Abegão aplicando o saber no seu ofício
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços
Camaradas,
Gosto de desafios! Sim, o desafio propõe-nos outros desafios, mas estes mais esmerados. Ousamos desafiar as dificuldades motoras, sendo este o meu caso, pois escrevo apenas com a minha mão esquerda, aquela que outrora fora “ceguinha”, a outra, a direita, resolveu partir para o caminho da infinidade, desde o dia (27/7/2006) em que o AVC me visitou, já lá vão 17 anos, mas que jamais abandonarei a verdadeira noção de escrever e deixar para a posterioridade uma visitação, esta morosa, que me levou a escrever mais um livro, sendo este sobre a terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento.
OUma obra trazida aos escaparates pelas Edições Colibri, Lisboa, onde faço uma viagem no tempo e trago à estampa algumas das profissões, embora resumidamente, que outrora marcaram a vida na minha aldeia.
Profissões e os seus mestres
Mestre Pote, sapateiro e músico
Escrevi, atrás, um tema sobre a antiga Banda Filarmónica de Aldeia Nova de São Bento em 1930, com a respetiva fotografia, sendo o seu maestro o mestre Pote. Ficou, certamente, a dúvida quem foi, afinal, o mestre Pote?
Pois bem, o mestre Pote nasceu em Aldeia Nova de São Bento, teve como profissão a de sapateiro e foi sobretudo um homem que muito se interessou pela escrita.
Sabe-se, também, que foi um sublime contestatário do Estado Novo. Homem hirto com as suas convicções políticas, o mestre Pote debatia, clandestinamente, as suas teorias assumidas como revolucionárias.
As barbearias, à época, eram antros onde se concentravam os chamados revolucionários de um regime que ditava despotismo numa sociedade marcada, na altura, literalmente por extratos sociais. Nessas recuadas eras, as barbarias, locais de ajuntamentos, eram propícias para um debitar de ideias, tanto assim que os caixeiros-viajantes eram habituais “fregueses”. Levavam e traziam notícias tidas como proibitivas para uma sociedade que se via sistematicamente vigiada pela então polícia do Estado, a PIDE.
Mestre Pote, homem então da escrita, lá debitava crenças políticas que a sua alma encarecidamente lhe pedia. Chegou, inclusive, a trabalhar para o jornal “Avante”.
Virtudes de um tempo onde as pessoas que sabiam ler e escrever eram raras. Atendendo à época vivida, quase se contavam pelos “dedos de uma mão” os jovens que frequentavam a escola primária. O trabalho no campo, como pastores, porqueiros, vaqueiros os almocreves era o destino da juventude, ou como aprendizes de sapateiro, abegões, ferreiros, caixeiros, carpinteiros, de entre outras profissões que evitavam o árduo trabalho nos campos.
Hoje, os tempos são naturalmente antíteses de um passado que deixou profundas raízes.
Sapateiro, uma nobre profissão
A profissão de sapateiro assumia-se, em tempos, como nobre! Sou de um tempo em que as sapatarias proliferam na aldeia. Lembram-se? De um lado, estavam os mestres, senhores já conhecedores da arte, e do outro, os aprendizes.
Tenho uma vaga ideia que a entrada para a oficina de um novato, obedecia a um pedido feito ao mestre supremo, normalmente o dono do espaço, que aceitava ou não o rapaz. Nessa altura os aprendizes não tinham uma jorna fixa, o mestre dava alguns escudos, poucos, para o rapazola se sentir satisfeito e na próxima semana jogar-se com um maior empenho ao trabalho.
A entrada do candidato passava por uma eventual conversa com o rapazito, sendo que o mestre, já conhecedor da matéria, colocava-o à prova, questionando-o acerca do trabalho que por ali se fazia, a qualidade das peles para o manusear perfeito de um bom par de botas, ou de butes, das formas utilizadas para o trabalho cuidado do calçado, das meias solas que constantemente eram solicitadas, dos remendos que amiúde os homens procuravam no seu calçado, de entre muitos afazeres que os sapateiros se predispunham efetuar.
Neste já longo percurso de vida, revejo imagens que me enchem hoje de saudade, tendo como princípio básico o que foi, na verdade, o primoroso trabalho dos sapateiros.
