URSS > Ucrânia > Kiev > 1987 > O Cherno Baldé, à esquerda, com mais dois colegas da Guiné Equatorial
Foto: © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.
Continuação do relato do Cherno Baldé [, hoje quadro superior da administração pública da Guiné-Bissau,] sobre as aventuras e desventuras do Chiquinho, enquanto estudante, no país dos sovietes (1986-1989).
(3) A primeira viagem de comboio
A viagem para Kichinev [, capital da Moldávia,] foi de comboio. Depois da viagem do avião, esta era uma nova descoberta não menos interessante. BLAGAT...BLAGAT...BLAGAT. Este som, provocado pelos veios de um velho e lento comboio, tinha ocupado os seus ouvidos durante toda a noite, povoando o seu sono inquieto.
Viajavam dez a doze pessoas por vagão, divididos em compartimentos, com camas individuais, o que, visto com a lupa de hoje, constituía de facto um grande luxo se comparado com as condições dos outros comboios, que viria a conhecer nas terras mais a oeste, fora do território da URSS.
Tudo decorreu conforme estava previsto. Receção na estação, distribuição de residências, roupas de frio, visita médica, salas de aulas; era simplesmente impressionante a capacidade de organização das estruturas que os recebiam. Tudo estava planeado ao mínimo detalhe, uma máquina a perfeição como só o espírito europeu sabe criar. Quando chegavam num sítio já estava alguém à espera para recebê-los e conduzi-los, a seguir, para o local indicado. Se o comunismo era assim, então, de certeza que podiam contar com ele, dizia para com os seus botões. Viva o Lenine!... Viva a revolução comunista!...
Bem, depois passou por uma pequena afronta durante a inspeção médica que teria diminuído um pouco o seu entusiasmo. Que fosse obrigado a entregar as suas fezes e urina já era um grande sacrifício e quase que um atentado à sua dignidade de homem africano, agora pediam que tirasse toda a roupa que cobria a sua nudez, assim como veio ao mundo, diante de uma mulher.
Ele ficou aterrorizado, outros gracejavam. É bom que conste, também, que só um espírito europeu, talvez comunista, era capaz de exigir uma coisa semelhante a um indígena africano que tinha passado toda a sua vida sob uma dupla educação conservadora, tradicional e muçulmana. Mostrar tudo!?... Subahaanallai!
As enfermeiras que procediam ao exame não queriam saber de tabus, ele tinha que mostrar-lhes tudo. O Chiquinho recusou e, por isso, foi acantonado ao lado, dando lugar aos outros menos envergonhados. Quando finalmente cedeu, pegaram no seu sexo, ou do que dele restava, virando e revirando-o em todos os sentidos como que para mostrar a insignificância do seu falso sentido de pudor.
Apanhado de surpresa, o desgraçado do sexo, centro nevrálgico de pudor, de timidez mas também de orgulho e da força masculina, ficou tão retraído e minúsculo ao ponto de ser ridículo. Para o Chiquinho tinha sido uma experiência decepcionante e, para aquelas curiosas senhoras de bata branca também, mas por motivos diferentes.
Uma das enfermeiras, pegando numa ferramenta que parecia um martelo, bateu ao de leve nos seus joelhos. De seguida, pegou no seu braço esquerdo, depois o direito à procura de uma veia saliente donde poderia retirar sangue para as análises. Deu trabalho encontrar a veia e no fim, dirigindo-se ao tradutor, aconselharam o Chiquinho a pegar numa enxada e ir trabalhar a terra todos os dias a fim de desenvolver os seus músculos de bebé. Com tais características, certamente que não se enquadrava na classe dos trabalhadores, um conceito caro aos comunistas.
As aulas começaram de imediato. Uma primeira fase de aprendizagem da língua onde, diga-se de passagem, se utilizava um método tão eficiente quanto brutal, em salas especiais de audição linguofónicas durante horas intermináveis. Após quatro meses de aulas intensivas da língua russa, quando o Chiquinho se sentava para escrever uma carta em português já não encontrava as palavras certas nos espaços onde estavam antes.
Ele percebeu então que o método de ensino utilizado provocava este fenómeno de erosão cerebral. Percebeu também que, apesar das graves insuficiências de instrução escolar no seu país, faziam figura de avantajados diante de outros estudantes vindos de países ditos amigos da URSS, confrontados com profundas mudanças políticas, sociais e/ou de orientação ideológica como o Congo, de Marien N’gouabi, a Etiópia, de M. Hailé Marian, a Nicarágua, Laos, Camboja, entre outros. Alguns, como era o caso do meu amigo Peruano, Aníbal, não teria feito nem o ensino primário e tinha que lidar com o teorema de Pitágoras ou dissecar o capitalismo com as pinças de “O Capital” , de Karl Marx.
Passados alguns meses, o Chiquinho começou a sofrer de um estranho mal-estar físico, com sintomas de uma espécie de nostalgia aguda acompanhada de uma sensação de vazio profundo provocado, provavelmente, pela desoladora visão da natureza morta à sua volta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar.
Um dia, recusou-se a ir às aulas, pronto. Só queria que o deixassem dormir aconchegado no calor do quarto e dos cobertores. Impossível. A sua professora de língua russa, a meiga e simpática Victoria Aleksandrovna, veio falar com ele para dissuadi-lo. Juntamente com a professora, tinha vindo também a Vika, uma jovem moldava, sua afilhada, que ela o tinha apresentado. Parecia ter encontrado o remédio certo. A Professora, ao menos, compreendia o mal que o clima provocava nos africanos e estava habituada a resolver estas situações de crise emocional à sua maneira. As suas palavras calmas e serenas mobilizaram o Chiquinho ao ponto de fazê-lo desistir da greve.
Não obstante, a primeira vítima desta sua estranha doençaa seria ela, Victoria Aleksandrovna. Num dia normal de aulas de língua russa, após três dias sucessivos a falarem do mesmo assunto, o Chiquinho não tinha conseguido conter a sua irritação e tinha afirmado, em voz alta, que já estava farto das aulas que só falavam de Lenine. Lenine na Suíça!... Lenine em Petrogrado!...Lenine em Moscovo!... Poça, vida!
Para a grande surpresa de todos, que esperavam ouvir uma repreensão muito dura da parte da professora, ela simplesmente desatou a chorar, feita uma criancinha, revelando as linhas da idade que começavam a aparecer na sua linda cara de velha solteirona.
- Teria ele mexido no tabu do espírito sagrado da União Soviética e Empiriocriticista?...
O Chiquinho não sabia e, na verdade, nem queria saber. Não era aquela a manifestação do espírito comunista que esperava encontrar, depois de toda a propaganda sobre o comunismo científico e a dialética marxista que tinha lido durante anos. Era simplesmente incrível como um espírito tão crítico, tão pragmático e oportunista como Lenine teria podido parir (produzir) uma mentalidade tão seguidista e apática, um charco de água parada. Para ele já era o bastante para perder a razão.
Depois das aulas mandaram-no chamar no gabinete do Reitor para interrogatório. O que no lhe surpreendeu, pois já estava prevenido pelos mais velhos de que uma provocação destas podia valer a expulsão.
- Com que então, estava farto de Lenine!?...
Quiseram saber, entre outras coisas, a profissão dos seus pais. Ele disse-lhes a verdade, que a sua mãe era camponesa e seu pai comerciante. De filho de comerciante, certamente, terão deduzido que era da pequena burguesia, logo reacionário, anticomunista.
“Autant mieux” [, tanto melhor, em francês], pensava ele. Se o mandassem de volta, até agradecia, maldito clima. Desde que o inverno começara, ele não conseguia andar direito, os pés gelavam, escorregava e caía com muita frequência, não raras vezes tivera que andar de gatas para descer ou subir nas encostas, embrulhado num enorme paletó e botas de tropa que mal conseguia arrastar com os seus pequenos pés de criança. Deslizar em cima da neve era um exercício delicado para um homem dos trópicos. Nunca poderia imaginar que pudesse sentir tanta saudade dos raios do sol e do chão firme e vermelho da sua terra natal.
O reitor foi brando com o Chiquinho, quase simpático. Provavelmente, os ventos da mudança (**) já estavam a soprar. Não o mandaram embora e, ao invés, redobraram a atenção para com ele, convidando-o para excursões e visitas culturais. Foi durante esse período que o levaram ao teatro da cidade para assistir ao ballet de Lebedinoye Ozero (O lago dos cisnes), de Tchaikovsky.
Extraordinário!... Sem o saberem, tinha sido a melhor prenda que lhe poderiam oferecer. Tratava-se de uma interpretação poética e musical de envergadura universal, executada num cenário de sonho, animada com uma cativante variação de estilos e ritmos. A dança dos cisnes, a dança polaca, húngara, russa, espanhola. Tempo de valsa, allegro, allegro moderatto, allegro vivo.
Ao contrário da maioria dos seus colegas, tinha passado a melhor noite desde a sua chegada à União Soviética. Aconteceu naturalmente. Tchaikovsky constituiria assim o primeiro passo e a porta de entrada para a poesia e a música clássica russa e europeia.
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RASSIA
Eu fui a Rassia
Para ler poesia,
Cheguei no Outono,
O maldito nevoeiro
Que mudou o sentimento;
Acordei no inverno
Quando a terra,
A Ukraina inteira,
Não era beleza para sedução,
O mar de lágrimas, eu vi,
Deste povo que nunca chorou,
As vítimas isoladas
Porque justamente vitimadas,
O regresso doloroso, eu vi,
Desta gente que nunca partiu.
Eu fui a Rassia
Para ler poesia
Adorei ECENIN e TSVETAEVA
PUSHKINE e AKMATOVA
Em toda a m+istica e gratidão,
Em toda a dor e solidão,
Eu fui a Rassia
Onde a beleza de forma radiante
Acompanha a rudeza de gente arrogante
Ha...! POLTAVA!...
Ha...! SMOLENSK!...
Ha...! TCHORNOBYL
E as vossas lavras?
E as vossas lágrimas?
E KANIEV TCHERKASSY?
E TARAS SEVTCHENKO?
“Dumi moi...”
“Dumi moi...”
(Viagem pelo Dnepr/Kiev-Kaniev, Abril de 1989)
Notas de C.B.:
Rassia=Rússia; Ukraina=Ucrània;
Ecenin+Tsvetaeva+Pushkine+Akmatova=Poetas Russos do virar do sec.XIX/XX; Poltava+Smolensk+Tchornobyl=Regiões e localidades Russas e Ucranianas, teatros de batalhas sangrentas e de tragedias humanas;
Tcherkassy+Kaniev=Região e localidade histórica e cultural ucraniana ligada ao maior poeta ucraniano de todos os tempos, Taras Sevtchenko [1813-1861]
“Dumi moi...”= Pensamentos meus...= expressao poética de Sevtchenko num poema da sua coletânea Kobazar, o Bardo.
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Estava de novo apaixonado, o Chiquinho, desta vez, por uma mulher do Iémen do Norte (ou era do Sul?), sem hipótese de aproximação. Ela era casada e vivia com o marido num quarto isolado. Tinha tanta inveja do homem que queria matá-lo. Foi, talvez, a mulher mais bonita que os seus olhos alguma vez tinham visto.
Mas, ou era o sentido universalmente humano que o guiava ou era a tolice de um coração desorientado, pois no meio de tanta diversidade étnica e cultural, tinha que apaixonar-se logo por uma mulher árabe, com a carga de desprezo secular que estes beduínos do deserto nutrem pelos negros.
- Acorda, preto!.. - Apetecia dizê-lo. Era mais um daqueles amores platónicos, impossíveis, destinados a colmatar o vazio do seu coração. O frio agudizava o seu sentimento de solidão. Começou, assim, a criar o hábito de deambular sozinho pelos parques da cidade na secreta esperançaa de encontrar, numa viragem qualquer, a sua europeia de cabeleira reluzente, a promessa de um destino que o empurrava para o desconhecido.
No entanto, ainda tinha muitas questões sem resposta. Por exemplo, por onde a pegaria?...Pela mão, no braço ou por cima dos seus ombros?... Seria capaz de adivinhar seus sentimentos encarando os seus olhos azul-marinhos ?.. O que lhe diria, e como lhe diria?...Contar a verdade ou mentir descaradamente sobre a sua vida como faziam alguns colegas para melhor seduzir?... Na sua terra natal ouvira dizer que a mulher conquista-se com a mentira e mantem-se com a verdade. E para os europeus, seria o mesmo?... Tinha muitas duvidas e uma certeza, a certeza de que a amaria muito, dentro do seu coração.
Com a chegada da primavera, o Chiquinho começou também a recuperar a boa disposição mental e fez mesmo parte de um grupo de estudantes que, vestidos de trajes multicolores, ensaiavam a dança tradicional moldava para apresentar em palco, para mostrar a integração cultural dos africanos. Não resultou tão bem assim, tecnicamente falando, mas permitiu apertar e acariciar as partes arredondadas das colegiais ainda adolescentes, recuperando assim um pouco da sua jovialidade e amor próprio.
A sua amiga, a Vika, parecia gostar dele, mas nunca dizia nada, limitava-se a olhar para ele e a sorrir. Também ele sorria, dividido entre o desejo de seduzi-la e o medo de enganá-la. Pode-se mentir a quem se ama?... O Chiquinho ainda vivia no mundo em que um homem era incapaz de transformar o mundo com o enredo das palavras dúbias, enviesadas, entorpecentes como a morfina.
Em finais de Junho de 1986, terminaram os exames e muitos estudantes foram a Moscovo tratar de vistos nas embaixadas para viajar aos países do ocidente. Ele recebeu o convite de um irmão que era estudante em Lisboa, mas ainda não queria afastar-se muito do universo que queria integrar e também da posibilidade de aproximar-se da Vika. Todavia, a menina com os seus cabelos cor de trigo, não correspondia muito à imagem da europeia dos seus sonhos.
Adiou a visita para o ano seguinte. Entretanto a expetativa da viagem aos paises do ocidente fazia furror entre os estudantes estrangeiros, particularmente nos congoleses que sonhavam com as luzes de Paris e não escondiam o seu entusiasmo. Lisboa era o destino preferido dos guineenses e angolanos.
O Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não compreendia porque razão os estudantes eram tão atraídos pelo ocidente, atitudes que ele considerava como subproduto da mentalidade neocolonial e servil. Para ele, era mais importante a apropriação da doutrina marxista-leninista, em especial o pilar da economia política que encerrava as premissas para a verdadeira libertação dos povos do terceiro mundo.
Mais surpreendido ficou ainda quando viu a avidez com que os próprios soviéticos consumiam os mais insignificantes produtos trazidos do ocidente pelos estudantes em contrabando, bugigangas de um regime em decadência. Afinal, as férias dos estudantes escondiam outras realidades que, não sendo políticas nem filosóficas, contribuíam para minar os alicerces de base sovietica e comunista.
(Continua)
[ Revisão / fixação de texto: L.G.]
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Notas do editor: