo bem que me fizeram, por terem contribuido para ser o que sou hoje.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá

(2) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(3) Vd. post de 13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

(4) vd. post de 20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2119: A propósito do Lemos e das nossas fontes de informação: Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto? (Afonso Sousa)

1. Mensagem do Afonso Sousa:

Caros amigos:

Este mail/informação do A. Marques Lopes (inserido no Post P2116) (1) não sei se visa contestar a informação do livro da CECA sobre os "mortos na Guiné" ou a informação que transmiti ao Júlio Pinto (Post P2115 - ponto 4) (2).

O furriel Jorge Duarte (CCAÇ 797) estava na margem do Bissilon (afluente do Rio Louvado) quando o furriel Júlio Lemos tomou a iniciativa (precipitada) de tentar a travessia a nado. É, logicamente, uma fonte fidedigna.

Nesta informação, veiculada pelo António M. Lopes, há uma falta de exactidão e uma verdade: "ferimentos em combate" e "corpo não recuperado".

Sabemos que os relatórios de actividade operacional enfermam de inexactidões. São documentos escritos à distância, por vezes, com a utilização de um narrador e com o uso frequente de estereotipos de linguagem. No caso presente, não seria muito aconselhável que o redactor escrevesse a verdade... então há que escrever "ferimentos em combate".

Ainda no passado Domingo estive a falar (via telefone) com um ex-2º sargento que, numa terrível emboscada, sofreu traumatismo craniano e um joelho fortemente atingido. Foi imediatamente evacuado de helicóptero para Bissau. O relatório de actividades do Batalhão (a que estava adstrito) refere-o como evacuado no dia seguinte, juntamente com outros 5 elementos. Portanto, aqui está mais um exemplo da tal falta de exactidão que os relatórios, por vezes, comportam.


Um abraço

Afonso Sousa

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Notas dos editores:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2116: Fur Mil Júlio Lemos, da CCAÇ 797, morto em Rio Louvado, por ferimentos em combate (A.Marques Lopes)

(2) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2115: Em busca de...(12): Notícias do desaparecimento de Júlio Lemos, ex-Fur Mil da CCAÇ 797, Tite, 1965/67 (Júlio Pinto)

Guiné 63/74 - P2118: Mulheres de lá, Mulheres de cá, tão diferentes, tão iguais (Jorge Cabral)

Guiné-Bissau > Imagem da capa da publicação Conhecer para amar, amar para proteger: Rio Grande de Buba e Lagoa de Cufada. Bissau: Tiniguena. 1995. Imagem gentilmente cedida por José Teixeira (2006), que foi 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, (1968/70)


1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Jorge Cabral:

Querido Amigo,

Embora adoentado não dispenso a consulta diária do nosso blogue, o qual de quando em quando me transporta no tempo e no espaço, trazendo-me cheiros, imagens, situações, que há muito se haviam escoado da memória.

Desta vez, foi uma grata surpresa! Conceição Brito Lopes (1) é minha colega, e minha amiga, tendo sido também minha aluna da Criminologia. Praticamente todos os anos, convido-a, a vir falar aos meus alunos sobre Violência Doméstica, matéria que domina, como poucos, em Portugal.

Curiosamente, penso que nunca falamos nem da Guerra, nem da Guiné. Aliás, quem me conhece hoje, duvida sempre da minha condição de ex-combatente, não conseguindo imaginar-me soldado e muito menos guerreiro. Até eu próprio às vezes também duvido… Estive mesmo lá? Não terei inventado?

Será que Missirá, as minas, os tiros, e tudo o mais, aconteceram, foram reais e não fruto, da minha às vezes desbragada imaginação?

Lança a Conceição um apelo – não devemos esquecer as Mulheres. Como será possível não as lembrar ?! Elas, todas elas, mães, esposas, namoradas, amantes, filhas, amigas, estiveram não só na angústia do antes, e no pesadelo do depois, mas também no durante, partilhando connosco, todos os momentos.

Quantas vezes, olhando uma mãe acarinhando o filho, eu via a minha própria Mãe? E nas bajudas, descobria sempre parecenças com a amada! Uma forma de olhar, um gesto de ternura…

Mulheres de lá, Mulheres de cá, tão diferentes, tão iguais.

Sim, Queridas Mulheres, pacientes, lutadoras, sofredoras, nossas metades, companheiras de jornada, irmãs nesta aventura de ser e de estar vivo, merecem de todos nós, a mais sentida homenagem.

Foi pensando em vós, que muitos conseguiram sobreviver!

Grande Abraço

Jorge

P.S.- Para a Conceição um beijinho de gratidão pela lembrança.


2. Comentário de L.G.: Jorge, temos sentido a tua falta. Adoentado, vá lá, doente é que não!... Em Fá, Missirá ou Bambadinca, não te podias dar a esse luto.... As tuas rápidas melhoras. Um abraço de 360º da malta da Tabanca Grande. Luís

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Nota dos editores:

(1) vd. posts de:


terça-feira, 18 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > ... E as vulneráveis colunas de reabastecimento, sempre tão frágeis e fáceis das ciladas, transformaram-se num calvário de pesar e dor.

Foto 501 > No cruzamento de Guileje, uma viatura entra por uma picada abandonada já há tempo (desde quando?) a caminho de Gandembel.

Foto 502 > A coluna que nos trouxera até Gandembel, prepara o regresso.

Foto 503 > De quando em vez, apareciam os destroços de viaturas, já carcomidos pela voragem dos tempos.

Foto 504 > Uma outra coluna de Guileje, com tanta tragédia de permeio, prepara o regresso.

Foto 505 > De uma coluna de Aldeia Formosa (Quebo), a proceder às descargas de modo muito rápido.

Foto 506 > Um dos troços da estrada de ligação a Guileje.

Foto 507 > Um aspecto de outra coluna, mas esta a caminho de Aldeia Formosa.

Foto 508 > A fatídica zona de Changue-Iaia, a seguir a Chamarra, na estrada de Aldeia Formosa - Guileje.

Foto 509 > E daqui, se retiraram este conjunto de minas (mais de 6 dezenas!)...


Numa das últimas colunas de Aldeia, a ponte do Balana ruíu ao peso de uma GMC cheia de bidões...

Foto 510 > A colocação do passadiço na ribeira do Changue-Iaia [foto gentilmente cedida pelo José Samouco] (1)

Foto 511 > A parte posterior da GMC assenta no leito do rio, ainda cheia de bidões.

Foto 512 > A carga, com alguma perícia, lá se foi retirando.

Foto 513 > Toda a estrutura da ponte ruiu, felizmente sem grandes consequências pessoais.


Fotos: © Idálio Reis (2007). (Editadas por L.G.). Direitos reservados.




X Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1).

Texto enviado em 28 de Fevereiro de 2007. Continuação (2).

Assunto: As colunas de reabastecimento para Gandembel / Ponte Balana. Tanta ousadia cerceada no passo incerto, e a folha fustigada pelo sopro de um fornilho, já não encontra outro sítio para cair, senão em corpos dilacerados.

Caros Luís e demais companheiros da Tertúlia:

Aquando da incauta tomada de resolução sobre a implantação de Gandembel/Ponte Balana, dever-se-ia, desde logo:

— reconhecer que a execução de um aquartelamento, com uma finalidade claramente definida, em local inóspito, onde não havia qualquer população nativa, requereria um conjunto avultado e variado de materiais de construção;

— prever que para a realização de Gandembel e de Ponte Balana havia que enviar amiúde uma grande quantidade de víveres, pois o efectivo militar que estaria continuamente em acção, seria sempre o de um contingente com muitos homens, mesmo que uma parte estivesse em regime de transição;

— considerar que um posto militar fixo naquela zona determinaria à exigência de o dotar em suficiência com material bélico, de características meramente defensivas, a acrescer ao facto de ter de haver uma grande disponibilidade de um arsenal de munições.

E tudo isto teria de ser transportado unicamente por via terrestre, em colunas de reabastecimento, que só dispunham de 2 rotas, com ambas a utilizarem uma mesma estrada, que o PAIGC se tinha apoderado do seu controlo já há algum tempo.


Duas linhas de abastecimento: Gadamael-Porto/Guileje/Gandembel (sul) e BUba/Aldeia Formosa/Gandembel (norte)


A proveniência de Sul começava em Guileje, com reabastecimento prévio em Gadamael-Porto. Da parte Norte, partia-se de Aldeia Formosa, que por sua vez tinha em Buba o seu porto alimentador.

Dada a enorme imprevisibilidade que a guerra de guerrilhas, travada na província da Guiné, conseguia alcançar num qualquer sítio e num curto espaço de tempo, poder-se-ia afirmar que o vasto perímetro que englobava esses locais, estava sitiado entre 2 zonas nevrálgicas do maior interesse estratégico-político para o PAIGC.

Gandembel/Ponte Balana: um espinho encravado no coração de um região de vital importância estratégica e logística para o PAIGC


De um lado, na base de uma comprovada aliança com a Guiné-Conacri, ao dispor de uma fronteira aberta e sempre bastante próxima; do outro, a região de Salancaur, já no interior da Província, como grande bastião de apoio logístico e de disseminação de efectivos, com localização no centro de um arco geográfico, que ligava os braços dos grandes rios Cacine e Buba, abrangendo portanto Gadamael, Guileje e Mejo, Gandembel, Aldeia Formosa, Buba, Bedanda e Catió.

A intenção da construção de Gandembel/Ponte Balana, como forma de inflectir ou alterar profundamente toda essa estratégia de vital interesse para o PAIGC, provocou neste uma atitude de antagonismo e confrontação, puro e duro, e evidentemente a única que lhe caberia enfrentar perante tais circunstâncias. Ousa fazer ainda uma mais ampla concentração de efectivos militares extremamente organizados, a fim de poderem desencadear um substancial recrudescimento no campo bélico, tanto mais provocante e mortífero quanto maior o grau de abrangência e incisividade.

As flagelações e ataques aos postos fixos das NT aumentaram substantivamente, onde Gandembel pontificava por razões óbvias. E as vulneráveis colunas de reabastecimento, sempre tão frágeis e fáceis das ciladas, seriam os alvos preferenciais para o desgaste, o desalento e o cansaço, com um único intuito de provocarem acintosamente o sofrimento, a dor, a morte.


23 colunas logísticas em 9 meses (Abril de 1968/Janeiro de 1969)


As colunas de reabastecimento intimidavam pela sua violência. Para além de não facultarem percursos alternativos, os efectivos que as acompanhavam eram sempre bastante insuficientes para uma missão de protecção em cada lado da estrada; mesmo com a ajuda de certos meios aéreos, estes mostravam ser muito pouco eficazes.

As colunas de reabastecimentos assemelhavam-se a lutas desleais, em que um dos contendores caminhava na iminência do perigo, ao encontro do desastre, enquanto o outro, sabotador, escolhia os melhores locais do precipício, e que no geral resultava em consequências de uma devastadora crueldade.


Durante o lapso de tempo da existência de Gandembel/Ponte Balana, de 8 de Abril de 1968 a 28 de Janeiro de 1969 (2), a minha contagem atinge o global de 23 colunas, das quais somente 5 é que são provindas de Guileje.

A narração dos factos mais amargurados e pungentes que algumas destas colunas foram testemunho, baseiam-se muito do baú da minha memória pessoal, à míngua de documentação oficial. Em razão desta lacuna, certamente este excerto pecará por defeito, tanto mais que várias Companhias estiveram envolvidas.


10 de Abril de 1968: dois mortos e um dezena de feridos logo na 1ª coluna


Assim, logo a 10 de Abril, parte de Guileje a primeira coluna, que chegou ao anoitecer, com algumas minas anti-carro de permeio e uma forte emboscada a causar a perda de 2 homens, um dos quais pertença do Pelotão de Reconhecimento Fox.

Na madrugada do dia seguinte há o regresso, e à passagem nas imediações do corredor de Guileje ouvem-se os ecos de um tiroteio de uma intensa emboscada, que se repetiriam mais adiante, como também mais uma série de minas a travar a marcha.

As consequências foram pesadas: mais 2 mortos (1 furriel de um Pelotão de Caçadores Nativos e 1 cabo da CART 1613), e mais de uma dezena de feridos graves e ligeiros a terem que ser evacuados para Bissau.

Com tantas colunas ainda por concretizar, pressagiavam-se para as sequentes, o pesadelo de tenebrosas vivências de terror e horror, a dilacerarem sem dó nem piedade muitos de nós. Mas o que causava maior angústia, pela envolvência intemperada do sofrimento inumano, cruel e doloroso, é que era indispensável a realização destas colunas a um ritmo bastante repetitivo, sem alternância.

E estas circunstâncias favoreciam o desempenho beligerante do PAIGC, na preparação cuidada e ardilosa dos mais adequados estratagemas para desferirem os seus ataques, até porque era reconhecidamente, detentor de um forte arsenal bélico. E para este tipo de operação militar, em que a vantagem pendia essencialmente para o seu lado, só lhe restava saber agir com argúcia e sageza bastantes, de forma a incutir a perturbação, a desconfiança, a inquietação, o nervosismo.


24 de Abril de 1968: a barbaridade dos fornilhos


Mesmo nas colunas que se realizavam sem o registo de quaisquer incidências, o pânico e o terror continuavam a prevalecer, ainda que dissimuladamente. É que muito em breve, haveria mais uma, para surgir dentro de dias mais uma outra.

À 3ª coluna proveniente de Guileje, a 24 de Abril, surge, quiçá, o artefacto mais temível e aterrador de todos, para o qual não havia nenhum método de defesa possível: os fornilhos accionados por comando à distância.

Estes engenhos explosivos, dissimulados em plena estrada, eram comummente construídos com um forte poder de detonação, e constituídos por substâncias distintas, desde componentes metálicos até materiais pétreos.

Em geral, o inimigo montava uma emboscada, minava as bermas e fazia rebentar os fornilhos. E esta cruenta simbiose, provocava sempre efeitos devastadores e terríveis para as NT, matando, desagregando corpos, causando muitos feridos pelo efeito do sopro e das minas ou dos projécteis das armas, danificando material.

Na vinda, há a lamentar a perda de 2 homens, um dos quais ficaria completamente desintegrado, e mais de uma dezena de feridos a serem evacuados, muitos como resultado do sopro; já o regresso, no dia seguinte, far-se-ia sem quaisquer problemas.

E a partir desta data, as consequências do accionamento destes fornilhos, sempre presentes, mostrar-se-iam de uma enorme barbaridade, impiedosa, desumana, pungente.

E comprovadamente, as colunas de Guileje eram caminhos de calvário, martirizantes pela razia das agruras que provocavam às NT. Para além dos mortos, os feridos evacuados atingiam quantitativos absurdos, e a fobia instintiva ia-se apoderando dos restantes, com um efectivo disponível já muito diminuto, a ter que ser considerado mais que insuficiente.

Julgo mesmo que, do efeito deste acentuado recrudescimento das acções bélicas do PAIGC, é que a partir de uma determinada data se começaram a realizar colunas de ambos os lados, uma vez que as provenientes de Guileje, desde logo, se tornaram extremamente complexas, pela acerada violência exercida pelo inimigo, que fazia demorar a percorrer os cerca de vinte quilómetros de uma estrada de um piso sofrível, durante toda uma longa jornada. Tantas vicissitudes de permeio!


A alternativa de Aldeia Formosa e o tabu do Cherno Rachid


Ter-se-ia pois que gizar uma outra estratégia, para a qual só havia uma única alternativa: a proveniência passaria para Aldeia Formosa, a distâncias similares, e onde o PAIGC parecia, até então, dar a entender não desejar tomar medidas de represália para esses lados.

Em meu entendimento, a postura refreada para esta atitude, passava pela presença do chefe religioso Cherno Rachid (3).

E o que é verdade, é que as 2 primeiras colunas efectuadas na primeira década de Maio, e advindas de Aldeia, realizam-se sem incidentes e com regresso no mesmo dia.

Todavia, o putativo estado de graça que o PAIGC parecia manter, sofre uma notória inversão, porque num espaço de tempo muito curto, toda a região envolvente de Aldeia Formosa é acintosamente fustigada por uma acentuada, provocante e violenta movimentação dos seus grupos.

Todos aqueles destacamentos, onde havia muita população local, são coagidos a alterarem o seu estado de vigilância, com alguns deles a virem a sofrer rudes reveses, mesmo o do abandono.

Parece ter-se quebrado, de vez, um pacto de não agressão, com o PAIGC a sentir-se ofendido pela afronta com este tipo de movimentações das NT, oriundas de Aldeia Formosa, e porventura não expectáveis.


15 de Maio de 1968: 6 corpos desintegrados e uma dezena de feridos

E então, só lhes restou esperar a ocasião para dar início às hostilidades, que recaiu no dia 15 de Maio, data da 3ª coluna de reabastecimentos, com consequências bastante funestas, resultantes de emboscadas com um grande potencial de fogo e também do accionamento de fornilhos.

Já quase a chegar a Ponte Balana, o grupo que vinha na picagem, na sua quase generalidade composto por elementos de um Pelotão de Nativos, depara-se surpreso com um fio eléctrico que as chuvadas puseram a descoberto e param. Um dos alferes da CART 1612, que vinha à cabeça da coluna, aproxima-se do grupo para indagar as causas da paragem. Num relance, o accionamento em simultâneo de vários fornilhos, provocariam de imediato a morte a 6 homens, cujos corpos são desintegrados; e como resultado do forte efeito do poder de sopro, mais de uma dezena de militares são feridos, a obrigar a sua evacuação para Bissau.

Um ponto fatídico no troço Aldeia Formosa / Chamarra / Ponte Balana / Gandembel: Changue-Iaia


Para além do mais, a época das chuvas começava a fazer agravar a situação, uma vez que as colunas advindas de Aldeia Formosa deparavam-se um pouco a seguir ao povoamento de Chamarra, com um obstáculo natural, configurado por um pequeno riacho em zona arbórea mais aberta — o Changue-Iaia —, que obrigava à montagem de um passadiço constituído por peças móveis de madeira.

E consequentemente, as colunas sustinham o andamento, e as forçadas paragens sempre afeitas ao olhar do espião, poderia a todo o momento fazer irromper o embate do inimigo, aparecido do lado da fronteira ali tão próxima. Era, foi, um dos locais em que PAICC fez concentrar o campo de minas mais denso (renques de centenas de minas anti-pessoais, num pequeno tramo), e que se tornou o mais assustador e terrífico de todos, a perdurar sempre com grande apreensão durante bastante tempo. Foi, neste sítio de suplício, que as colunas para Gandembel, tiveram mais perdas, e lhes causaram maior sofrimento.

« passagem sobre o rio Balana, mesmo no destacamento de Ponte Balana, com uma ponte improvisada construída pela Engenharia Militar, a substituir uma outra destruída há anos pelo PAIGC, também não oferecia a segurança adequada, como mais tardiamente se viria a comprovar.

Mas Gandembel/Ponte Balana continuava a precisar de mais alguns materiais de construção, para acabar definitivamente com as casernas-abrigo, em especial para o reforço das suas coberturas, a fim de os seus homens se protegerem da inclemência das chuvas ou da deflagração de uma qualquer granada de morteiro.


5 de Juho de 1968: a morte do Alf Leitão


Ainda restava em Guileje algum deste material; também lá se encontrava um grupo de combate para regressar ao seio da Companhia. A parte restante do material, os víveres e outros meios logísticos haviam de aparecer do lado de Aldeia Formosa.

E a 5 de Junho, partem 2 colunas de ambas as origens. A proveniente de Aldeia, vem e regressa no mesmo dia, sem incidentes. Contudo, a de Guileje, é sujeita a fortes ataques, por força de emboscadas envolvidas com o rebentamento de fornilhos, que vêm a provocar 2 mortos e mais de uma dezenas de feridos evacuados para Bissau. O regresso também se faz com imensas dificuldades, a causar 2 feridos graves.

Desta fatídica coluna, a Companhia perde o seu 3º elemento, o alferes Álvaro Vale Leitão, que é atingido mortalmente na cabeça por fragmentos de um fornilho, e 5 elementos que foram cuspidos pelo sopro, com alguma gravidade, mas que após cura das mazelas em Bissau, ainda conseguem regressar ao nosso seio.

E de Guileje, a partir dessa data, restaria apenas a separação. Só havia conhecimento da sua presença, quando por vezes, se ouviam distintamente os estrondos de algum ataque ao aquartelamento, em que foi fustigada por várias vezes.

E o PAIGC, na prática, recuperava uma parte do seu reduto, e então faz deslocar efectivos para tentar entravar as colunas entre Buba e Aldeia Formosa, uma vez que as condições geomorfológicas do trajecto a isso proporcionavam.

O que reconheço, e surpreendentemente não encontro motivos para tal, é que as 4 colunas realizadas na última quinzena de Junho e de todo o mês de Julho, advindas de Aldeia, se processaram sem registo de acções da presença inimiga, embora o mesmo não viesse a acontecer com os postos fixos de Gandembel/Ponte Balana.


4 de Agosto de 1968: o massacre de Changue-Iaia


Mas, a 4 de Agosto, acontece o maior desaire para a Companhia. Dois grupos de combate saem de Gandembel em viaturas, com o propósito de em Changue-Iaia se proceder à permuta dos reabastecimentos, como solução encontrada para a imensa dificuldade no atravessamento do riacho, cada vez mais largo e de maior débito.

Quando as nossas viaturas alcançam o local, desencadeia-se uma emboscada com rebentamento de fornilhos, e as bermas do caminho pejadas de minas anti-pessoais. A resistência mostra-se demasiado ténue, ante a visibilidade do terror que se lhe antepara. Não há outra solução, que não procurar sair do local a todo o transe.

As consequências são terríveis, pois para além de alguns feridos, dos quais 2 com bastante gravidade, há a lamentar a morte de 5 homens (1 era um soldado nativo), em que o corpo de um deles se desintegra, pelo efeito deletério dos malfazejos fornilhos.

A perda definitiva, num único dia, de 4 elementos da Companhia, provocou-lhe um forte abalo moral, muito em especial ao grupo de combate que faziam parte, mas o apoio a prestar só poderia ser superada pelo forte sentido gregário que existia entre todos, e ter a esperança que nos tempos sequentes não houvesse contrariedades a pesar. Foi um período crítico, o mais difícil de ultrapassar, de cair no rol do esquecimento, como tive o cuidado de referir no excerto anterior.


22 de Agosto de 1968. coluna com apoio dos pára-quedistas, com 64 minas anti-pessoais


Passados alguns dias, a 20 de Agosto, que marca a chegada dos pára-quedistas, intentou-se fazer uma outra coluna, mas ante o poderio ameaçador do inimigo, as partes que partiram de Gandembel e de Aldeia Formosa, voltaram para trás. Esta detectou 2 fornilhos e 5 minas anti-pessoais, enquanto a minha Companhia conseguiu levantar nas imediações do Changue-Iaia, 68 minas anti-pessoais.

Estes víveres acabariam por chegar a Gandembel a 22 de Agosto, mas a coluna com o apoio dos pára-quedistas, teve 64 minas anti-pessoais para desactivarem, mas a postura do inimigo é de tal modo vincado, que já no regresso de Aldeia, mais propriamente entre Chamarra e Mampatá (um troço tão curto), monta uma emboscada e causa 5 feridos graves aos homens da CCAÇ 381 que vinham na escolta.


Reabastecimentos por meios aéreos


Indubitavelmente que estas colunas, revelavam uma terrível ameaça para a integridade dos homens que lhes prestavam segurança, e algumas chefias de bom senso não desejavam criar cemitérios para alguns, e levar ao desespero como porta de entrada à loucura, para outros tantos.

Muito provavelmente foram estas as razões que determinaram que até ao fim do período das chuvas, as colunas tivessem um hiato, mas nunca me foi dado a conhecer os seus reais motivos. E Gandembel/Ponte Balana foi servida por meios aéreos, muito em especial por helicópteros, já que as Dorniers que tinham de lançar os seus sacos, só serviam para objectos mais leves.

A partir de fins de Setembro, reatam-se então as colunas via terrestre, e até ao fim de Gandembel realizam-se mais 7, nas quais não há registos de danos de grande monta para as NT. Não tenho conhecimento de mortos, apenas de alguns feridos ligeiros, mas o que é incontestável, é o reconhecimento que a agressividade do inimigo tinha diminuído substancialmente.

Procurei fazer uma descrição dos factos que se desencadearam nas colunas de reabastecimento para Gandembel, as suas tragédias, os seus dramas e pesares. Elas desenvolvem-se em 2 períodos bem distintos e assentam em 2 espaços territoriais de pouca similitude.

As colunas advindas de Guileje duram apenas 2 meses, com consequências funestas para as NT. Claramente, o PAIGC detinha um forte contingente bélico na zona, com um conjunto de acções consecutivas nos aquartelamentos de Gandembel e também de Guileje, e espera os dias das colunas, de si tão fáceis de tomar conhecimento.

Nos sítios mais propícios, cria pontos de paragem com abatises, armadilha a estrada com minas e fornilhos, e ser-lhe-ia fácil encetar com a sua estultícia, todo um sortilégio de façanhas, que tinham como fim, massacrar os homens que escoltavam essas colunas, e se possível, fazer destruir os meios logísticos.

Em meu entendimento, não há aqui, por parte do PAIGC, factos ousados. O acesso à estrada, mesmo vindo da fronteira, faz-se rapidamente, e com tudo preparado, só lhes restava agir, sem pôr em perigo os seus homens. Mas este acesso facilitado devia-se fundamentalmente a uma notória falta de efectivos suficientes das NT, para tentarem cercear os seus propósitos.

O rescaldo das cinco colunas de Guileje

Com a percepção clara das dificuldades que os esperavam, a saída de Guileje a caminho de Gandembel, era um calvário para os homens da escolta, cada vez em menor número, pois que não se lhes deparava na iminência do confronto com o inimigo, quaisquer alternativas de resguardo. Meios alternativos de protecção, os aéreos com 1 ou 2 T-6, mas que em pouco ou nada serviam. O único que amedrontava e desempenhava uma função altamente dissuasiva era o héli-canhão, mas este nem sempre aparecia.

O rescaldo das 5 colunas de Guileje é inquietamente pesado. Muito em especial para a CART 1613, sedeada num local bastante problemático, com a comissão a mais de metade, com um contingente fatigado, e que é chamada a desempenhar uma impiedosa missão, onde vem a perder muitos homens (mortos e feridos graves); dos que restaram, é gente molestada, vincadamente traumatizada.

Para todos eles e o seu grande comandante, o Capitão Eurico Corvacho [da CART 1613], um sentido testemunho de gratidão (4).


Rescaldo das colunas de Aldeia Formosa


Quanto às colunas provenientes de Aldeia Formosa, elas poderiam ser consideradas bietápicas: em primeiro, de Buba a Aldeia, e depois até ao destino final — Gandembel.

Já me referi sobre a coluna de 15 de Maio, e o que ela parece contextualizar quanto ao procedimento que o PAIGC viria a fazer incidir nesta zona.

A estrada de ligação de Buba a Aldeia era de um péssimo piso, mormente na época das chuvas. E os artefactos armadilhados e as emboscadas começaram a revelar os seus perniciosos efeitos.

Na verdade, este itinerário começa também a ser alvo das maiores contrariedades, avassalado pela perda de muitos militares, com incidência especial na CART 1612 [tristes sinas para estas Companhias-gémeas!] e no Pelotão Fox. E estes reveses, mais se vêm a ampliar com o abandono de Gandembel, mas aqui as razões prendem-se, em muito, com os trabalhos de reperfilamento/construção da nova estrada.

À notória obsessão que o PAIGC se firmava a este tipo de acções, com uma grande concentração de guerrilheiros, fortemente organizados e armados, bem conhecedores dos locais a intervir, é justo reconhecer que os cenários que se anteviam aos homens que se empenhavam na segurança destas colunas, era perfeitamente dantescos.

Spínola, com a fixação dos pára-quedistas em Gandembel, alivia notoriamente o pesadelo das colunas de Aldeia Formosa para este local, mas não as que provinham de Buba, agora sentidamente muito mais perigosas.

E estas, forçosamente, tinham que ter a sua continuidade, agora com mais dificuldades, pelo agravo de uma mais forte concentração inimiga.

De toda esta pungente história das colunas, estiveram largas centenas de homens envolvidos na beira do abismo. Dos parcos dados que o meu baú das memórias tem recolhido, não pecarei demasiado em afirmar, que elas dizimaram entre mortos e feridos de maior gravidade, muito mais de meia centena de militares.

Na faceta deste tipo de guerra, a envolvência dos 2 contendores com modos de actuação inteiramente distintos, para além de desproporcionada, era de uma iniquidade extrema. E o nosso militar, que era compelido para a protecção a estas colunas, entrava em estado de enorme tensão para uma antecâmara infernal, de alojamento do desespero, da raiva e da dor.

A última foi a do regresso definitivo, só com a Companhia. E julgo que a estrada de Guileje a Aldeia Formosa continuou para sempre à guarda do PAIGC, tanto mais que a ponte sobre o Balana tinha derrocado numa das últimas colunas: a 22 de Novembro.

Nas descrições que narrei quanto aos postos fixos de Gandembel/Ponte Balana, tentei-me confrontar com a forma como Spínola explanava as suas concepções no seu dossier sobre este arrepiante teatro de guerra.


A estratégia militar do PAIGC, sob o comando de Nino Vieira

Resta-me agora, procurar tentar fazer um julgamento de valor quanto à estratégia militar encetada pelo PAIGC, em que Nino Vieira foi o protagonista maior e fortemente se comprometeu.

Terminadas as colunas de Guileje, Nino proclama vitória. Restar-lhe-ia, para cercear quaisquer veleidades que ainda restassem às NT, de tomar de assalto ou destruir Gandembel, e na vertente das colunas de reabastecimento, incidir mais sobre as que envolviam directamente Aldeia Formosa.

E toma, como resolução, reduzir substancialmente as suas acções. Usa o velho e pérfido estratagema, o de procurar incutir um clima de maior sossego, de maneira a que se percam ou minimizem alguns dos predicados essenciais neste tipo de guerra: a compenetração, a previdência, a cautela, etc.

Se assim foi, no que se refere aos homens da minha Companhia, e porque de algum modo já estávamos bastante acossados, não conseguiu minimamente alcançar as suas intenções.

Todos estávamos sobreavisados e bem conscientes que na guerra insidiosa que nos circundava (era o nosso meio-ambiente), subjazia uma matiz de casualidade tão forte, que a impreparação aliada a uma menor concentração, poderia levar a um desencontro fatal, e um grande ronco surgir inopinadamente. A vida de cada um de nós pulava a cada momento entre a sorte e o azar, e saber dar-lhe o dom da primazia, não tentando aventuras de risco, revelava-se fundamental. Era uma condição necessária, mas tantas vezes, debalde, resvalava para o infortúnio.

Nino Vieira então prepara cuidadosa e convenientemente um ataque de assalto a Gandembel, firmemente convicto da sua destruição. E envolve todo o arsenal bélico que tinha à sua mercê, para atingir esse fim, e que tem lugar a 15 de Julho.

Contudo, sai vexado pela derrota, e reconhece que está ante um grupo de homens, já bem resguardados, que reagiram de forma que jamais supôs.

O fatídico 4 de Agosto, em Changue-Iaia, será uma retaliação contundente por parte de Nino? Em minha opinião, numa qualquer coluna de reabastecimentos, tudo era possível acontecer. E bastou um pequeno grupo a desencadear a emboscada, já que a troca de tiros foi ligeira, para semear o terror, pois a grande destruição foi provocada pelos fornilhos e uma infinidade de minas anti-pessoais. Pelo que me foi descrito, pois não fiz parte dessa coluna, se o inimigo dispusesse de um grande efectivo, poderia até ter provocado acentuadas baixas àqueles 2 grupos de combate.

Os acontecimentos posteriores a este dia, com a permanência dos pára-quedistas em Gandembel, contêm toda esta impetuosidade e refreia quaisquer veleidades.

O Changue-Iaia é inteiramente desminado, passa a ser bem vigiado, e o PAIGC recua atemorizado, apenas mantendo grupos localizados no lado da Guiné, apoiado na forte bateria de morteiros que sempre demonstrou conservar.

As 7 colunas necessárias fazem-se com poucos incidentes, e quando chega o dia 28 de Janeiro de 1969 [o do abandono de Gandembel/Ponte Balana], há efectivamente uma outra serenidade, mas responsável. E nesse dia, chegávamos sem problemas a Aldeia.

E acabo as narrativas da odisseia de Gandembel/Ponte Balana, dedicando um capítulo muito sentido aos que se viram compelidos a tomarem parte nessas violentas e aterrorizadoras colunas de reabastecimento. Em especial, os 3 trajectos de curta distância, Guileje — Gandembel, Aldeia Formosa — Gandembel e Buba — Aldeia Formosa, foram locais de uma acção temível, onde a tragédia surgia tão repentinamente, da forma mais absurda e cruel, a espalhar a miséria.

Quantas vidas num permanente suspenso, e num ápice todos os desígnios feneciam estupidamente. Para ínvios caminhos, só o tamanho da falsidade das colunas de reabastecimento parecia caber.

As colunas de reabastecimento que se contextualizam com Gandembel, ficaram gravadas nos caminhos do desalento, do pesadelo e horror. E por isso, procuravam protelar-se até soar o grito da clemência, pois os bens essenciais estavam a esgotar-se, e o espectro da fome, em forma de um tipo de alimentação quase intragável, pairou algumas vezes em Gandembel.

E esta desapiedada e frustrante sensação de um forçado isolamento, também contribuiu em muito para o alquebramento das forças físicas e morais, tão vitais para ousar enfrentar com denodo as vicissitudes que se nos deparavam quotidianamente.

E, embora reconheça, que para a grande generalidade dos militares, a guerra foi-lhes sempre tenebrosa, ela era, ainda assim, bem díspar nos diferentes chãos da Província.

Restar-me-á apenas tentar alinhavar o último capítulo, que se prende com a permanência da Companhia em Buba, e que se prolongou até 14 de Maio de 1969.

E até breve.


Um abraço do Idálio Reis.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXII: A tragédia da ponte sobre o Rio Balana (José M. Samouco)

(2) Vd. os postes anteriores desta série (que foram saíndo no nosso blogue com bastante irregularidade, por razões que não são imputáveis ao autor, mas sim ao editor, nomeadamente devido à riqueza e à abundância do material fotográfico que é preciso, no entanto, editar, consumindo bastante tempo):

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá.

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel.

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras.

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel.

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço.

21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28.

8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968.

19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques


(3) Sobre o dignatário religioso Cherno Rachid, vd. posts de:

4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça).


(4) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

Guiné 63/74 - P2116: Fur Mil Júlio Lemos, da CCAÇ 797, morto em Rio Louvado, por ferimentos em combate (A. Marques Lopes)

1. Mensagem do nosso camarada A. Marques Lopes:

Caros camaradas:

No Livro do Mortos na Guiné da CECA (enviei-vos em tempos uma cópia da lista d' "Aqueles que nem no caixão regressaram") não diz bem o que contaram ao Afonso de Sousa (1):



Reproduzo: Júlio de Lemos Pereira Martins, Furriel, da CCAÇ 797, morto em 2 de Agosto de 1965, em Rio Louvado, na sequência de ferimentos em combate. Era natural de Ponte Lima. O corpo não foi recuperado.

Abraço

A. Marques Lopes

__________

Nota dos editores:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2115: Em busca de...(12): Notícias do desaparecimento de Júlio Lemos, ex-Fur Mil da CCAÇ 797, Tite, 1965/67 (Júlio Pinto)

Guiné 63/74 - P2115: Em busca de...(12): Notícias do desaparecimento de Júlio Lemos, ex-Fur Mil da CCAÇ 797, Tite, 1965/67 (Júlio Pinto)

1. O nosso camarada Júlio Pinto, ex-combatente em Angola, em mensagem de 6 de Setembro de 2007, dirigia-se assim ao editor do nosso Blogue:

Vi estas indicações na internet pelo que presumo que esteve na Guiné na guerra colonial. Eu estive em Angola de 1967 a 1969.

Na CCAÇ 797 desapareceu um amigo meu de infância e de escola, o ex-Fur Mil Júlio Lemos. Gostava de saber mais sobre o seu desaparecimento, pelo que se for possível agradecia me dissesse algo.

Obrigado.
Júlio Pinto

2. Em 13 de Setembro o co-editor CV respondia:

Camarada Júlio Pinto:

Incumbiu-me o editor do Blogue, que eu te ajudasse na procura de elementos sobre o teu malogrado amigo e nosso camarada Júlio Lemos.

Assim no site www.guerracolonial.home.sapo.pt/, Secção de Convívios, Ponto de Encontro, encontrei 4 contactos da CCAÇ 797, onde poderás eventualmente saber alguma coisa do teu amigo.

Tenta pois com o Emílio Abrantes, telefone 238 691 390 e/ou José Bayó, telefone 917 291 778 e/ou Jorge Duarte, telefone 962 397 036 e/ou Santos Costa, telefone 917 415 288.

Vou também fazer circular por entre a nossa Tertúlia uma mensagem a perguntar se alguém tem conhecimento do que aconteceu ao nosso camarada Júlio Lemos.

Da nossa parte se houver novidades chegarão ao teu conhecimento. Entretanto espero que tenhas êxito junto dos contactos que te envio.

Um abraço do camarada
Carlos Vinhal

3. Ao mesmo tempo era enviada uma mensagem a toda a tertúlia nos seguintes modos:

Caros amigos tertulianos:

Haverá alguém entre nós que possa ajudar o nosso camarada Júlio Pinto?

Ele procura saber pormenores do desaparecimanto de um nosso camarada e seu amigo de infância de nome Júlio Lemos que pertenceu à CCAÇ 797. Esta Companhia esteve na Guiné entre 1965/67.

Se alguém tiver informações, pode enviá-las directamente para o Júlio ou para nós, que as faremos chegar ao destino.

Recebam saudações dos editores
Carlos Vinhal

4. Os resultados não se fizeram esperar.

O Afonso Sousa, nosso camarada tertuliano por demais conhecido pelas suas incursões no passado da Guerra Colonial da Guiné, prontamente deu resposta

Caro Carlos Vinhal & C.ª :

Acabo de falar com o ex-furriel da CCAÇ 797 Jorge Duarte que, sobre o assunto, diz:

O furriel Júlio Lemos, no termo de uma Operação e quando se preparavam para proceder ao atravessamento do rio Bissilon (Bissilão), tomou a iniciativa de efectuar a travessia a nado. Algo correu mal. Nunca mais foi encontrado, mesmo depois das buscas efectuadas por meios navais. Tal facto terá estado relacionado com o efeito do macaréu, verificado no momento.

Notas:

A CCAÇ 797 estava sediada em Tite (adida ao BCAÇ 1860)

CCAÇ 797 - RI 1 - Serra Carregueira/Lisboa, de Abril de 1965 a Janeiro de 1967

BCAÇ 1860 - RI 15 - Tomar, de Setembro de 1965 a Maio de 1967

Lista de mortos da CCAÇ 797

Inácio de Freitas Ferreira em 12-08-1965
Aníbal Alves Pires em 30-09-1965
Diogo Amaro Neves em 19-10-1965
Manuel António Amaral Nobre em 01-11-1965
Alberto Tibério da Silva em 18-03-1966
Jorge Augusto Maria Brás em 18-06-1966

Saudações
A.Sousa

5. Embora sabendo que o Afonso teria feito chegar esta informação ao Júlio Pinto, os editores do Blogue, redireccionaram-lhe esta informação.

Caro Júlio Pinto:

Reenvio-te uma mensagem do nosso tertuliano Afonso Sousa onde dá conta do episódio onde desapareceu o teu amigo Lemos.

Se mais não vieres a saber, tens aqui algo. Continuo ao dispor para o que precisares.

Um abraço e boa saúde

O camarada
Carlos Vinhal

6. Posteriormente, em contacto telefónico comigo, o Júlio Pinto agradeceu e confirmou as informações do Afonso. Comunicou com os camaradas do Júlio Lemos, que lhe indicámos, e eles corroboraram as trágicas condições da morte do seu amigo.
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Nota do co-editor CV

O Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné agradece a prestimosa colaboração do Afonso Sousa pela ajuda prestada a este nosso amigo. Agradecimentos também ao Jorge Santos que com a sua página
Guerra Colonial Portuguesa disponibiliza um vasto e actualizado manancial de informações. A ela recorremos inúmeras vezes para auxiliar o nosso trabalho de pesquisa.

Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)

Cópia da capa do livro de Aristides Pereira, Guiné-Bissau e Cabo Verde, Uma luta, um partido, dois países. Lisboa: Editorial Notícias. Novembro de 2002.
Para quem se interessa por aquelas terras, Guiné-Bissau e Cabo Verde, Uma luta, um partido, dois países é uma obra a não perder. São páginas que nos ajudam a reflectir sobre a época de tempestades de que fomos protagonistas.
Os apontamentos abaixo descritos são transcrições e notas soltas (da responsabilidade do co-editor VB) respigadas da obra. Com a devida vénia, a Aristides Pereira e à Editorial Notícias.
V. Briote, co-editor
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"As páginas que se seguem constituem uma visão retrospectiva da História que reflecte anos de tempestade e de ciclones; anos quentes nos quais os debates das armas da razão precediam os combates da razão das armas. Assistimos, nesta retrospectiva, ao desfile de actores verdadeiros ou falsos, tendo como cenário o crepúsculo dos tempos de exclusão colonial e de marcha irreprimível dos povos." (Prólogo, texto do Professor Joseph Ki-Zerbo, Ouagadougou, Burkina-Fasso)

Aristides Pereira recusa o título de Memórias, que muitos achavam dever ser o título da obra.

Iva Cabral, filha mais velha de Amílcar Cabral, escreveu-lhe após as eleições de 1991:

"Agora que tens mais tempo e sossego, espero que comeces a escrever as tuas memórias, já que é um dever que tens não só perante a História mas também perante mim e todos os outros jovens que vocês criaram e que por isso estão ligados ao nosso passado. A história de amanhã será escrita, terá que ter o vosso testemunho. Senão corre-se o risco de ela vir a ser contada por gente que tem como objectivo diminuir, denegrir a vossa luta, que representa no teu caso a maior parte da tua vida."


Aristides Pereira chegou a Bissau em Outubro de 1948, para prestar provas de concurso para operador dos CTT, tendo sido colocado na estação dos Correios de Bafatá.

Naquele tempo, Bissau era a Amura e a parte conhecida por Bissau Velho, onde moravam os civilizados, um conjunto pequeno de casas onde viviam comerciantes portugueses, libaneses e sírios, que se estendia até ao barracão da Casa Gouveia e que era a única parte electrificada da cidade.
A catedral e o Palácio do Governador estavam ainda em construção, a avenida principal já estava delineada, com uma placa central e numerosas mangueiras a ladeá-la.
Depois havia os bairros indígenas, chão de papel, Pilum. Era uma cidade com muito pó no tempo seco e muita lama na época das chuvas, porque as ruas não estavam ainda alcatroadas.

Tendo sido colocado em Bafatá, fez a viagem à boleia na carroçaria de um camião de mercadorias de um comerciante libanês do Gabu. Tempos depois ficou seriamente doente, tendo sido evacuado de urgência para o Hospital Central de Bissau. Após um período de convalescença em Cabo Verde, voltou a Bissau em Novembro de 1949, onde se manteve até 1951.

Havia muito entusiasmo pelo futebol. A UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau) juntava os brancos de Bissau, o Benfica os colonos benfiquistas, embora fosse considerado o clube dos cabo-verdianos por ter muitos jogadores oriundos do arquipélago e o Sporting dos irmãos Peralta (proprietários de uma fábrica de telhas e tijolos), que se esforçavam por recrutar nativos.
É nesta altura que Aristides Pereira conhece a Dr.ª Sofia Pomba Guerra (1) e é também nesta mesma época que se iniciaram os contactos com Abílio Duarte, Fernando Fortes e muitos outros.
Destacado para Bolama, cedo constata que as pessoas tinham medo de falar de tudo o que cheirasse a política. Priva com José Lacerda, funcionário da Capitania dos Portos, Carlos Gomes, empregado da casa comercial Nososco e já na altura nacionalista convicto, James Pinto Bull que exercia as funções de administrador e de cujo círculo de relações fazia parte o médico, o comandante militar e alguns oficiais do exército.

Depois de ter estado em Portugal de férias, onde aproveitou para fazer exames médicos, regressou a Bissau, decidido mais que nunca a envolver-se em algo que modificasse a dominação e a exploração a que via submetidos os povos da Guiné e de Cabo Verde.
É então que conhece Amílcar Cabral, acontecimento que, diz Aristides Pereira, modificaria definitivamente o rumo da sua vida.

A acção do Partido Democrático de Guinée (PDG, Conacri), nos finais dos anos 50, contou com um numeroso grupo de militantes que, no território da então Guiné Portuguesa, trocava ideias sobre a unidade africana na luta pela independência.

Esta consciencialização fez-se sentir no sul da província, sobretudo em Cacine, vindo mais tarde a aparecer em Dacar o RDAG, que reclamava ser uma secção da RDA (2) que tinha por objectivo lutar pela independência da Guiné-Bissau.
Incidentes em 1942, no tempo do governador Vaz Monteiro, em que, diz-se, ocorreram mortandades, agudizaram a consciência da luta pela emancipação.
Elisée Turpin assegura que houve na Guiné, logo a seguir à 2ª Grande Guerra, uma organização liderada por José Ferreira de Lacerda, funcionário público em Bolama, que tinha alguma influência no governo colonial e que esteve quase a ganhar uma eleição para esse órgão, organização essa que acabou por ser reprimida pelas autoridades.
Nessa época, ainda segundo Elisée Turpin, embora não tenha havido um movimento estruturado, houve um que procurava, dentro do quadro das instituições então em vigor, introduzir alterações. Nessa eleição, em 1956, fizeram parte da oposição, Benjamim Correia, Armando António Pereira, João da Silva Rosa e Gastão Seguy Júnior.



Rafael Barbosa (1926/2007) fotografado por Leopoldo Amado (3) em 1989


Rafael Barbosa, refere numa entrevista (3), que em 1948 tinha sido fundado o Partido Socialista, fundado por José Lacerda, César Fernandes, Hipólito Fernandes, Ladislau Justado e por ele próprio. Esse Partido Socialista desapareceu porque, diz Barbosa, “o Hipólito e o César não estavam a gostar muito do trabalho do Lacerda, que queria influenciar as coisas segundo o modelo brasileiro”.

Foram, portanto, muitas as correntes que se opuseram ao regime colonial, nessa época mais na perspectiva de exigência de direitos dos povos guineenses do que propriamente na independência.

Após a 2ª Grande Guerra, alguns estudantes, organizados na Casa dos Estudantes do Império, falhada a tentativa de politização da Casa, criaram em 1951 o Centro de Estudos Africanos, com o objectivo de “reafricanizar os espíritos”, em que Amílcar Cabral desempenhou um papel histórico.
Hugo Azancot de Menezes, são-tomense, fora enviado pelos nacionalistas à República da Guiné (Conacri) com o objectivo de reagrupar os interessados em lutar contra o colonialismo português, de que resultou o Movimento de Libertação dos Territórios sob Dominação Portuguesa.

Com a protecção de numerosas organizações anti-colonialistas, a direcção do então fundado MPLA (com a ajuda de Amílcar Cabral) instalou-se em Conacri, nos finais dos anos 50, a que se seguiu o PAIGC em 1960.

Cópia da brochura do Recenseamento Agrícola da Guiné, Estimativa em 1953, de Amílcar Lopes Cabral

Amílcar Cabral regressou à Guiné em 1952, tendo sido encarregado pelo então governador do território para proceder ao recenseamento agrícola da Guiné, trabalho que executou ajudado pela então mulher, Eng.ª Maria Helena Rodrigues.

Esta tarefa permitiu-lhe contactar com gente de todo o território e conhecer de perto as populações e os seus problemas.

“Em cada tabanca deixava uma palavra como só ele sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta”, escreve Aristides Pereira.

Em 1954, Amílcar, para disfarçar as actividades políticas que vinha desenvolvendo, tentou criar um clube recreativo e desportivo, juntamente com Carlos Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Alvarenga, Paulo Martins, Julião Correia, Martinho Ramos, Vítor Fernandes e Bernardo Máximo Vieira.

Luís Cabral (4) diz “(…)o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…)”.

Vítor Robalo, em entrevista a Leopoldo Amado: “(…) aquilo morreu, mas o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação de uma cooperativa (…). Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam”.

Este processo culminou com a fundação do PAIGC em 1956, tendo o encontro, segundo Luís Cabral, “reunido à volta do Amílcar os cinco elementos que estavam em Bissau (...).
Foi no fim da tarde de 19 de Setembro, no número 9-C da Rua Guerra Junqueiro, na casa onde moravam Aristides Pereira e o Fernando Fortes”.

Ainda, fazendo fé em Luís Cabral, "primeiro chegaram o Amílcar e o Luís, depois o Júlio Almeida, tendo Elisée Turpin sido o último. E assim foi fundado o PAI"

Em Fevereiro de 1956 houve uma greve dos trabalhadores do porto de Bissau.
Amílcar, proibido de permanecer na Guiné, foi trabalhar para Angola, tendo ainda passado pela Guiné em Setembro de 1959, afim de se reunir com os seus camaradas.

Em Fevereiro desse mesmo ano, tinha ocorrido o que ficou conhecido como o “massacre do Pindjiguiti”.

Em 1958, Rafael Barbosa, José Francisco Gomes “Maneta”, Ladislau Justado, Epifânio Souto Amado, Tomás Cabral de Almada e Paulo Fernandes fundaram em Bissau, o Movimento de Libertação da Guiné (MLG), criando ainda mais dificuldades ao projecto de unidade que Amílcar perseguia, a par do incremento das perseguições policiais.

O MLG, segundo Aristides Pereira “cedo hostilizou Amílcar, a quem alcunhou pejorativamente de cabo-verdiano”, acusava os cabo-verdianos de serem os homens de mão das autoridades colonialistas, e que pretendiam substituir os portugueses quando estes se fossem embora.
__________

Notas de vb, co-editor:

(1) Activista, com ligações ao PCP. Deportada para Moçambique, acabou por ir parar à Guiné, onde, segundo Aristides, "desenvolveu uma acção importantíssima na mobilização e consciencialização dos jovens que mais tarde vieram a adeir à luta de libertação nacional. "

(2) Ressemblement Democratique Africain

(3) Leopoldo Amado, historiador bem nosso conhecido, e membro da nossa tertúlia, é amplamente citado por Aristides Pereira

(4) Luís Cabral, meio-irmão de Amílcar, 1º Presidente da Guiné-Bissau (1974/80), foi deposto em 14 de Novembro de 1980 por um golpe militar liderado por Nino Vieira. Luís Cabral e outros membros do PAIGC foram acusados por alguns militantes de dominarem o partido. Esteve preso 13 meses, tendo sido exilado para Cuba, que se tinha oferecido para o receber, até vir para Portugal, onde ainda reside, depois do governo português lhe proporcionar condições para viver com a família. Regressou para uma visita à Guiné-Bissau, em 1999, quando Nino foi desalojado, também por um golpe militar.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2113: Blogoterapia (33): Nós nunca esquecemos as nossas mulheres (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos:

A Conceição Brito Lopes alerta para o papel primordial que tiveram as nossas mulheres, mães, namoradas, irmãs, amigas, avós e outras familiares no desenvolvimento afectivo onde se deve também situar a análise da Guerra Colonial (1). O que exige a todos nós uma reconfiguração dos testemunhos. Talvez a Conceição esteja de posse unicamente dos registos que se fazem dos eventos bélicos, reuniões de ex-camaradas da guerra, narrativas factuais de idas e regressos dos contigentes milítares. Seja como for, o seu apelo deve ser devidamente considerado.

Da minha parte, tive muita sorte: sem aquele correio, o escrito pelo meu punho e o recebido, a minha esperança teria seguramente definhado, aqueles afectos eram água purissíma, era o amor que nos esperava na hora do regresso, a par dos projectos que tinham ficado suspensos (2). Às vezes, diga-se em abono da verdade, água envenenada, nuns casos por incapacidade de se entender as mudanças que se estavam a operar nas nossas mentalidades e daí os choques e os choros, noutros casos recordo miseráveis cartas anónimas que levaram militares ao desespero, tal a fragilidade do isolamento.

A Conceição tem que nos perdoar estarmos ainda numa fase de desabafo, fazendo saltar para a cena o mais traumático e o aparentemente mais marcante. Certamente que muitissímos outros testemunhos como o da Conceição irão reposicionar o trânsito das nossas memórias. Oxalá o apelo da Conceição seja lido por muitas mulheres, as nossas companheiras e nosso sustentáculo para aqueles anos duríssimos que tudo tranformaram, inclusivé o amor que lhes dedicávamos.

Mário Beja Santos

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Notas dos editores:

(1) Vd. post de 17 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74: P2112: Blogoterapia (32): Não se esqueçam das mulheres, que apenas podiam morrer de saudade (Conceição Brito Lopes)

(2) Vd. 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6).