De facto, a labuta com os materiais era minuciosa e carecia de mestria. Lembro as opiniões positivas que o homem do campo lançava numa das suas idas às tabernas. “Estão muito bem-feitos esses butes e assentam nos pés como luvas”. E, num desabafo, assegurava: “O mestre sabe da poda”.
Recorro, com a devida vénia, a uma foto do amigo Zé Bica, cuja imagem estava em casa de seu sogro, o mestre Lico, que retrata, no fundo, a azáfama dos mestres e quiçá aprendizes na hora do trabalho. A imagem reporta-se à sapataria do mestre Estevão que se situava na Rua de Fora.
O mestre Estevão é o homem que está à máquina, sendo o mestre Lico o que se encontra em baixo, à sua frente. Aliás, o nome do mestre Lico era o seguinte: Manuel Afonso Arrocho. Um outro nome apurado de entre os sapateiros e aprendizes é do Chico Paulos, de pé, à esquerda.
Abegões (vd. foto acima)
Os abegões eram indivíduos que possuíam bastos conhecimentos de carpintaria e de ferraria. O abegão era conhecedor profundo de uma arte literalmente enquadrada na construção completa dos carros em madeira, sabendo-se que o resto da sua estrutura assentava nos eixos, molas e aros das rodas feitas em ferro.
Os abegões utilizavam como armas de trabalho as serras, um instrumento de corte utilizado para o cortar da madeira, uma forja de ferreiro, o fole, macetas para bater o metal e as tenazes. Numa perspetiva global o abegão possuía uma aptidão natural para a construção de um carro de bestas.
A pintura dos carros era sobretudo original e tinha, normalmente, o cunho pessoal do abegão, ou da oficina que o tinha construído. O artesão, chamemos-lhes assim, era exímio na sua arte e a construção final do carro enchia-o de orgulho.
Recuando no tempo, décadas de 1940 e de 1950, damos conta que em Aldeia Nova existiam vários abegões. Tanto mais que os carros de mulas eram, de facto, muitos. Manuel Palma, pai do Zé Calatróia, cuja oficina se situava na Rua do Sobral, os irmãos Afonso, Chico e Zé, Rua das Flores, Manel Graça, nas proximidades do depósito da água, lá para os lados do Largo dos Madalenos, e o Valadinhas, na Rua Herói Pedro Rodrigues, foram alguns dos protagonistas que se dedicaram inteiramente à profissão de abegões.
Presentemente, a profissão de abegão já fora chã que deu uva. Fica a certeza que os tratores, como é o caso, deram uma nova vida aos nossos campos, sendo que as utilizações dos carros com bestas continuarão perpetuados, apenas, nas nossas memórias.
Carpinteiros
Domingos Barradas, carpinteiro
Profissões que marcaram indeclináveis gerações, os carpinteiros foram mestres numa arte que passava de geração para geração. Em Aldeia Nova o velho ofício perdurou no tempo e ainda hoje se revêm gentes, cujos nomes muito dizem a pessoas que conheceram as origens dos seus antepassados.
A carpintaria era, e é, uma oficina de trabalho onde o carpinteiro trabalha a madeira, em bruto, dando-lhe, naturalmente, o efeito desejado. As peças em madeira eram, e são, trabalhadas com ferramentas próprias, tipo serra, formão, serrote e prumo, de entre outras, pois atualmente existem máquinas próprias que o carpinteiro amiúde utiliza.
No campo da matéria-prima a trabalhar, supõem-se que a cerejeira, o cedro, o eucalipto, o mogno, ou outros troncos de árvores africanas e asiáticas, serão, talvez, as mais utilizadas pelos carpinteiros.
O trabalho numa carpintaria obedece a esforços humanos e, por outro lado, a cuidados redobrados, tendo em conta que o manipular da nova maquinaria é guarnecido de uma proteção, pois um mínimo descuido é causador de danos físicos irreparáveis.
Puxando pela memória. recordo as oficinas dos irmãos Barradas, Zé e o Domingos, junto à Igreja de São Francisco, e a António Mora Barradas e o irmão Zé Barradas, sendo que em ambas se fizeram excelentes mestres, e deixaram a arte para os descendentes.
Latoeiros
Francisco Valente, o latoeiro
A latoaria é uma arte onde latoeiro assume um ofício e se afirma como um verdadeiro artesão. Prepara e repara artefactos, essencialmente em metal, ou lata, ou chapa zincada, que copiosamente as suas mãos, e saber, trabalham com mestria dando-lhes a forma que o cliente previamente solicitou.
Na aldeia existiu em tempos um latoeiro que dava pelo nome de Francisco Valente, sendo que um dos seus filhos, o Arsénio, com ele ainda trabalhou. O Chico Valente, como o povo habitualmente lhe chamava, mexia com um assunto que lhes era peculiar. Lembro, em particular os pequenos cântaros que proliferavam pelos lares aldeões. Ou, de cântaros maiores onde se guardava o azeite.
É verdade que várias peças saíam da sua oficina. Comedouros e bebedouros para o gado se alimentar no campo; alguidares em zinco; os já mencionados cântaros; candeias para iluminar as noites de escuridão; os regadores, enfim, uma panóplia de manufactos que a população por sistema recorria.
Atualmente, esses velhos ofícios desapareceram. Tudo se compra já feito e quase já não há compradores que encomendem essas antigas relíquias.
Fica a presença do nosso conterrâneo Chico Valente para perpetuar essas antigas memórias.
Ferreiros
O mestre Manuel Guerreiro
O mestre Manuel Guerreiro
Trabalhar o ferro é uma profissão conhecida como milenar. O ferreiro, assim se designava a denominação do homem que utilizando o forno a carvão de pedra moldava o ferro, era mestre num ofício que por vezes passava de geração para geração. Ou seja, uma profissão, digamos hereditária, que passava dos pais para os filhos, indo até aos netos e bisnetos.
A profissão de ferreiro era um misto de artesão com artífice metalúrgico. Aliás, vamos à nossa história e reparamos que já nos tempos dos reis existiam homens, donos de um talento invejável, que trabalhavam o ferro eficazmente. As espadas, exemplificando, eram armas cruciais em tempo de guerras. Mas, todo o trabalho dos ferreiros tinha a sua arte.
Nas oficinas ouviam-se sons barulhentos e o apupar da matéria-prima trabalhada. Na bigorna, com uma ajuda de uma pequena marreta, dava-se o molde a um ferro, em brasa, que, entretanto, havia sido retirado da chama, uma chama que se mantinha acesa por via de um fole puxado por um fio que a mão do homem atempadamente se encarregava de executar o serviço.
Olhemos, com a devida cortesia, para os ferreiros existentes na nossa aldeia em tempos idos: António Paulos, pai do Zé Guerreiro, cuja oficina se localizava na Rua do Sobral, mesmo defronte à moagem (antiga fábrica), o Manel Guerreiro, pai do Chico Guerreiro e do Emiliano Guerreiro, Rua Bento Costa, e o Manel do Facho, pai do Veríssimo e do Zé do Carmo, oficina que se situava na Rua do Rossio, quase em frente da antiga loja do Chico Mendes, foram alguns dos homens que se entregaram à faina de trabalhar o ferro.
Dessas eras recordo-me, por exemplo, do Honório “Coxinho”, um homem que tinha um defeito no pé e que sempre o vimos de pé descalço. Trabalhava, se a memória não falha, na oficina do Manel Facho.
Albardeiros
Albardeiro era um ofício cuja finalidade era fabricar albardas, cabrestos e molins, de entre outros apetrechos para animais de carga, quer estes fossem para transportar mercadorias e pessoas em carros de bestas, quer na labuta dos campos, sobretudo nas lavouras.
Estes apetrechos compravam-se normalmente nas feiras, sendo o caso da nossa terra na feira anual de setembro que se realizava entre os dias 1, 2 3 de setembro. Ou, quando existia no povoado um albardeiro que fazia a preceito destes utensílios.
Naquele tempo todos estes apetrechos obedeciam a princípios básicos que se prendiam com as medidas do animal, isto é, com a sua cilha. Mediam os lombos dos animais e lá faziam uma albarda enquadrada com a sua cinta. O método era extensivo aos cabrestos e aos molins. O animal tinha que se sentir confortável com as “peças” que o seu dono havia comprado. Tanto mais que o objetivo prioritário era não ferir o animal. Tudo, no fundo, era analisado ao pormenor e até as próprias arreatas tinham um tamanho que se encaixava com o manejar dos animais.
Em Aldeia Nova temos conhecimento que no antigamente houve um profissional na arte de nome Miguel Albardeiro. Aqui, a meu entender, o apelido de Albardeiro ter-se-á ficado a dever à profissão que ao longo da vida desempenhou.
Alfaiates
Sebastião Barradas, o alfaiate
Eram os tempos em que tudo o que se pretendia com a feitura dos fatos, calças ou uma outra indumentária para homens, o pessoal dirigia-se ao Sebastião Barradas, sendo que a sua casa se situava na Rua do Outeiro, quase defronte à antiga Casa do Povo, hoje sede do Atlético.
O Sebastião Barradas tinha uma oficina de trabalho, sendo coadjuvado no seu serviço de alfaiate pelos filhos e era ali que recebia as encomendas, alinhava a sua labuta diária, cosia, trabalhava carinhosamente as fazendas, alinhava as peças, tirava medidas, recebia os fregueses, fazia as provas, quantas fossem necessárias, por fim surgia a peça de vestuário ajustada ao corpo do cliente.
Sebastião Barradas era um homem muito caseiro. Não frequentava as tabernas e não se lhe reconheceu qualquer filiação a uma das coletividades lúdicas da aldeia. Deixou a sua marca num tempo em que a função de alfaiate era algo rara.
Ele, porém, conseguiu fazer a sua vida a trabalhar peças de roupa, cujo evoluir estava resignado à sua mestria, a uma mesa sobre o comprido, a um giz branco para fazer os talhes das fazendas à medida do corpo de cada um dos seus clientes, a uma máquina de costurar e, sobretudo, a uma dedicação a uma profissão agora condicionada, e adaptada, aos estilistas que hoje existem nas principais metrópoles portuguesas e não só.
Menina Bia, a costureira de vestidos de noiva
Um pouco mais adiante do alfaiate Sebastião Barradas, quase em frente à casa do Zezinho Chora, Rua do Carril, morava a menina Bia. A menina Bia era a costureira perfeccionista dos vestidos para as noivas.
A sua casa era muito frequentada pelas jovens que sonhavam com o dia do seu divinal enlace matrimonial. A menina Bia, uma conterrânea que, infelizmente, tinha um defeito físico num dos seus órgãos inferiores, ou seja, numa das pernas o que motivava que a sua deslocação fosse feita através de duas muletas, foi uma pessoa muito especial para as noivas se sentirem adoradas na hora do seu ambicioso enlace.
Das suas mãos saíam autênticas obras de arte. As jovens noivas acorriam literalmente à menina Bia. Ela, com a sua velha e conhecida calma, lá ia paulatinamente dando corpo, e imagem, a um vestido antes sonhado pela noiva. Provas e mais provas, tirar daqui e repor ali, alfinetes na peça que ditavam o óbvio acerto, arranjos de última hora e eis o sonhado vestido de noiva, em cor branca, que faziam as delícias do encantado rapaz que se via envolvido no traje do seu amor.
O branco significava, e ainda hoje significa, pureza. A jovem, então virgem, embrulhava-se no seu vestido e encantava não o seu amado, assim como os convidados. Fora, então, as mãos da menina Bia que deram fulgor à festança.
Aliás, nessas épocas existiam também outros casamentos, só que esses vínculos tinham um outro requinte, pois a noiva já não era virgem, logo o ir de vestido branco à igreja estava-lhe puramente restrito.
No capítulo das costureiras, recuamos ao ano de 1927 e deixamos uma foto de um grupo de senhoras da nossa terra que marcaram presença num curso de bordados, onde os “professores” eram funcionários da Singer, uma marca de máquinas para costurar que, à época, fazia furor em Portugal.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Texto e fotos: © José Saúde (2023).__________
Nota de M.R.: