Amadu Bailo Djaló
Comando Guineense
Estamos a chegar ao fim do trabalho das Memórias do Amadu. A data estabelecida para a entrega é em 17Set próximo.
Passámos a português corrente os maços de folhas, os escritos em crioulo, contactámos testemunhas presenciais, gravámos depoimentos, pedimos ao Abreu dos Santos o nome das operações, as datas, os nomes dos mortos, dos feridos. Rigoroso e incansável, o Abreu dos Santos respondeu em tempo, questionou datas, a ordem dos capítulos.
O Amadu não trouxe fotos, as imagens estão-lhe na memória.
Pedimos o apoio a um dos melhores fotógrafos da Guiné, o Humberto Reis (Bambadinca, Bafatá), ao Amílcar Ventura e ao José Manuel Dinis (Bajocunda, Piche, Pirada, Canquelifá), ao Marques Lopes (Amura), ao Torcato Mendonça (Xime), ao Jorge Picado (Cutia), ao Jorge Cabral (Fá), ao Vítor Condeço (Catió), ao Carlos Vinhal (Mansabá), ao Albano Costa (Guidaje), ao Fernando Henriques (Canquelifá), ao Cor Raul Folques (Spínola, Brá...), ao Carlos Silva (Farim, Jumbembem, Cuntima, K3...), ao Benito Neves, ao Colaço, ao Santos Oliveira (Cachil e Tite), ao Fernando Gouveia (Bafatá), ao fotógrafo Ernst Schade ("fanado", "rio Grande de Buba") e vou certamente esquecer-me de algum Camarada.
Todos responderam aos nossos pedidos, facilitaram imagens na melhor qualidade possível e todos concordaram que as suas fotos fossem inseridas nos textos do Amadu.
Amadu Bailo Djaló nasceu em Bafatá, em 1940, filho de Cherno Iaia Djaló e de Ana Condé. Aos 14 anos, o irmão mais velho levou-o para Boké, para casa de um tio, de onde era natural a mãe. O pai era de Fulamorie, também da República da Guiné-Conakry. Um ano depois regressou a Bafatá. Aos 16 anos conheceu, pela primeira vez, Bissau e um ano depois Bolama.
Desde muito jovem quis ganhar dinheiro e ser independente. Começou por organizar bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobrava as entradas. Era conhecido entre as meninas de então pelo "Mari Velo".
Enquanto não foi incorporado, foi trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz, um pouco mais tarde em Bafatá. Estávamos em 1958.
Nos princípios de Janeiro do ano seguinte, regressou a Bafatá. Como sabia ler e escrever, foi para a campanha da mancarra. Aos 20 anos quis dar um salto, tornar-se independente. Conseguiu abrir uma banca para negociar no Mercado de Bafatá. Mas a incorporação estava à porta.
Recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, foi alistado em 04Jan62, como voluntário, no Centro de Instrução Militar. Depois da recruta em Bolama, seguiu-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim, regressou à CCS/QG, depois os Comandos de 1964 a 1966, a CCS/QG outra vez, Bafatá no BCav 757, conhecido pelo “Sete de Espadas”, e daquele transitou sucessivamente para os BCac1877, BCav1905 e BCac2856 (todos sediados em Bafatá) e, em meados de Jul69, foi transferido para a 15ªCCmds, seguindo-se então a 1ªCCmds da Guiné, o BCmds da Guiné, a CCaç21 com base em Bambadinca, o 25 de Abril.
Foi promovido a 1º Cabo em 01Jan66 e louvado pelas actuações em operações no ano de 1966. Novamente louvado em 1967, em OS do BCaç1877, de 30Set67, pelo seu comportamento em acções de combate durante o ano de 1967 (07Jan-24Set67). Transferido para a 15ªCCmds em 01Jan70, foi graduado em furriel em 06Fev70, transitando em 13Fev do mesmo ano para a 1ªCCmds da Guiné.
Graduado em 2º Sargento em 07Nov71, foi louvado pelas acções em que participou durante o ano de 1972. Condecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª Classe em 1973 (embora o seu nome não conste nos 8 tomos do 5º volume da “Resenha...”).
Em 28Jun73 foi graduado em alferes e novamente louvado pela actuação nas operações durante o ano de 1973.
Passou à disponibilidade em 01Jan75, devido à independência do território da Guiné.
João Bacar Jaló (1) é frequentemente nomeado e citado nos escritos do Amadu. Um dos capítulos é mesmo dedicado à morte do capitão. Faltava encontrar uma testemunha presencial dos acontecimentos. Encontrámo-lo e encontrámos-nos os três para gravar o seu depoimento.
O Tenente João Bacar Djaló rodeado de pessoal da 1ª CCmds Africanos. Entre outros, é possível identificar o Furriel “Dico” Andrade, o 1º da esquerda, o Furriel Orlando da Silva, ajoelhado, no meio e o 1º da direita, em cima, o Soldado Francisco Gomes Nanque, que esteve preso na Libéria após a operação a Conakry.
A morte de João Bacar Jaló
No dia seguinte, de manhã, apanhei o transporte para Brá. Quando lá cheguei estava o capitão Miquelina Simões a mandar proceder às identificações dos instruendos, que iam frequentar o curso para a 2ª Cª. Comandos e vi o furriel Vasconcelos.
- Vamos a isso depressa, pá! Gritei-lhe a brincar.
- Ouvi agora uma coisa, não sei se é verdade.
- O que foi que ouviste?
- Ouvi dizer que o capitão João Bacar morreu!
Corri para o gabinete do capitão e vi o Sisseco.
- Sim, é verdade, o capitão morreu!
Sem demora corremos para o hospital. Quando chegámos, estava a entrar o General Spínola. Fomos atrás dele, até ao local onde repousava o corpo do nosso capitão. Foi o próprio general que levantou o lençol que cobria o cadáver. As lágrimas romperam pelos nossos olhos.
Terminou, neste dia, 16 de Abril de 1971, a história do capitão João Bacar Jaló .
Dirigi-me para a casa do capitão João Bacar (no Cupilon, nota do editor) e fiquei à espera do irmão dele, porque, entre nós, as famílias não podem ficar sem um homem em casa. E quando um dos nossos morre, é costume cada um de nós dar qualquer coisa, mesmo que a pessoa morta seja rica e ainda mais se o falecido tiver sido em vida boa pessoa. Então, cada um estava a dar dentro das suas possibilidades e foi nessa altura que entrou o tal velhote, de que já falei antes, o Mamadu Candé. Vi-o pôr uma nota de 100 escudos no cesto. Ficámos, uns momentos, a olhar um para o outro.
Mais tarde, perguntei-lhe por que razão tinha dado 100 escudos.
- Eu não queria o dinheiro, quando o capitão mo deu! Não aceitou o meu conselho e não é legítimo eu ficar com o dinheiro! Tive que o devolver.
Fiquei assim a compreender por que é o velhote não a queria, quando o João Bacar lhe deu a nota.
Seguem-se extractos do depoimento (gravado) do ex-Soldado Abdulai Djaló Cula (2), da 1ª CCmds, filho do Padre Central Muçulmano e Bissau
...ao amanhecer daquele dia (3), o Capitão João Bacar disse-me que ia morrer nesse dia. Chamei o Alferes Justo e contei-lhe a conversa do capitão.
- Como? Perguntou o alferes.
- Sonhei com a minha morte, respondeu o capitão.
Estávamos juntos, eu, Abdulai Djaló Cula, o Alferes Justo (Nascimento) e o Furriel Braima Bá (Baldé).
Não tinha ainda acabado de contar o sonho, vimos duas mulheres acompanhadas por uma criança. Traziam cestos com arroz à cabeça, que iam vender em Tite. Parámo-las e o capitão perguntou-lhes:
- Onde está o PAIGC?
- Eles dormiram aqui perto, devem estar ali em frente.
Tínhamos passado a noite, nós e eles, PAIGC, bem perto uns dos outros, talvez a pouco mais de duzentos metros. Nós estávamos muito desconfiados que eles andavam por ali e eles tinham a certeza onde nós estávamos. Por isso, durante a noite, tanto nós como eles evitámos fazer ruídos.
João Bacar deixou as mulheres irem à sua vida e decidiu preparar o ataque à zona onde desconfiávamos que eles estivessem. Aproximámo-nos com muito cuidado, chegámos ao local e vimos folhas estendidas no chão, que devem ter servido de camas. Vimos um resto de cigarro no chão, ainda a deitar fumo.
- Justo, procura nessa zona, ordenou o capitão.
O grupo do Alferes Justo, de cerca de vinte homens, começou a movimentar-se até desaparecerem da nossa vista. Soube, horas mais tarde, que, depois de vasculharem a zona, decidiram emboscar-se relativamente perto de nós.
João Bacar disse a um dos furriéis que lançasse sete granadas de morteiro 60 em cima da área, onde julgava estar o grupo do PAIGC. Mas o furriel só lançou uma. Vendo que era muito lento, o capitão preparou ele próprio sete granadas de morteiro e começou rapidamente a lançá-las.
Depois, montada a segurança, o capitão deslocou-se à tabanca com a intenção de avisar a população que devia sair das casas e fugir para a mata.
Entretanto o grupo do PAIGC foi-se aproximando de nós, sem nós nos apercebermos. O capitão pediu granadas de mão defensivas a Bailo Jau, este não tinha, foi o Fassene Sama que lhas passou para a mão.
João Bacar tinha acabado de tirar a cavilha de uma quando o PAIGC abriu fogo sobre as nossas posições. Ouviu-se um grito do Furriel Bacar Sissé, tinha sido atingido por estilhaços de uma granada de RPG, que desfizeram um baga-baga. O capitão e eu corremos para o ferido.
Vi o capitão baixar-se e, com a mão esquerda apanhar a arma do Bacar, enquanto mantinha a granada descavilhada apertada na mão direita. O capitão muito raramente andava com G-3, quase sempre levava a pistola e duas granadas de mão defensivas.
Passou por mim, tinha dado talvez dois ou três passos e avistámos um disparo do RPG. Eu estava bem abrigado, protegido por uma raiz de uma árvore. João Bacar ajoelhou-se instantaneamente, o rebentamento deu-se atrás de nós e depois mais rebentamentos, tudo muito rápido.
O capitão, que estava ajoelhado, a mão esquerda ocupada com a G-3, foi atingido no braço direito cuja mão segurava a granada sem cavilha. Perdeu força, não deve ter conseguido lançá-la e ela rebentou.
Saí da grande raiz que me servia de abrigo, a cerca de cinco metros, e comecei a puxar por ele. Ainda estava vivo. Arrastei-o para uma zona mais segura e ajoelhei-me. A troca de tiros e de granadas prosseguia. Pus a cabeça do capitão em cima das minhas pernas.
- Uai, Nene ! (- Ai, minha Mãe!)
A granada tinha-lhe arrancado a perna direita, a mão direita e esfacelou-lhe a parte direita do tronco. Estava a morrer o meu Capitão João Bacar Jaló.
O Furriel Lalo Bailo gritou em mandinga:
- Uai ‘nte Báma, capitom fata ! (- Ai, minha mãe, o meu capitão morreu!)
O Inimigo sabia o que estava a acontecer e intensificou ainda mais o fogo, enquanto o sentíamos mais perto. Era um grupo numeroso e chegámos a pensar que nos queriam apanhar à mão. Aos gritos chamei o Furriel Vicente Pedro da Silva (4):
- Meu furriel, querem apanhar-nos à mão!
A morte do nosso comandante estava a tocar-nos muito, o nosso moral estava em baixo e o grupo do PAIGC cheirava isso.
- Calma! Ouviu-se a voz do Furriel Vicente.
Agarrou-me e ao Vicente Malefo e a mais dois ou três, lançou uma granada de mão defensiva e gritou bem alto:
- Comandos ao ataque! Cada um dispara dois tiros seguidos de cada vez, tum-tum. Vamos apanhá-los à mão, não façam mais tiros agora!
E foi com os gritos do nosso furriel que começámos a avançar e a vê-los a retirar.
Depois, numa acalmia, pedimos as evacuações, enquanto nos movimentávamos com o corpo do nosso comandante e carregando os feridos mais graves, o Alferes Justo, que se tinha ferido no joelho ao servir-se dele para apoiar o morteiro, e os Furriéis Bacar Sissé e Dabho.
Quando atravessávamos a bolanha ouvimos o silvo de um Fiat, picou sobre nós, largou uma bomba que só estremeceu tudo à volta e levantou outra vez.
