Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > O destacamento vai renascer das cinzas, depois do ataque de duas horas do PAIGC, na noite de 19 de Março de 1969.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Luís Casanova gostava de instantâneos, disparos ao sabor do quotidiano. Ele registou a minha cubata a partir de um local que era o fórum dos dias quentes, a cantina. A minha cubata fora o refúgio do Prof. Armando Cortesão, um dos mais eminentes cartógrafos mundiais. O cientista viveu alguns meses em Missirá, acompanhando na região do rio Gambiel uma plantação extensa de palmeiras de Samatra. Fui várias vezes a Gambiel, e lá terá lugar, na primeira semana de Janeiro de 69, um rencontro com uma força do PAIGC. Dormi até Março na cama do cientista, com um colchão de folhelho" (BS).
Foto e legenda: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Luís Casanova gostava de instantâneos, disparos ao sabor do quotidiano. Ele registou a minha cubata a partir de um local que era o fórum dos dias quentes, a cantina. A minha cubata fora o refúgio do Prof. Armando Cortesão, um dos mais eminentes cartógrafos mundiais. O cientista viveu alguns meses em Missirá, acompanhando na região do rio Gambiel uma plantação extensa de palmeiras de Samatra. Fui várias vezes a Gambiel, e lá terá lugar, na primeira semana de Janeiro de 69, um rencontro com uma força do PAIGC. Dormi até Março na cama do cientista, com um colchão de folhelho" (BS).
Foto e legenda: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1969 > O esatdo a que ficou reduzida a morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , depois do grande ataque ao destacamento em 19 Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, incluindo os seus haveres mais preciosos: os livros, os discos, os escritos, as cartas... Valeu-lhe a solidariedade do pessoal de Bambadinca, sede do comando e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70), e em especial do seu comandante, o tenente-coronel Pimentel Bastos.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
38ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (3). Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007.Texto enviado em 27 de Fvereiro de 2007.
Caro Luís, aqui vai a prosa da semana. Fotografias da Missirá calcinada tens tu, até comigo a fingir de construtor civil. Mal tinha acabdo de escrever este texto e descobri o louvor que foi dado ao Mamadu Camará, exactamente pelo conjunto da sua colaboração e onde se alude a um episódio que aqui se relata: Mamadu que nunca conduzira na vida salvou um Unimog de ficar esturricado. Seguem pelo correio os dois livros aqui mencionados e um envelope com correio da Cristina. Recebe um grande abraço do Mário.
Missirá renasce entre a lama e o cimento
por Beja Santos
Lá para o fim de Abril, caía a pique o dia, enquanto Gibrilo Embaló, Dauda Seidi, Uam Sambu, Nhaga Macque e Ieró Baldé amassam com os pés a nova lama que amanhã entrará numa singela forma de madeira, para fazer mais tijolos, no momento em que Cibo Indjai lança capim que reforçará essa lama e dará consistência aos tijolos que amanhã entrarão na dita forma sob a ameaça da época das chuvas que já se anunciou, e quando Quebá Soncó ajudado pelo seu filho Quecuta faz uma aspersão de água para que a massa barrenta se torne mais maleável, sinto-me inebriado e festivo pela epopeia do renascimento de Missirá. A minha casa desapareceu, vivo temporariamente no abrigo do Casanova, incólume às desvastações daquela noite de 19 de Março passado. Inebriado estou, e vou saudar estes operários e caçadores nativos, trolhas, heróis da guerra e da paz.
Sento-me, acendo o candeeiro de petróleo, olho fascinado para a folha A4 e escrevo Um relatório de Abril, um simulacro de poema para falar da gesta em que saímos das cinzas, combatemos e felicitamos o Cuor:
"Escrevo-vos em júbilo vendo as papaias a crescer e quando um sol poente incendeia as cores das novas moranças. Estas casas são, por ora, a lama e cibes engavinhados da bolanha onde os nossos tios mandingas continuam a cultivar a mancarra e a cana. No ar, há uma nostalgia da sumaúma que esvoaça nas crinas de um bissilão, aquela árvore de sangue forte que me dá coragem neste tempo de entusiasmo. Mãos pretas enchem as malhas de cimento, rasgam as portas que abrem para o arame farpado. Cada porta nova fala em nome de 17 moranças calcinadas. Anoiteceu e já não posso ver as enxadas que ribombam nos novos espaços da vida. Há horas em que são soldados, vão longe daqui e vigiam o rio, para que os barcos passem. Há horas em que são agricultores alçados em construtores, perfilando tijolos de adobe, reconstruindo com sorrisos, afastando os medonhos presságios. São seis horas da tarde, há um vento estrangeiro que anuncia uma luz de chumbo que vai acobertar por algum tempo estes criadores de uma tão humilde criação. Explico: até aos joelhos amassa-se a lama, enquanto ao lado se lavra a golpes de catana um cibe, se afaga uma nova parede e, como num prodígio de biologia, a parede sobe onde antes estavam naves chamuscadas. Agora, Sadjo amigo, nosso porta-bandeira, Cuor rima com suor, terra de seda oleaginosa. Escrevo-vos com a espingarda ao lado e um candeeiro de petróleo que desanuvia a sombra e ilumina o arvoredo deste gigante equatorial onde habito. Escrevo-vos para dizer que todos os olhos despontam em fósforo, nesa terra côncava vive-se uma rapsódia de adolescentes e lembro o Abril da minha Pátria.".
A minha mãe leu e ficou indecisa. Mais tarde, quando o Furriel Casanova a foi visitar, questionará:
- Não percebo a guerra que vocês fazem. O meu filho falou-me num soldado que era porta-bandeira. Não é uma loucura andar pela mata com um porta-bandeira?.
A gente de Madina/Belel trouxe canhões sem recuo e balas incendiárias
Missirá renasce entre a lama e o cimento
por Beja Santos
Lá para o fim de Abril, caía a pique o dia, enquanto Gibrilo Embaló, Dauda Seidi, Uam Sambu, Nhaga Macque e Ieró Baldé amassam com os pés a nova lama que amanhã entrará numa singela forma de madeira, para fazer mais tijolos, no momento em que Cibo Indjai lança capim que reforçará essa lama e dará consistência aos tijolos que amanhã entrarão na dita forma sob a ameaça da época das chuvas que já se anunciou, e quando Quebá Soncó ajudado pelo seu filho Quecuta faz uma aspersão de água para que a massa barrenta se torne mais maleável, sinto-me inebriado e festivo pela epopeia do renascimento de Missirá. A minha casa desapareceu, vivo temporariamente no abrigo do Casanova, incólume às desvastações daquela noite de 19 de Março passado. Inebriado estou, e vou saudar estes operários e caçadores nativos, trolhas, heróis da guerra e da paz.
Sento-me, acendo o candeeiro de petróleo, olho fascinado para a folha A4 e escrevo Um relatório de Abril, um simulacro de poema para falar da gesta em que saímos das cinzas, combatemos e felicitamos o Cuor:
"Escrevo-vos em júbilo vendo as papaias a crescer e quando um sol poente incendeia as cores das novas moranças. Estas casas são, por ora, a lama e cibes engavinhados da bolanha onde os nossos tios mandingas continuam a cultivar a mancarra e a cana. No ar, há uma nostalgia da sumaúma que esvoaça nas crinas de um bissilão, aquela árvore de sangue forte que me dá coragem neste tempo de entusiasmo. Mãos pretas enchem as malhas de cimento, rasgam as portas que abrem para o arame farpado. Cada porta nova fala em nome de 17 moranças calcinadas. Anoiteceu e já não posso ver as enxadas que ribombam nos novos espaços da vida. Há horas em que são soldados, vão longe daqui e vigiam o rio, para que os barcos passem. Há horas em que são agricultores alçados em construtores, perfilando tijolos de adobe, reconstruindo com sorrisos, afastando os medonhos presságios. São seis horas da tarde, há um vento estrangeiro que anuncia uma luz de chumbo que vai acobertar por algum tempo estes criadores de uma tão humilde criação. Explico: até aos joelhos amassa-se a lama, enquanto ao lado se lavra a golpes de catana um cibe, se afaga uma nova parede e, como num prodígio de biologia, a parede sobe onde antes estavam naves chamuscadas. Agora, Sadjo amigo, nosso porta-bandeira, Cuor rima com suor, terra de seda oleaginosa. Escrevo-vos com a espingarda ao lado e um candeeiro de petróleo que desanuvia a sombra e ilumina o arvoredo deste gigante equatorial onde habito. Escrevo-vos para dizer que todos os olhos despontam em fósforo, nesa terra côncava vive-se uma rapsódia de adolescentes e lembro o Abril da minha Pátria.".
A minha mãe leu e ficou indecisa. Mais tarde, quando o Furriel Casanova a foi visitar, questionará:
- Não percebo a guerra que vocês fazem. O meu filho falou-me num soldado que era porta-bandeira. Não é uma loucura andar pela mata com um porta-bandeira?.
A gente de Madina/Belel trouxe canhões sem recuo e balas incendiárias
Voltando atrás lembro-me da conversa que tive com o Queta Baldé acerca dos acontecimentos de 19 de Março. São 9 da manhã, o Queta estava bem em frente a mim, as mãos circulam no ar, ritmam a cadência viva expressa no olhar de quem tudo registou, para nosso gáudio:
-Nosso alfero, não pode imaginar a sorte que teve a gente de Madina. O dia tinha estado muito quente, não havia aragem na noite. Trouxeram canhões sem recuo e balas incendiárias, puseram-se a 500 metros mesmo em cima da estrada, entre o quartel e a fonte de Cancumba, junto ao cemitério mandinga. A primeira roquetada foi sobre a sua casa que explodiu minutos depois, pois o alferes Reis tinha lá metido seis caixas com granadas de bazuca. Foram duas horas de ataque. As balas incendiárias queimaram tudo, o calor era um inferno. Eu fui para a metralhadora, no abrigo do Teixeira das transmissões e ali estive durante as duas horas do ataque. O Campino foi o herói, como o Mamadu Djau, sempre junto ao arame farpado, à procura da saída do fogo do nosso inimigo. O Mamadu Camará que não sabia conduzir foi tirar o Unimog grande que estava parado junto do combustível e andou com o Unimog pela parada. Mas quem mais lutou foi o Cherno que chegara na véspera de Bissau. Vi-o todo molhado de canseira a responder com o morteiro até se acabarem as granadas. Na manhã seguinte, quando fizemos o reconhecimento vimos muito sangue da gente de Madina, eles perderam gente.
De facto, o PAIGC não saiu completamente em glória deste ataque a Missirá. No fim de Março, fui chamado a Bambadinca para conhecer um desertor de Madina que tinha sido trazido pelo chefe de tabanca de Mero. As notícias eram importantes para mim, aquele enorme balanta falou calmamente na sua língua nativa e Nhaga Macque traduziu:
Madina/Belel insistia em armadilhar todos os trilhos que tínhamos descoberto, alterando os itinerários até Mato de Cão, Canturé e Nhabijões; houvera mortes e feridos no ataque de Março e Corca Djaló, o Comandante de Operação, ficara furioso por só ter sabido mais tarde que as munições em Missirá estavam praticamente esgotadas ao fim daquele tremendo ataque; Madina/Belel ia receber reforços para aumentar a pressão sobre Missirá e Finete.
Não valorizei nem desvalorizei estas informações, sendo céptico destas apresentações espontâneas de desertores, sabe-se lá se novos informadores legitimados em Santa Helena ou nos Nhabijões. Mas foi este informador que me fez estar atento aos sinais de presença humana e animal que eu ia encontrando nos nossos trilhos mais batidos, até que um dia descobri que valia a pena patrulhar picadas de outrora. Vim a ter surpresas, como mais tarde aqui se contará.
-Nosso alfero, não pode imaginar a sorte que teve a gente de Madina. O dia tinha estado muito quente, não havia aragem na noite. Trouxeram canhões sem recuo e balas incendiárias, puseram-se a 500 metros mesmo em cima da estrada, entre o quartel e a fonte de Cancumba, junto ao cemitério mandinga. A primeira roquetada foi sobre a sua casa que explodiu minutos depois, pois o alferes Reis tinha lá metido seis caixas com granadas de bazuca. Foram duas horas de ataque. As balas incendiárias queimaram tudo, o calor era um inferno. Eu fui para a metralhadora, no abrigo do Teixeira das transmissões e ali estive durante as duas horas do ataque. O Campino foi o herói, como o Mamadu Djau, sempre junto ao arame farpado, à procura da saída do fogo do nosso inimigo. O Mamadu Camará que não sabia conduzir foi tirar o Unimog grande que estava parado junto do combustível e andou com o Unimog pela parada. Mas quem mais lutou foi o Cherno que chegara na véspera de Bissau. Vi-o todo molhado de canseira a responder com o morteiro até se acabarem as granadas. Na manhã seguinte, quando fizemos o reconhecimento vimos muito sangue da gente de Madina, eles perderam gente.
De facto, o PAIGC não saiu completamente em glória deste ataque a Missirá. No fim de Março, fui chamado a Bambadinca para conhecer um desertor de Madina que tinha sido trazido pelo chefe de tabanca de Mero. As notícias eram importantes para mim, aquele enorme balanta falou calmamente na sua língua nativa e Nhaga Macque traduziu:
Madina/Belel insistia em armadilhar todos os trilhos que tínhamos descoberto, alterando os itinerários até Mato de Cão, Canturé e Nhabijões; houvera mortes e feridos no ataque de Março e Corca Djaló, o Comandante de Operação, ficara furioso por só ter sabido mais tarde que as munições em Missirá estavam praticamente esgotadas ao fim daquele tremendo ataque; Madina/Belel ia receber reforços para aumentar a pressão sobre Missirá e Finete.
Não valorizei nem desvalorizei estas informações, sendo céptico destas apresentações espontâneas de desertores, sabe-se lá se novos informadores legitimados em Santa Helena ou nos Nhabijões. Mas foi este informador que me fez estar atento aos sinais de presença humana e animal que eu ia encontrando nos nossos trilhos mais batidos, até que um dia descobri que valia a pena patrulhar picadas de outrora. Vim a ter surpresas, como mais tarde aqui se contará.
Chego de Bissau a 21 de Março de 1969
A Missirá onde eu chego na tarde de 21 de Março é um aquartelamento desolador, marcado pelo negro dos incêndios, de pé estão os abrigos de chapa, a cantina, a cozinha e messe, o balneário e as moranças do régulo que escaparam pela distância de todas as outras moranças que desapareceram com o vento assassino que subitamente soprou e se propagou às habitações dos caçadores nativos e suas famílias.
Quem me recebe é Bacari Soncó que substitui o régulo, ainda hospitalizado. O Reis, que me substituiu enquanto fui operado, já está em Bambadinca e jura não voltar a Missirá. Quando falo em Queta do alferes Reis, ele lança uma casquinada ainda maior daquela que teve quando falou dos armadilhamentos do fim do ano:
-Nosso alfero era muito divertido. Levava aqueles papéis que cravava nas árvores onde escrevia que tinha ali passado o Alferes Reis e tratava-os por turras paneleiros.
À entrada do quartel verifico que o arame farpado voltou a cair, vão ser mais semanas de tesoura corta-arame e Unimogs carregados de rolos e a força bruta a esticar o arame. Ardeu tudo, até pás e picaretas, os fardamentos, armas, os bens dos soldados e suas famílias. Antes de falar à população pedi para ir ver onde morreu Sadjo Baldé, que eu fora buscar ao Cossé há tão pouco tempo na companhia da mulher. Pelo Queta, descobri mais tarde, fora uma relação horrível já que a mulher amaldiçoara a sua compra, estando prometida a outro homem.
Depois, entrei sozinho na minha cubata fixando o olhar naquelas cinzas onde outrora estava a minha riqueza. Só restavam os ferros da cama onde dormira o Prof. Armando Cortesão. Atrás de mim, Cherno com a voz embargada pede desculpa por não ter podido salvar nada. Rezo a Deus pelo entusiasmo que tenho, pela alegria que sinto, em ter voltado a Missirá com o propósito de a ver renascer. Dirijo-me à população e a todos os soldados agradecendo-lhes o modo como lutaram e prometo-lhes que Missirá vai reaparecer muito em breve, pedindo a todos um esforço incomum nos próximos meses.
Depois do jantar, reúno os três furriéis (Casanova, Pires e Pina, recentemente chegado) conjuntamente com os cabos.
- Vamos continuar a ir todos os dias a Mato de Cão, Madina/Belel não vai ficar tranquila pois continuaremos ofensivos, e este espaço vai sair das cinzas. Haverá uma rígida divisão de tarefas, a população civil contribuirá para a reconstrução das moranças, tenho a promessa de que o cimento e outros materiais de engenharia vão começar a chegar para a semana.
Quem me recebe é Bacari Soncó que substitui o régulo, ainda hospitalizado. O Reis, que me substituiu enquanto fui operado, já está em Bambadinca e jura não voltar a Missirá. Quando falo em Queta do alferes Reis, ele lança uma casquinada ainda maior daquela que teve quando falou dos armadilhamentos do fim do ano:
-Nosso alfero era muito divertido. Levava aqueles papéis que cravava nas árvores onde escrevia que tinha ali passado o Alferes Reis e tratava-os por turras paneleiros.
À entrada do quartel verifico que o arame farpado voltou a cair, vão ser mais semanas de tesoura corta-arame e Unimogs carregados de rolos e a força bruta a esticar o arame. Ardeu tudo, até pás e picaretas, os fardamentos, armas, os bens dos soldados e suas famílias. Antes de falar à população pedi para ir ver onde morreu Sadjo Baldé, que eu fora buscar ao Cossé há tão pouco tempo na companhia da mulher. Pelo Queta, descobri mais tarde, fora uma relação horrível já que a mulher amaldiçoara a sua compra, estando prometida a outro homem.
Depois, entrei sozinho na minha cubata fixando o olhar naquelas cinzas onde outrora estava a minha riqueza. Só restavam os ferros da cama onde dormira o Prof. Armando Cortesão. Atrás de mim, Cherno com a voz embargada pede desculpa por não ter podido salvar nada. Rezo a Deus pelo entusiasmo que tenho, pela alegria que sinto, em ter voltado a Missirá com o propósito de a ver renascer. Dirijo-me à população e a todos os soldados agradecendo-lhes o modo como lutaram e prometo-lhes que Missirá vai reaparecer muito em breve, pedindo a todos um esforço incomum nos próximos meses.
Depois do jantar, reúno os três furriéis (Casanova, Pires e Pina, recentemente chegado) conjuntamente com os cabos.
- Vamos continuar a ir todos os dias a Mato de Cão, Madina/Belel não vai ficar tranquila pois continuaremos ofensivos, e este espaço vai sair das cinzas. Haverá uma rígida divisão de tarefas, a população civil contribuirá para a reconstrução das moranças, tenho a promessa de que o cimento e outros materiais de engenharia vão começar a chegar para a semana.
A solidariedade do Pimbas e do BCAÇ 2852
Alguém me entrega uma carta que o Pimbas deixara para mim. Sim, o Pimbas viera de helicóptero na manhã seguinte, trazendo com o Capitão Neves o primeiro reabastecimento de munições. O Queta já me tinha dito:
- Ao fim de duas horas de ataque, quando começámos a ver que os cartuchos iam acabar, um grupo de soldados foi buscar todos os velhos cartuchos e decidimos que se o ataque continuasse os deixávamos entrar e aquelas últimas balas seriam para eles.
O Pimbas estava electrizado com aquela ruína, visitou demoradamente tudo, trouxe um verdadeiro consolo, depois, sentado na nossa messe redigiu uma linda mensagem:
- Não estou preocupado contigo, pois sei que vais levar a carta a Garcia. Não merecias esta chatice, mas a guerra prega-nos estas partidas. De tudo quanto precisares e estiver ao nosso alcance, conta connosco. Recebe um abraço amigo.
Precisávamos de tudo. Quando cambámos o Geba, éramos uma horda de indigentes, havia mais gente a vestir civil que militar, em chanatos, camisas interiores, calções fulas, enfim o tal circo referido pelo homem grande de Bissau. Na CCS, foi-nos oferecido todo o fardamento existente, a começar pela roupa dos falecidos no rio Corubal. Nesse dia não precisei de pilhar nada, deram-me roupa interior e exterior, com uma enorme dignidade alguém trouxe um subscrito com dinheiro e disse-me:
- É uma recolha pobrezinha para ajudares quem tu quiseres.
Aquele dinheiro deu-me muito jeito para comprar desde candeeiros a sabão, artigos de costura e tecidos para as mulheres e crianças. Foram tempos muitíssimo difíceis mas numa carta de 6 de Maio informo para Lisboa:
"Já ninguém anda nú, até os alfaiates de Bambadinca fizeram roupa sem pedir dinheiro. Começa a choviscar mas ja temos empilhados e salvaguardados milhares de blocos. Faltava-nos arroz e deram-nos o que apanharam no Fiofioli durante uma grande operação. Chegaram 500 sacos de cimento, todo o material de aquartelamento, reparámos o que era possível reparar, o resto aparece de raíz".
Nem tudo é gesta ou me deixa feliz: Jolá Indjai vai para Lisboa, julgava-se que era um vírus horrível, descobriu-se que estava tuberculoso. Só o voltarei a ver em Agosto de 1970, uma hora antes de eu embarcar no Carvalho Araújo onde ele me consolou:
- Agradeço o que a sua família fez por mim. O meu maior orgulho, aquilo que direi aos meus filhos é que pude combater a seu lado".
Um dia, já em Abril, descobrirei que me roubaram 1500 escudos, o que restava das minhas economias, as viaturas continuam a empanar, o Rui Gamito veio cá e deu conselhos de engenharia mas contínuamos a trabalhar sozinhos. Todas as noites trabalho com o Pires no inferno dos autos de abate, explicando pormenorizadamente o material perdido, desde camas a capacetes, numa operação interminável. A espingarda do Teixeira que tinha sido roubada por alguém que seguramente deixara a sua naquele intempestivo ataque de abelhas, durante a Anda Cá, desapareceu em auto de abate, numa descrição forjada de ferros calcinados. Continuo a trabalhar no auto da granada de Fatu Conté, expedindo deprecadas para militares ex-militares que irão ser sobressaltados quanto às ocorrências daquela granada incendiária que explodiu no reboque, em Finete, pelas 2h da tarde de 19 de Abril de 1967. Enfim, este é o quotidiano da guerra.
A informação do balanta que se apresentou em Mero pode não ser de todo fidedigna, mas a verdade é que vamos encontrando pegadas no chão enlameado à volta de Mato de Cão, e passando as semanas aumentam os indícios de bostas de vaca. Ninguém dá explicação do que se está a passar, não sei como actuar e onde emboscar os que vêm abastecer-se aos Nhabijões e a Mero. Até que num amanhecer olho para a carta do Cuor, vejo a extensa linha vermelha de uma estrada que no passado permitia vir de Bissau até Porto Gole, daqui ao Enxalé e daqui até Geba e Bafatá e perguntei-me:
- Não será que o meu inimigo está exactamente a fazer aquilo que era impensável, ou seja a usar a estrada com toda a calma e a seguir a picada que julgávamos abandonada até Madina?
Iremos começar a farejar e em fins de Abril descobriremos que a gente de Madina/Belel tinha de facto abandonado os itinerários antigos, agora deslocava-se pela estrada tida por abandonada. Feita a descoberta, iremos pacientemente emboscar. Os frutos surgirão no fim de Maio, exactamente na véspera do ataque a Bambadinca.
E portanto, a vida continua. O Casanova , com um olhar cúmplice, antes de partir para férias disse-me:
- Perdeu todos os seus discos mas guardei-lhe uma ópera cantada pela Maria Callas, a Tosca.
Estou sem dinheiro para comprar gira-discos, leio furiosamente o que levei para Bissau, o que comecei a comprar em Bissau, refazendo a minha bilbioteca. O Barco da Morte, por Agatha Christie, é um policial apaixonante, que ainda hoje releio sem nenhuma perda de surpresa. Uma multimilionária rouba o namorado à sua melhor amiga e vai passar a lua de mel a descer o Nilo. O agrupamento humano que se junta indicia alta tensão: a a antiga amiga da multimilionária aparece inesperadamente em todos os percursos da viagem; arrivistas, ladrões de alta roda, escritores exóticos e um detective lendário, Hercule Poirot, são protagonistas de vários dramas até chegarmos a cinco assassinatos e a um grande desfecho em que o que víamos escrito por Agatha Christie era totalmente o inverso do que realmente se estava a passar. A capa de Cândido da Costa Pinto é hoje um ícone do grafismo glorioso desse tempo.
- Ao fim de duas horas de ataque, quando começámos a ver que os cartuchos iam acabar, um grupo de soldados foi buscar todos os velhos cartuchos e decidimos que se o ataque continuasse os deixávamos entrar e aquelas últimas balas seriam para eles.
O Pimbas estava electrizado com aquela ruína, visitou demoradamente tudo, trouxe um verdadeiro consolo, depois, sentado na nossa messe redigiu uma linda mensagem:
- Não estou preocupado contigo, pois sei que vais levar a carta a Garcia. Não merecias esta chatice, mas a guerra prega-nos estas partidas. De tudo quanto precisares e estiver ao nosso alcance, conta connosco. Recebe um abraço amigo.
Precisávamos de tudo. Quando cambámos o Geba, éramos uma horda de indigentes, havia mais gente a vestir civil que militar, em chanatos, camisas interiores, calções fulas, enfim o tal circo referido pelo homem grande de Bissau. Na CCS, foi-nos oferecido todo o fardamento existente, a começar pela roupa dos falecidos no rio Corubal. Nesse dia não precisei de pilhar nada, deram-me roupa interior e exterior, com uma enorme dignidade alguém trouxe um subscrito com dinheiro e disse-me:
- É uma recolha pobrezinha para ajudares quem tu quiseres.
Aquele dinheiro deu-me muito jeito para comprar desde candeeiros a sabão, artigos de costura e tecidos para as mulheres e crianças. Foram tempos muitíssimo difíceis mas numa carta de 6 de Maio informo para Lisboa:
"Já ninguém anda nú, até os alfaiates de Bambadinca fizeram roupa sem pedir dinheiro. Começa a choviscar mas ja temos empilhados e salvaguardados milhares de blocos. Faltava-nos arroz e deram-nos o que apanharam no Fiofioli durante uma grande operação. Chegaram 500 sacos de cimento, todo o material de aquartelamento, reparámos o que era possível reparar, o resto aparece de raíz".
Nem tudo é gesta ou me deixa feliz: Jolá Indjai vai para Lisboa, julgava-se que era um vírus horrível, descobriu-se que estava tuberculoso. Só o voltarei a ver em Agosto de 1970, uma hora antes de eu embarcar no Carvalho Araújo onde ele me consolou:
- Agradeço o que a sua família fez por mim. O meu maior orgulho, aquilo que direi aos meus filhos é que pude combater a seu lado".
Um dia, já em Abril, descobrirei que me roubaram 1500 escudos, o que restava das minhas economias, as viaturas continuam a empanar, o Rui Gamito veio cá e deu conselhos de engenharia mas contínuamos a trabalhar sozinhos. Todas as noites trabalho com o Pires no inferno dos autos de abate, explicando pormenorizadamente o material perdido, desde camas a capacetes, numa operação interminável. A espingarda do Teixeira que tinha sido roubada por alguém que seguramente deixara a sua naquele intempestivo ataque de abelhas, durante a Anda Cá, desapareceu em auto de abate, numa descrição forjada de ferros calcinados. Continuo a trabalhar no auto da granada de Fatu Conté, expedindo deprecadas para militares ex-militares que irão ser sobressaltados quanto às ocorrências daquela granada incendiária que explodiu no reboque, em Finete, pelas 2h da tarde de 19 de Abril de 1967. Enfim, este é o quotidiano da guerra.
A informação do balanta que se apresentou em Mero pode não ser de todo fidedigna, mas a verdade é que vamos encontrando pegadas no chão enlameado à volta de Mato de Cão, e passando as semanas aumentam os indícios de bostas de vaca. Ninguém dá explicação do que se está a passar, não sei como actuar e onde emboscar os que vêm abastecer-se aos Nhabijões e a Mero. Até que num amanhecer olho para a carta do Cuor, vejo a extensa linha vermelha de uma estrada que no passado permitia vir de Bissau até Porto Gole, daqui ao Enxalé e daqui até Geba e Bafatá e perguntei-me:
- Não será que o meu inimigo está exactamente a fazer aquilo que era impensável, ou seja a usar a estrada com toda a calma e a seguir a picada que julgávamos abandonada até Madina?
Iremos começar a farejar e em fins de Abril descobriremos que a gente de Madina/Belel tinha de facto abandonado os itinerários antigos, agora deslocava-se pela estrada tida por abandonada. Feita a descoberta, iremos pacientemente emboscar. Os frutos surgirão no fim de Maio, exactamente na véspera do ataque a Bambadinca.
E portanto, a vida continua. O Casanova , com um olhar cúmplice, antes de partir para férias disse-me:
- Perdeu todos os seus discos mas guardei-lhe uma ópera cantada pela Maria Callas, a Tosca.
Estou sem dinheiro para comprar gira-discos, leio furiosamente o que levei para Bissau, o que comecei a comprar em Bissau, refazendo a minha bilbioteca. O Barco da Morte, por Agatha Christie, é um policial apaixonante, que ainda hoje releio sem nenhuma perda de surpresa. Uma multimilionária rouba o namorado à sua melhor amiga e vai passar a lua de mel a descer o Nilo. O agrupamento humano que se junta indicia alta tensão: a a antiga amiga da multimilionária aparece inesperadamente em todos os percursos da viagem; arrivistas, ladrões de alta roda, escritores exóticos e um detective lendário, Hercule Poirot, são protagonistas de vários dramas até chegarmos a cinco assassinatos e a um grande desfecho em que o que víamos escrito por Agatha Christie era totalmente o inverso do que realmente se estava a passar. A capa de Cândido da Costa Pinto é hoje um ícone do grafismo glorioso desse tempo.
Platero... e Eu
Li também Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, a história do burro mais humano da literatura mundial:
"Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro. Come o que eu lhe dou. Gosta das tangerinas, das uvas moscatéis, todas de âmbar, dos figos roxos, com sua cristalina gotita de mel. É terno e mimoso como um menino, como uma menina...; mas forte e seco como de pedra. Quando nele passo, aos domingos, pelas últimas ruelas da aldeia, os camponeses, vestidos de lavado e vagarosos param a olhá-lo: - Tem aço... Tem aço. Aço e prata de luar ao mesmo tempo."
Platero brinca com os meninos, passeia-se pelos campos, deslumbra-se com a chegada da Primavera, é o amigo mais fiel do seu dono, a quem o autor chama O Louco: "Vestido de luto, com a minha barba nazarena, e o meu pequeno chapéu negro devo ter um estranho aspecto cavalgando na macieza cinzenta de Platero. Um burro que brinca enquanto o dono lê clássicos e contempla a lua. Um dono amigo que lhe tira os espinhos quando Platero começa a coxear. Relação fecunda e cúmplice, que atravessa as quatro estaçõess do ano e várias ciclos da vida. Platero relincha quando depois das lenta madrugadas de Inverno chega o tempo de floração. Até que um dia esse bicho humanizado morre aos olhos do veterinário impotente para o fazer regressar à vida: "O seu pêlo eriçado parecia o cabelo traçado das velhas bonecas, que cai numa poeirenta tristeza quando se lhe toca. No curral silencioso, acendendo-se sempre que passava pelo raio de sol do postigo, revoava uma bela borboleta tricolor." A edição de Platero ainda é mais preciosa com os desenhos belíssimos de Bernardo Marques.
Este mês de Março é de labor, entre demolições e construções. Não há férias e dissuado a Cristina de vir até à Guiné, sabe-se lá com que tortura estamos a pagar esta nossa separação. É um tempo de promessas, um tempo único, irrepetível. O leitor que se acautele pois vamos falar de trivialidades, de peças para o Unimog que não chegam, de falta de arroz, o Carlos Sampaio vai partir para Moçambique, enquanto eu faço de mestre de obras uma parte do meu pelotão vai até à Ponta do Inglês onde há um golpe de mão bem sucedido sem sangue e com a resignação dos capturados. Lá para Junho caio inanimado de exaustão e o David Payne põe-me a caldos e repouso profundo. Mas Missirá já renasceu.
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Nota de L.G.:
"Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro. Come o que eu lhe dou. Gosta das tangerinas, das uvas moscatéis, todas de âmbar, dos figos roxos, com sua cristalina gotita de mel. É terno e mimoso como um menino, como uma menina...; mas forte e seco como de pedra. Quando nele passo, aos domingos, pelas últimas ruelas da aldeia, os camponeses, vestidos de lavado e vagarosos param a olhá-lo: - Tem aço... Tem aço. Aço e prata de luar ao mesmo tempo."
Platero brinca com os meninos, passeia-se pelos campos, deslumbra-se com a chegada da Primavera, é o amigo mais fiel do seu dono, a quem o autor chama O Louco: "Vestido de luto, com a minha barba nazarena, e o meu pequeno chapéu negro devo ter um estranho aspecto cavalgando na macieza cinzenta de Platero. Um burro que brinca enquanto o dono lê clássicos e contempla a lua. Um dono amigo que lhe tira os espinhos quando Platero começa a coxear. Relação fecunda e cúmplice, que atravessa as quatro estaçõess do ano e várias ciclos da vida. Platero relincha quando depois das lenta madrugadas de Inverno chega o tempo de floração. Até que um dia esse bicho humanizado morre aos olhos do veterinário impotente para o fazer regressar à vida: "O seu pêlo eriçado parecia o cabelo traçado das velhas bonecas, que cai numa poeirenta tristeza quando se lhe toca. No curral silencioso, acendendo-se sempre que passava pelo raio de sol do postigo, revoava uma bela borboleta tricolor." A edição de Platero ainda é mais preciosa com os desenhos belíssimos de Bernardo Marques.
Este mês de Março é de labor, entre demolições e construções. Não há férias e dissuado a Cristina de vir até à Guiné, sabe-se lá com que tortura estamos a pagar esta nossa separação. É um tempo de promessas, um tempo único, irrepetível. O leitor que se acautele pois vamos falar de trivialidades, de peças para o Unimog que não chegam, de falta de arroz, o Carlos Sampaio vai partir para Moçambique, enquanto eu faço de mestre de obras uma parte do meu pelotão vai até à Ponta do Inglês onde há um golpe de mão bem sucedido sem sangue e com a resignação dos capturados. Lá para Junho caio inanimado de exaustão e o David Payne põe-me a caldos e repouso profundo. Mas Missirá já renasceu.
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Nota de L.G.: