segunda-feira, 8 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4479: História da CCAÇ 2679 (19): O adeus a Piche (José Manuel M. Dinis)

1. José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, em 4 de Junho de 2009 enviou-nos o 19.º episódio da História da sua Unidade.


O adeus a Piche

No regresso a Piche encontrámos o Alferes Lopes, rendição individual com destino ao Foxtrot, em substituição do Guerra. A primeira impressão revelou um individúo humilde, nervoso, fraca figura. O conhecimento seguinte foi o de um jovem com formação seminarista e recém-casado. Nas conversas denunciava nervosismo e receios, que a falta de voz mais acentuava. O pessoal vinha com larachas sobre o novo alferes, comentando o aspecto e o comportamento, estabelecendo as diferenças, inevitavelmente, com o Eduardo Guerra, mas logo lhes chamei a atenção, que fossem respeitadores e não se armassem em espertos, feitos veteranos, pois também já os vira acagaçados. A relativa veterania, uma ou outra mina detectada, as flagelações sofridas e o relativo àvontade que tínhamos atingido, não eram uma mais-valia de destaque.

Quando saímos para o mato, perguntei ao Alferes onde queria colocar-se. Perguntou a minha opinião e dei-lha, que se mantivesse perto de mim. Achei que se ele quisesse trocar alguma impressão, seria melhor andarmos perto um do outro. Chovia, e a capa desmesurada acentuava-lhe a pequena estatura.

No mato quase não falara, mas no aquartelamento manifestava a grande apreensão e o azar por ter ido dar à Guiné. Procurava desabafar. Bem, desse azar queixam-se milhares, devo ter respondido para não alimentar queixumes.

Entretanto, em Piche a vida prosseguia com eventos. Foi inaugurada a piscina, ou melhor, no dia aprazado para a inauguração, não foi possível por falta de água, mas o problema foi resolvido e o evento terá acontecido pouco depois. Refiro-me assim, pois não tive ocasião de ir a banhos, na medida em que estava quase a partir para férias e mantive actividade operacional intensa. Mas participei na futebolada de inauguração prévia do campo de futebol de salão.

Terá sido iniciativa do Drácula? Ou do Major, Segundo Comandante, esse praticante de desportos? Ambas as obras foram executadas pelo pessoal do BArt e desejo que tenham proporcionado bons momentos de descontração e camaradagem.

Nesta foto, distinguem-se em baixo: de tronco nú, o Zé Rocha, no 5.º lugar o Nogueira, e a antecedê-lo, parece-me o Águas. Em pé, do lado direito, Dinis e Costa.


Férias

E aconteceu. Com cinco meses de comissão, antes que fosse tarde, parti para Bissau. Instalei-me no Grande Hotel. Dirigi-me à delegação da companhia aérea para levantar o bilhete. E deambulei durante dois dias, à civil.

O hotel, o melhor de Bissau, tinha um preço aproximado do praticado pelo Tivoli, em Lisboa, pouco mais de duzentos escudos, o que achei fantástico. E eram tão diferentes, se eram! Lá, no calor abafado dos trópicos, não havia ar condicionado. Suspensas do tecto, as ventoínhas redemoinhavam na tentativa de refrescar corpos e almas. Com algum insucesso. No quarto, modestíssimo e de parca dimensão, havia outra ventoínha de pé alto, com diferentes velocidades, luxo dos luxos, que fustigava o corpo para amenizar a canícula e impedia a entrada de mosquitos. Qualquer papel voava. Parecia o Guincho em dia de vento.

A arquitectura reflectia um estilo colonial de meados do século, uma disposição periférica em quadrado, por onde se distrubuíam, a recepção os quartos e a sala de refeições. À frente, ladeando a entrada sob a cobertura, havia duas varandas que lhe marcavam a imagem da fachada principal. No espaço interior do quadrado em pátio, situavam-se as casas de banho, a cozinha, a lavandaria e dependências. Não havia casas de banho privativas. Em redor do edíficio, de rés-do-chão, um jardim relvado, com arbustos e árvores tropicais, constituía uma bonita moldura. Boa nota era para o serviço de bar nas varandas-esplanadas, onde as coronelas poisavam durante as tardes..

A primeira saída em Bissau surpreendeu-me pela minha reacção à observação de mulheres brancas, em geral jovens, as mulheres dos militares. Logo às primeiras, dei comigo a parar diante de um casal de braço dado, a olhar para a senhora como um patarata.

Fui a uma loja comprar uma camisa, e também me surpreendi à vista das Lacoste, um avanço da civilização burguesa a dois passos do fim do mundo. E regalei-me a comer peixe e marisco nas esplanadas da cidade, ornadas de acácias, acentuadas com as cores verde e vermelho. Nas montras de estabelecimentos como o Pintosinho e Tau Fiksad, olhei os produtos da civilização que respondiam às solicitações dos endinheirados militares. Militares que andavam por todo o lado, e que faziam alardes nas esplanadas, de que a 5.ª Rep era o símbolo máximo. Na cidade molengava-se. Os pretos, de mão dada, com todos os vagares do mundo, já não me chocavam como da primeira vez que os vi, que me pareciam mariconsos. As pretas cirandavam com vistosas vestes, todas garridas de colorido, ora carregavam filhos e compras para casa, ora corriam para diferentes destinos, ou bamboleavam-se em grupos de duas ou três, num linguajar cheio de interjeições e risos. No geral, parava-se, falava-se, e o tempo ia passando devagarinho.

Ao fim da tarde, antes do jantar no hotel, serviço de travessa a possibilitar todos os excessos, sentava-me na esplanada, junto das coronelas, umas notoriamente fúteis, outras mais resguardadas de comprtamento, bonitas ou feias, mas diferentes do que era usual ver-se nas mulheres do puto. Enquanto me deliciava com um cinta preta em aguada Perrier fresquinha, apreciava-as.

À noite fui a um bar de alguma nomeada, quase ou exclusivamente frequentado pela tropa, A Meta, atraído por uma pista de mini-carros de comando elétrico. Num espaço folgado, acumulavam-se matulões que conversavam e emborcavam bebidas frescas, como que a compensar a actividade sudorífera. Abafava-se. Sentei-me numa mesa onde estava um gajo conhecido. Pedi um Monks com gêlo, (dez paus). Depressa descobri um divertido espectáculo: o serviço era garantido por uma corpolenta preta, rapariga bem disposta e afável, e à medida que se deslocava por entre as mesas, era ver mãos de um lado e outro a poisarem-lhe na imensa bunda. Bamboleando-se, imperturbável, ia servindo aqui e ali, acorrendo aos chamamentos familiares dos estranhos faunos que lhe percorriam as coxas. Estranhos?

Viajei com um Sargento e um Furriel do esquadrão de Bafatá. O Sargento, que tirava do bolso um volumoso molho de notas, pagava sucessivos whiskies para termos a esbelta hospedeira junto de nós.

À minha espera as pessoas queridas. Depois da alegria de reencontrar a namorada, a família e os amigos, ou o que restava do grupo de amigos, já que na generalidade estávamos dispersos pelos caminhos da tropa, nos primeiros dias, acordava e, antes de qualquer compromisso, dava um passeio pela localidade, observava alterações urbanas, novas lojas em substituição de algumas a que me habituara desde menino, reparava em novos modelos de automóveis, num relativo bem estar geral que se evidenciava em pouco tempo, nas alterações da moda feminina, um sem número de diferenças. Nem se pressentia que a nação estivesse em guerra.

Um dos meus desejos foi comer uma sardinhada no António da Mata, uma tasca de justa nomeada.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4409: História da CCAÇ 2679 (18): Deslocação a Bajocunda (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 – P4478: Iniciativas da ADFA em Lisboa (3): Almoço/Convívio do pessoal da BA 12 (Pilotos, Mecânicos e Enf Pára-quedistas (Luís Nabais)

1. Promovendo uma das iniciativas da ADFA (Associação dos Deficientes da Forças Armadas), recebemos esta mensagem do nosso camarada Luís Nabais, ex-Alf Mil da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa 1969/71, com data de 6 de Junho de 2009:

Caros Eduardo e Carlos,

Como vos havia já dito e vocês tão amavelmente haviam publicado, quando esta ideia era ainda era apenas uma intenção, gostaria de vos pedir agora a publicação, no blogue, do almoço/convívio do pessoal da BA 12 (Pilotos, Mecânicos e Enfermeiras Pára-quedistas) que, enfim, conseguimos agendar.

Este evento está já publicitado, também, no blogue da malta da BA 12 e, definitivamente, terá lugar no próximo dia 27 de Junho, na sede da ADFA.

Será uma homenagem, onde recordaremos todos aqueles que não conseguimos, nem queremos esquecer.

Alguns fazem questão de cá estar deslocando-se de bem longe, em cadeiras de rodas e, outros, ainda, comparecerão com as suas próteses, mas não querem deixar passar em branco esta homenagem.

São DFA’s, que querem dizer também: EU ESTOU PRESENTE!

As esposas podem e devem participar também.

A cada uma das pessoas inscritas, além da festa e do convívio, será entregue uma medalha comemorativa do evento.

O preço será de 20 €!

NOTAS:
Aquando da publicação do texto inicial, fomos questionados sobre a eventual presença, ou não, nesta confraternização, das “nossas” enfermeiras Paraquedistas!

Estamos à espera que, entre todos os “tertulianos”, muitos as conheçam e as contactem. Peçam-lhes, por favor, para elas marcarem a sua indispensável e tão desejada presença também.

ATENÇÃO: INSCREVAM-SE JÁ… SÓ DISPOMOS DE 15O LUGARES (o espaço não dá para mais).

Localização e estacionamento há e vocês conhecem.

Agradecendo a publicação desta convocatória, bem hajam e um abraço,

Luís Nabais
(Sócio efectivo da ADFA, nº 9724)

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Notas de M.R.:

As inscrições podem ser feitas directamente para aquele blogue (especialistasdaba12@gmail.com) ou para a ADFA, ao cuidado da Dª Conceição Valente, nº Tel-217 512 600. Já agora, a ADFA localiza-se entre a Av Padre Cruz e Av Rainha D.Leonor, no Lumiar. Perto tem o Instituto Ricardo Jorge, e é perto do Estádio do Sporting, parecendo não haver problemas de estacionamento.

domingo, 7 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4477: FAP (29): Encontros imprevistos (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Carlos, Luís,

Aqui vai mais um texto ligeirinho para o blogue, como eu gosto de fazer.

Um deste dias, com mais tempo, tentarei explicar porque é que raramente aparecem textos detalhados das missões efectuadas pelo pessoal da Força Aérea, mas isso fica para outra vez.

Abraço,

Miguel Pessoa



ENCONTROS IMPREVISTOS


Texto e desenho de Miguel Pessoa


Numa guerra que se pautou muitas vezes por actos bélicos de grande intensidade nos confrontos que opuseram as nossas tropas aos elementos do PAIGC, testemunhados nos relatos publicados neste blog, parecia estranha a existência em alguns locais da Guiné de um ambiente de "paz podre" ou, talvez melhor, "paz consentida", em que os dois beligerantes pareciam travar os seus instintos guerreiros, antes permitindo aos que ali viviam uma existência relativamente pacífica, em que a guerra parecia por vezes passar ao lado.

A Força Aérea habituou-se a evitar ataques em zonas consideradas tabus (por exemplo, o Como), não sendo mesmo autorizadas acções contra essas zonas.

Do lado contrário, podemos incluir a capital da província, Bissau, em que, salvo um ou outro caso, se vivia um ambiente de uma certa tranquilidade e serenidade, que contrastava com a atmosfera tensa e inquieta existente na maioria dos nossos aquartelamentos, e com o risco que representavam as deslocações entre eles.

Essa calma podia ser transportada até à Base Aérea nº12, em Bissalanca, que nos dois últimos anos da nossa presença no território nunca sofreu qualquer ataque, bem como ao percurso entre a Base e a cidade, que se considerava relativamente seguro.

Nunca consegui perceber como, num conflito que vivia essencialmente de emboscadas e ataques imprevistos às nossas forças, nunca se lembrou o IN de atacar a carrinha VW (vulgo TP9) que diariamente transportava as tripulações (pilotos e enfermeiras pára-quedistas) entre a Base e Bissau.

Assim, era regra ver a carrinha chegar à BA12, vinda de Bissau, pelas 06H00, transportando o pessoal de alerta, regressando a Bissau e entrando novamente na Base às 08H00 com os tripulantes que iniciavam a actividade normal.

À tarde, pelas 18H00, repetia-se a rotina da manhã com transporte dos tripulantes que moravam em Bissau, podendo a carrinha fazer ainda mais um transporte do pessoal que, por motivos de serviço, chegava mais tarde das suas missões.

Com a facilidade em escolher o timing certo, torna-se claro que havia grandes possibilidades de êxito de uma acção do IN contra esse transporte: uma simples bazucada poderia diminuir num repente a operacionalidade da Força Aérea no território em 15 ou 20% da sua capacidade, acrescido dos efeitos psicológicos negativos que daí adviriam.
O facto é que essa hipótese nunca se concretizou, embora às vezes comentássemos essa possibilidade.

Um dia em que uma evacuação se prolongou até mais tarde, houve necessidade de se efectuar um transporte extra da enfermeira envolvida nessa missão.

Passado um tempo razoável, começou a haver alguma preocupação sobre o que teria acontecido ao transporte, pois nem a enfermeira Giselda tinha chegado a Bissau, nem o condutor tinha regressado ainda com a carrinha à Base. Temeu-se que tivesse havido um acidente ou uma acção do IN contra a carrinha, mas logo o ambiente se desanuviou com a chegada do condutor e da enfermeira, transportando uma jibóia de bom porte, garantidamente morta, dado o estado em que apresentava a cabeça.

Esclarecida a situação, soube-se que no percurso para Bissau, ainda relativamente próximo da Base, o condutor tinha deparado com uma jibóia bem constituída que atravessava pachorrentamente a estrada por onde seguiam. Travou para evitar o obstáculo mas acabou por passar por cima dela, o que foi bem visível nos ressaltos dentro do carro...


Decidiu então o condutor manobrar a carrinha de modo a colocar o rodado em cima da jibóia, prendendo-lhe os movimentos e evitando que ela tentasse um ataque contra eles. Sendo um tipo decidido, saiu do carro e, como o animal se contorcesse para se libertar, sacando da chave de cruzeta das rodas desfechou-lhe uns golpes na cabeça, no que foi ajudado pela enfermeira, tão decidida como ele, entretanto munida de uma barra de desmontar os pneus, empenhando-se os dois em acabar com o sofrimento do animal.

Foi então que regressaram à Base, onde deixaram a cobra a cargo do Oficial de Dia às Operações, tendo finalmente demandado Bissau para ali deixar a enfermeira em casa.

Não sei se no relatório do Oficial de Dia constou algo sobre esse incidente envolvendo a jibóia, mas soou-me que algum dos presentes na unidade lhe aproveitou a pele ("sopraram-me" que tinha sido o Oficial de Dia...).

A carrinha continuou a circular até ao fim do conflito, transportando os tripulantes sem mais encontros imprevistos. Quanto à jibóia, provavelmente poderá andar a circular ainda por aí, nos sapatos ou mala de alguém... 

Miguel Pessoa
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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P4476: Agenda cultural (15): Lançamento em Macau, em 27 de Maio último, da antologia de poemas de Han Shan, trad. de A. Graça de Abreu

S/l > S/d > O nosso camarada António Graça de Abreu com a esposa, médica, de nacionalidade chinesa. O casal vive em Portugal. Em 17 de Maio último, ele tinha-nos dito: "Vou para Macau 6º. feira, dia 22 de Maio. Regresso de Macau dia 5 de Junho. Lá vai ser lançado o meu último livro, Poemas de Han Shan. Han Shan é um homem fabuloso, meio budismo zen, meio quase tudo. Claro que estarei no nosso encontro na Ortigosa, dia 20. Dia 3 de Julho parto para Xangai com os meus filhos (a minha mulher já lá estará) e só regresso de Xangai no dia 3 de Setembro. Não viajo para a China há quatro anos, vou-me reciclar".

Foto: © António Graça de Abreu (2009). Direitos reservados.

Sítio do diário, em língua portuguesa, Hoje Macau, edição de 5 de Junho último. Carlos Morais José é o director do jornal cuja propriedade é da empresa Fábrica de Notícias Lda. Sede e redação: Macau (China).

Na edição de 27 de Maio último, o nosso camarada e amigo António Graça de Abreu deu uma importante entrevista, a propósito do seu último livro, lançado nesse dia, uma antologia de poemas de
Han Shan (Séc. VIII), traduzidos para português. É um acontecimento que saudamos, que honra a cultura portuguesa, que reforça o papel da língua portuguesa no mundo e que contribui para o aprofundamento das relações entre Portugal, a China e a comunidade dos países de língua portuguesa... Naturalmente, é também um motivo de alegria e de orgulho termos um dos nossos camaradas com uma estrelinha a brilhar no céu do antigo Império do Meio...

Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essa entrevista, conduzida por Paulo Barbosa (LG)


Sinólogo António Graça de Abreu apresenta hoje antologia de Han Shan > “A poesia é intraduzível”

por Paulo Barbosa

Hoje Macau, 27 de Maio de 2009


"Poemas de Han Shan” é o nome da antologia que hoje, pelas 18h30, é lançada na galeria da Livraria Portuguesa [ em Macau]. A colectânea foi traduzida para português por António Graça de Abreu, que nesta entrevista fala na importância do clássico poeta budista e nas dificuldades do trabalho de tradução do texto chinês.

Licenciado em Filologia Germânica e mestre em História, António da Graça Abreu foi docente de língua e cultura portuguesa em Pequim e Xangai (*). Para além de tradutor, é autor de diversos livros de poesia e de um livro de memórias sobre a sua participação na Guerra Colonial, entre 1972 e 1974.

HM – Quem foi Han Shan?

AGA – Ninguém sabe quem foi, não se sabe se existiu realmente, em que ano nasceu ou morreu. Mas há uma antologia de poesia da dinastia Tang que tem trinta mil poemas de dois mil poetas e que foi publicada em 1705. Aí aparecem 311 poemas deste homem [dos quais a antologia editada pela COD publica cerca de metade].

No entanto, a sua fama ultrapassa fronteiras. Era um poeta muito querido dos Itálicobeatnicks, graças às traduções para inglês de Gary Snider, o protagonista do livro “Vagabundos do Dharma”, de Kerouac.

Sim, ele é um clássico da literatura chinesa, embora tenha passado um bocado despercebido na China, onde estou convencido que vai ser recuperado. Mas é muito conhecido no Japão, por ser um poeta do budismo chan (zen, em japonês), que ali foi introduzido no século XII.

Nas décadas de 1950 e 1960, a beat generation descobriu-o. Aliás, o Jack Kerouac, que é um nome importante na literatura norte-americana moderna, dedicou o livro “Vagabundos do Dharma” a Han Shan. Este homem é tão importante que, no Japão, o Matsuo Basho [1644-1694], um dos grandes poetas do país, utilizava epígrafes dos seus poemas nos haiku [forma de poesia tradicional japonesa] que escrevia.

Quais são os temas recorrentes na poesia de Han Shan?

É um homem muito curioso, porque se retira para a montanha como eremita, mas depois, de vez em quando, escreve uns poemas com saudades do mundo cá de baixo: sente falta das meninas bonitas, da boa comida... Os temas são os normais na poesia deste período. Por exemplo, a brevidade da vida.

Ontem, apenas com 16 anos
eram jovens, fortes e apaixonados.
Hoje têm mais de setenta, extingue-se o vigor, vão perecer.
São flores num dia de Primavera, abrem de manhã, murcham ao entardecer.


A ligação com a Natureza é outro tema muito vulgar da poesia chinesa. O homem retira-se da confusão e da selvajaria e vai meditar para a montanha, o que significa, para os budistas, deixar de pensar, esvaziar a mente e procurar ficar com a cabeça livre de qualquer tipo de pensamento pesado.

Há também uma crítica ao mau governo permanente do império, assim como aos avarentos e aos ricos, ou à gente que enriquece rapidamente, mas a quem “só as moscas apresentam condolências” quando morre.

Embora seja budista, não acredita na imortalidade. O poeta critica os monges, por terem um comportamento pouco conforme com a doutrina – as pessoas entravam para os mosteiros para sobreviver, não era por terem muito amor ao Buda.


Já havia traduções em português de Han Shan antes desta antologia?

Estas traduções já deviam ter sido feitas há muito tempo. Mas penso que fui a primeira pessoa a traduzi-lo em Portugal, em 1996, quando fiz uma pequena folha para os cadernos do Pen Club. A Ana Hatherly fez depois uma tradução de 25 poemas, a partir do francês, publicada pela Cavalo de Ferro.

A sua tradução é feita directamente a partir do chinês?

Sim, mas também utilizo o francês e o inglês. Isto porque quase ninguém consegue saber os caracteres todos. Uso dicionários de chinês-inglês e chinês-francês e consigo descobrir praticamente tudo. A minha mulher, que é chinesa, também me ajuda.

Ouvi-o dizer que as todas as traduções são impossíveis. Traduzir um texto deste género é reescrevê-lo? Não será preciso ser poeta, como o Graça Abreu também é?

O poema, quando aparece em português, já não é o poema em chinês. É por isso que a poesia é intraduzível. Quando chego à fase final do poema, já estou a fazer uma outra coisa, sobretudo se for um poema mais rebuscado. Vou dar um exemplo de um poema fácil de traduzir. Em tradução literal: “Eu habitar montanha/ausência pessoa conhecer/branco nuvem meio/sempre silêncio silêncio.”

Na minha tradução, ficou assim: “Habito a montanha/ninguém me conhece/no meio das nuvens brancas/O silêncio, sempre o silêncio.”

Isto tem que soar bem em português, essa é sempre a minha preocupação. Se o poema não tiver qualidade na língua de chegada, estamos a assassinar o poema. Quanto ao significado, é o mais próximo possível do que está em chinês, mas, em certos casos, é impossível. Por vezes, os caracteres podem ter vinte ou trinta significados; depois, o texto foi escrito em 700, há caracteres que passaram de um modo e outros que tinham um significado e hoje têm outro.


Portanto, nunca teremos uma tradução definitiva?


Há um poeta de Hong Kong que diz que cada poema é como um quadro: cada pessoa o interpreta como bem entender. O que tem que estar lá é o olhar. Se o quadro é sobre um rio, não podemos estar a ver a montanha.

Que outras traduções pretende fazer de poetas chineses?


O meu plano é traduzir todos os maiores poetas da China. Já traduzi quatro, nomeadamente Han Shan, Li Bai, Wang Wei e Bay Juyi. O problema é ter os apoios necessários para fazer este trabalho. Os livros vendem-se pouco e as pessoas estão cada vez menos motivadas para ler poesia. Mas julgo que estes livros, embora agora possam ter poucos leitores, vão ficando. A poesia de Camões, de Dante ou de Shakespeare nunca se desactualiza. O “D. Quixote” será lido daqui a duzentos anos. Embora em Portugal não se tenha essa ideia, alguns destes poetas que traduzo têm a dimensão de um Camões ou de um Dante.

Estes textos são do século oitavo. Em que condições chegaram até nós?

Na China antiga, as pessoas entretinham-se a copiar poemas, escrevendo com tinta da China sobre papel de arroz. Estavam habituados a copiar – ainda hoje é assim que se aprende chinês, copiando caracteres. Escreviam, por vezes, várias cópias e os poemas foram-se transmitindo de geração em geração através de novas cópias. Isto até à invenção chinesa da imprensa em caracteres móveis, que é anterior a Gutenberg.

Mas em todo esse processo há uma adulteração...


Há e há muitos poemas que se perderam. As antologias poéticas que foram sendo feitas ajudaram a preservar o legado.

Para além de tradutor, é também poeta com obra publicada. Está a trabalhar em algum novo livro de originais?

No ano passado, publiquei o livro “Cálice de neblinas e silêncios”, que tem uma forte influência chinesa e tenho outro já escrito, chamado “A cor das cerejeiras”. São uma espécie de haiku, onde surgem as inspirações japonesa e chinesa, assim como poemas de viagens, alguns deles retratando os cinco mil quilómetros que fiz de automóvel ao longo dos Estados Unidos. Agora, que estou reformado e tenho tempo livre, quero privilegiar a minha poesia e sobretudo a poesia chinesa, que é muito mais importante do que a minha.

[Revisão / fixação de texto: L.G.]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

21 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3921: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (8): Um poema chinês do Séc. VIII com dedicatória à malta de Matosinhos (A. Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P4475: Convívios (144): V Encontro da CCAÇ 1426 (1965/67), na Amieira (Fernando Chapouto)


Fernando foi Fur. Milº, Op Esp/RANGER, CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, 1965/67). 

O Chapouto chegou, no Niassa, à Guiné em Agosto de 1965; em Outubro de 1965 foi para Camamudo; em fnais de Novembro de 1965 foi destacado para Banjara; em meados de 1966 foi destacado para Geba; em Março de 1967 foi colocado em Cantacunda; e, por fim, em Maio de 1967 regressou à metrópole no Uíge. Recebeu uma cruz de guerra... É dos nossos mais antigos membros da nossa Tabanca Grande (MR). 

Camarada Luís Graça & co-Editores, 

Mais uma vez cá estou eu a pedir a vossa colaboração, para a divulgação do encontro dos bravos da minha Companhia. 

Desde já o meu obrigado pelo vosso trabalho ao serviço dos ex-Combatentes. 

Um abraço amigo para ti e todos os Camaradas da Guiné, 

F. Chapouto 

V encontro dos ex Combatentes da CCAÇ 1426 – Guiné 65/67 

11 de Julho de 2009 - Sábado. 

Restaurante típico “O AFICIONADO” Amieira. 

JUNTA-SE CROQUI DE PORTEL PARA AMIEIRA 


Contactos: 


Joaquim Recto Delgado, Francisco Mendes Mira ou Fernando Chapouto.  

Telemóveis: 917 128 308, 965 542 857 ou 965114882 

Telefones: 219 556 626, 266 611 101 ou 210 838 708 

PROGRAMA 

11H00 - Concentração junto à Marina da Amieira 

13H00 - Almoço convívio 

Inscreve-te até 20JUN09, vem participar no nosso/vosso convívio anual, haverá surpresas! Não faltes, esperamos por ti, nós vamos estar lá. 

Preços: 
Adultos…….…………………………...25,00 € 
Crianças dos 6 aos 12 anos…...12,50 € 
Crianças até aos 6 anos não pagam 

(Fernando Chapouto) 
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Nota de M.R.: 



Guiné 63/74 - P4474: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (5): Os meus livros

1. Mensagem de Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72, com data de 17 de Maio de 2009:

Caros Editor e Co-Editores

Junto envio um texto que podem publicar, se entenderem e quando entenderem.

Não é propriamente uma história retratando algum caso concreto, trata-se de relembrar alguma vivência em tempo de guerra, partindo das reflexões que alguns episódios recentes me fizeram ter.

Aceitem um forte abraço, deste vosso amigo e camarada da Guiné.
Se quiserem podem repetir esse abraço mais duas vezes.
Hélder S.


OS LIVROS….

Nas duas últimas histórias que enviei, referi os elementos que fizeram actuar a memória para alcançar o conteúdo dos mesmos. Para este escrito a situação não será diferente. De facto, são muitas vezes os estímulos, os impulsos recebidos, que fazem o clic indispensável para que a história apareça.

Desta vez temos três entradas.

Por um lado (primeira entrada) uma reportagem que vi hoje (dia 15 de Maio) na RTP1 a propósito do livro do Gen. A. Spínola e em que a determinada altura o apresentador/narrador Rui Morrison, salvo erro, relaciona o aparecimento desse livro, “Portugal e o Futuro”, como sendo um factor determinante nos acontecimentos que vieram a desembocar nas acções do “25 de Abril de 74”, relacionando esse facto com outros em que o aparecimento de livros com grande divulgação geraram alterações significativas nas sociedades em que surgiram (e não só, digo eu), referindo os casos de Thomas Payne na América, cujo livro deu origem à Revolução Americana, o do francês Thiers (também salvo erro) cujo livro deu um contributo decisivo para a Revolução Francesa, o do Vladimir Ilitch Ulianov (Lenin) com o livro “O Estado e a Revolução” saído em Fevereiro de 1917 e que deu origem à Revolução Bolchevique na Rússia.

Outro factor de lembrança (segunda entrada) foi ter participado no passado sábado 9 de Maio, em Vila Franca de Xira, na apresentação pública dum “Manifesto da Memória”, produzido por uma Comissão de redacção constituída por elementos que participaram na Secção Cultural da União Desportiva Vilafranquense. O objectivo desse “Manifesto” é o deixar memória registada das acções e actividades que foram levadas a efeitos por aquela entidade e que se entende dever deixar para que alguém, que possa e queira, aproveite a experiência desse trabalho e, eventualmente, possa encontrar aí caminho ou inspiração para enfrentar os problemas de hoje. A entrada é motivada por nessa “Memória” se entender e afirmar que pertencemos à geração do Livro. Que grande parte da nossa acção e formação girou à volta da Biblioteca, dos seus livros, do estudo e debate dos seus conteúdos, o que é bem verdade.

A última entrada é provocada por uma foto do então Furriel Henriques colocada no P4306, o qual aparece com aquele seu ar de rato de biblioteca, com os óculos típicos e os papéis debaixo do braço, em inequívoca atitude ilustradora de quem se interessava pelas questões intelectuais, tendo inclusive merecido uma referência nesse sentido, colocada num comentário, pelo Miguel Pessoa, especulando se aquele visual não seria perigoso no sentido do IN eventualmente identificar por ele alguém mais graduado, e obtendo uma resposta do Henriques/Luís Graça revelando que aquilo era apenas por ronco, já que via bem ao perto e ao longe, tendo apenas alguma maior sensibilidade à luz. Ao menos não eram Ray-Ban, senão ainda o poderíamos confundir com o A.B.... vade retro!

Da conjugação destas entradas acabei por me lembrar que na Guiné não deixei de pertencer à tal geração do livro, persistindo em mantê-lo por companhia e como elemento essencial de vida. A prová-lo está essa foto que envio, tirada no quarto, em Bissau, na moradia anexa ao Centro de Escuta onde prestava serviço. Estou a ler um jornal que me chegava por correio, visto ter assinatura, e que se chamava “Comércio do Funchal”. Na mesa de apoio, ao lado da cama, é visível um livro intitulado “As Minhas Universidades”, dum conhecido autor russo. Por debaixo desse, está um livro encapado que não me consigo recordar o que seria. Ao lado está um livro sobre economia, que cheguei a estudar com mais dois camaradas de serviço, sendo que para isso aproveitava os turnos de serviço nocturno, das 01.00 às 07.00, para passar a folhas A4 dactilografadas e com papel químico, para serem lidas e comentadas posteriormente. Por debaixo dos envelopes das cartas de avião está um outro livro encapado, mas esse sei que seria um livro intitulado “A Mãe”, do mesmo autor de “As Minhas Universidades”. Tinham capas para furtar a curiosidade dos bisbilhoteiros e/ou bufos e tentar preservar o mais possível a integridade física (a minha).

Na outra foto que também anexo, tirada numa das esplanadas do Pelicano, em que estou com os Furriéis Mil. Fernando Roque e Nélson Batalha, no dia do meu aniversário em Outubro de 71, também é visível que em cima da mesa se encontra uma capa com um livro dentro. Trata-se de uma preciosidade chamada “O elefante”, dum autor polaco de nome Mrozeck, sendo um livro de contos dos quais alguns foram lidos para mais do que os elementos que ocupavam a mesa em que me encontrava na esplanada do Bento, provocando enormes e saudáveis gargalhadas, já que os contos escolhidos a isso se prestavam.

Por tudo isto que agora recordo, bem assim como as viagens feitas com o atrás mencionado Fur Roque, de moto (Honda?), até Nhacra, para assistir a algumas sessões culturais (digamos assim) que por vezes lá ocorriam, convivendo com outros elementos dos quais retenho a lembrança dum antigo colega de escola e outras vivências, o Fur Mil Bento Luís, e que se passavam na CCAV então comandada pelo Cap Mário Tomé, reforço a ideia de que o livro foi não só uma incontornável companhia para ultrapassar as situações vividas como também a fonte onde fui beber a informação, o conhecimento, a cultura, a formação e tudo o mais que ajudou a moldar-me.

Disse acima que foi, mas é para mim bastante claro que ainda é, pelo menos quando se cultiva a atitude de reflectir o que se lê e se procura discutir o que se lê, no sentido de elevar o conhecimento e não nos limitarmos à reacção, quantas vezes impulsiva, quantas vezes boçal, quando confrontados por qualquer questão ou simplesmente para dar uma opinião.

Caros camaradas, desculpem estas reflexões sobre “memórias de tempos de guerra” mas podem crer que a guerra se travou em muitas frentes… e de muitas maneiras! Até para criar condições para acabar com ela!

Um abraço para toda a Tabanca!

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

Bissau > Hélder Sousa, no quarto. Na mesinha de cabeceira, os inseparáveis livros

Na foto, Hélder Sousa com os camaradas Fernando Roque e Nelson Batalha


2. Pequeno apontamento de CV:

"A Mãe" e "As Minhas Universidades" são livros de autoria de Máximo Gorki, pseudónimo de Alexei Maximovich Peckov que nasceu em 1868 na cidade de Nijni-Novgorod, chamada mais tarde de Gorki em sua homenagem, e que faleceu em Moscovo em 1936. Tem uma vastíssima obra literária.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4316: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (4): A bazuca em rajada

Guiné 63/74 - P4473: PAIGC - Quem foi quem (9): Luís Cabral, entrevistado por Nelson Herbert (c. 1999)



Ficheiro originalmente em áudio, gentilmente cedido pelo nosso amigo Nelson Herbert, contendo excertos de uma entrevista com Luís Cabral, 1º Presidente da nova República da Guiné-Bissau, de 1973 a 1978. A entrevista, telefónica, conduzida por Nelson Herbert, hoje editor sénior da Voz da América (serviço e português para África), remonta a 10 anos atrás.

Neste excerto, de cerca de 10 minutos, Luís Cabral aborda questões (ainda hoje dolorosas, para todos nós) como o fuzilamento de antigos comandos africanos: faz referência ao papel de dois dirigentes históricos, já desaparecidos, responsáveis máximos pela segurança do Estado, Constantino Teixeira e António Buscardini; faz referência explicitamente a dois antigos oficiais comandos, o Capitão Cmd graduado Adriano Sisseco ( e não Sissoco...) e o Tenente Cmd graduado Cicri Marques Vieira, da 2ª Companhia do Batalhão de Comandos Africanos.



Menciona também o apelo do antigo Presidente da República Portuguesa, General Ramalho Eanes (que, como se sabe, mantinha relações de amizade com o agora falecido Luís Cabral).

Foto, à esquerda, do Adriano Sisseco, de 1966, que era 1º cabo comando no tempo do nosso camarada, amigo e co-editor Vírgínio Briote, tendo feito operações em conjunto. O Sisseco, tal como o Justo, pertencia ao Grupo de Comandos Os Vampiros. Foi depois em 1970 para a 1ª Companhia de Comandos Africanos, onde era Alf Comd graduado. Foi seu instrutor o Cap Barbosa Henriques, supervisor o major Leal de Almeida, o capitão da companhia o João Bacar Jaló. (Foto: Cortesia do Virgínio Briote, blogue Tantas Vidas).


Vídeo (9' 54''): © Nelson Herbert / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados

1. Mensagem de Nelson Herbert, membro da nossa Tabanca Grande [Nascido em 1962, na Guiné-Bissau, de mãe guineense e pai caboverdiana, viveu a guerra colonial como criança e depois como adolescente, em Bissau; veio para Portugal, onde se licenciou em comunicação social (pela FCSH/UNL); emigrou para os Estados Unidos no início dos anos 90; hoje é editor sénior do serviço em português para a África, da Radio Voice of America / Voz da América, com sede em Washington; tem a nacionalidade norte-americana) (*)...

Meu caro Virgínio:

Quiçá melhor sorte tivera eu, nas várias "tentativas" de chegar à fala ao recém falecido primeiro presidente da Guine Bissau independente, Luís Cabral (**). Digo isto, porque entre as várias conversas, algumas "off", outras tantas "on record", que fui mantendo ao longo dos últimos anos com aquele nacionalista guineense,pelo menos uma teve por finalidade o seu registo em áudio.

Trata-se pois de uma entrevista de um pouco mais de duas horas e meia, gravada há cerca de dez anos e que pela sua importância documental e histórica, ainda conservo 'religiosamente' no meu acervo pessoal!

Na entrevista em questão, Luís Cabral aborda de forma desinibida alguns dos vários momentos, episódios e factos que marcaram a sua presidência da Guiné-Bissau e, obviamente, o caso dos fuzilamentos dos antigos elementos [do Batalhão] dos Comandos Africanos.

Deste acontecimento em particular, aquele dirigente histórico do PAIGC e do Estado guineense, faz referência a um aspecto que a história, por certo, encarregar-se-á um dia de clarificar. Refiro-me pois a uma alegada tentativa de instrumentalização de antigos elementos dos comandos africanos e militares nativos guineenses do Exército Português, para fins desestabilizadores do então embrionário Estado guineense (***).

Aconteceu, pois, no conflito que se seguiu à independência de Angola,com o Batalhão 32 ou Búfalo, criado pelos sul-africanos para conter uma então rotulada "ameaça comunista" na região. Experiência similar viveram os moçambicanos, nos primórdios da sua independência.

Por conseguinte, no caso da Guiné, terá esse risco existido ? Quem sabe, o livro em gestação, de Amadu Djaló (****), traga mais luz ao debate! Até lá, pela estima que me merece e com a certeza no interesse que a temática lhe desperta, segue em anexo um extracto (audio) da entrevista referente à matéria em epígrafe !

Mantenhas Nelson Herbert

2. Comentário do Virgínio Briote (que ainda não tinha ouvido o ficheiro áudio):

Caro Nelson,

O seu trabalho, apesar de eu não ter o registo áudio, que julguei vir em anexo, merece, por todas as razões, ser posto à disposição do grande público.

A morte de Luís Cabral é mais um livro que se consome na fogueira do tempo, são páginas e páginas de vidas escritas com o sofrimento de muita gente, é injusto ficarem em cinzas. Aliás, insinuei isto mesmo ao Presidente Luís Cabral, mas a resposta que lhe dei (nos "comandos, Senhor Presidente") quando me perguntou em que parte da Guiné tinha prestado serviço, a partir daí vi o interesse dele a esboroar-se...

Nelson, pense em editar um artigo sobre o Luís Cabral. É importante para a História da Guiné-Bissau. Hoje vi num semanário Sol, uma página dedicada ao Luís Cabral, escrita por um tal Pedro d'Anunciação, com o título "Luís Cabral, Perdido pela voracidade do poder".

Um abraço, Nelson.
vbriote
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2652: Guineenses da diáspora (3): Nelson Herbert, o nosso Correspondente nos EUA (Virgínio Briote)

(**) Vd. postes de:

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4449: In Memoriam (23): Luís Cabral ou o respeito por um homem que lutou por um ideal (Virgínio Briote)

4 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

(***) Sobre os comandos africanos e outros antigos combatentes guineenses que lutaram do lado dos portugueses, contra o PAIGC, e foram depois fuzilados no período em que Luís Cabral era o chefe de Estado da República da Guiné-Bissau,vd. os seguintes postes (incluindo os da I Série do nosso blogue):

13 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4332: Os Nossos Camaradas Guineenses (8): Braima Baldé, ex-Alf Cmd Graduado, BCA (1938-1975) (Amadu Djaló / Virgínio Briote)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2839: Ainda os Comandos fuzilados a seguir à independência (I): O Justo Nascimento e os outros (Carlos B. Silva / Virgínio Briote)

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (7): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (6): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)

31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos

19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIV: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

(****) Vd. postes de:

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

Sonre o Amadu Dajló e o livro que está a escrever, com a colaboração do Virgínio Briote, nosso co-editor, vd. os seguintes postes:

22 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4067: Os nossos camaradas guineenses (3): Amadu Djaló, Fula de Bafatá, comando da 1ª CCA, preso, exilado... (Virgínio Briote)

25 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4076: Os nossos camaradas guineenses (4): Amadu Djaló, com marcas no corpo e na alma (Virgínio Briote)

27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4086: Os nossos camaradas guineenses (5): O making of do livro do Amadu Djaló, as memórias de um comando africano (Virginio Briote)

29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4102: Os nossos camaradas guineenses (6): Amadu Djaló, as memórias de um comando africano (Virginio Briote)

21 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4229: Os nossos camaradas guineenses (7): Amadu Djaló, as memórias do Comando Africano continuam (Virgínio Briote)

sábado, 6 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4472: Tabanca Grande (150): Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74

1. Mensagem de Luís Marcelino (*), ex-Cap Mil, Comandante da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 4 de Junho de 2009:

Assunto: Para começar

Na sequência do convite recebido, que muito agradeço, aqui estou para a todos saudar e manifestar o desejo de participar no convívio desta grande família.

Junto as duas fotos, uma antiga e outra recente, aproveitando para lhes juntar mais duas referentes a momentos vividos na Guiné.

Antes de mais, quero apresentar-me:

Sou Luís Marcelino, a viver em Leiria.
Fiz o meu serviço militar, entre Janeiro de 1971 e Agosto de 1974.
No primeiro Trimestre de 1972, em Vila Nova de Gaia, foi formada a CART 6250 que comandei ali fazendo a preparação para a comissão na Guiné.

Em Junho desse ano, partimos para a grande aventura, que terminou em Agosto de 1974.

Fizemos o treino Operacional em Bolama, durante cerca de um mês, findo o qual partimos para Mampatá, em rendição de uma Companhia de Infantaria.
A nossa Companhia era independente e estava adida ao Batalhão sediado em Aldeia Formosa, a cerca de 7 Kms de Mampatá.

Após o regresso da Guiné entrei para a GNR, onde prestei serviço em Leiria, Évora, Santarém e Lisboa. Estou actualmente aposentado.

A experiência vivida na guerra da Guiné marcou profundamente a minha vida, pelas ocorrências sentidas e, de um modo especial pela solidariedade e grande amizade partilhadas em todo o tempo com todos os componentes da Companhia.

Na verdade, se humanamente não estava preparado para a responsabilidade que assumi, tive muita sorte nos homens que me calharam, tornando-me mais suave uma missão absolutamente desconhecida, conseguindo fazer-se justiça ao nosso lema "UNIDOS".

Ali se criaram verdadeiros laços de amizade que perduram até hoje, bem expressos nos convívios anuais que realizamos.

A todos os camaradas um gande abraço, na certeza de que já estou acolhido nesta grande família, em boa hora constituída.


2. Lembremos o primeiro contacto do nosso camarada Luís Marcelino com o Blogue:

Assunto: Testemunho

Tenho visitado regularmente este espaço, que considero de convívio, recordação e expressão de muita amizade.
Aqui tenho encontrado algumas pessoas que conheci ou conheço, com quem experimentei a vida difícil na Guiné. Algumas tenho visto em encontros que fazemos, outras, nunca mais..

Estive na Guiné entre 1972 e 1974, na CART 6250,em Mampatá. Fui o comandante, na altura, um jovem Capitão miliciano, graduado, de nome Marcelino. Vivo em Leiria.

Muito gostaria de estar presente no almoço do dia 20. Tenho outro compromisso que me impede. Contudo, estarei atento para que em encontros futuros possa ter o prazer de participar.

Ao fundador do blogue, à equipa editorial e a todos os participantes, as minhas saudações amigas e com todo o gosto também poderei participar neste espaço, com alguns episódios ou vivências da Guiné.

Um abraço







************

3. Comentário de CV:

Caro Luís Marcelino, estás oficialmente apresentado à Tertúlia.

Bem-vindo a esta grande família de ex-combatentes, fundada por Luís Graça há cerca de 4 anos, que felizmente não pára de crescer. És o 339.º membro oficialmente registado.

Terás, como ex-comandante de Companhia, conhecimentos da guerra, que na época não deveriam ser do conhecimento geral. Passados todos estes anos, poderás divulgá-los e contribuir assim para aumentar este repositório histórico da guerra colonial na Guiné, em que estamos todos, e cada um a seu modo, empenhados em levar por diante.

Peço-te o favor de quando nos mandares fotografias a acompanhar os teus textos, não te esqueceres de as legendares.

Já que quiseste dar-nos o gosto de contarmos com a tua participação, podes desde já começar a trabalhar.

Recebe, em nome da tertúlia um grande e fraterno abraço.

Pela tertúlia
Carlos Vinhal
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4437: O Nosso Livro de Visitas (65): L.J.F. Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250, Mampatá, 1972/74
e
3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4458: Bem-vindo, Comandante Marcelino! Obrigado por ter tomado conta de mim na Guiné (José Eduardo Alves)

Vd. último poste da série de 5 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4464: Tabanca Grande (149): Armandino Alves, ex-1.º Cabo Aux de Enfermeiro da CCAÇ 1589, Guiné 1966/68

Guiné 63/74 - P4471: Encerrar um capítulo de não-vida da nossa vida? (António G. Matos)

1. Mensagem de António G. Matos (*), ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, com data de 5 de Junho de 2009:

Assunto: Dou por mim a pensar...

Caros editores,
Reflexões a que me dediquei numa altura em que outras reflexões de índole nacional nos poderão preocupar...

Um abraço,
António Matos


Dou por mim a pensar...

Dou por mim a pensar...
O que terá levado toda esta geração de ex-combatentes da guerra do ultramar a, passados 35 anos, envolver-se numa narrativa que sempre repudiou e guardou só para si?

Dou por mim a pensar...
Que valores intrínsecos despertaram que os pusesse a contar estórias de solidão, estórias de amarguras, de desgostos, de dores físicas e morais, de sentido de defesa da integridade, de solidariedade, de compaixão, de falsos patriotismos como se de uma auto-comiseração se tratasse?

Dou por mim a pensar...
Será a catarse um processo sem fim?
A libertação dos nossos medos, dos nossos demónios, dos nossos fantasmas transformar-se-à numa mera acção de vaidade a que a prosa dá vida?

Dou por mim a pensar...
Quantos falsos sentimentos, quantas deturpações da realidade (o que é a realidade?), quantas subtilezas podem ser equacionadas quando nos confrontamos com a epidemia editorial em que se transformou um país labrego por excelência?

Já foi referido nesta colectânea "Luís Graça & Camaradas da Guiné" a necessidade inexorável de cada um vir, a seu tempo, a encerrar o capítulo Guiné como se de uma verdadeira missão de vida se tivesse tratado.

Concordo em absoluto embora o momento certo tenha que ser aferido individualmente.

Dou por mim a pensar quão intrigante é a mente humana que consegue voltar de costas ex-camaradas pela simples razão da sua realidade ser diferente da realidade do outro.

Dou por mim a pensar até que ponto a grandeza em se respeitar um antigo inimigo não se transforma em bacôca pelintrice quando o elevamos a níveis mais altos do que aquele que os nossos parâmetros éticos permitem.

Dou por mim a pensar porque propagandeamos as qualidades guerreiras dum antigo combatente só porque um dia morre e esquecemos todo o rio de sangue que derramou em prol da usura dum despotismo primitivo.

Dou por mim a pensar que tanta lucidez pode ser prenúncio que expurguei a minha vida não-vida entre 1969 e 1972.

Neste capítulo estou de bem comigo.
António Matos
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 28 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4431: Blogoterapia (104): Não façamos deste Blogue um muro de lamentações (António G. Matos)

Guiné 63/74 - P4470: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (6): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (V Parte)

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 1 de Junho de 2009:

Caro Carlos / Luís:

(Com um novo mês não sei bem a quem me dirigir). Com um pouco menos de uma
semana de intervalo junto em anexo a continuação da estória sobre Madina Xaquili
- parte 5. Como está a chegar ao fim, por mim, gostaria de apressar o seu termo.
O editor de serviço fará o que entender.

Gostaria, se for possível, que fizessem duas correcções aos meus textos
anteriores, também para bem do Blog, assim:

1 - Na minha 1ª estória (3 oficiais): No 11º parágrafo:
Cheguei a Bafatá que integravam Bafatá: Ponte Nova, Rocha e
(substituir os três pontos por: Nema)

2 - Na minha 3ª estória (Madina Xaquili Parte 2): No penúltimo parágrafo:
Como era sabido no 1º ataque à tabanca, em 24JUN69
(a data correcta é 24JUL69)

Dois abraços.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

6 - Um Alferes destacado (desterrado) em Madina Xaquili com um cano (só o cano) dum morteiro 60 - parte 5.

Preâmbulo

Como tenho vindo a referir, na sequência do agravamento da situação no Cossé, fui destacado para Madina Xaquili, onde vivi uma experiência verdadeiramente inesquecível.

No Poste anterior – 4429 (7.º, 8.º e 9.º dias dessa minha experiência), relatei o patrulhamento até Cantacunda em que na volta se ouve o primeiro tiro em Madina Xaquili, o aparecimento de um heli e a minha iniciação como consultor sentimental.

Relato do 10.º dia – 21JUN69:

Pela manhã, bem cedo, partiu um grupo de combate rumo a Padada, armado até aos dentes, ou melhor, além das G3 o cano dum morteiro 60 (só o cano). Na tabanca, encarregado da sua defesa, sem o cano de morteiro e com a incumbência de pedir apoio aéreo caso ouvisse restolhada para os lados de Padada, ficou o 2.º Comandante, o Furriel que tinha chegado três dias antes, sim, porque meios rádio não tínhamos para levar. O João Vieira foi comigo, mais por questões de tradução simultânea. Íamos uns 20 africanos e 10 metropolitanos.

A Ordem de Operação determinava que se fosse até à antiga tabanca de Padada distante cerca de 12 Km e já a uns escassos 15 Km do rio Corubal. Aí reunir-nos-íamos com outro grupo de combate que vinha de… (não recordo donde) e, caso houvesse vestígios IN, montaríamos uma emboscada na zona. Os vestígios IN encontrados foram muitos, como descreverei.

De acordo com a miséria, em termos de armamento, que pairava por todos os aquartelamentos, o Cap Jerónimo (recordaram-me o seu nome no último almoço da Tabanca de Matosinhos) teve que deixar ir 8 militares para Madina Xaquili só com um cano velho de um morteiro 60 com 16 granadas, sem sequer disponibilizar uns dilagramas.

Assim, pelo facto de a maior parte do percurso se fazer pela mata e não ter muitas hipóteses de usar o morteiro, congeminei (talvez uma heresia) usá-lo em tiro tenso como se fosse uma basuca. Em Mafra tinha feito muitos disparos com morteiro 60 e tinha verificado que mediavam umas fracções de segundo entre a percussão e o disparo. Assim, e só no caso de emboscada IN, só precisava que no desencadear da mesma me calhasse ficar ao pé dum tronco de árvore para poder encostar a rótula do morteiro. Também sabia que as granadas só activavam ao fim dum certo tempo de trajecto, pelo que, se não baixasse a tempo o cano e a granada batesse numa árvore por cima de mim, esperava que não explodisse. Ademais o apanhado pelo clima fazia esquecer todo o perigo.

Os dois primeiros quilómetros foram percorridos descontraidamente. Seguimos pela picada para Padada cerca de 1 Km, até uma depressão de terreno criada por uma linha de água, local que marquei como ideal para montarmos emboscadas, caso continuasse muito mais tempo na tabanca. Sim, porque não daríamos oportunidade ao IN de nos encontrar dentro do arame.

A seguir a essa linha de água dei ordem para deixarmos a picada tendo atravessado pequenas clareiras, lindíssimas, pejadas de montículos, tipo cogumelo, de formigas que não as baga-baga.

Uma clareira com os montículos das formigas, ainda perto de Madina

Outra clareira

Numa dessas clareiras pedi que me tirassem uma foto em progressão. Sem querer (veja-se a foto) ficou registado o ataque de abelhas que sofremos. Tivemos muita sorte pois só tivemos três ou quatro picadas e ainda não estávamos em zona IN. Continuámos.

O ataque de abelhas. À frente o pessoal foge para a esquerda

A partir de 2/3 Km percorridos nova ordem: Ir sempre pela mata e em silêncio absoluto com a picada sempre à esquerda.

A cerca de 2/3 Km de Padada começámos a cruzar trilhos recentes do IN, desse dia ou do anterior. Como o capim nessa altura tinha cerca de um palmo, facilitava bem a datagem.

Estávamos a chegar a Padada à hora estabelecida e agora a minha grande preocupação era o momento de contacto com o outro grupo de combate, até porque sabia que também integrava africanos. Naquela altura achava que só as armas, G3 ou Kalash, nos diferençavam.

A certa altura vêm-me informar que o contacto tinha sido estabelecido. Respirei fundo.

Momentos depois vim a saber que uns quinze dias antes outro grupo de combate desse destacamento tinha tido ali um encontro, frente a frente, com o IN. Os primeiros elementos de cada grupo encontraram-se, de caras, a acerca de 20m um do outro. Dispararam ambos tendo o nosso soldado recebido um tiro que lhe desfez uma cartucheira que lhe salvou a vida.

Montada a segurança, reabastecemo-nos de água numa fonte de Padada e almoçámos.

A fonte em Padada onde nos reabastecemos de água

Depois do almoço com o João a meu lado

No pressuposto que era a segunda vez que as NT iam a Padada e que ainda não haveria minas, andei livremente (com a segurança montada) pelas ruínas da tabanca onde tirei algumas fotos. Depois desta segunda incursão achava que o IN iria armadilhar a zona. Mais tarde e já no Agrupamento em Bafatá chegaram as notícias disso mesmo.

Junto aos restos de uma palhota em Padada

Restos da antiga tabanca de Padada

Conforme a ordem de operações, montámos uma emboscada na zona de um trilho IN. A meio da tarde, sem que o IN se manifestasse, retornámos a Madina Xaquili, agora uma coluna de uns 80 elementos com mais armamento que um simples cano velho de morteiro 60. Chegámos a tempo de ouvir o relato de um Sporting/Académica.

No relato do dia seguinte vou descrever como vou encontrar o João Vieira a andar de pernas abertas. As mordomias de chefe tinham-no traído.

Até para a semana camaradas.

Texto e fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4429: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (5): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (IV Parte)