Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3481: Blogoterapia (74): Mais do que o número de atabancados, interessa-nos ouvir e contar as nossas histórias (J. Mexia Alves)
Foto e legenda: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.
1. Outro senador da República, outro homem (duplamente) grande da nossa Tabanca Grande, Joquim Mexia Alves:
Caros Luís, Virgínio e Carlos
Ora bem, lá venho eu tentar dar o meu contributo para a acusa comum.
Assim, e pegando no texto do Victor Junqueira (*) faço as seguintes considerações.
1 - Atrasos na publicação dos textos, algumas vezes por extravio, outras porque se estabeleceram certas prioridades, que não raramente, lhes retiram toda a oportunidade.
Absolutamente de acordo!
Com tudo, sobretudo com o elogio ao vosso trabalho!
Infelizmente esta coisa dos blogues tem alguns "senãos" quando há muita publicação seguida, no mesmo dia. Ou seja há uma tendência para quem acede aos blogues ler apenas o último e talvez o penúltimo texto, (não gosto de post, "prontos"), publicado.
Claro que me parece que este particular problema não terá solução no nosso caso, pois teríamos de ter anos de 500 dias para conseguirmos publicar todos os textos que vos devem ser enviados.
A publicação/postagem directa, sendo uma possível solução para a publicação em tempo ideal, pode vir a ser um acrescentar deste problema, porque pode muito bem acontecer que vários publiquem textos no mesmo dia, o que levará a uma saturação de leitura, para além de haver com certeza "mistura" de temas, que seriam melhor "digeridos" se tivessem uma continuidade.
O tal "conselho de ética" já foi falado, portanto é provavelmente tempo de avançar com o mesmo.
2 - Textos fortemente "editados".
Concordo que muitas vezes os textos muito elaborados e por vezes de difícil interpretação para quem não estiver preparado, podem desmotivar alguns menos à vontade com a escrita.
3 - Transcrições longas e enfadonhas de manuais ou seus excertos.
Total e absolutamente de acordo!
Devo confessar que raramente as leio na íntegra e a maior parte das vezes lhes passo adiante. Faça-se referência à obra, para posterior consulta, ou abra-se novo site, umbilicalmente ligado à Tabanca, onde poderão ser colocados tais textos para consulta dos interessados, cuja referência poderá vir com um link directo da Tabanca Grande.
4 - O controverso, o contraditório e a polémica são o sal e a pimenta dos nossos cozinhados literários. Ultimamente tem-se notado uma certa falta destes temperos.
Mais uma vez de acordo!
Que caraças, mesmo que haja aqui ou acolá uma picardia, será que não somos capazes de nos entendermos?
"Homem que é homem" não tem problemas em pedir desculpa quando se excede nas palavras e nos gestos.
5 - Quase todas as semanas se apresenta mais um camarada, atraído para o nosso convívio. Isso agrada-me. Mas cadê a historiazinha a contar o drama, a peripécia, a barracada de que foi protagonista ou de que teve conhecimento enquanto membro das gloriosas FA de Portugal?
E outra vez de acordo!
O número de "atabancados" interessa mas não é esse, julgo eu, o fim último da Tabanca Grande, mas sim estarmos sentados à volta da fogueira a ouvir e contar as histórias da "nossa" guerra.
Quanto à parte da solidariedade, já o referi várias vezes e outros como o Torcato também.
Se o Estado, que tem essa obrigação, não o faz verdadeiramente, nós teremos sempre de o fazer em ordem a cumprirmos voto de camaradagem feito no sangue, suor e lágrimas, e algumas gargalhadas também.
E se isto é verdade ao nível material, ainda o é mais ao nível emocional e psíquico, porque quem melhor do que aqueles que lá estiveram para entenderem as dificuldades, as frustrações, as noites de insónia, daqueles que por desenraizamento da vida, ainda sofrem os traumatismos da guerra?
E "prontos", por aqui me fico nesta primeira abordagem ao tema, "que tem muito pano, para muitas mangas"...
Abraço camarigo sempre do vosso
Joaquim Mexia Alves
_______
Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 19 de Novembro de 2008> Guiné 63/74 - P3479: Blogoterapia (73): O blogue do nosso contentamento, às vezes descontente (Vitor Junqueira)
Guiné 63/74 - P3480: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (2): IAO, Bolama, Outubro de 1970
Caros Luís e Vinhal
Em anexo segue mais um capítulo da Viagem...
Um abraço e parabéns extensivo a toda a Equipa
Bem hajam
Luis S Faria
BOLAMA - IAO (Instrução Aperfeiçoamento Operacional)
Ao largo, no Pijiguiti, após 12 dias de viagem no luxuoso Paquete inclinado - em que o passatempo era mergulhar na piscina imaginária, jogar ao atira garrafas bebidas borda fora, mentalização à soldadagem, umas leituras e recordações – dou uma escapada a Bissau. Os Praças não tiveram essa sorte. Umas voltitas, umas cervejolas (à altura ainda não sabia que eram bazucas) acompanhadas com uns tremoços que, coisa esquisita, mais me pareceram camarões! Gasto o chamado patacão e tomado o contacto com a nova realidade, há que regressar ao Paquete… para pernoitar, pois o tempo esgotou-se e não estava ali para férias.
Na manhã seguinte, a minha CCaç 2791 (FORÇA) rumaria à ilha de Bolama a bordo de uma LDG, para início do IAO.
Após a confusão ordenada de embarque na dita LDG e depois de uns tiros da sua arma pesada - se foi para porem os periquitos à rasca, conseguiram-no - chegamos à que se dizia sossegada ilha de Bolama.
Instalado e ao fazer os primeiros reconhecimentos à zona de comes e bebes e outros… tive oportunidade de sentir a que teria sido uma agradável estância de férias, - com a sua boa piscina, com aquelas praias, aquele mar, a vegetação com aqueles palmares, aquela fauna (a macacada, as aves do paraíso, as iguanas…) - e os primeiros contactos com a população local, olhando com alguma desconfiança os homens que, sabia lá (?!), podiam ser turras, e com olhos de ver, lindas Bajudas com as suas mamitas (?) ao léu e que não seriam turras com certeza (!!)
Enfim…
Mas a guerra estava lá, dura e impiedos, e eu queria que o 4.º Grupo, que comandava, coadjuvado pelo J. Fontinha (Op Esp) e o M. Chaves (açoriano), estivesse à altura de a enfrentar sem baixas, ou com as menos possível. Não queria que famílias chorassem por esse motivo.
Para isso era preciso trabalhar a sério com a rapaziada (Jericada como dizia/diz com ternura o meu grande amigo Fur Op Esp Castro, do 2.º Gr) nas técnicas de combate, assalto, progressão, observação e outras.
Ordem unida? Nessa matéria (detestada) necessária à disciplina, autocontrolo, unidade de grupo e mais… a rapaziada fez dela uma bandeira para mostrar ao resto da Companhia que o 4.º Grupo, o mais recente, mais pequeno (salvo erro, 20 elementos) e comandado por Furriéis tinha uma garra do caraças, e não ficava atrás dos outros, antes pelo contrário! (Eh Pessoal… e na parada de apresentação ao Gen Spínola? O General até se passou com aqueles Ombro-arma e batimentos recordam? Isto para não falar no nosso Cap Mil Mamede de Sousa. Foi demais! Quase que rachávamos a parada (!!!)
Com esta passagem não quero dizer que houvesse rivalidades ou equiparados na 2791. Pelo contrário, era uma Companhia muitíssimo unida. Para isso contribuíram os seus Quadros operacionais iniciais, que se davam muito bem e interagiam muito com o pessoal.
Como dizia, havia que trabalhar no duro e mentalizar a rapaziada de que o esforço dispendido podia fazer a diferença entre viver e …!
Atendendo a que o Fontinha e eu tínhamos treino especial e o Chaves nos acompanhava, o IAO foi realmente puxado, especialmente em Treino de combate, progressão, observação e auscultação do meio envolvente e outras. Tudo foi treinado até atingirmos a autoconfiança individual e de grupo. E a morfologia da ilha prestava-se bastante a esse treino.
Durante este período e para nos lembrar que havia guerra, que nem em Bolama se estava 100% seguro e não se podia facilitar, fomos brindados com um míssil numa hora de refeição, que nos fez abrigar por baixo das mesas e onde possível. Caiu perto e felizmente sem consequências.
Claro que também houve muitos momentos de descontracção. Convívios, cerveja, uísque, vinho, camarão e outros manjares, como provam as fotos. E esses eram momentos em que libertávamos o nosso Eu numa sã camaradagem e amizade, com conversas afiadas em que as estórias e as réplicas levavam por norma à gargalhada. Aquela do Alf Quintas, Op Esp do 1.º Grupo, conduzir um Unimog carregado de guineenses a toda a velocidade pela picada, ter chegado ao destino e ficar espantado por não estar mais ninguém na viatura (tinham saltado ou caído, felizmente sem problemas), ainda por vezes hoje é recordada.
E havia também os momentos em que se desabafava com os mais chegados, dos amores e desamores, das saudades, de situações vividas, dos anseios, dos medos e receios, normal na Juventude, que nos estava a fugir muito depressa.
E assim se foi esgotando o tempo na paradisíaca ilha e, a 30 de Outubro de 1970, embarcámos de novo numa LDG com destino a Bissau, de onde partimos em coluna auto para Bula.
Um abraço a todos
Luís S Faria
Bolama > Outubro de 1970 > Luís Faria
Bolama > Luís Faria na marginal
Furrielada com Oficiais e Sargentos > Ao fundo com cigarro Faria; ao lado e por ordem decrescente, de alturas Fontinha; Urbano (enfermeiro); Alf Quintas; Sarg Guerreiro; Mesquita; Ferreira. À minha frente, sentado, o Cap Mamede, à esqerda o Castro, Lourenço (TRMS), Alf Barros (?); Mealha (?) (Mecânico) e Belchiorinho (Vaguemestre)
Furrielada > Da esquerda: Madaleno, Belchiorinho; Mealha; Ferreira; Lourenço Fontinha; eu; Urbano; ? ; Marques; 1.º Cabo Trms Ribeiro
______________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3397: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (1): A ida, do RI5 a Bissau
Guiné 63/74 - P3479: Blogoterapia (73): O blogue do nosso contentamento, às vezes descontente (Vitor Junqueira)
Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º Encontro Nacional da malta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > Restaurante O Manjar do Marquês.
Antes do almoço, o Vitor Junqueiro, na sua qualidade de nosso anfitrião e organizador do encontro, fez o discurso de boas vindas. Homem de princípios e de valores, mas também verdadeira caixinha de surpresas, preparou-nos uma cena que nos sensibilizou a todos: rodeado, à sua direita, por uma das suas três filhas e por uma das suas duas netas, e à esquerda, por mim e pelo A. Marques Lopes, fez questão de ser condecorado, com o atraso de... trinta e três anos. A condecoração, que tem a ver com a sua brilhante folha de serviços como oficial miliciano na Guiné, fora-lhe atribuído pelo Chefe do Estado Maior do Exército, estando prevista sua entrega no dia 10 de Junho de 1974, o que não chegou a acontecer por o 25 de Abril de 1974 ter vindo a alterar o curso dos acontecimentos...
Com escrevi na altura, a entrega da condecoração por dois camaradas seus da Guiné foi um gesto muito bonito num dia muito bonito, em que realizámos, mais uma vez, o sentido da palavra camarada... O Xico Allen estava lá para bater o instantâneo. O que ele seguramente não pôde registar foram as palavras do Vitor para mim:
- Eh!, pá, ó Luís, vê-se mesmo que não tens jeito para esta merda!
(L.G.)
Foto: © Xico Allen (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem, com data de 22 de Outubro de 2008, do Vitor Junqueira, médico, residente em Pombal, membro da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso 2º Encontro Nacional, de saudosa memória, pai e avô babado, portentoso contador de histórias (com H), ex-garboso oficial da nossa ex-gloriosa marinha mercante, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá ,1970/72)...
Prezado camarada e amigo Carlos Vinhal,
Há já algum tempo que ando a adiar uma modestíssima e singela troca de impressões contigo a propósito da nossa comunidade virtual, o Blogue. Porque a outra, a dos amigos de carne e osso, está bem, recomenda-se e anda a pedir mais uma almoçarada e uns abraços de quebra-costelas.
Eu já sinto a vossa falta! Tenho andado um pouco mais ocupado do que o costume. Hoje, porém, tive uns minutos para passar uma vista de olhos pelos últimos posts, onde encontrei um comentário teu, aliás, dois, que achei do maior interesse. Num deles expressas a ideia de que devemos congratular-nos por um tão elevado número de visitas que, certamente, se deve à boa qualidade do material "afixado" e à grande categoria dos respectivos autores. Concordo! O outro, transportava nas entrelinhas, pareceu-me, uma subliminar "descasca" ao pessoal por estar a tornar-se preguiçoso. Uma espécie de toque a reunir, com o qual também concordo! Mas, o que está em causa, não é com toda a certeza uma dose exagerada de salutar preguiça. Até porque, os temas que tomaste como exemplo de uma certa hiporreactividade bloguista, são dos mais interessantes, e deveriam ter suscitado uma onda de colaborações.
Entendo por isso que será oportuno fazer uma análise do fenómeno e, partindo de um diagóstico fundamentado, introduzir as alterações que se revelarem mais consistentes com o propósito de manter toda a nossa gente on line. Porque, não reste qualquer dúvida, a escrita é o cimento que nos matém unidos. Para concretizar esse objectivo, nada melhor que cada um de nós assumir claramente as razões da própria desmotivação, chamemos-lhe assim. Se é que ela existe. E como não sou de arcas encouradas, passo a enumerar alguns tópicos de que não sou grande apreciador:
1 - Atrasos na publicação dos textos, algumas vezes por extravio, outras porque se estabeleceram certas prioridades, que não raramente, lhes retiram toda a oportunidade.
Um texto no momento certo pode ser uma pérola, descontextualizado não passará de uma parvoíce ainda que produzido por autor de boa cepa. Tem calma, Carlos, que eu bem vi como te torceste todo na cadeira. Isto nada tem a ver contigo ou com o Briote! Eu conheço muito bem o vosso empenho a favor da causa e o número incontável de horas do vosso lazer que lhe dedicais. O que terá de ser eventualmente alterado é a metodologia. Para issso podemos ter de vir a considerar a postagem directa, com a responsabilização pessoal e jurídica, explícita, dos escribas, e a retirada imediata de um texto, som ou imagem, sempre que se constate existir ofensa à carta de princípios criada pelo Luís. E que tal a criação de um conselho de ética?
2 - Textos fortemente "editados".
Se por um lado podem esconder a alma de quem os concebeu, não terão também o inconveniente desencorajar ou inibir aqueles que se sentem menos à vontade com a escrita?
3 - Transcrições longas e enfadonhas de manuais ou seus excertos.
Aqui incluo a pré-apresentação de livros sob a forma de folhetim que, conjecturo eu, não atrairá o interesse geral. Confesso que nunca tive pachorra para ler nem uns nem outros e não devo ser caso único. A este respeito, o blog apresenta com demasiada frequência muitas parecenças com o site de uma qualquer editora.
4 - O controverso, o contraditório e a polémica são o sal e a pimenta dos nossos cozinhados literários. Ultimamente tem-se notado uma certa falta destes tempêros.
E lá porque um ou outro tem ataques de azia, não será por isso que nos devemos resignar ao desenxabido consensual. Como homens de guerra que somos (fomos), honremos a guerra, agora com a língua e a caneta!
5 - Quase todas as semanas se apresenta mais um camarada, atraído para o nosso convívio. Isso agrada-me. Mas cadê a historiazinha a contar o drama, a peripécia, a barracada de que foi protagonista ou de que teve conhecimento enquanto membro das gloriosas FA de Portugal?
Muitos têm-se esquecido. Mas isto não é o clube dos amigos de Alex, há que apresentar serviço!
Para finalizar, um curto relato. Fui contactado há uns meses por um homem por quem tive sempre muito respeito. E para além do respeito, afeição. O Manuel dos Santos, antes e depois da tropa, dedicou-se sempre à indústria da restauração. Como empregado. Encontrámo-nos pela última vez há-de haver para aí uns cinco anos, em Santa Comba Dão. Sempre muito respeitoso e educado, quase tímido, viu-se que ficou feliz por ter podido reencontrar-se com os seus antigos furriéis e alferes. Prometeu que estaria presente no encontro seguinte, nos Açores, mas não compareceu.
Agora, gravemente doente, abandonado pela mulher, rejeitado pelos amigos da onça, posto de lado por uma filha que formou, estava sem recursos para enganar o estômago e pagar a renda de um barraco que lhe servia de habitação ali para os lados de Leça. Muito envergonhado, pedia-me um pequeníssimo empréstimo que tencionava devolver quando recebesse a prestação seguinte da Segurança Social.
Nunca mais tive notícias suas, nem sequer tive possibilidade de saber se ainda está entre nós.
Durante mais de dois anos, o 1º cabo corneteiro Manuel dos Santos zelou pelo nosso bem-estar. Como responsável pela messe e despenseiro servia-nos, no prato, as melhores refeições que podiam ser cofeccionadas com os parcos meios de que dispunha, procurando sempre que estivessem a nosso contento, tudo fazendo para que estivessem.
Como o do Manuel, haverão imensos casos de camaradas nossos em maus lençois. Dentro ou fora da esfera profissional, será que ainda vamos a tempo de fazer o gesto que se impõe? Em que medida é que através do blog poderíamos chegar a alguns aflitos?
Continuação de um excelente serão.
VJ
2. Mensagem do Carlos Vinhal, com data de 27 de Outubro, remetida aos editores LV e VB:
Caros companheiros:
Para vosso conhecimento e reflexão, já que o Vitor é um excelente crítico. Aguardo as vossas doutas opiniões.
Ab
Carlos
OBS:-Este reenvio tem, como é logico, aprovação do autor, já que não é um mail pessoal.
3. Comentário dos editores LG/CV/VB:
Querido Vitor:
(i) Como há dias escrevia o Luís Graça, tu já tens, no nosso blogue e na nossa Tabanca Grande, o estatuto de senador... Tal significa o direito a algumas prerrogativas (ou, como diziam os romanos, privi + legiu > lei privada);
(ii) Tens, por exemplo, o privilégio de poder falar alto e bom som, enquanto a gente baixa a bolinha (para melhor te poder ouvir);
(iii) Estás isento de horário de trabalho, tens licença ilimitada de entrar e sair a qualquer hora; e de passar, inclusive, longas temporadas fora da nossa Tabanca Grande (temos ciúmes mas não o podemos demonstrar em público...):
(iv) Tens todo o direito de mandar bitaites a estes teus pobres e humildes editores; estás a exercer a tua soberaníssima e inalienável liberdade de expressão;
(v) As cinco críticas que nos fazes, acertaram na mouche: são pertinentes, contundentes, oportunas, etc. ;
(vi) Sem termos a veleidade de te responder nem muito menos contestar, deixamos-nos apenas alegar em nossa defesa o seguinte:
(a) o blogue cresceu demasiado, depois de Pombal, a partir de meados de 2007, e nem sempre, nós, os três, conseguimos dar boa conta do recado; no máximo, podemos publicar 5 postes por dia, com muita coordenação, trabalho, inspiração, transpiração; em média, 2 a 3 por dia; nas férias, 1 a 2 por dia; compare-se, a seguir, a nossa produção bloguística no mês das férias (Agosto) e nos meses de Outubro e Novembro de 2008: no gráfico de barros, pode-se ver a nossa produção semanal (em número de postes), produção essa que depende não só dos textos enviados aos editores como da capacidade de edição destes últimos...
(b) a correspondência recebida (e expedida) é volumosa, a ponto de ficarmos por vezes afogados em mails; estamos, agora, por exemplo, a fazer a limpeza (periódica) à nossa caixa de correio;
(c) há atrasos que, por vezes, podem ser irremediáveis, tirando oportunidade e sentido aos textos que nos são enviados (sobretudo em questões que estão encadeadas, que têm perguntas e respostas, etc.);
(d) procuramos quase sempre manter o espírito da mensagem quando, por mor do português de lei, somos obrigados a corrigir a forma; não queremos o mau exemplo que vai por aí, por essa blogosfera fora; não somos um blogue literário, mas queremos entender-nos... em bom português, entre portugueses e outros lusófonos, incluindo os nossos amigos, camaradas e irmãos da Guiné;
(e) vamos ter em conta o teu reparo sobre o excesso de transcrições (de livros, relatórios, etc.) e de outros sinais exteriores de eventual novo riquismo literário;
(f) não queremos ser um clube dos amigos de Alex (muito menos de poetas mortos...), vamos manter a tarifa 1 homem, 1 história, como preço de ingresso na Tabanca Grande; quem quer entrar, pede licença, apresenta-se e conta história;
(g) e, claro, estamos de acordo: o contraditório, a exposição de pontos de vista contraditórios, a crítica, a discussão de pontos de vista, o debate, a saudável polémica, etc. são o sal da vida bloguística, são o que (também) dá pica à vida e ao blogue; mas, tal como o stress, tem de ser q.b.;
(h) Por fim, e não menos importante, quanto ao conselho de ética... Está prometido há meses, temos que cumprir a promessa... O que tu, no fundo, estás a fazer é o papel de provedor do blogue, uma figura que pode ser individual ou de pequeno grupo de senadores (ou, melhor homens grandes) como tu...
E a solidariedade entre camaradas, sobretudo nas más horas, como no nosso tempo, na Guiné ? Como vamos manifestá-la ? Publicamente, discretamente, efectivamente ? Casos como o António Batista ou do Manuel dos Santos não podem deixar-nos indiferentes...
E pronto. Temos dito. E, com um atraso de quase um mês, publicado. Não cremos que o texto tenha perdido acuidade e actualidade. Mas tu dirás da tua justiça. Aliás, é uma excelente oportunidade para outros camaradas e amigos se pronunciarem também sobre o blogue do nosso contentamento, às vezes descontente, parafraseando o nosso grande lírico, o nosso Luís de Camões, o maior e o melhor de todos nós...
Um Alfa Bravo destes três cavaleiros andantes, nos seus cavalos já velhos, cansados, ronceiros, mas ainda voluntariosos, Luís, Carlos e Virgínio.
PS - Obrigados pelo privilégio de voltarmos a ler as tuas Histórias (com H). Estamos a pensar também em... próximo livro, teu, ou colectivo, de antologia (por exemplo, com as nossas melhores 25 histórias), brochado, de preferência, de capa dura, como deve ser, a um preço razoável, acessível a todos (ou à maior parte de nós)... E, claro, com direito a festa rija, de lançamento, que o texto é também pretexto para a festa da amizade e da camaradagem, festa que o nosso blogue procura celebrar todos os dias... Se nem sempre o consegue, é por culpa dos oficiantes, da comissão de festas, e dos... artistas (que afinal de contas somos todos nós).
terça-feira, 18 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3478: Bibliografia de uma guerra (37): Cacimbados, de Manuel Correia Bastos: CART 3503, Mueda, Moçambique, 1972
Cacimbados – A vida por um fio.
Autor: Manuel Correia de Bastos
Editora: Babel
Pgs.: 192
Preço: 14,00 €
O livro está à venda na FNAC e na Bertrand.
A sessão de apresentação ocorreu na Casa Municipal da Cultura de Coimbra, em 15 Novembro, perante uma assistência de cerca de 100 pessoas.
1. Apresentação pela Dra. Inês Campos (1)
O livro Cacimbados: A vida por um fio, de Manuel Correia Bastos foi lançado pela editora Babel dia 15 de Novembro. Através de uma prosa cativante, onde o humor e a tragédia se cruzam espontaneamente, os Cacimbados transportam-nos 35 anos atrás para a realidade brutal de luta e sobrevivência de milhares portugueses a combater na Guerra Colonial.
Como refere o autor na introdução, “este Portugal com dez milhões de habitantes fez um esforço de guerra em África nove vezes superior ao que os Estados Unidos fizeram no Vietname, com os seus duzentos e cinquenta milhões.”
Narrando alguns episódios de guerra e da vida da sua Companhia posicionada em Mueda, Manuel Bastos reconstrói um tempo e um espaço carregados de acção, que nos prende desde a primeira linha até ao desfecho final. Com as suas palavras permite-nos testemunhar acontecimentos reais que, tendo ocorrido não há muito tempo atrás, pertencem a um momento histórico quase desconhecido das novas gerações.
A obra afirma-se por isso contra uma História que tende a esquecer os 13 anos em que a Guerra se entrosou nas vidas de jovens homens e mulheres, e cujas consequências pairam sobre o Portugal pós-25 de Abril, de um modo circunspecto mas tremendamente poderoso.
Com uma expressividade minuciosa, o autor vai ao encontro do pormenor para transformá-lo num mundo gigantesco de significados, sentimentos e reflexões filosóficas. A história da experiência da Guerra chega-nos através de um soldado capaz de se abstrair dos acontecimentos em curso, da urgência de cada instante, debaixo do fogo ou em campos minados, para ponderar sobre aquilo que o rodeia. Reflecte sobre os outros, camaradas e inimigos, sobre a vida na selva africana, mas sobretudo sobre a condição humana quando se é atirado para o metal e o fogo, que matam sem consciência.
A força repressiva que se impusera aos soldados recrutados, e a ausência do direito de liberdade de escolha, é um facto expresso pelo autor logo nos primeiros textos, quando relata a viagem no navio Niassa, de Lisboa a Moçambique:
“Útil também é avisar a quem isso interessar, que um cidadão que se entrega aos desvelos de uma instituição militar de um país governado por uma minoria de tiranos sem escrúpulos, tem que estar preparado para não poder recorrer às leis que protegem os animais quando são transportados. Digo isto, porque estou certo que se a GNR multou um vizinho meu por transportar mais porcos do que a carga permitida para o seu camião, decerto não deixaria sair o 'Niassa' do Cais de Alcântara.”
Quando os soldados são transportados para a Guerra em África e os motores do navio Niassa param, Manuel recorda-se por momentos que realmente ninguém faz a pergunta mais óbvia: Porquê?
Na época da Guerra Colonial era uma verdade inquestionável para todos esses homens que uma data de terras no continente africano faziam parte de Portugal. Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde eram terras portuguesas, não eram nações distantes do lado de lá do Equador.
Nessas terras portuguesas viviam milhares de Portugueses iguais aos que viviam nas suas aldeias, vilas ou cidades europeias. Nessas terras encontravam-se milhares de pessoas que falavam português, que possuíam cidadania portuguesa, e que nunca tinham sequer conhecido a metrópole. Assim via o mundo uma geração inteira de jovens homens e mulheres.
No entanto, mesmo em 1973, do lado de lá do Equador, o Furriel Miliciano Bastos começa a questionar a sua relação de pertença com aquelas terras que lhe cabe defender:
“Deito-me de costas no chão a ver subir o fumo do cigarro e sinto a grande bola do mundo debaixo de mim. Lembro-me de que todas as pessoas que amo estão ao contrário do outro lado, vivendo as suas vidas, e lá estão também as pessoas que odeio. Deste lado, no chão está um grupo silencioso de fantasmas preparando-se para passar a noite. Ficámos do lado errado do Equador, as estrelas que nos cobrem não nos conhecem, e a Lua, complacente, ilumina-nos apenas o suficiente para tomarmos consciência da nossa pequenez em confronto com a monumentalidade da vegetação.”
Existia um Portugal grande, com fronteiras delineadas de África à Ásia chinesa, indiana, timorense...Um Portugal pobre, mas gigante. Um Portugal que lhes exigia o pagamento de uma dívida que eles nem sabiam que tinham contraído: a divida da cidadania, a impossibilidade de escolher entre ir ou não ir combater pelas fronteiras dilatadas de um Império gigantesco.
A sensibilidade do autor permite fazer chegar até nós uma descrição verídica de factos e acontecimentos, assumindo de certo modo o papel de um repórter de guerra. Mas é também uma reflexão profunda, de carácter filosófico e antropológico, sobre o que significa a guerra para um soldado, e ainda mais para um que deixou em Moçambique uma parte física de si e prosseguiu com coragem, a reconstruir a sua vida no novo Portugal que emergia.
Manuel Bastos revela um discernimento capaz de reflectir sobre a sua grande perda: o seu próprio desmembramento numa selva minada. Os textos finais arrastam-nos com imagens poderosas que nos unem à mente do autor, absorvidos pela sua narração dos minutos, dos sentimentos, da dor e do medo atroz e insuperável ao cair numa mina, que lhe desfaz a perna esquerda.
Não existe nada mais que a verdade nas palavras de Bastos, a vida pura e sentida no campo de batalha e a interpretação filosófica de um homem capaz de injectar novos sentidos às realidades mais difíceis de aceitar. Um homem que vive com a coragem de quem dá pleno valor à vida e à integridade da condição humana, e que acima de tudo conhece a obscenidade de todas as guerras. A guerra é para Manuel “obscena” e só deve suscitar em nós um propósito: evitá-la.
Quando lerem o livro, recomendo uma atenção especial às fotografias originais que foram incluídas. Manuel incumbiu-se a si próprio a tarefa de fotografar as operações da sua Companhia e o autor provou ser um excelente fotógrafo. As suas imagens falam tanto como as palavras, transportam-nos para a selva africana e para episódios da guerra de guerrilha com uma veracidade documental.
Acredito que este livro será igualmente um relato valioso para qualquer historiador da Guerra Colonial, redigido em primeira mão por quem viveu a história e foi tremendamente marcado por ela.
Por todas estas razões e pelo simples facto de que ler esta obra é ser tocado por uma prosa muito especial, quase poética, ainda que documental, fico muito feliz pela aposta da Editora Babel nos Cacimbados, e acima de tudo muito feliz por ter tido o prazer de conhecer a obra e a pessoa de Manuel Bastos.
2. O improviso do Manuel Bastos
Este livro que agora vos apresentamos, este pequeno livro, precisou de muita coisa para ser feito. Precisou de uma guerra, de uma revolução para terminar a guerra, precisou de mortos, feridos e traumatizados. Precisou de cerca de um milhão de portugueses em armas, o que fez de Portugal um dos países mais belicistas do mundo, provavelmente logo a seguir a Israel. Alguns desses ex-combatentes encontram-se aqui, os meus companheiros da mata e das picadas de Mueda. Eles são os protagonistas deste livro, às vezes com os seus nomes verdadeiros, às vezes com nomes fictícios. Sem eles este livro não teria sido feito.
Este livro não existiria se não tivesse existido, também, uma primeira leitora, a mulher de todos os meus dias, aquela que primeiro me disse: "Estas palavras merecem ser publicadas." Alguém que possui o dom especial e muito raro de conseguir ver beleza nas coisas que os outros fazem, o que é uma forma de generosidade. Na verdade, para encontrarmos beleza no mundo, temos que possuir beleza dentro de nós. Também como ela, a Inês Campos tem esse dom. Encontrou as minhas palavras na Internet e transformou-as numa obra literária. É a ela também que se deve este livro.
É evidente que depois precisamos de pessoas que consigam concretizar o sonho que as palavras transportam, para isso precisamos de um editor – que pertence àquele grupo de pessoas sem as quais, tudo o que nós conhecemos, automóveis, computadores, catedrais, ou livros, nunca existiriam, eles é que concretizam os sonhos alheios; é também uma forma de generosidade – sem ele também, este livro não existiria.
Mas este livro que usa as minhas palavras… Ou melhor: as palavras que eu utilizo, as palavras não são minhas, as palavras não têm dono. Eu imagino-me como um simples apanhador de palavras, eu apanho-as por aí e depois tento, como neste livro tentei, espero que encontrem isso; tento desenhar a impossível forma dos sentimentos e dos afectos. Gosto de me imaginar como uma criança que apanha conchas à beira mar e com elas faz construções na areia, ou como uma velha senhora que apanha rosas no seu jardim e faz centros de mesa, ou… talvez melhor ainda um camponês que apanha seixos no seu quintal para limpar o terreno e para enfeitar a beira do caminho. É isso só que eu sou, um apanhador de palavras, por isso é preciso que haja pessoas assim, que descubram beleza nessas palavras.
Mas este livro não está completo, é um objecto físico só. Precisa de um leitor, é por isso que vocês, e eu vos lanço este apelo: alguns já o adquiriram; que o divulguem. Sem um leitor não há livro nenhum, nem há autor, só os leitores farão de mim um escritor, ainda não sou um escritor. Quando vocês lerem, quando alguém ler e convencerem o meu editor que talvez valha a pena editar mais algum. É preciso lerem este, foi para isso que os chamámos aqui, e para o divulgarem na medida que vos for possível.
Mas este livro não tem interesse nenhum se não tiver ao menos um ensinamento, por modesto que seja, e eu quero acreditar que tem. Este livro pode servir de alguma forma para que os nossos filhos arranjem uma maneira qualquer para evitar que os nossos netos vão para a guerra. Porque a guerra só tem uma virtude, só uma: a guerra pode ser evitada.
Cerca de uma centena de Camaradas e Amigos assistiram à apresentação.
Fotos: Cacimbo (2008) (Com a devida vénia..)
3. Comentário de VB:
Os nossos duplos parabéns ao nosso camarada Manuel Correia Bastos, membro da nossa Tabanca Grande: (i) pela publicação do seu livro, que é uma acto de coragem, de partilha, de camaradagem; (ii) pelo seu blogue, o Cacimbo, que faz cinco anos de existência, e é seguramente o mais antigo dos blogues dedicados à guerra colonial. O Bastos foi Fur Mil da CART 3503/BART 3876, esteve em Mueda, em 1972, quatro meses (de Fevereiro a Junho). Foi evacuado devido a ferimentos por mina antipessoal.
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Notas de vb:
Guiné 63/74 - P3477: História da CCAÇ 2679 (7): Quotidianos (José Manuel Dinis)
1. Mensagem de José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 14 de Novembro de 2008:
Carlos, meu amigo,
Com a desaceleração do Beja Santos, tens beneficiado de algum descanso na edição do blogue. Pus-me em cogitações, de que a preguiça é a mãe de todos os vícios, e esforcei-me nesta croniqueta que te mando, não vá acontecer que te tornes um madraço, e qualquer dia não temos quem te substitua no papel de competente editor. Assumo que temos de te garantir trabalho. Oxalá eu seja capaz. Outra vez, muito obrigado pela acção que vocês desempenham, de catalizadores da família Tabancal.
Para o pessoal todo, aquele abraço fraterno.
José Dinis
Quotidianos
Sob o sol ardente da tarde, saímos de Piche em direcção a um ponto no Corubal, em passo estugado, pois o Comando referira ter informações de que o IN estaria atravessando o rio numa suposta área, e nós devíamos interceptá-los em caso afirmativo. Caminhava sedento. A dose para matar a sede, era de uma tampinha do cantil em cada vez, mas a frequência, alertava-me para o esgotamento da água.
Tínhamos regressado de uma coluna matinal e o almoço já ocorrera para além do serviço normal, pelo que a refeição requentada, não fora agradável. Ainda sentados à mesa, fomos avisados da saída iminente e o Guerra chamado ao Comando. Estas acções inopinadas que nos roubavam o descanso, também fustigavam a moral.
Sempre prontos, como bombeiros, abalámos mata fora. Respondíamos ao transpirardo corpo, com um caminhar automatizado, ora por trilhos, ora a corta mato, ou atravessando bolanhas com a superfície ressequida, por efeito da forte cacimbada. O calor era imenso. A sede aumentava com a correria durante a digestão. A zuada persistente dos mosquitos, envolvia-nos em tortura desgastante e complicava a progressão.
Chegados à margem do rio, que percorremos em alguma extensão, silenciosos e alerta, não encontrámos sinais de qualquer actividade do IN. Instalá-mo-nos, e fizemos a ligação por rádio. Enquanto aguardámos instruções, um a um, cautelosamente, enchemos os cantis, bebericámos despreocupadamente e demos descanso aos corpos, nas sombras das árvores, com pouca conversa, já que mantínhamos uma formação alongada. No silêncio da mata, ouvia-se uma ou outra ave que dava sinal da nossa presença. O cenário da quase selva africana abatia-se sobre nós e todas as possibilidades da guerra podiam atraiçoar o remanso. Até que o rádio transmitiu indicações para alcançarmos um trilho identificado na carta, prosseguirmos na direcção norte até outro ponto, onde seríamos recolhidos por viaturas,
Chegámos a Piche quando o horizonte incendiava a poente, numa mancha de fogo que anunciava para breve o pôr-do-sol.
Pelas 22h00 dormia profundamente, fui acordado com abanões. Filho da puta - reagi chateado. Desculpe, senhor padre - aquiesci ao identificar o capelão.
- Está ali uma mesa tão bonita, não queres vir juntar-te a nós? - perguntou-me com doçura o enviado de Deus.
Não precisou de gastar muitos argumentos, para que me juntasse aos parceiros da batota. Jogava o pocker de cartas com um rendimento notório, pois saíra a ganhar de todas as sessões em que participara. Só que, agora, havia uma certa diferença no valor das caves. Enquanto com os meus amigos, quando alguém apostava dois e quinhentos, ou fazia bluff, ou tinha jogo, agora, ganhava-se e perdia-se aos contos de reis. O padre, esse, devia usar dinheiro milagroso, pois perdia consecutivamente, sem perder a compostura. Era, aliás, um excelente parceiro, bem disposto, que transmitia alegria e dava lenitivo aos espíritos, quando nos referia que, indo a Bissau, se nos dirigíssemos à igreja de Brá, ali poderíamos dispor, quer do Volkswagen, quer da Fatinha, a bajuda deliciosa.
E o whisky corria pelas gargantas em catadupas enebriantes, que nem sempre combinavam com o discernimento para a jogatana.
Todavia, a mão invísivel de Deus conduzia o meu destino com sucesso e sempre arrecadei umas notitas nas noites de perdição.
Guerra, é Guerra!
Aconteceu a minha primeira vez com o paludismo.
De um modo geral, à boa maneira portuguesa, não fazíamos qualquer prevenção anti-palúdica. Como, também, não fazíamos qualquer prevenção , quando recolhíamos água da bolanha ou das poças que resistiam ao sequeiro sahariano. E, em abono da verdade, o Victor era depositário de comprimidos adequados, que queria impingir-nos e nós regeitávamos. Dessem-nos gin com fartura e julgávamos nós, a saúde corresponderia eficazmente.
Talvez por isso, fui uma vítima do paludismo, prostrado na cama com imensos febrões, sem energia, nem vontade para comer, nem para receber a luz solar, para ali estava, derrotado pelos minusculos mosquitos transmissores do vírus. Bem quisto, bem quisto, era o Vitor, que me espetava resochinas, e transmitia-me a esperança de sobreviver e arribar. Foram dias de descanso penoso e obrigatório.
Uma dessas noites, estava o Foxtrot escalado para uma emboscada nocturna, quando à passagem pela última linha de arame, vá-se lá saber porquê, o Guerra decidiu ficar por ali, num abrigo periférico, o pessoal em confraternização com os que ali viviam e defendiam a posição, nas tintas para os fingidores que, de tanto inventarem a guerra, moíam o juízo e o corpo da malta e ainda dividiam os louros e honrarias entre si. De rompante, entrou o Drácula e o nosso capitão.
Alguém bufara pelo telefone do abrigo, provavelmente quem o comandava, enquanto se fazia cúmplice na finta à emboscada nocturna. Ainda faltava muito para a obra do Alberto Pimenta, Discurso sobre o filho da puta, inspirada nessas manifestações sórdidas e cobardes:
... é o pequeno
filho da puta
que dá ao grande filho da puta
tudo aquilo de que o grande filho da puta
precisa
para ser o grande filho da puta
diz o pequeno filho da puta...
É histórico o exercício ou o jogo do poder, assenta na divisão dos pequeninos que, de tanto se sacanearem, vão perpetuando as divisões e a subserviência.
Daquela ocorrência resultou a transferência do nosso alferes, um tipo porreiro, gracioso na linguagem desbragada que ofuscava o adolescente ingénuo, completamente desalinhado com a obediência cega e os imperativos do RDM, marginal aos quesitos e tradições do exército, querido do pessoal, que o estimava acima de tudo, tinha a maneira peculiar de estimular, desdizendo do sistema e das regras que o sustentam. Língua afiada, boa disposição permanente, tolerante, mas decidido, o Eduardo Guerra antecipava, assim, as despedidas do pelotão.
A homenagam viria a acontecer pela consolidação e orgulho do Foxtrot que o recordava frequentemente.
O Martins
Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa
Foto e legenda: © José M. Matos Dinis (2008). Direitos reservados
De seu nome completo, José da Ressurreição Martins, foi o primeiro Foxtrot a levar uma porrada, porque, quando deambulava distraído pelo aquartelamento, em Piche, não bateu a pála ao Drácula, que se lhe atravessou ao caminho.
Indignado, o homem interrogou o ingénuo militar, manifestamente atarantado, que mais se enterrou com a resposta desajeitada.
Punido com 10 dias de detenção, pelo Exmo. Comandante do BArt 2857, em 07Mar70. Pena agravada em 21Abr70, pelo Exmo. Comandante do Agrupamento 2957, para 10 dias de prisão disciplinar".
Toma! O inimigo não dorme.
O coitado do Martins, companheiro, esforçado e respeitador, um tipo que fez a comissão sem levantar ondas, quase despercebidamente, não fora lidarmos todos os dias, alcandorado a bandalho provocador, pela sanha persecutória de duas bestas: uma, que governava pelo terror; outra, que agravava para se afirmar. Assim, simplex, sem cuidarem de saber as qualidades do soldado. Dois heróis que, seguramente, bem podiam passear-se medalhados, face aos inúmeros riscos que correram.
O Martins constará mais tarde da lista dos louvados, pelas boas práticas e qualidades pessoais, no âmbito das tarefas que competiram ao Foxtrot.
Deixou uma marca bem positiva no relacionamento com camaradas e superiores que lhe dispensaram grande confiança.
JMMD
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Nota de CV:
Vd. poste de 7 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3420: História da CCAÇ 2679 (6): Piche, novamente (José Manuel Dinis)
Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)
Quando da minha passagem por Paunca, estive num destacamento chamado Paiama [, na margem esquerda do Geba Estreito, a noroeste de Paunca,] e alguns dias após o Natal de 70 tivemos a visita do heli..
Mandados os soldados de piquete para a orla da mata a fazer seguranço, o heli aterrou. Apareceu-nos então um sr. Capitão em passo de corrida, dizendo que era uma visita do nosso general (Caco Baldé), e que os soldados formassem como estavam nem que fosse em cuecas.
Logo instantes depois aparece o nosso General no seu camuflado de manga curta e seu monóculo. Olha em volta e, dando indícios de não conhecer o sítio, diz:
- Eu nunca aqui estive, isto quer dizer que não vos dei os votos de Boas Festas.
E virando-se para um dos nossos soldados, o José Jeremias - natural da torre da Gadanha e cuja mãe lhe enviava umas ricas Boias, ou seja, pedaços de lombo de porco em banha numas latas tipo Cerélac, o qual hoje é carteiro na zona da Amadora - disse:
- Isto foi um lapso... Sabes o que é um lapso?
- Sei sim, meu general, é uma coisa para escrever.
Grande risota geral, até do general.
Manga de mantenhas para todo o pessoal .
2. Comentário de L.G.:
Enquanto o Carlos Vinhal está a tratar da tua entrada para a nossa Tabanca Grande, eu aproveito para pôr em linha esta tua deliciosa história (**)... Vejo que tens sentido de humor e de observação. É um apontamento original sobre o nosso quotidiano, os nossos camaradas e sobre o nosso (meu e teu) Comandante-Chefe (***)... Só se contam anedotas de quem a gente gosta, aprecia, valoriza, respeita, teme, e às vezes ama e odeia ao mesmo tempo...
Havia, por parte da maior parte da malta do nosso tempo, do Zé Soldado, mas também dos milicianos, um sentimento algo ambivalente em relação ao Caco Baldé... Não sei se ele era adorado: mas respeitavam e admiravam a sua maneira de ser e de estar, de comandar, de aparecer onde menos se esperava, a sua coragem física, o seu paternalismo autoritário, o seu populismo, o seu carisma, o seu perfil prussiano, o monóculo, o pingalim, a sua demagogia... O Caco Baldé, como todos os grandes chefes militares, era secretamente amado por muita gente...
Espero, Rogério, que o teu exemplo seja seguido por outros camaradas. O anedotário da spinolândia é muito maior que os escassos textos que já aqui publicámos sobre o humor de caerna... No meu tempo, toda a gente contava anedotas do Spínola... Passados estes anos, parece que até as anedotas do Homem Grande de Bissau se nos varreram da memória...
O humor de caserna é um antídoto contra a crise, a depressão, o mau-estar, o azedume que a idade também traz consigo...
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2008
Guiné 63/74 - P3255: O Nosso Livro de Visitas (31): Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, Guiné (1970/71)
(**) Vd. postes anteriores desta série:
26 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)
9 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2337: Humor de caserna (4): Cancioneiro do Niassa: O Turra das Minas (Luís Graça)
1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)
26 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2304: Humor de caserna (2): Welcome to Mansambo, a melhor colónia de férias do ano de 1968 (Torcato Mendonça / Luís Graça)
23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)
(***) Vd. postes de:
30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)
4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: Tugas - Quem é quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)
Guiné 63/74 - P3475: O Nosso Livro de Visitas (44): Fernando Inácio
Data: 06/11/2008
Assunto: Monumento
Para Carlos Leitão Carreira
Cc: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com
Ex.mo Dr. Carlos Leitão Carreira,
Antes de mais peço igualmente desculpas pelo atraso na resposta, mas estou novamente de partida para Africa, Angola desta vez, e o tempo tem sido escasso.
Aliás, amanhã a esta hora já estarei no avião.
As fotos que tenho sobre o monumento de Farim são as que envio em anexo e foram tiradas pela emoção que em mim despertaram: tal como ossadas de um elefante morto gastas pelo tempo, lá se erguia aquela peça fantasma no coração das matas da Guiné desafiando todas as probabilidades, uma peça da Lusitanização da Guiná que provavelmente não dirá nada aos habitantes de hoje.
Aliás, toda a Guiné me pareceu um enorme cemitério de sonhos de vida dos nossos compatriotas que por lá viveram e gastaram as suas vidas. É impressionante passar por ruas onde os azulejos Portugueses ainda anunciam Vivenda Marques, O nosso lar e por diante.
Chorei de emoção perante tal demonstração de amor a uma terra que não era nossa.
Em Angola também se sente o mesmo, embora numa escala menor, pois o país está mais desenvolvido e com mais construção nova.
Estou em Angola por algum tempo, de 2 a 3 meses, se precisar de alguma recolha histórica disponha. Contacte-me para este endereço de mail, pois o outro está em vias de ser cancelado.
Com um abraço de amizade,
Fernando Inácio.
Guiné-Bissau >Farim > Fotografias do Monumento, da época colonial, ao 5.º centenário da morte do Infante D. Henrique. Fotos do nosso amigo Fernando Inácio que tinha 10 anos por altura do 25 de Abrild e 1974, mas que lê e ouve com emoção as nossas histórias de combatentes.
Foto: © Fernando Inácio (2007). Direitos reservados
2. Mensagem enviada ao nosso amigo Fernando Inácio no dia 17 de Novembro de 2008:
Caro Fernando Inácio
Antes de tudo, quero saudá-lo porque há muito não sabíamos o seu endereço. Ainda bem que voltou ao nosso contacto.
Em nome do Luís Graça, quero agradecer a prestimosa colaboração dada ao Dr. Carlos Leitão Carreira, com as suas fotografias do monumento do V Centenário da morte do Infante D. Henrique.
Os editores do Blogue ficam à sua disposição.
Com os melhores cumprimentos
Carlos Vinhal
_____________
Nota de CV
(*) Vd poste de 5 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3410: Memória dos lugares (14): Farim e o monumento ao 5º centenário da morte do Infante D. Henrique (Carlos L. Carreira, arqueólogo)
Guiné 63/74 - P3474: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): De Évora a Mansambo...
ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo
1968/69
O Torcato Mendonça nos dias de hoje.
E nos tempos de Mansambo A – De Évora a Bissau Não tinha combinado com o José, a continuidade da segunda parte das suas Estórias da Guiné, prometidas, sem compromisso como era hábito nele, meses antes. Um dia, ao final da tarde, voltou, calmo e sorridente, menos cabelo e mais rugas, com o “eterno” saco a tiracolo.Depois dos cumprimentos, apontou, o José, para o saco e disse: - Tenho as estórias da Guiné aqui. A fase A, a que chamei de Évora a Bissau e parte da Fase B, que será sobre a comissão ou os dois anos que por lá andei. Procurei não me repetir. Eu sorri e esperei o que dali sairia. Abriu a sacola, sacou de umas quantas mini-cassetes e de um bloco. - Olha - disse-me - Ouves as cassetes, seguindo as indicações escritas no bloco. Passas à tecla e dás-me depois uma cópia. Podes cortar à vontade. Não podes é desvirtuar o texto. Se alguns, achares estarem repetidos ou não terem interesse eliminas. Vou ler e passar a limpo. Falaremos depois, disse-lhe. O resultado é este, negando-se ele a ler o que foi passado a limpo e os cortes. 1 – Évora Na primeira parte, das estórias do José, falei da recruta e especialidade. Procurando não me repetir, volto a Vendas Novas.
Cadetes em Vendas Novas limpando as G3. Pouco tempo antes de terminar a especialidade, foi-nos dada a hipótese de “escolher” o quartel para onde queríamos ir. Escolhi Évora e nada mais. Não acreditava que os cadetes, quase aspirantes – fora os que iam chumbar – pudessem escolher algo. Certo é que deu. Terminada a especialidade, galão ou risca num ombro, guia de marcha e um papel na mão para, depois de curto período de férias, me apresentar em Évora.
Conhecia bem a velha cidade. No quartel, que não conhecia, o meu pai tinha estado cerca de trinta anos antes, a cumprir o serviço militar sob a ameaça da II Guerra.
Parada do antigo RAL 3 aqui, nos anos quarenta (RAL1). A Parada mantinha, cerca de trinta anos depois, o mesmo aspecto. Boas recordações dos meses que lá estive. Sempre que por lá passo, se puder, paro e dou uma volta pela cidade… e volto atrás no tempo… até ao dia, há muitos anos atrás em que lá casei… Recordações de outras vidas! No dia determinado apresentei-me um dia no RAL 3. Nada tinha a ver com Artilharia, pois era atirador. Especialidade igual em qualquer Arma. Havia, e apresentaram-se no mesmo dia em Évora, os aspirantes das especialidades de Artilharia. Creio que éramos dez ou doze. Não sei ao certo e também não me recordo como lá cheguei. Lembro-me, isso sim, da velha mala do tempo de estudante, cheia de autocolantes de cidades e hotéis, a maioria fruto de sonhos adiados e do velho saco de cabedal. Saco mais, muito mais velho do que eu, estou hoje já sexagenário. Comprei-o em Portimão a um velho correeiro e acompanhou-me durante muito tempo. Apresentaram-se os novinhos aspirantes, hirtos na postura, continência pronta, sentido de mão fechada. Riam-se os outros oficiais, principalmente os do QP, conhecedores de quem tinha sido o nosso comandante de especialidade. Olhem os pupilos do Capitão Comando Oliveira e Artilheiro anteriormente, se a memória me não atraiçoa. Fomos praxados, como mandam as regras, seguindo-se um lanche, comido nessa tarde ou na seguinte, com pagamento a ser feito por nós, quando o primeiro soldo estivesse a pagamento. Antes do toque do fim da tarde fomos apresentados ao Comandante. Era um Coronel de estatura baixa e olhar manhoso que, depois do toque da saída virava censor. Tempos depois ainda cheguei a acompanhar um dos jornalistas, de um Jornal de Évora, quando estava de Oficial de dia, ao Comandante. Iam os escritos ao lápis… geralmente era o jornalista obrigado a esperar em excesso para gozo do censor… eu tentava, geralmente sem sucesso, abreviar… Na apresentação dos novos aspirantes, o Comandante com mais galões do que ombros, apartou logo artilheiros e atiradores. Distribuiu tarefas. Lembro-me de duas: o Zé Maria virou responsável pela messe de oficiais, eu fui enviado para a PJ Militar. Logo eu?! Nada disse claro. Ouvi a sentença em sentido e toca a encaixar. No dia seguinte fui apresentar-me, a um velho Capitão do Serviço Geral e o principal mentor da organização da praxe e do lanche. Descansou-me o velho militar dizendo: -Escolha um escrivão, furriel ou cabo miliciano seu conhecido, passa depois pelo Quartel-General, aprende as bases e pouco terá que fazer. Se tiver problemas fala comigo. Pus a boina na cabeça, sentido, continência bem puxada e pedido para me retirar. Levantou-se o Capitão, olhou-me e disse: - Aqui não se faz isso pois a disciplina militar não passa por aí. Vá aprendendo essas diferenças. Cumpri as instruções e pouco tive que fazer. Mantinha-me ocupadíssimo e o escrivão, meu antigo colega de estudo também. Ainda tive que dar aplicação militar a uma Bataria e uma ou outra instrução a militares de passagem. E aprendi, isso sim, muito, sobre a vida militar dos oficiais, sargentos e praças. Os milicianos, os profissionais, os nem uma coisa nem outra, os obrigados, os voluntários e tantos outros a gravitarem à volta daquele quartel. Que gentes e que vidas vividas, passadas, bem passadas à pala do tropa… Outras vidas. À tarde, depois do toque, uma ida até a cidade, geralmente ao Fialho ou lugar semelhante com petisco ajantarado, cinema quando havia, uma volta ou outro mata tempo, isso também pois era uma questão de equilíbrio psicológico e, nas terras com militares, há sempre isso. Abreviando, com tanta recordação a ficar no tinteiro. Um dia… conto. Um dia…depois… Corria o tempo de feição, na paz do Senhor, civil ou militar, com fugas em fim-de-semana alargado, trocas de serviço, coberturas para proteger e Beja, Lisboa, a minha casa ou o Algarve ali tão perto… Não há bem que sempre dure... Um dia veio a noticia: - Está mobilizado e apresente-se, daqui a - já não recordo quando -, em Lamego (CIOE). Depois vai para Penafiel formar Companhia. - Creio que, quando fui para Lamego, já sabia ir depois para Penafiel. Lá fui eu e o Zé Maria, no carocha dele, até Lamego. Por lá andamos, em cambalhotas e eteceteras, comendo presunto bom, um peixe desconhecido para mim, trutas, e bebendo branco, tinto ou Raposeira. No regresso, rumo a Lisboa, trocamos, antes, de Companhia com dois camaradas. Eles foram ou ficaram em Penafiel e nós regressamos a Évora, para formar Companhia. Fintámos o destino aqui, mas, mais tarde, eles foram para Moçambique e nós para a Guiné. Era o papão temido… ainda bem, daí… quem sabe? Começou então em Évora, pouco tempo depois, a formação e instrução da CART 2339 __________ Notas de vb:
1. Continuação e reescrita das Estórias de Mansambo.
2. Artigos do Torcato Mendonça em
13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3310: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Encontro em Bissau: o nosso homem de Missirá...
Guiné 63/74 - P3473: Em busca de... (52): Ernesto, balanta de Bula, lançador de roquetes... (António Matos)
Um blogue com a concepção deste nosso cumprirá a sua missão se, paralelamente ao acervo que possibilita a gerações futuras entenderem esta temática da guerra do ultramar (1961-1974), conseguir também ser um verdadeiro ponto de encontro de camaradas cujo rasto se perdeu pelas vicissitudes da vida.
O Ernesto
Dos meus tempos de Guiné recordo este jovem negro, o Ernesto, que acompanhou muita da minha actividade em chão Balanta. Era um dos meus lançadores de roquetes.
A sua simpatia e o seu espírito colaborador angariaram-lhe a afeição generalizada. Hoje desconheço de todo se é vivo, se morreu, se andará pela Guiné, se, quiçá, por Portugal, se é um pé rapado ou algum senhor bem colocado na vida, enfim, perdi-lhe o rasto mas gostava de saber dele.
Se alguém o conheceu, diga !
Se nas digressões à Guiné encetadas por vários camaradas alguém o vir (era de Bula), informe !
Seria, para mim, um momento memorável que daria direito a celebração especial. (**)
Um abraço
António Matos
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Notas de vb:
(*) Vd. último artigo do António Matos (ex-Alf Mil da CCaç 2790, Bula 1970/72) em:
17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3466: Histórias engraçadas (António Matos) (3): Dia de Ronco, Miss Bula 1972.
(**) Vd. último poste desta série Em busca de... > 5 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3407: Em busca de... (51): Os Bravos da CCAÇ 726, Guileje, 1964/66 (Aurélia Duarte / Henrique Almeida Duarte)
Guiné 63/74 - P3472: Da Suécia com saudade (7) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (7): Zés Marias, feridos no corpo e na alma
Mensagem do José Belo (ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) com mais um contributo para as Guerras Coloniais a serem ganhas.
Primeiro Contributo
José Maria chamava-se o Soldado. Transmontano, de aldeola perto de Chaves. Pastor. Baixote, encorpado, espesso patilhame, falando um português da serra que, por vezes, o tornava verdadeira caricatura de revista.
Numa das formaturas na madrugada, de preparativos para "porrada certa", vi o Zé Maria, sozinho, a uns metros do pelotão, sentado num cunhete vazio de granadas de mão.
Olhava pensativamente as botas já mais que gastas. Eu saíra do refeitório, e ao vê-lo tão concentrado e distante, procurei gracejar:
- Ó Zé Maria, deixa lá as miúdas, pá! Este não é momento para recordar namoradas!Sorriu com a boca, não com os olhos.
- Mê Alferes, quando saí da terra para a tropa, e deixei a minha mulher - e acentuou mulher! - e filhinha, botei o coração dentro da bota. Tenho desde então caminhado sobre ele! São já longas as passadas. E estas botas, mê Alferes..., estas botas estão a arrebentar!
Não eram só números mecanográficos, números de Batalhões, de Companhias, nem mesmo só alcunhas de guerra nos Pelotões.
Tínhamos Nomes. Zé Maria,"aquele" abraço!
Segundo Contributo
No escuro porão das cargas, vínhamos bem lastrados com urnas. Encaixotadas para mais discretas. Quantas foram embarcadas? Quem eram os que se envergonhavam dos seus mortos? Escamoteados pela escuridão, como se de lixo se tratasse!
Mas não eram só os mortos! Que recepção tinham as centenas de feridos que iam quase diariamente chegando ao aeroporto de Lisboa, sempre altas horas da madrugada, em verdadeiros carregamentos de dor? Quantas vezes, após a longa viagem aérea, aguardavam horas dentro dos aviões, discretamente parqueados longe das luzes, para não "perturbar" os turistas à sua passagem pelo aeroporto.
Literalmente "passados", como se de contrabando se tratasse, para ambulâncias discretas que, pela calada, lá os iam levando para o Hospital.
Que "raio de cambada era aquela" que pretendia não ver os cegos, os mutilados, os paralisados?
Se honestamente se julgavam com razão, se tinham o exclusivo do patriotismo, se estavam tão certos da vitória da justa causa que defendiam, porque não a assumiam frontalmente? Porque se recusavam a aceitar as consequências de uma política "de Império", nos seus mortos e estropiados? Defensores da Civilização Cristã… contra a opinião publicamente expressa pelo chefe máximo da Igreja, dos seus Bispos, e pela maioria dos seus Sacerdotes!
Defensores do "Ocidente" contra as correntes do pensamento do mesmo, e porque não dizê-lo, dos "interesses" do dito Ocidente! Defensores de um tipo de sociedade para os Portugueses que diziam tão bem representar...mas a quem nunca se atreviam a escutar em eleições livres!
Eram estes dignos senhores, politicamente responsáveis pela tal guerra colonial "a ser não perdida", que na força da sua razão, caíram em Abril sem um assomo de dignidade.
Lutar? Eles?
E as urnas lá vinham, escondidas, envergonhadas. Mas por nós nunca esquecidas!
José Belo
Estocolmo, 16 de Novembro de 2008
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Nota de vb:
17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2954: A guerra estava militarmente perdida? (18): José Belo
Vd. último poste da série de 26 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2068: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (6): Milícias e Soldados guineenses ao serviço do colonialismo
Guiné 63/74 - P3471: Cancioneiro de Mampatá (1): Hino da CART 6250/72, Os Unidos (Mampatá, 1972/74) (José Manuel Lopes)
É o primeiro texto, esperamos, do Cancioneiro de Mampatá. A música que costumava acompanhar este hino, era a da conhecidíssima canção do Zeca Afonso que deu o título do seu álbum de 1973, Venham mais cinco.
Quem é não se recorda da letra ? Nessa época, Zeca Afonso cantava um pouco por todo lado, das associações de estudantes aos clubes recreativos, sempre sob a vigilância da PIDE/DGS. Em Abril de 1973 estava em preso em Caxias e lá permaneceria, sem culpa formada, até finais de Maio.
Foi já no Natal de 1973 que surgiu o novo disco, Venham mais cinco, que conta com a colaboração de José Mário Branco.
Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá.
Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
Dàquém e Dàlém Mar
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustem
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei
Fonte: Alfarrábio - Cooperativa Cultural (com a devida vénia...).
O Hino dos Unidos é muito provavelmente de princípios de 1974. Segundo o José Manuel Lopes, produziram-se, no seu tempo, diversas letras que parodiavam fados, canções e baladas em voga. Primeiro escolhia-se uma música, e depois encaixava-se, muitas vezes a martelo (como é aqui o caso...), uma letra. Ele próprio foi autor de algumas letras. Vai ver se as descobre no baú da casa da avó... Havia também um furriel madeirense que era um bom letrista...
Recorde-se que esta companhia, a CART 6250, especializou-se em operações de segurança aos trabalhos de construção da estrada, que ia de Buba, Quebo, Mampatá, Cumbijã, Nhacobá, Salancaur, até ao corredor da morte... O José Manuel Lopes e os seus camaradas passaram dias e dias, semanas e semanas, meses e meses, a picar, a levantar minas, a montar segurança, a fazer emboscadas, a dormir e a comer na estrada, acompanhando a sua abertura, em direcção ao sul... Havia, portanto, tempo para tudo: desde o Leça que escrevia todos os dias areogramas para a sua amada, até ao Josema, que escrevia todos os dias um poema... (Infelizmente só chegaram até nós umas escassas dezenas).
Havia, por outro lado, três ou quatro camaradas que tinham jeito para a música e tocavam instrumentos (nomeadamente viola). Havia, inclusive, um baterista de um conjunto que na época teve algum sucesso em Portugal. Ele disse-me o nome, ao telefone, mas não fixei. Na época, eram, raros infelizmente os gravadores de som. Não haverá, por isso, muitos registos fonográficos deste "outro lado da guerra"... Há, comn certeza, memórias ainda vivas dessa produção poético-musical, que de resto temos vindo aqui a recolher e a divulgar... O Cancioneiro de Mampatá é o último de vários: Bafatá, Bambadinca, Bissau, Canjadude, Empada, Gandembel, Mansoa, Xime/Ponta do Inglês... Mas haverá muitos mais que ainda não chegaram ao nosso conhecimento... (LG)
Hino da CART 6250
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Mampatá, patá, patá, patá,
Mampatá, Mampatá, Mampatá.
Andam bocas por aí
Que os Unidos só sabem piar,
Mas a realidade
É bem fácil de se provar.
Refrão
Deixai lá falar
E cumpramos o nosso lema,
Sempre Unidos cem por cento,
Venceremos para sempre.
Isto aqui é nosso,
É Mampatá, patá, patá, patá,
Mampatá, tá, tá, tá,
Mampatá, patá, patá, patá.
A protecção à estrada
Que os Unidos estão a fazer,
Basta p’ra provar
Qu’ aqui se trabalha a valer.
Refrão
Começámos sem ter lar
E já temos o nosso abrigo,
Esta é aquela máquina,
Só possível aos Unidos.
Refrão
Esta CART dos Reguilas,
Como alguém do outro lado lhe chamou,
Será sempre honrada
Como herói qu’aqui suou e lutou.
Refrão
Mampatá espera de nós
O Progresso e a promoção do seu povo,
Nós lhe prometemos
Que terá esse MUNDO NOVO!
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Letra: Recolhida por José Manuel Lopes, que foi Fur Mil da CART 6250 (Mampatá, 1972/74) (*)
Revisão e fixação do texto: LG
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Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3468: Poemário do José Manuel (24): Sabes o que é morrer... ?
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3470: Os nossos regressos (18): Desenraizados, nas esplanadas das Lisboas deste País...(Alberto Branquinho)
uma normalidade a que já não estavam habituados ou como escreve o Alberto Branquinho
De como era difícil estar e falar com "outros" quando regressámos
As tardes passavam-se à volta das “imperiais” com tremoços, nas esplanadas e cafés, no “Pirata” dos Restauradores ou na “Ginjinha” do Rossio, deambulando sempre pelos mesmos espaços, até à chegada da noite. O jantar era numa das muitas tascas das transversais da Avenida ou entre o Rossio e o Terreiro do Paço.
Pontificava um ex-alferes miliciano, homem de poucas falas, mais antigo na Guiné que todos nós. Tinha comandado um Pelotão de Nativos num quartel a norte de Catió, onde o conheci. Era chamado pelo nome próprio, ao qual juntávamos, como se fosse o apelido, o nome desse quartel. De tão gasto e envelhecido, parecia muito mais velho. Era muito conhecido e, por razões óbvias, não o identifico.
1. Alberto Branquinho foi Alf mil da CArt 1689, 1967/69
2. Títulos e sublinhados da inspiração do editor.
3. Artigos da série em
4. E do Autor em
Guiné 63/74 - P3469: In Memoriam (15): Foi hoje a sepultar Mário Ferreira (José Teixeira)
Carlos e camaradas gestores,
junto ligação para o tema Adeus Guiné. Creio que é a melhor forma de homenagearmos o seu autor Mário Ferreira, no dia do seu funeral.
http://www.youtube.com/watch?v=uZz8acVMoKU
Abraço
José Teixeira
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Nota de CV:
Vd. poste de 16 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3460: In Memoriam (13): Mário Ferreira, autor da letra do Adeus, Guiné, morreu ontem, em Guifões, Matosinhos (Albano Costa)