O Alferes Justo pegou no banana, o AVP-1, e conseguiu entrar em contacto com a esquadrilha. Que éramos nós e que precisávamos de um heli para evacuar os nossos feridos.
Momentos depois, talvez antes ainda das nove horas, fomos sobrevoados por dois, um armado e outro que pousou com uma enfermeira que os transportou para Bissau, para o Hospital Militar.
Quando regressávamos a Tite vinha ao nosso encontro uma unidade e, em coluna auto fomos transportados para o Inchudé e daqui seguimos numa lancha para Bissau.
Eu vinha com o camuflado empastelado do sangue do meu capitão. No cais, num ambiente de grande tristeza, aguardavam-nos as nossas famílias e muitos amigos nossos.
Três ou quatro dias depois, já não me lembro bem, foi o funeral do nosso comandante, que foi uma manifestação que nunca tinha visto.
Acaba aqui a história dessa grande figura humana, do grande fundador das milícias no sul, na sua terra de Catió. Quando lá estive com os “Fantasmas”, em 1965, com o Alferes Saraiva para operações no Como e em Cufar, o João Bacar escolheu milícias da sua confiança, para aprenderem a ser operacionais. O capitão entrou em dezenas de batalhas até acabar a sua vida numa simples patrulha de combate em Jufá em circunstâncias um pouco estranhas, no dia negro de 16 de Abril de 1971.
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Notas de vb:
(1). João Bacar Jaló nasceu em 2 de Outubro de 1929, em Cacine. Foi incorporado no Exército, para o qual se voluntariou, no dia 1 de Março de 1949. Em Junho de 1951 estava ao serviço da 2ª CCaç, em Bolama, quando terminou o seu primeiro período militar.
Nesse mesmo ano começou a trabalhar na Administração Civil, em Bissau. Em 1952 no Palácio do Governo e até 1958, sempre como funcionário da Administração Civil, em Bissalanca, Antula, Prábis e Safim.~
Entre 1958 e 1961 foi fiscal de fronteira no sul e em seguida desempenhou o cargo de comandante de ronda em Catió, que acumulou com as funções de oficial de diligências do Julgado Municipal.
Com o início da actividade militar do PAIGG, João Bacar, já com 33 anos, alistou-se novamente, como comandante de Caçadores Naturais da Guiné.
Foi graduado em alferes de 2ª linha em 8 de Junho de 1965. Depois foi nomeado comandante da Companhia de Milícias nº. 13 e, um ano depois foi promovido a tenente.
Depois de ter frequentado um curso de oficiais, João Bacar foi graduado em capitão e passou a comandar a 1ª CCmds Africanos.
Ao longo da sua vida militar recebeu numerosos louvores. Foram-lhe atribuídas duas Cruzes de Guerra e era Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
(2). O Soldado Abdulai Djaló Cula é natural de Bissau. Pertencia à equipa do Furriel Bacar Sissé que fazia parte do grupo de cerca de 40 homens que foram a Jufá, comandado pelo Capitão João Bacar.
(3) Havia a informação que um grupo do PAIGC ia passar a noite de 15 para 16 de Abril de 1971 a uma tabanca de balantas, em Jufá, na zona de Tite. O João Bacar estava com um grupo emboscado junto à tabanca. Durante a noite, os cães da tabanca não pararam de ladrar.
Quando amanheceu, João Bacar disse: “nós vamos ali à tabanca, conversamos com a população, mas não passámos dali. Porque num sono muito rápido que tive, sonhei que o PAIGC me prendera.
Amarraram-me, meteram-me num jipe, e eu consegui saltar do jipe em andamento. No chão, com as mãos e os pés atados não podia correr. O jipe fez marcha-atrás, voltaram a apanhar-me e meteram-me outra vez no carro. Quando o carro voltou a andar, seguraram-me, para não me deixarem mexer. O jipe arrancou e acordei".
Este sonho foi contado pelo João Bacar ao Furriel Braima Bá e ao Soldado Abdulai Djaló Cula, na manhã do dia em que morreu.
(4) O Furriel Vicente Pedro da Silva suicidou-se em Lisboa, por volta de 2004, muito devido ás precárias condições em que vivia e cansado da incompreensão que sentia por não ver reconhecido o seu estatuto de guineense, antigo combatente das Forças Armadas Portuguesas.