Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.084. Título: Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Lourenço Gomes e Armando Ramos em Conakry. Assunto: Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Lourenço Gomes e Armando Ramos junto ao Secretariado Geral do PAIGC [A Direcção geral do PAIGC instalou-se em Conakry no mês de Maio de 1960]. Data: 1960-1961. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER,
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE >
OS PROBLEMAS DO PAIGC NA LOGÍSTICA DE SAÚDE EM 1965 > ENTRE A LUCIDEZ E O DESESPERO DE LOURENÇO GOMES, RESPONSÁVEL PELA ÁREA DA SAÚDE NA FRENTE NORTE
1. INTRODUÇÃO
Porque a curiosidade se mantém, definida como interesse pessoal no aprofundamento da temática em título, volto de novo ao fórum para partilhar convosco mais uma pequena investigação concluída a partir das últimas narrativas tendo por questão de partida a «Logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte».
A primeira abordou o modo como se organizava o transporte dos guerrilheiros feridos no trajecto desde o interior do território [Região do Oio] até ao hospital de Ziguinchor, no Senegal – P18848, e a segunda descreveu o "protocolo" utilizado (o possível em função dos recursos) nas intervenções cirúrgicas na base do Sará – P19129.
Em ambos os casos, as narrativas foram reforçadas com imagens obtidas pela câmera do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC em diferentes bases da região Norte, quer no apoio aos combatentes quer na ajuda humanitária às populações sob o seu controlo.
Recuando na fita do tempo até Março de 1965, dois anos após a guerrilha ter iniciado a luta armada em Tite (Janeiro de 1963), os dirigentes do PAIGC batiam-se com grandes dificuldades logísticas em todos as frentes, com destaque para a área da saúde. Para além da inexistência de estrutura clínica adequada, e qualificada, onde não era possível garantir qualquer consulta, prescrição ou tratamento em tempo útil a cada paciente, conceitos que fazem parte dos actos médicos, a falta de medicamentos necessários para cada uma das enfermidades era gerida com "pinças", por serem escassos e incertos. A forma mais comum de os obter era através do recurso ao endividamento, com compras a crédito (requisições), particularmente no circuito comercial (farmácias) existente nos locais mais próximos dos hospitais do PAIGC situados em Ziguinchor (Senegal), Koundara e Boké (Guiné-Conacri). [Vd. mapa a seguir.]
Porque esta situação se agravava/degradava diariamente, por efeito do crescente aumento do número de baixas - feridos e mortos - resultantes das actividades operacionais contra as NT, foram lançados diversos apelos a "Comités de Solidariedade" internacionais, incluindo as organizações da Cruz Vermelha, solicitando apoios urgentes nesta área, como provam os exemplos identificados no ponto 4.
2. ANTECEDENTES
Já em Julho de 1964, em documento elaborado por Lourenço Gomes, a quem tinha sido atribuída a incumbência de supervisionar as actividades do PAIGC na Frente Norte, enviado a Amílcar Cabral, aquele dava conta da estatística relacionada com os feridos e doentes existentes naquela zona sob a sua responsabilidade (ver quadro abaixo).
Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35644 (2018-10-26), com a devida vénia.
Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.063. Assunto: Medicamentos. Enfermaria. Entrevista com Senghor. Prisão de Seco Camará. Em anexo: número de feridos e doentes em Casamansa e comunicado de guerra, assinado por Lourenço Gomes, referente ao dia 2 de Julho de 1964. Remetente: Lourenço Gomes, Samine [Frente Norte]. Destinatário Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Data: Domingo, 12 de Julho [Agosto?] de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Anexo 1 - Relação de doentes
Anexo 2 - Comunicado de guerra de 2/7/9164[, em vez do esperado extrato conta-corrente do mês de junho de 1964]
3. CARACTERIZAÇÃO DA SITUAÇÃO EM MARÇO DE 1965
Em função das responsabilidades que lhe estavam atribuídas e perante as dificuldades em encontrar soluções para os diferentes problemas que lhe iam surgindo no âmbito das suas múltiplas actividades, tomou a iniciativa de caracterizar a situação em missiva enviada a Luís Cabral [Bissau; 1923 – Torres Vedras, 2011].
Eis o conteúdo da carta enviada de Samine (Senegal) por Lourenço Gomes, em 3 de Março de 1965 [conforme original reproduzido abaixo].
"Caro camarada Luís Cabral. Saudações combativas.
Esta carta é para lhe explicar as dificuldades que passo aqui na fronteira [Norte].
Se eu fosse uma pessoa que sofresse do coração, decerto já teria morrido; não só pelas dificuldades que se me apresentam, mas sim, e mais ainda, por presenciar todo o sofrimento que o nosso Povo passa nos Hospitais do Senegal, sem ter meios com que os possa valer, pois desde Dezembro do ano passado [1964] até à presente data, não tenho em mão a minha situação financeira, pois sempre o dinheiro para ocorrer às despesas, chega tarde e incompleto.
Bem sei que temos de lutar com dificuldades e admiro mesmo como a Direcção do nosso Partido, tem-nas conseguido superar até aqui. Reconheço isso tudo, mas o que me entristece é receber, em vez de palavras de encorajamento, recriminações desanimadoras.
O camarada Aristides [Pereira; Cabo Verde; 1923 – Coimbra; 2011], numa das últimas cartas que me escreveu, dizia-me que para um responsável não pode haver impossíveis. Devem levar em consideração que na fronteira Sul há um responsável em Koundara, um em Gaoual e ainda outro em Boké, ao passo que para esta fronteira toda sou eu o único responsável.
Os encargos são muitos, os trabalhos e canseiras sempre maiores cada dia que passa e os impossíveis têm de surgir, pois mesmo o carro não poderá trabalhar sem gasolina e esse só se consegue com dinheiro ou tendo as contas sempre em dia.
Na carta que escrevi ao camarada Aristides, pedia-lhe que me arranjasse um outro responsável, para qual o impossível não exista, para me substituir, porque confesso com toda a franqueza, que já estou cansado. Informei-lhe sobre as dívidas que temos a liquidar, principalmente na Farmácia, mas nem sequer obtive resposta sobre o assunto.
Estou sujeito a ser preso dum momento para o outro, pois o proprietário da Farmácia, constantemente me manda cobrar.
A minha situação é semelhante a de um náufrago, que já cansado de nadar e com as forças esgotadas se deixa morrer. Assim também, não será de admirar e até será muito possível o ter de qualquer dia abandonar o meu lugar, sem esperar ordens superiores, não significando isso falta de respeito ou disciplina, mas sim, só saturação e canseira até ao esgotamento.
Recebi pelo camarada Bicho, todos os recados de que lhe incumbiu, mas peço veja bem que sem possibilidades, talvez não poderei satisfazer os seus desejos, muito embora contra a minha vontade. O dinheiro que por ele recebi tive de o despender no pagamento de dívidas muito urgentes, não sabendo agora, como poderei mandar dez pessoas para Dakar, se não tenho sequer em meu poder dinheiro suficiente para adquirir gasolina para mandar o carro. Até à presente data, não recebi a importância completa correspondente ao mês de Fevereiro passado.
Bem sei que a si não lhe cabem culpas do que se passa, mas julgo do meu dever dar-lhe conhecimento, como membro que é da Direcção do Partido.
Amanhã mesmo, tenho de seguir para a fronteira de Kolda, possivelmente até perto de Cuntima, porque fui chamado com urgência de Salquenhé, para cumprir uma missão indispensável, em virtude do camarada Yaia Koté estar a estragar o trabalho do Partido naquela fronteira.
Desde sábado que mandei um portador com carta para o Osvaldo [Vieira; Bissau; 1938 - Koundara; 1974], mas até à presente data não regressou. Não sei se me poderei deslocar a Dakar em virtude da missão que vou cumprir, mas o camarada Bicho fica aqui a aguardar o portador e seguirá logo que o mesmo regresse de Morés".
Um abraço do camarada muito amigo.
Lourenço Gomes.
De acordo com o acima exposto (e independentemente do subtítulo dado a esta narrativa), será que estamos perante mais um exemplo de como pode ser explicado o provérbio «casa [ou organização] onde não há pão [recursos], todos ralham [ou se queixam] e ninguém tem razão»? Ou seja, onde falta o dinheiro e, por esse facto a vida se degrada por ausência das condições básicas que permitam um mínimo de dignidade às pessoas, então ninguém se entende porque, provavelmente, são todos culpados dessa situação. Foi isso o que aconteceu naquele contexto…?
Eis o original da carta enviada por Lourenço Gomes, desconhecendo-se a origem [ou a autoria] dos sublinhados [, possivelmente do destinatáriio, que mantivemos, não deixam de ser interessantes...].
Recorda-se, a este propósito, que três meses depois do envio desta carta por parte de Lourenço Gomes, o navio cubano Uvero desembarcava em Conacri, em 11 de Maio de 1965, a primeira (grande) ajuda de Cuba ao PAIGC, constituída por cento e trinta e sete caixas de medicamentos, entre outros apoios.
4. OS PEDIDOS DE APOIO EM MEDICAMENTOS CONTINUARAM…
Durante os treze anos da guerra colonial ou de libertação, os dirigentes do PAIGC nunca deixaram de fazer apelo a apoios internacionais, nomeadamente em equipamento militar e medicamentos.
Eis um exemplo do pedido de apoio de medicamentos elaborado dois anos depois da chegada da primeira ajuda remetida por Cuba [tradução do francês da nossa responsabilidade].
TELEGRAMAS ENVIADOS EM 11 DE ABRIL PARA:
COM O SEGUINTE CONTEÚDO… IGUAL PARA TODOS
Face situação muito grave motivo falta total medicamentos pondo em perigo vida diversos combatentes feridos e elementos população vítimas bombardeamentos lançamos apelo solicitando envio urgente todas quantidades possíveis medicamentos especialmente faixas - álcool - mercurocromo - curativos - algodão - antibióticos - antipalúdicos - antidiarreico - soro - leite (stop) Confiante vossa solidariedade aguardamos confirmação para endereço PAIGC BP 298 Conacri (stop) Fraternais agradecimentos.
Amílcar Cabral
Secretário-Geral PAIGC
Guiné dita portuguesa
Caixa Postal 298 Conacri, 11 Abril 1967
Citação: (1967), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34964 (2018-10-26), com a devida vénia.
Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07073.131.125. Assunto: Solicita o envio com urgência da maior quantidade de medicamentos. Situação grave por motivos de falta de medicamentos que põe em perigo de vida os combatentes feridos e elementos da população. Remetente: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Destinatário: Comité de Solidariedade Afro-asiático. Data: Terça, 11 de Abril de 1967. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Telegramas. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.
Citação: (1963-1973), "Enfermeira Nené Mendonça num hospital de campanha", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43675 (2018-10-26), com a devida vénia.
Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.157. Título: Enfermeira Nené Mendonça num hospital de campanha. Assunto: Nené Mendonça, enfermeira do PAIGC num hospital de campanha [Hospital Carlos Sequeira], interior da Guiné. Data: 1963-1973. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.
Na imagem supra pode ver-se algumas caixas [de medicamentos?]. Na que aparece em primeiro plano está gravada a sua origem – Alemanha.
Oito anos depois da elaboração da carta de Lourenço Gomes agora divulgada, eis uma imagem da farmácia do hospital do PAIGC de Ziguinchor, seleccionada, com a devida vénia, da colecção do médico holandês Roel Coutinho.
ASC Leiden - Coutinho Collection - 22 20 - Ziguinchor Pharmacy head, Senegal - 1973. [Responsável da farmácia do hospital do PAIGC em Ziguinchor, enfermeiro Ramiro].
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
29OUT2018.
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Nota do editor:
Último poste da série > 23 de iutubro de 2018 Guiné 61/74 - P19129: (D)o outro lado do combate (37): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: As intervenções cirúrgicas na base do Sará: fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)