Caro Carlos:
Mando em anexo mais um relato da minha ida à Guiné, esperando que aquele país, onde tão bem me senti, não venha a descambar, face às últimas notícias.
Um abraço.
Fernando Gouveia
A GUERRA VISTA DE BAFATA - 29
Diário da ida à Guiné – Dia seis (09-03-2010):
Finalmente Bafata à vista.
O percurso da “operação” era longo e por picadas não percorridas há mais de quarenta anos. Por essa razão se partiu mais cedo que o habitual. Porque o “objectivo da operação” era “um golpe de mão” a Bafata, mais uma vez pedi ao Chico Allen para ser eu a conduzir a carrinha. Conhecia bem o terreno, principalmente na aproximação ao “objectivo”.
Também queria ser eu a ter a experiência de passar as caricatas (não me canso de o dizer) barreiras policiais, no entroncamento de estradas de Safim. Primeira corda com os farrapinhos. O polícia às voltas ao carro, não lhe dou troco, pergunta-me o que ando por ali a fazer, digo-lhe que somos turistas portugueses, que pertencemos a uma ONG, meia verdade. Mais uma volta ao carro, o Allen vendo o precioso tempo a decorrer adianta-se ao condutor e estende uma barrinha de cereais ao guarda. A corda que era accionada por outro guarda, baixa acto contínuo, como se o primeiro a tivesse baixado com um telecomando. Passados duzentos ou trezentos metros, nova corda. Já levava uma barra de cereais na mão. Foi só oferecer o mata-bicho e logo seguimos. Muito lamento não ter uma foto destas situações mas parece que eles não gostavam nada disso e o Allen não queria confusões com a polícia.
Até Mansoa passámos por Nhacra e Jugudul. Boa estrada alcatroada. Normalmente a velocidade de cruzeiro era de 120 km por hora. O Allen disse-me logo no início que a estrada de Mansoa a Mansabá estava muito má e que portanto era melhor ser ele a conduzir nesse troço. Se partisse a carrinha estragava o que era dele. Pedi-lhe para conduzir nessa estrada 5 km, à minha responsabilidade. Ao fim de uns 2 ou 3 km entreguei-lhe o volante. A estrada tinha sido de asfalto mas tinha buracos de metro, de metro a metro, com as bordas do alcatrão em aresta viva. Se se conduzisse por aí teria que se fazer uma média de 2 ou 3 km por hora. A maior parte desse percurso foi feito pela berma, fora do alcatrão mas, de vez em quando, por haver árvores ou outros obstáculos, lá se tinha que descer cada roda em cada buraco e tornar a tirá-la. 50 km assim foi um autêntico suplício. Mais tarde ver-se-ão as consequências desta e de outras odisseias.
Estado do piso da estrada de Mansoa a Mansabá.
Ao fim de uma eternidade chegou-se a Mansabá, a “guerra” do Pimentel e do Mesquita, e ainda tínhamos que ir para Bafata, Uma hipótese seria regressar a Mansoa. Logo ali se decidiu que por aquela estrada nunca mais, embora a alternativa fosse ir directamente de Mansabá a Bafata pela antiga picada, que o Pimentel e o Mesquita tinham percorrido há quarenta anos, numa operação inédita, em que numa atitude de algum arrojo o Comandante Chefe resolveu transferir um batalhão com armas e bagagens de Mansabá para Galomaro (é certo que ele não faria o percurso…). Curiosamente fui eu próprio que planeei a operação de segurança na zona de entrada no Sector Leste, pelas bandas de Sare Banda (já referi isso noutra estória).
Em Mansabá o Pimentel e o Mesquita viram o que tinham que ver. Muitos dos edifícios ainda existiam mas já muito degradados. Na antiga piscina nasceu uma grande árvore que, enorme, lá está implantada.
O estado do edifício do comando do antigo Quartel.
Mansabá. Junto do que foi a piscina. Um antigo guerrilheiro do PAIGC, eu, o Pimentel, o Allen e um Professor. A foto foi tirada pelo Mesquita.
Outra nota de registo foi o Pimentel, dentro de uma escola, falava com o professor. Resolvi entrar para, como já costumo dizer, não perder pitada. No momento em que entrei aconteceu uma coisa que já não fazia parte das minhas recordações das últimas décadas, todos os alunos se levantaram. Fiz um gesto para se sentarem com uma forte dose de emoção à mistura.
Tínhamos que ir almoçar a Bafata, metemo-nos à picada e depois de alguns quilómetros ainda pensámos duas vezes em usar a estrada esburacada, por Mansoa. O estado deste caminho veio a mostrar-se também tenebroso. Tinha valas transversais, longitudinais, e buracos talvez de antigos rebentamentos de minas, onde a carrinha tinha que entrar e depois sair. O que ajudava era que de vez em quando a picada tinha dois ou três quilómetros de bom piso e quase sempre grandes árvores a ladeá-la.
O estado da picada de Mansabá a Bafata.
Picada de Mansabá a Bafata.
Passámos por muitas tabancas, pelo cruzamento para Geba, pela derivação para o Empreendimento Turístico do Capé. Um pouco antes da descida para a Ponte Nova pedi ao Allen para parar junto a umas árvores que se começaram a ver. Daquele local via-se já Bafata ao longe. Podem crer camaradas que, até neste momento em que estou a escrever, estou altamente emocionado. O Mesquita estava de boca aberta por, passados quarenta anos, eu me lembrar daquelas árvores. Tirei umas fotos e seguimos.
Foto de há 40 anos em que se vê Bafata ao longe.
Foto actual, tirada do mesmo local, só que as árvores cresceram.
Atravessámos a Ponte Nova (Oliveira Salazar) e entrámos em Bafata pela tabanca da Ponte Nova. Reconheci algumas moranças mas não parámos pois estávamos com pressa para almoçar.
Já se sabia que havia um restaurante que servia bem, na zona de construções coloniais da cidade. É de um casal de portugueses. Para lá nos dirigimos. Enquanto nos preparavam o almoço, saltei para a carrinha e fui directo para o que era o meu primeiro objectivo em Bafata: Tabanca da Ponte Nova.
Já me tinham dito que, com a morte do célebre ourives Tchame, que tinha os dentes com coroas de ouro colocadas por ele próprio, a oficina era agora gerida por um seu filho. Tinha sido perto dali que há 40 anos tinha visto, por uma única vez, uma bajuda à qual tinha tirado uma foto. Foi a bajuda mais espectacular que vi na Guiné durante toda a minha estadia de 2 anos.
O actual Tchame filho do ourives que conheci há 40 anos.
Ia pois perguntar ao filho do Tchame, que agora tem mais de 50 anos, se conhecia a agora mulher-grande da foto que lhe iria mostrar. Antes porém, e para que ele se tornasse colaborante, mostrei-lhe e dei-lhe de imediato, uma bela foto do pai com os seus dentes de ouro. A colaboração que eu esperava foi total.
O ourives Tchame de há 40 anos (foto que dei ao filho).
Mal viu a foto da bajuda disse: - É a Kadidja, se quiser mando-a chamar aqui. As minhas pulsações devem ter disparado. Precisava de a ver, precisava de a fotografar de novo. Como estavam à minha espera para almoçar disse que passado uma hora ali estaria. Almocei e lá saltei outra vez para a carrinha em direcção à oficina do Tchame.
A bajuda que vi uma única vez há 40 anos, que agora soube chamar-se Kadidja.
Claro que se a visse na rua talvez a não reconhecesse, mas ali sentada à minha espera, vi logo que era ela, até porque tinha os mesmos brincos de ouro de há 40 anos. Mulher agora com 56 anos, sem uma ruga e impecavelmente vestida. Disse que me reconheceu e à minha pergunta se sabia onde eu lhe tinha tirado a foto, ela estendeu o braço e indicou a direcção, pois ainda era longe dali. Abraçámo-nos, e só não chegámos às lágrimas.
Kadidja. A alegria em nos revermos foi mútua (Fotograma de filme).
A mulher grande, Kadidja, que um segundo antes sorria. As máquinas digitais são o que são.
Disse-me que Samba era o nome do marido, que tinha tido quatro rapazes e três raparigas e já tinha alguns netos. Ofereci-lhe umas “t-shirt” para os netos, tirámos várias fotos juntos, filmei-a tendo registado a sua voz. Quando lhe pedi para tirar o lenço da cabeça a fim de a fotografar, ela disse que não por causa dos seus cabelos brancos. Achei curioso. Despedi-me e prometi-lhe voltar. Quando me afastava ainda lhe disse as duas únicas palavras que sei em fula: - Kadidja, djarama, djarama bui (obrigado, muito obrigado), obtendo um último sorriso dela.
Cheguei a ir outra vez a Bafata mas por se ter partido uma mola à carrinha e ter acontecido outra série de encontros deste género, que mais tarde descreverei, não cheguei a revê-la nem a conhecer o marido, cujo nome é o mesmo que o do único amigo africano que tive em Bafatá há 40 anos. Só faltava que fosse o mesmo Samba… Ainda cheguei a comprar prendas para os dois, mas não lhas cheguei a entregar.
Fui ter com o grupo ao restaurante e para abreviar direi: Palavra puxa palavra, descobri que o dono do restaurante foi quem, há 40 anos, me deu boleia de Bambadinca para Bafatá no regresso das minhas últimas férias na Metrópole, que já descrevi noutra estória. Foto da praxe e regresso a Bula, agora pela boa estrada alcatroada.
Com o Sr. João Marques Dinis que há quarenta anos me deu uma boleia de Bambadinda para Bafata.
Ainda fomos jantar a Bissau pois tinha de tratar na TAP do adiamento, por uma semana, da minha vinda para Portugal. Teria que ir outra vez a Bafata.
Até amanhã camaradas.
Fernando Gouveia
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6330: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (28): Diário da ida à Guiné - 08/03/2010 - Dia cinco