Este tema (1) é, e será sempre, recorrente e com interpretações várias, segundo perspectivas culturais, sociológicas e políticas diferentes.
Antes de me pronunciar - uma vez mais - sobre o assunto, fazendo-o com prudência e muita humildade, quero reafirmar que os meus contributos raramente se têm localizado, temporalmente, no período da guerra; intervim mais sobre as minhas vivências durante as estadias na Guiné-Bissau, em 1990-1992 (segunda comissão), vários meses entre 1996 e 2005, e de Setembro de 2005 a Setembro de 2006 (terceira comissão de apenas um ano). São quase seis anos de Guiné. Este tempo todo - irei lá mais vezes? - deu para reflectir.
Mas, graças à minha ida à guerra, tive oportunidade de rever aquele pedaço de território encharcadiço, mas com tanta riqueza e espiritualidade, com tanto carinho para dar, não teria oportunidade de ver as crianças com o seu sorriso, e todos com muita esperança...
Outra nota: neste blogue - que em boa hora foi consituído com a dimensão e natureza que apresenta, e que não é fácil gerir! (honra seja feita ao Luís Graça, em primeiro lugar) - permite-nos fazer a catarse, contar e recontar episódios (alguns vividos por camaradas em conjunto que, porventura, os recordarão de maneira diferente porque os sentiram de diversa forma - já se abordou este tema, também), pensar nos bons e maus momentos, nas emboscadas, nos golpes de mão, etc. Se é assim, esta questão da deserção deve ser trabalhada com rigor, deve ser abordada com muita humildade intelectual, sob pena de, por um lado, entrarmos em ressentimentos, e por outro, cairmos no facilitismo histórico.
Tenho lido atentamente as intervenções e, confesso, sinto que muitas afirmações têm sido feitas com racionalidade notável, outras, mais emocionadas, demonstrando alguma - desulpai a expressão! - sobranceria.
Conto-vos um episódio, que o Moura Marques (2) me recordou, pois tal me escapava no fundo da memória. Recordava-me ele:
- Olha, Salgado, tu, em Santa Margarida, diante do grupo de combate que estava a consituir-se, disseste mais ou menos o seguinte: se algum de vós sente que ir para a guerra não está correcto, então ainda está a tempo de recuar.
Bom, não sei se foi isto que eu disse exactamente, mas o Moura Marques é que mo referiu (e eu tenho por ele um respeito total, uma amizade infinda, pois ele é um homem grande, um camaradão, e cuja amizade se fortaleceu aqui (já falei dele num contributo neste blogue).
Estou, pois, confrontado com uma realidade: eu estava a sugerir a deserção? Eu estava a apontar caminhos duvidosos? Colocava os jovens em situação delicada? Tinha diante de mim (eu já tinha feito 24 anos!) rapazes mais jovens do que eu, porventura alguns analfabetos e uns tantos desconhecendo as causas e as consequências da guerra. Mas, de todo, inteligentes como eu, sagazes, mais ainda.
Para uma afirmação como aquela, estaria certamente, no subconsciente, a minha passagem por Coimbra em 1968-1969, as fugas à guarda montada junto à escadaria monumental, algo que perpassou por mim em tempos de estudante voluntário de direito.
Fica-me, pois esta dúvida: de alguma forma, eu estaria a colaborar numa eventual deserção.
Mais ainda: estarei eu aqui a sentir-me um pouco desertor?
Pessoalmente, eu equacionei essa hipótese. Ir para Paris, onde o meu Pai tinha um amigo (não digo o nome dessa Figura porque já faleceu) seria um caminho que se me colocou, digo-o com toda a franqueza. Mas, confesso-vos que o não fiz por duas razões: a primeira porque não queria enfrentar a situação de não voltar a ver a rever a minha mãe e a minha namorada- aquela era adorada e ficaria triste se tal acontecesse; esta porque de facto foi e é a minha paixão, o meu amor.
A segunda razão parece infantil e contraditória (embora politicamente eu não acreditasse em soluções militares): eu tinha a ideia que estava psicológica e militarmente preparado (tinha andado em Lamego em Operações Especiais) e, tendo muito medo, como mais tarde vim a sentir imensas vezes, algo me dizia que voltaria.
Hoje, como diz o A. Marques Lopes, ficaria novamente com grandes dúvidas.
Quanto a mim, a palavra poderia ser dada aos desertores, se assim entendessem (fossem quais fossem as razões da sua atitude), eles poderiam dar-nos o seu testemunho, poderiam - penso - ajudar-nos, também com a sua humildade, a compreender melhor este fenómeno da deserção e das suas causas (que aliás, como sabeis, aconteceu com muitos jovens frnaceses na Argélia, e com belgas, no Congo).
Dêmos-lhes a palavra, se assim o entenderem. De outro modo, nunca chegaremos a saber o que os moveu. Tenham eles a humildade de nos contar por que razão o fizeram.
Mantenhas
Paulo Salgado
Ex-Alf Mil Cav
CCAV 2712
Olossato e Nhacra (197o/72)
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Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha
13 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret
14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho
14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes
15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1596: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (9): Humberto Reis
15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1597: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (10): Idálio Reis
(2) Vd. post de 2 de Março 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato