sábado, 20 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21094: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (15): Os Carolos



1. Em mensagem do dia 8 de Junho de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, desta vez a história dos Carolos, primorosamente narrada.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 14

OS CAROLOS

- Ó primo, senta aí. Hoje vais ficar na Mesa Principal.
- Não. Como assim? Sabes que não sou nada neste mundo da cortiça. - protestei um pouco confuso.

Era o industrial Adérito Carolo, que estava duplamente feliz: com a presença a seu lado do seu filho Aldino, que representava ali o sogro, o grande industrial António Almada e, ainda, com a de outro grande, Álvaro Gato, (que obrigou a mais uma cadeira, por ter chegado mais tarde e porque tínhamos ocupado o seu lugar). Do grupo dos maiores, só faltavam ali o Amorim (que não se fizera notar nessa Gala Anual da Associação) e o Grupo Suber, que presidia à Associação e que, com as entidades oficiais, fazia as honras da casa.

A minha filha Ana havia assumido a maioria das quotas na nossa sociedade, com o objectivo de conseguirmos a aprovação de um projecto apoiado, destinado jovens empresários. (Claro que nunca o conseguimos). Apesar da nossa pequena dimensão, ela veio entusiasmada com o ambiente e a simpatia que lhe dispensaram.
- Ó pai, não percebi bem porque aquele senhor Adérito, te chamou primo.
- Ó rapariga, a história dos Carolos é uma coisa interessante. Vou tentar contar-te.
O Adérito é filho do António Carolo, mais conhecido por Tono Caçador. Gostava muito de cavalos, mas, ultimamente, andava mais de motorizada, na sua actividade de capador.
O Tono Caçador tinha vários filhos (seis), mas eram mais conhecidas as suas três formosas filhas.

Nos anos cinquenta, o negócio da cortiça estava em grande ascensão. Um filho de industrial rico, de Lamas, apaixonou-se por uma delas. Foi um amor bastante badalado. O rapaz ficou conhecido como o “Penico de ouro”, por ter presenteado a namorada com essa peça valiosa.
Casou pomposamente e logo criou uma empresa com o sogro, onde incluiu todos os demais familiares da mulher, como sócios. Com a experiência e o apoio do “Penico de ouro” e o orgulhoso e entusiasmado trabalho de cada sócio, a empresa cresceu exponencialmente. Lembro que o Adérito, mais velho uns dois anos que eu, trabalhou comigo na primeira empresa em que fui trabalhar, aos 10 anos e meio.Os dois irmãos mais novos foram estudar, para o Colégio dos Carvalhos; o Antoninho e o Carlos Alfredo. Não eram muito inteligentes e, como viviam à fartazana, nada ligavam ao estudo.
O Antoninho era muito vaidoso e andava sempre de nariz levantado e cara de importante. O outro, o mais novo, só queria brincadeira. Gozava com tudo e mais ainda com a escola. O Antoninho, logo que pôde, meteu-se no escritório, enquanto o Carlos Alfredo ainda penava, a fazer que estudava e nada aprendia. Andava quase sempre arranhado pelos constantes acidentes de motorizada.

Com 18 anos e comportamento de menino rico, apetrechado com carro e roupas do melhor, o Antoninho procurava namoradas compatíveis com as suas exigências e ambições.
O Antoninho, que era da minha idade, “comprou” a tropa, alegando, em tons de gozo, sofrer do “calcanhar de Aquiles”, justificação que, aliás, apontava para o seu fraco rendimento de jogador de futebol na equipa de Lourosa, que era patrocinada fortemente pela empresa. Casou com a moça mais linda da freguesia vizinha, por sinal, boa rapariga e de gente de bem e… de bens.
O Carlos Alfredo, desistiu de estudar. Tinha vergonha da chacota que os colegas lhe dispensavam. Dentro da fábrica, entusiasmou-se com as várias operações que a confecção das rolhas obrigava, vindo a ser um expert na matéria. O Carlos vivia intensamente. Dentro ou fora da fábrica arrastava energia atrás de si. Aloirado, de olhos claros e sempre sorridente, encantava as miúdas. E, quando aparecia de descapotável junto às praias, elas pareciam moscas à volta dele.

Em 1967, a Guerra do Ultramar estava numa fase difícil e o Carlos não conseguiu livrar-se, à primeira, de ser apurado para o serviço militar. Mexeram os cordelinhos bem untados, mas só ao fim de uns 10 meses de tropa, conseguiu baixar de vez ao Hospital Militar, vindo a livrar-se. Foram 10 meses em beleza, vividos à grande na cidade de Lisboa. Levou um bom carro e, com o “forte carinho” dos familiares, embrenhou-se em ambientes de aparente Jet Set. Nas divagações da noite, conheceu uma lustrosa moça da zona de Cascais, que o fez sentir-se galã e responsável por uma relação …séria. Após mais umas tantas viagens forçadas e umas promessas de amor eterno, casaram. Viviam muito bem numa bela mansão que ele mandara construir, perto de Espinho e do Porto, por forma a usufruir um bom nível de vida familiar.
Foram anos faustosos para toda a família. Com os casamentos consagrados por maior ou menor interesse, mais forte ou menos fraco “amor eterno”, nunca se assistiu à exuberância de tanta felicidade. Ainda hoje se podem ver, reluzentes, algumas das suas moradias similares, alinhadas, à face da rua principal da vila.

O Adérito que fora, dos três mais novos, o primeiro a casar, andou lá por Fiães, junto à igreja e à JOC, até conquistar a mulher dos seus sonhos. Sempre moderado e simpático, transmitia optimismo e confiança. Todos gostavam dele. Por sinal, não foi só ele que vi fazer-se, pontualmente, um religioso fervoroso. Uns 15 anos mais tarde, o Adérito, apercebendo-se da “enorme nau” em que a empresa se transformara, numa de humildade, chegou a acordo com os irmãos, que lhe compraram a quota. Depois montou uma pequena fábrica, onde eu tive a oportunidade de o contactar. Vivia feliz com o “pouco” que dizia ter. O filho fora estudar gestão e vivia ansioso por se desenvolver no ramo da cortiça. E assim aconteceu. Só que o rapaz veio a casar com a filha de um dos maiores industriais da cortiça, o António Almada. E era na qualidade de representante do sogro que estava ali, orgulhosamente, na mesa, ao lado do pai. Eles, que me acompanhavam naquela “coisa” da canoagem, por isso se fartaram de te fazer perguntas sobre esse tema, em que tu, uma Campeã, também tinhas muito que contar.

Entretanto, a Anabela, uma filha do Antoninho, que era uma fotocópia melhorada da imagem da mãe, incitada pelos pais, começou a namorar com o filho do “Rei do Ferro”, um homem que se enchera com os seus negócios escuros conseguidos sub-repticiamente na altura do “controlo operário” da Siderurgia Nacional. Dada a empatia criada entre estas duas famílias, o casamento dos jovens seria a chamada “cereja no topo do bolo”.
Marcaram o casamento e foram efectuados os numerosos convites a tudo que era socialmente destacável naquela região de Santa Maria da Feira, Espinho e arredores. E, nesses “honrosos” convites, pedia-se vestimenta a rigor, incluindo o “charmoso” chapéu de coco.

Os modelos em voga

Só que, enquanto se encenava o mais formal dos desfechos de uma relação pró conjugal, aconteciam outros relacionamentos de proximidade pouco oportunos. É que a bela rapariga nunca eliminara de todo a sua paixoneta por um rapaz, o Luís, meio perdido pela droga, que conhecera, ainda adolescente, na Escola de Fiães.

As modelos em voga

Nunca se vira casamento igual. Carros topo de gama, farpela à maneira e vestidos do último grito. Não sei se Hollywood poderia competir com coisa assim.

Os carros em moda na alta roda

A cerimónia estava marcada para as 11H00 e era já quase meio dia sem a noiva aparecer. Não era normal tanto atraso, mas como se tratava de um casamento de outra dimensão, parecia que o atraso fazia parte dessa excepcional grandeza. Telefonemas para um lado e murmúrios para o outro, mas, quanto à verdade, nada se sabia. Até que o Senhor Antonino avisa que não há casamento, porque a noiva… desaparecera. Foi uma bomba!

E agora, que fazer aos chapéus?

O seu parceiro, preocupado, pergunta-lhe:
- E agora, está aqui a malta toda emproada, feitos pavões e de chapéu à maneira, que vamos fazer?
- Que se fodam lá os chapéus! Olha, vamos mas é todos comer e beber à puta d’alma, porque a despesa já está feita e este mundo são dois dias.

Não havia nada a fazer, o rapaz de “mau porte”, passara lá de madrugada e levou a noiva numa motorizada, não se sabia para onde.
Grande nau, grande tormenta. A Empresa Corticeira fartou-se de dar dinheiro. Mas quando se verificou que as despesas (e os desvios) aumentavam e as receitas nem por isso e que os encargos se avolumaram em toda a linha, teve início a uma crise, também agravada pelo menor fulgor neste sector industrial. Em pouco tempo tudo se comprometeu e todos tentaram safar-se. Porém, os que mais se assumiram (os quatro que compraram as quotas) ficaram hipotecados à banca, que lhes foi comendo os valores.
Foi tudo à falência. Valeu ao Antoninho, os valores da mulher que não estavam sob hipoteca. O “Penico de ouro” também estava salvaguardado parcialmente, pela empresa do pai. O Senhor António Caçador até perdeu a casa, porque tinha apostado tudo naquele projecto. O Carlos Alfredo ficou também sem casa e sem nada. A mulher, que tanto gastara e tanto gozara, fugiu para Lisboa, deixando os dois filhos já moços, às custas do pai. Os filhos mimados e o pai meio aburguesado, não viam maneira de se defenderem. Foram anos de desespero para eles. Valeu ao Carlos Alfredo a sua capacidade técnica nos mais variados serviços. Sem instalações e sem máquinas minimamente adequadas, ele inventava esquemas incríveis para se desenrascar nesses chamados “serviços especiais”.

Apareci por essa altura e até fiquei prejudicado, devido às habilidades de um dos filhos. Dormia no Pavilhão de trabalho e mandou os filhos para a casa do avô, enquanto não entregou a casa. Mais tarde, ele, já sem os filhos, e com outras capacidades, pediu-me que voltasse a dar-lhe serviços. Efectivamente, não lhe faltavam máquinas nem espaço para trabalhar. Tinha mais serviço. Conseguira entrar como fornecedor no Grupo Amorim, mas receava ficar preso ao alegado comportamento monopolista desse grupo.
Tivemos um bom relacionamento nestes últimos anos. Ele recuperou a estabilidade e voltou a exibir o seu largo sorriso. Estava escaldado de todo o tipo de relacionamento e muito cru em desenvolver novas amizades. Nesta fase, já ele andava com um moderno Mercedes, comia e bebia do melhor, tal como já o fizera noutros tempos. Bebia já de manhã. Por vezes tomávamos o primeiro cafezinho juntos e ele nunca dispensava um bom whisky. E lá recordava ele, bem-disposto, em jeito de intimidade:
- As nossas avós deviam ser umas putas de primeira. Coitadas, vieram lá de “casa do caralho mais velho”, nos tempos de fome e guerra e andaram por aí à balda.
E eu, acrescentava:
- E ninguém diz que teriam sido casadas. O que eu sei é que a minha avó teve três filhos de pais diferentes.
Voltava ele:
- A minha teve dois e também não teve marido.

Lembro que quando a minha Mãe Bia faleceu eu era, ainda, criança. Sei que ela trabalhava para o Azeiteiro da Feira dos Dez, onde nasceu o meu pai. Era magra, morena e muito reservada. O que mais me chamava a atenção era vê-la sentada em pose, muito calma, a beber café/cevada (que me oferecia sempre) e a… fumar. Coisa raríssima naquele tempo: mulher pobre a fumar.
Um dia, vejo o Carlos Alfredo menos receptivo e a dar sinal à “empregada” para me atender. Era a Lina, uma senhora bem vistosa, de uns 50 anos, que me segredou:
- A cabra da mulher, voltou e ele anda desanimado.

Quase a chorar, a Lina queria desabafar e lamentar mais uma vez a sua triste sina. Disse-lhe para ter calma e deixei-lhe a orientação do serviço que desejava e afastei-me.
A Lina era uma linda loira de sorriso reservado, de olhar calmo e comportamento introvertido. Aos 16 anos sentia uma certa atracção por um rapaz da JOC que era mais velho uns 4 anos. O Arlindo, o tal rapaz, também de Sanguedo, foi mobilizado para a Guiné. A Lina sentiu que teria que se aproximar mais dele e, num Domingo, à saída da missa das 11H00, abeirou-se dele, a desejar-lhe boa sorte e deixou-lhe o recado:
- Olha, se precisares de Madrinha de Guerra…

Não levou um mês para que a Lina recebesse uma carta agradável do Arlindo. Ela entendeu esse contacto como uma importante decisão nas suas relações. Esse relacionamento aproximou-os mais. Quando, um ano depois, ele veio gozar férias e teve alguns encontros com ela, eles culminaram com alguns abraços e beijos mais avançados. Ela sentiu-se “comprometida” e interiorizou a condição de fiel namorada. Escreveram mais vezes e em modos mais apaixonados.
O Arlindo regressou da Guiné logo em Maio, após o 25 de Abril. Vinha eufórico. Feliz por ter terminado a comissão de serviço na guerra, feliz por a guerra ter terminado e muito feliz pela sua situação amorosa.
A oferta feminina era grande e a Lina, afinal, não era a única madrinha nem a única namorada. O Arlindo, perante a situação de engatatão, teve que tomar opções sérias. E como a Lina, parecia a mais apagada das suas conquistas, ele deixou-se embalar por outros sonhos. Se a Lina era reservada e introvertida, a partir dali, ainda mais ficou. Sofreu muito com essa desilusão e “escondeu-se” na igreja, chegando a parecer mais devota que a Stª. Teresinha do Menino Jesus. …

Tinha ido trabalhar para a Empresa Corticeira, onde acompanhou de perto a sua maior ascensão e a sua queda. E quando o Carlos Alfredo lutava para sobreviver e tinha sido abandonado pela mulher, sentiu-se na obrigação moral de o ajudar. Chegou a sacrificar o seu salário, para o auxiliar em situações aflitivas.
Um dia, ela disse que tinha que ir a Fátima a pé, para cumprir uma secreta promessa, tal como nos outros anos. Só que ele estava apertado com o serviço e precisava dela. A Lina, ciente da situação, lembrou-se de ir falar ao Padre Abílio e expor-lhe o assunto.
Ele, condescendente, disse-lhe:
- Ó rapariga, andaste a cumprir a promessa pela salvação do Arlindo na guerra, mas ele casou com outra. Já há uns anitos. Isso demonstra bem que és uma fiel criatura de Deus e que mereces ser mais feliz. Olha, não deixes de ir a Fátima, mas não precisas de ir a pé. Vai à minha responsabilidade.

No dia seguinte, a Lina confessou ao Alfredo que o padre lhe dissera que poderia cumprir a sua promessa indo de viatura.
- Ó Lina, se eu te levasse a Fátima e te trouxesse de seguida, tu aceitavas?
Ela pensou e respondeu-lhe:
- Vamos, mas eu vou ver se arranjo alguém para ir comigo, percebes? Podemos ir a tempo da Procissão das Velas e virmos embora.

Partiram já da parte de tarde daquele dia 12 de Maio. Como ela não levou companhia, ele perguntou-lhe porquê.
Ela respondeu-lhe:
- Afinal, já não tenho nada a perder, uma vez que nunca cheguei a ganhar nada. Já perdi o melhor tempo da minha vida. Resta-me continuar a viver de bem com Deus.

Seguiram o programa dela. Por ele, viria embora logo após a Procissão das Velas. Porém, ela sugeriu:
- Podíamos ficar para amanhã e assistir ao “Adeus à Virgem”, até porque a esta hora, iríamos perder quase a noite toda na viagem. Que achas?
Arranjaram uma pensão nos arredores de Fátima, no único quarto que havia de vago. Mesmo assim, ele pensou em dormir no chão, para dar a cama à Lina.

A Lina cumpria promessas em benefício alheio.

Foi uma noite de muita conversa e muita aproximação. Finalmente, ela falou abertamente. E confessou que já há muito tempo que sentia essa aproximação por ele. E que sentira sempre revolta por ver a sua mulher a tratá-lo tão mal. Não se aproximara mais dele porque, com a desilusão que sentira com o Combatente Arlindo, a levara a prometer nunca mais querer saber de homem algum. Além disso, o Carlos continuava casado. Desde então, viveram de forma diferente. Ele mantinha as aparências de um viver discreto, mas que acabou por aumentar a sua assiduidade nas pernoitas em casa da Lina.”

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Quando voltei à fábrica do Carlos, para receber a mercadoria, apercebi-me de uma senhora, de cabelos engalanados, presos por um lenço, para se proteger da finíssima camada do pó das rolhas.
- Que se passa, Carlos, quem é essa senhora?
Ele respondeu prontamente:
- É a filha da puta da mãe dos meus filhos, que veio cá acima ver se colhia mais alguma coisa. Olha que ela deu-se ao desplante de querer trabalhar, para mostrar a sua “humildade”, agora tantos anos depois. Nem se lembra que ainda estou fodidinho, controlado por Finanças, Bancos e Tribunais, devido à falência da Empresa Corticeira.
E continuou:
- O que vale é que ela já disse para lhe arranjar algum dinheiro, para voltar para Lisboa. Vou ver se a despacho ainda amanhã, porque no Sábado quero ir para a beira-mar, para Paramos e almoçar uma “parrilhada de peixe” no amigo Orlando com a minha Lina. Essa sim, é uma mulher de cinco estrelas! Coitada, tem sofrido tanto que nunca será recompensada como merece!

A Parrilhada do “Camarada” Orlando é um espectáculo!

Passei a vê-los habitualmente felizes, especialmente da parte de tarde, depois de ele ter complementado bem o almoço com o indispensável digestivo. No ano passado, ele teve uma recaída da sua doença pulmonar e deixou de trabalhar. Lá me desenrasquei com uma alternativa. Porém, umas semanas mais tarde, telefonei, a saber se já havia recuperado. Atendeu a Lina, a chorar:
- Ó Senhor José, o meu Carlos já morreu. Nem lhe disse nada, para não o entristecer. Estou para aqui desolada, a sofrer este desgosto. Éramos tão felizes!


Uns 15 dias depois, telefonámos-lhe a convidá-la e passámos por sua casa. Fomos almoçar ao Casarão de Paramos. O patrão esmerou-se em elogios ao casal que costumava ocupar aquela mesa do lado do mar.
A Lina chorou mais uma vez. Porém, senti que lhe havíamos dado uma alegria que, por certo, iria suavizar a sua dor. No final, ela pegou na rosa vermelha que ornamentava a mesa e disse:
- Ó Senhor Orlando, vou levar a rosa que o meu Carlos costumava oferecer-me.

E mais à saída, virando-se para mim, murmurou em tom saudoso:
- Sabe, Senhor José? Ele ficava tão amoroso depois de beber um copito.

Notas:
1 – A Anabela e o Luís, que fugiram na motorizada no dia da grande boda, fizeram uma família muito feliz. Possuem uma cadeia de lojas de Moda.
2 – O Antonino continua a aparentar muita importância. Anda sempre de Mercedes, pasta preta e óculos escuros. Interpelado, em casa, pelos agentes de execução, respondia jocosamente: - Estou para aqui desterrado nesta quinta, onde vivo da caridade da minha filha. Não tenho nada em meu nome. Roubaram-me tudo.
3 – Há dias vi a Lina a sorrir, numa foto do facebook, com uma criança ao colo e os dois filhos do Carlos ao seu lado, com as respectivas mulheres. Afinal, esta é que é a verdadeira mãe que sempre tiveram.
# - Esta história é fictícia. Porém, como assenta em factos reais, pode descrever algumas coincidências.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

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Guiné 61/74 - P21093: Os nossos seres, saberes e lazeres (398): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
Aqui ficam algumas recordações de uma tarde passada na Certosa di San Martino, a Cartuxa que hoje é monumento nacional. É um imenso mosteiro, com posicionamento esplêndido na colina Vomero, por baixo do Castelo de Sant'Elmo. O interior da igreja é um verdadeiro tesouro, possui frescos de Luca Giordano e a Pietá é obra de Ribera. Veja-se a harmonia do claustro, a imersão no museu é um mostruário de riqueza e espiritualidade que supera a nossa conceção do que é um museu nacional, está ali o melhor da história de Nápoles, entre os séculos XV e XVIII.
Fica uma grande vontade de voltar ao assunto.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (9)

Beja Santos

Depois do Castelo de Sant’Elmo o viandante faz uma pausa, chegou o momento de mitigar a fome, senta-se numa cantina, pede canelones, continua sem entender porque é que o preço da sopa custa couro e cabelo, remata com cappuccino e irrompe na Cartuxa e Museu Nacional de S. Martinho, hoje monumento nacional, com este estatuto obtido em 1870 conseguiu-se evitar a degradação desta antiga cartuxa e do seu extraordinário património, um verdadeiro museu de arte. No guia que sobraça e que o acompanha pelos díspares itinerários, lê a propósito da Certosa di San Martino: “Em 1325, Carlos, Duque da Calábria, iniciou a construção de um dos mais ricos monumentos de Nápoles". Os frades cartuxos tinham visão, e entre os séculos XVI e XVIII os maiores artistas da época trabalharam na Certosa (convento de frades cartuxos). Alterou-se tudo com a passagem do tempo, houve reconstruções maneiristas e barrocas, os franceses secularizaram o mosteiro e assim, com a extinção das ordens religiosas, chegámos ao museu nacional. A igreja tem uma decoração barroca sumptuosa, veem-se estas imagens e percebe-se facilmente que custou uma fortuna, é um verdadeiro Eldorado para os aficionados do barroco.






E da igreja passa-se ao museu, o que aconteceu no século XIX não era uma ideia completamente nova, os frades cartuxos tencionavam que San Martino fosse um depósito da história e civilização napolitana. As coleções documentam as ricas e variadas formas de expressão artística encontradas em Nápoles, entre os séculos XV e XIX: desde pinturas a joalharia de coral, cenas tradicionais de presépio, porcelana, gravuras e esculturas de marfim.




Os corredores e as antecâmaras são ricamente ornamentados, tinha o viandante saído das cenas da Natividade e deu consigo a contemplar esta ilusão ótica, não há corredor nenhum, tudo se detém naquela parede, não é original mas não é por isso menos encantadora.


Há muita pintura neste museu. O guia destaca a arte napolitana do século XIX, o viandante não se sentiu seduzido. Achou fora de série este Martírio de S. Sebastião, de Ribera, um mártir muito sexy, bem preparado para levar mais uma frechadas e partir para o paraíso. Há quem deteste Ribera, mas temos que lhe reconhecer que ele sabia de anatomia a potes, a colocação da figura humana nos termos que ele fez introduz elevação, êxtase, só um grande mestre podia confinar a massa corporal num amplexo de arte religiosa sem a perda de horizonte do melhor património da pintura europeia.


Nada de atafulhar o leitor com os detalhes minuciosos da visita, muito se podia falar de pinturas, mobiliário, etc., reconstituindo os momentos-chave da história política, social e cultural de Nápoles, desde as dinastias de Aragão aos Bourbon, o que aqui se mostra tem a ver com as dimensões e a harmonia do claustro, a capela do prior da Cartuxa, um bergantim dos Bourbon e não se resiste a mostrar o vestígio de um arco que seguramente vem do primitivo convento, e aqui está tão delicadamente conservado.





Vale a pena regressar a este mosteiro, recolheram-se imagens de coleções maravilhosas e o Belvedere é também de uma enorme beleza, tem a cidade de Nápoles a seus pés.

(continua)
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Nota do editor

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Guiné 61/74 - P21092: (Ex)citações (369): Cherno Baldé por ele mesmo: uma antologia autobiográfica, ao km 60 da picada da vida: "Quando o meu amigo, o Dias, me perguntava 'Ó Chiiico, já limpaste as minhas botas?', eu respondia de imediato: 'Sim senhor, já limpaste' e depois?".


Guiné > Bissau > 2019 > Cherno Abdulai Baldé > Nascido em Fajonquito [, sector de Contuboel, região de Bafatá], c. 1960, fiho de pais fulas, muçulmanos; viu em 1965, em Cambaju, os primeiros homens brancos; aprendeu as primeiras letras, em português, com os militares portugueses; estudou  em Bafatá e depois o liceu em Bissau, licenciou-se na Kiev, Ucrânia em Planificação e Gestão Económica, tendo feito no inícios os anos 90 uma pós-graduação em gestão, em Lisboa, no ISCTE.

Vive em Bissau, onde trabalhou no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau,  foi director do gabinete de estudos e planeamento; atualmente gestor de projetos na empresa MF CAON FED, em Bissau.

É casado desde 1992 com a Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, de origem nalu, cristã; o casal tem 4 filhos, todos machos; chega  hoje ao km 60 da picada da vida, passa por isso para o Clube dos SEXA (Suas Excelências); está entre nós há onze anos; tem mais de 200 referências no nosso blogue. 

É nosso colaborador permanente, especialista de questões ernolinguísticas; é autor de uma deliciosa e riquíssima série,  de grande interesse socioantropológico, "Memórias do Chico, menino e menino", de que se publicaram até agora pelo menos 55 postes: estas suas memórias mereciam um bom editor lusófomo; tem poucas fotos da infância, tem em contrapartida uma memória de elefante e uma bolanha de ternura (**)

Foto: Facebook do Cherno Baldé.

Nota do editor LG ao km 50 da picada da vida do Cherno Baldé, em 2010:

(...) Obrigado, Chico, grande 'rafeiro' de Fajonquito, e sobretudo obrigado meu amigo e irmãozinho Cherno. 

Já conquistaste o coração destes 'tugas' que nos idos tempos de 1963/74 tu conheceste e admiravas, com um misto de reverência, terror, curiosidade, simpatia e compaixão... 

Já aqui escreveste páginas admiráveis, e únicas (que nenhum de nós poderia escrever), sobre a inocência em tempo de guerra, sobre a condição dos meninos guineenses dentro e fora do arame farpado, sobre o quotidiano dos soldados portugueses visto pelo desarmante e fascinante olhar infantil, sobre a vida e a morte das crianças numa tabanca fronteiriça militarizada, sobre a atracção e a repulsa da cultura europeia...

Cherno, as tuas crónicas, pela emoção que nos provocaram, pela autenticidade do teu testemunho, pelo fascínio das tuas memórias de infância e pela beleza literária da tua narrativa, já bem merecem um editor português. Não tenho dúvida, não temos dúvidas: és um talentoso escritor de língua portuguesa. 

E o nosso blogue orgulha-se de estares entre nós, como guineense, como homem, como amigo, como lusófono. 

Espero que esta crónica chegue ao conhecimento do Mortágua, onde quer que ele esteja, dos Mortáguas que tu conheceste e que, como dizia a tua avó, não eram mais do que crianças crescidas que a guerra veio roubar às suas famílias e às suas tabancas... (LG) (18 de maio de 2010)
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Cherno Baldé, por ele mesmo 
(seleção do editor LG):


(...) Chamo-me Cherno Abdulai Baldé, nasci por volta de 1959/60. No quartel de Fajonquito chamavam-me Chico (de Francisco) e tinha amigos soldados que, na sua maioria, eram condutores ou mecânicos-auto. Tive as minhas primeiras aulas com oficiais Portugueses, em Cambajú e Fajonquito. (...) (18 de junho de 2009)
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(...) Eu nasci em Farimbali mas fui baptizado, sete dias depois, na nova aldeia [, Luanda]. Deram-me o nome de Cherno Abdulai em honra ao chefe religioso e almane da mesquita de Farimbali, originário de Futa Toro, do Senegal, que conduziu a cerimónia do baptismo.

Cherno não é propriamente um nome mas um título a que se dá aos homens letrados, que orientam a comunidade durante as orações, sobre aspectos da vida social/religiosa e ensinam o Alcorão às crianças. (...) (13 de julho de 2009)
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(...) O meu pai, El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), falecido em 1999, com cerca de 80 anos: como bom fula e muçulmano, aceitava e suportava com dignidade o domínio dos brancos (portugueses e franceses), mas sempre desconfiado da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo. (...) (27 de julho de 2019)
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(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão [, aterradora,]  de uma máquina voadora [, um helicanhão], que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...) 

Esta visão ficou para sempre gravada na minha memória. Estranhamente, era também a visão da guerra que se alastrava pouco a pouco e que mudaria o cenário da vida, aparentemente pacífica, que levávamos até aí e mudaria, de forma inesperada, o caminho dos nossos destinos (...) (19 de junho de 2009)
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(...) No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterrorizava as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...) (2 de junho de 2009)
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(...) [O batismo de fogo em Cambaju, em 1966, às 4 da madrugada:] 


Consternados e indecisos, sem saber como convencer o meu pai a deixar a loja  que, de facto, estava cercado dos três lados,  [, os dois milícias] já estavam a deixar o local quando um deles, instintivamente, perguntou a meu pai:
- O Senhor não tem outra arma melhor que esta mauser? - disse, apontando para a arma que estava nas mãos do meu pai cujo cano estava fumegante e quase vermelho rubro devido ao ritmo acelerado dos tiros da arma de repetição.
- Infelizmente, não, meu irmão, mas tenho granadas que os brancos me deram e as quais não sei usar.
- Muito bem - disse o jovem milícia -, dê-me a sua arma e vai trazer-me essas granadas para limpar o sebo a esses bandidos. (...) (30 de junho de 2009)

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(...) Eu passei boa parte da minha infância entre a tropa que passou por Fajonquito (1968/74) e tive muitos amigos que, na verdade, logo esquecia para me concentrar nos récem-chegados.

Eu era desses raros pequenos rafeiros do quartel impossíveis de controlar e muito menos de afastar. Quando se fechavam os portões do quartel entrava, mesmo assim, por baixo do arame farpado. O dia e a noite faziam pouca diferença. Apanhava porrada de um ou outro quando deambulava pelo quartel, mas,  também, dava alguns trocos com emboscadas e pedradas à noite.

A língua? Isso importava menos. Quando o meu amigo, o Dias, me perguntava "Ó Chiiico,  já limpaste as minhas botas?", eu respondia de imediato "Sim senhor, já limpaste" e depois?"... Nós nos compreendíamos muito bem e isso é que importava.  Foi esta vida de cão de quartel no meio de jovens soldados endiabrados, acossados pela ansiedade do regresso a casa e o medo da morte que me moldou a vida e me preparou para enfrentar o mundo. (...) (18 de junho de 2009)

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(...) Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida! (...) (18 de maio de 2010)
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(...) Um dia a minha avó, que era intrometida e gostava de controlar a vida dos outros, disse a minha mãe:
- Olha, filha, toma cuidado com o Cherno Abdulai, pois ele anda metido há tanto tempo no meio desses descrentes que já cheira a carne de porco.

Era esperta a minha avó que, certamente, teria encontrado um daqueles pedacinhos de chouriço nos meus bolsos. Quando a queria provocar, trazia do quartel, a massa de esparguete. Na opinião dos mais velhos, os esparguetes eram bichos (germes) da raça das minhocas que os brancos secavam e quando as metia dentro da boca todos fechavam os olhos horrorizados e fugiam para não ver a insuportável cena. Por motivos religiosos o meu pai proibia a entrada da sopa dentro da casa. As únicas coisas que admitia eram as latas de sardinha ou a Coca-Cola. (...) (27 de julho de 2009)

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(...) A hierarquia dos tugas, segundo o Camões [, alcunha do Suleimane]: 

O Camões era muito bom observador, e ele ajudou-nos a dar os primeiros passos na vida de rafeiro que era a nossa no quartel. Ele nos ensinou com mestria as técnicas de identificar as ameaças e oportunidades e de fazer frente aos perigos. A lição começava na identificação do perigo latente a partir do simples ambiente do momento, a fisionomia dos soldados ou a sua maneira de andar. Mas, o grande problema é que ele via perigo em quase tudo, o que tornava impossível apreender e aplicar todas as técnicas do seu manual de rafeiro.

Entre os maus e mais perigosos, segundo a tabela de Camões, figuravam: Os soldados altos e esguios, os baixinhos e magros, os cabelos ruivos, os de andar apressado, os olhos de gato, os solitários, os alcoólatras, os melancólicos, os excessivamente asseados e aprumados, os bigodatos, enfim, quase todos. Nesta sua classificação, os bons (melhores) eram sempre os atletas (não muito altos, não muito baixos, não muito magros, nem gordos, sem bigodes ou bigodes curtos, os morenos etc.). Nesse grupo entravam os futebolistas e os vagabundos (inofensivos sem uma característica especifica) que passavam a maior parte do tempo metidos aldeia adentro ou a caçar pássaros na orla da bolanha com um bando de crianças.


Nas especialidades, ele preferia os homens das equipas de apoio ou da logística, como sejam os vagomestres, cozinheiros, condutores, mecânicos, pessoal dos combustíveis, dos correios, das transmissões etc. Aconselhava a todos que o quisessem ouvir, ficar longe dos operacionais ou dos tigres, como ele os chamava.

- Esses são assassinos, fujam deles!... - dizia o Camões, tentando fixar-nos com aquele seu olho esmiuçado. (...) (27 de julho de 2009)
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(...) Desde o primeiro contacto, para mim, o quartel transformou-se irremediavelmente num local atractivo porque era o lugar ideal, quase perfeito, para viver, longe das misérias do mundo. Os homens em geral têm tendência natural para justificar as suas fraquezas. Foi assim que, confrontados com a força conquistadora e dominante dos Portugueses, os nossos velhos encontraram uma forma subtil e engenhosa de explicar a supremacia e também, a sorte dos brancos. Diziam: "A eles, Alá (Deus) deu tudo o que desejavam neste mundo e a nós, pretos, Deus nos reservou o paraíso na eternidade, na condição de sermos pacientes e cumpridores das obrigações contidas nos cinco pilares da religião".

Todavia, não era assim tão simples no espírito de uma criança que tinha fome e muita curiosidade. E mais, a fome podia ser enganada ou controlada mas era mais difícil ocultar a evidência, para lá das barreiras e dos dogmas. (...) (18 de maio de 2010)

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(...) Na altura toda a gente queria ser o Pelé ou o Eusébio, sobretudo este último que estava muito em voga. Mas nem tudo era assim tão simples, os mais fortes é que escolhiam primeiro, se o Sambaro era Eusébio, então tínhamos que contentar com outros nomes menos sonantes, o baixinho Simões, por exemplo, quem conhecia o Simões?..

Para nós tudo o que era afro era melhor, isto enchia-nos de orgulho contrabalançando assim um pouco a superioridade evidente dos brancos que, mesmo sendo nossos amigos não deixavam de ser diferentes de nós. (...)  (5 de agosto de 2009)

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O 'djubi' Cherno Baldé, mais conhecido 
por Chico, Fajonquitio, 1974
(...) Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu… Canjufa…Pirada… Canjadude… Piche… Bafatá… Bambadinca… Farim… Guidaje, tudo.(...) (30 de junho de 2010)
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(...) Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. (...) Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade. (...)

(...) Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.
- Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!... Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam:
- Um, dois, três!... Um, dois, Três!... A esquerda!... A esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... (...) (30 de junho de 2010)

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Para aqueles que não sabem (o que é pouco provável) quero informar que, também, nós, Africanos (Pretos, se quiserem), tivemos a oportunidade de viver em terras da Europa, esta velha Europa, orgulhosa e racista,  mas que também sabe ser, às vezes, acolhedora e bondosa. E também nós tivemos, temos e teremos as nossas experiências não menos dramáticas com as Marias e as Natachas.

Diz um ditado popular que "o mundo é como o rabo de uma pomba" que faz viragens permanentes. Eu nunca utilizarei o termo puta porque penso que o não foram e aí o Jorge é bem explícito. Se todos os homens fossem tão humanos como o são as mulheres (todas as mulheres), o mundo seria mais justo e a vida mais fácil de viver. (...) (20 de julho de 2009)

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(...) Os 77 anos de vida que ele [, o velho Marabu mandiga,] me deu,  ainda estão por se confirmar, mas já constituíram para mim uma importante fonte de confiança na minha longevidade. Todavia, se antes me parecia ser uma boa idade para morrer, com o tempo e a pressão da idade, estou tentado a mudar de opinião e, penso, que o velho Marabu talvez se tenha equivocado, afinal 77 anos é tão pouco tempo para viver.(...)  (21 de julho de 2009)
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(…) As palmas que já bati no passado para os soldados portugueses nas suas paradas de ronco e para o PAIGC durante os seus infindáveis discursos e meetings já chegam, agora quero pensar com a minha cabeça. Tenho mais ou menos 50 anos e nessa idade devo ter medo de quem?... (2 de agosto de 2009)
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Nota do editor:


Último poste da série > 4 de junho de 2020 > Guiné 61/74 – P21039: (Ex)citações (368): A fé na guerra. Tempo de leitura. (José Saúde)

Guiné 61/74 - P21091: Parabéns a você (1825): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro da Guiné-Bissau, Engenheiro e Gestor de Projectos

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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21087: Parabéns a você (1824): Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (Guiné, 1966/68); Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74) e Leopoldo Amado, Amigo Grã-Tabanqueiro, Historiador e Professor Universitário

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21090: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (7): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
É dia histórico, os dois cinquentões estão em rota de aproximação, ele foi sexta-feira à noite para Bruxelas, havia planos que tiveram que ser alterados por causa de chuviscos ao longo de uma manhã. Despediram-se domingo à noite, segunda-feira era dia de ocupações para ambos, ela não resiste a escrever-lhe emocionada, há muito sal na terra na sua narrativa, guardou pormenores, está felicíssima, um rasto de luz assoma na sua vida, ela quer agarrar esta esperança com uma certa firmeza, e di-lo.
O pretexto da ficção entrou numa reviravolta, passou a fazer parte de um quotidiano real, algo de novo está a acontecer na vida daqueles dois cinquentões. É uma questão de entusiasmo esfuziante, e Annette não é mulher que vá recuar só porque existe uma distância física entre Bruxelas e Lisboa. Os dados estão lançados, a partir deste fim de semana.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (7): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo, escrevo-lhe na noite de segunda-feira, a esta hora já está em Lisboa, eu trabalhei o dia todo num edifício perto do Berlaymont, reunião de pescas, lamento não ter tido condições para o levar ao aeroporto. Foi um fim de semana muito feliz, o tempo ajudou no sábado e os chuviscos permanentes no domingo obrigaram-nos a mudar de planos, sinto-me feliz quando alguém conhece o valioso património de Arte-Nova em Bruxelas, aprecia os jardins e parques e gosta de percorrer calmamente Ixelles ou Saint-Gilles. Confesso-lhe que fiz algum esforço para estar pronta às oito da manhã de sábado para o acompanhar nas suas andanças no mercado da Place du Jeu de Balle, o entusiasmo com que regateou aquele álbum de fotografias de alguém que em 1951 entrou por Vilar Formoso e veio até Lisboa, visitou Alfama e o Bairro Alto, as imagens, reconheço, de muito boa qualidade, o que é que vai fazer agora com o álbum, é para algum museu? Assombrou-me aquela senhora que tem uma banca junto da igreja e que o reconheceu imediatamente, a que vende velhos lenços para o pescoço, marcas como Dior ou Chanel ou Saint-Laurent, a sua preocupação de que estivesse em bom estado, sem manchas, sem cores desbotadas. E não consigo imaginar como é que entrou no avião com aquela tela a óleo, enorme, fez bem em desfazer-se da moldura, toda em mau estado, mas também gostei da pintura, com o tema do Mar do Norte ao fundo. Adorei o almoço naquele restaurante típico frente à Porte de Hal, soube-me bem rever a Rue Haute, espreitar a casa dos meus pais adotivos, tenho pena do estado em que está a fachada, fomos por ali fora até ao Grand Sablon, ainda tremi a pensar que íamos vasculhar mais velharias, eu preferia continuar a falar dos seus projetos literários, como acontecera à hora do almoço. O que me entusiasmou não falarmos diretamente dos seus tempos da Guiné, mas daquilo a que chamou os preparativos, e antes o que chamou a sua vida de estúrdia, sócio de quatro cineclubes, mais teatro, mais festivais de música, as suas tertúlias e visitas quase diárias àquele seu amigo que faleceu em Moçambique, em 1970. Gostei da vivacidade com que falou do Convento de Mafra, que eu visitei quando estudei em Portugal, como lhe disse é uma excursão no âmbito de um curso de férias da Faculdade de Letras, fomos diretamente para o Museu Nacional, o que nunca mais esqueci foi a beleza da biblioteca joanina, mas não me foi dado perceber se havia para ali um quartel, onde se preparou para oficial miliciano. Estávamos nós a comer a sobremesa, a Dame blanche, quando, com o mesmo entusiasmo, me contou a sua chegada aos Açores e a importância que esta estadia teve para ganhar confiança nas suas capacidades de liderança.

Eu queria ouvir mais histórias, o princípio da tarde tinha aquela boa temperatura, um sol confortável, e foi quando o Paulo sugeriu que vagueássemos pelo Parque Real antes de ir fazer aquilo que chamou visita de culto aos modernistas e surrealistas no Museu das Belas Artes. Aí contou-me o resto da história e o regresso a Lisboa. Depois fomos visitar os seus amigos como lhe chamou, desde Rik Wouters e Léon Spilliaert, passando por James Ensor até ao santo do maior culto, René Magritte. E depois fomos para o Jardim do Petit Sablon, invocando que precisava de alguns dados pessoais sobre aquela mulher com quem se envolvera e a quem enviava informações sobre o seu passado, a tal belga que tudo quis saber sobre a sua experiência na guerra da Guiné, eu falei-lhe um pouco de mim, penso que ficou claro que muito cedo enveredei pelo que considero ser a minha vocação, ser intérprete, trabalho como freelancer, felizmente que tenho muita solicitação, inclusive sou chamada para conferências ao fim de semana, não regateio trabalho, os meus dois filhos estão em início de carreira, ajudo-os, o meu ex-marido também tem tido essa preocupação de os apoiar. Graças a ser intérprete, conheço um pouco da Europa, como lhe disse acompanho as reuniões do Conselho Económico e Social Europeu, como sabe funciona ali no Monte das Artes, às vezes aproveito a hora do almoço e vou visitar alguma exposição no Palácio das Belas-Artes; são as reuniões da Comissão Europeia que mais tempo me absorvem, não fujo ao trabalho, não é um problema de impostos, preciso de poupar o mais possível, a minha reforma, acredite, não será lisonjeira. Com uma vida assim tão ocupada, procurando acompanhar mesmo à distância a vida dos meus dois filhos, com algumas boas amizades, não me posso lamuriar de solidão. Mas sei olhar-me ao espelho, sou realista, aos 50 anos a candidatura a um amor verdadeiro é mais uma necessidade que o bom-senso tem o dom de acalmar, para não cometer disparates. Isto só para lhe sublinhar o que lhe disse, a vida prega-nos imensas partidas, se alguma vez me tinha passado pela cabeça que numa reunião de trabalho um participante vindo de Portugal me batesse à porta para me pedir ajuda para uma história de amor serôdio, com recordações de guerra e muito mais. Passado este tempo, só tenho que lhe agradecer a companhia que me trouxe e a abertura de uma porta que eu julgava hermeticamente fechada.

Fomos beber um saboroso chocolate e conversar sobre o domingo, eu tinha lá notícia de que a meteorologia anunciava chuviscos, tínhamos recentemente falado em visitar Laeken, penso que desde a adolescência não visito os jardins nem o Pavilhão Chinês nem a Torre Japonesa, não sei explicar porquê, aquele local é tão aprazível, gosto tanto de plantas e as Estufas Reais são muito belas, achei preferível dizer-lhe que deixaríamos a natureza para outra sua visita e como queria comprar livros de banda desenhada para oferecer a um amigo, propus que começássemos o domingo por ir ao Centro Belga de Banda-Desenhada, eu já ali tinha passado perto, é um belo edifício Arte-Nova, gostei imenso de conhecer o interior, li como toda a gente os heróis de Hergé e de Edgar Jacobs, valeu a pena e sobretudo ouvir os seus comentários a todas aquelas histórias. Lá fomos de chapéu de chuva até ao restaurante Vincent, quantas vezes passei ali pela Rua dos Dominicanos e não me tinha apercebido dos belos mosaicos do interior, mais uma vez lhe agradeço a refeição de peixe, deliciosíssima.

Como não estavam previstos mais chuviscos, sugeri um passeio a dois jardins, o Paulo anuiu e fomos primeiro ao Parque de Woluwe, atravessámos Bruxelas e visitámos o Parque de Josaphat. Tinham sido grandes emoções, eu estava radiante, caía o dia, tinha lidas domésticas inadiáveis, mas ao mesmo tempo sabia-me tão bem a sua companhia, o meu coração balanceava, o Paulo foi perspicaz, não se queria exceder, sugeriu então que fôssemos até À la Mort Subite beber uma Kriek, e então falou-me daquele primeiro mês a adaptar-se a Missirá e a Finete, trouxe fotografias, impressionou-me, dolorosamente, o estado lastimoso de tudo aquilo, mas o Paulo sempre a sorrir, dando o braço àqueles homens e mulheres, conversando com as crianças, a dar aulas, a acompanhar reparações urgentes. Enquanto tudo me contava eu interrogava-me seriamente como é que seria possível aquele jovem de 22 ou 23 anos de idade, de hábitos culturais arreigados, atirado de rompante para o fundo de uma mata, com uma população tão pobre, correndo tantos riscos, enfrentava com tanto otimismo a multiplicidade de problemas hostis, com a possibilidade de entrar em guerra a qualquer momento, sempre a sorrir, como se estivesse a descobrir um admirável mundo novo. Enquanto bebia a Kriek e o ouvia, eu não deixava de pensar que para saber responder aos ásperos desafios que a vida nos apresenta não há nada como o otimismo e a esperança.

E quando me despedi de si, à porta da Rua do Eclipse, pedindo-lhe desculpa por ter arranjos inadiáveis, mesmo sabendo que esta despedida o estava a fazer sofrer, senti um calor na minha alma que me continuou a acompanhar e que me levou a escrever esta carta onde não lhe escondo os meus sentimentos e a felicidade de o saber perto de mim, mesmo à distância destes milhares de quilómetros, tome a distância como uma pura casualidade, que mais dia menos dia iremos ultrapassar, há a tal história de amor que me propôs, e ainda estamos nos primeiros capítulos. Espero que regresse em breve e que entretanto volte às suas recordações da Guiné, espero ansiosamente notícias, afetuosamente, Annette.

 Mulher junto à costa, 1910, por Léon Spilliaert

Os Amantes, por René Magritte

Entrada do Centro Belga de Banda-Desenhada

Parque de Woluwe

Parque Josaphat

Escultura no Parque Josaphat
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21069: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21089: Efemérides (328): O Papa Francisco recordou o "Dia da Consciência", celebrado nesta quarta-feira, dia 17,"inspirado no testemunho do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, que, oitenta anos atrás, decidiu seguir a voz da consciência e salvou a vida de milhares de judeus e outros perseguidos", lê-se no "Vatican News" (João Crisóstomo, Nova Iorque)


O cônsul de Bordéus, Aristides Sousa Mendes
(Cabanas de Viriato, 1885 - Lisboa, 1954)


Um dos vistos passados pelo consulado português de Bordéus, França, com data de 19 de junho de 1940.

Fonte:  Vatican News,. de hoje, 19 do corrente (. com a devida vénia...)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada João Crisóstomo, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, que vive em Nova Iorque:

Date: sexta, 19/06/2020 à(s) 11:50
Subject: O Papa Francisco e o Dia da Consciência

Caro Luís Graça,

Aqui está  o que pus na minha página do Facebook (, por vezes, quando é mesmo necessário, também me aventuro lá...)

No artigo do Vatican News,. de hoje, 19 do corrente,  aparecem duas boas   fotos   que não pude por no Facebook: a foto de Aristides,  e uma foto dum passaporte com um "visto" passado por ele... Talvez queiras (e possas) aproveitar  para pôr no teu poste.

O Secretário de Estado dpo Vaticano,
Cardeal Pietro Parolin, com o João Crisóstomo
Junto porém, caso aches relevante,  uma foto que tirei com o Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin [, à esquerda.] , a quem "chateei tanto" que ele "só para se  ver  livre de mim",  teve de fazer o que eu pedi… mas não foi  o caso; em 2018 ele numa carta ( que junto) já mostrava boa vontade não só no referente a Timor Leste, como mencionava ter celebrado missa neste dia 17 de Junho, "Dia da Consciência"  como eu lhe havia pedido.

Desde então temos  estado  em contacto e há três meses Sua Eminência sossegava-me, assegurando que o assunto não tinha sido esquecido, conforme email que copio também. (E para ti, para saberes o que te espera quando vieres aqui a minha casa, junto uma foto tirada ontem, durante um "teste" para fazer um video para um canal de televisão italiano sobre o assunto do Dia da Consciência.) [Foto a seguir]



Nova Iorque > Queens >  19 de junho de 2020 > O João Crisóstomo no seu museu de recordações de uma vida de luta por causas nobres.

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


By the way: Por vezes dizem que minha casa é um pequeno museu… Neste caso podes ver na parede as fotos dos "humanistas" cujas causas tenho ajudado a dar a conhecer ao mundo, especialmente aqui nos Estados Unidos.

São eles, da esquerda para a direita:

(i) o humanista  brasileiro  Luís Martins de Sousa Dantas ( numa foto pequena sobreposta está o franciscano francês Father Benoit , a quem  chamavam " o Pai dos Judeus");

(ii) no meio está o nosso Aristides de Sousa Mendes [, a foto/montagem  sobreposta sobre os mapas de Bordéus e Carregal do Sal é um original que  me ofereceu Peter Malkin (que agarrou com suas mãos o famigerado Eichmann);

(iii) à direita Angelo Roncalli, que viria a ser papa (São João XXII);

(iv) por baixo, ainda um outro grande humanista, o conhecido sueco  Raoul Wallenberg;

(v) e no lado direito aparece uma foto de Xanana:  está aí apenas porque   os painéis à minha direita estão relacionados com Timor Leste.

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Estado do Vaticano > Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin > E mail de 22 de Março 2020:

Dear Mr. Crisostomo,

greetings from Rome, in these difficult days in which we are called to pray more and to put our confidence in God.  I hope that you are getting fine.  Here, we are under strict restrictions and it is very sad to see the churches closed and Holy Masses suspended.

Sorry for not giving any reply to your numerous letters, the last of which you sent at the beginning of last February,  about the Day of Conscience project, but, as you can understand, we are everyday under a huge pressure and there are so many dossier which claim our attention  so that it is not easy to follow everything.  

Unfortunately, the project has not been studied yet by our Office, in spite the fact that I have sent the documentation to them few months ago, Today I have sent a reminder, asking them to proceed speedily and to give my a opinion as quick as possible. 

 I hope to be able to send you a definite answer without further delays.  If apologie for this inconvenience and I rely on your understanding. 

May God bless you.  Have a good Sunday!
Pietro Parolin

[Tradução/adaptação livre do editor  L.G.;

Caro Sr. Crisóstomo, saudações de Roma, nestes dias difíceis em que somos chamados a rezar mais e a confiar em Deus. Espero que esteja bem. Nós, aqui, estamos com restrições estritas e é muito triste ver as igrejas fechadas e as missas suspensas. 

Peço desculpa por não ter respondido às suas numerosas cartas, a última das quais enviada no início de fevereiro passado, sobre o projeto do Dia da Consciência, mas, como pode  perceber, estamos todos os dias sob uma enorme pressão e há muitas dossiês que reclam a nossa atenção, pelo que não nos é fácil acompanhar tudo. 

 Infelizmente, o projeto ainda não foi analisado pelo nosso gabinete , apesar de eu já ter enviado a documentação para eles há alguns meses. Hoje enviei um lembrete, pedindo-lhes que acelerarem a resposta e  darem.me uma opinião o mais rápido possível. 

 Espero poder enviar--lhe  uma resposta definitiva sem mais delongas. Peço desculpa por este inconveniente e confio na sua compreensão. Que Deus o abençoe. Tenha um bom domingo! Pietro Parolin]

2. Aqui está, entretanto,  o que pus no meu Facebook, ontem:

Para quem por vezes duvida de que vale a pena envolvermos-nos em coisas que parecem muito difíceis, permitam-me discordar: desde 2004 tenho tentado que o Vaticano aceite o dia 17 de Junho, dia em que Aristides demonstrou o seu grande humanismo, salvando milhares de refugiados, como o "Dia da Consciência".

Se o conseguisse, pensava eu, seria um grande passo para que Aristides e o seu exemplo fossem mais conhecidos. E como me escreveu ontem o seu neto Gerald Mendes, "in these days of turmoil, conflicts and confusion around the world, it is an opportunity to reflect, to have a chat with our conscience". Se isto suceder a muita gente… é isso mesmo que é preciso: Aristides de Sousa Mendes continuará sempre a inspirar e motivar cada um de nós a sermos o que devemos ser.

Oxalá as pessoas pelo mundo fora ouçam as palavras do Papa Francisco na sua Audiência de de ontem, conforme foi publicada na "Vatican News" que me permito partilhar:

Francisco: que a liberdade de consciência seja em toda parte respeitada

O Papa recordou o "Dia da Consciência", celebrado nesta quarta-feira, inspirado no testemunho do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, que, oitenta anos atrás, decidiu seguir a voz da consciência e salvou a vida de milhares de judeus e outros perseguidos.

Mariangela Jaguraba - Vatican News

Na Audiência Geral desta quarta-feira (17/06), o Papa Francisco fez um apelo em prol do "Dia da Consciência".

"Celebra-se hoje o "Dia da Consciência", inspirado no testemunho do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, que, oitenta anos atrás, decidiu seguir a voz da consciência e salvou a vida de milhares de judeus e outros perseguidos. Que a liberdade de consciência seja sempre e em toda parte respeitada; e que cada cristão possa dar exemplo de coerência com uma consciência reta e iluminada pela Palavra de Deus."

Aristides de Sousa Mendes nasceu em Cabanas de Viriato, Portugal, em 19 de julho de 1885. Desempenhava as funções de cônsul de Bordeaux, na França, quando teve início a II Guerra Mundial. Concedeu cerca de trinta mil vistos para salvar a vida de refugiados do nazismo, a maioria judeus, contra as ordens expressas de Salazar.

Obrigado a voltar a Portugal, Sousa Mendes foi demitido do cargo e ficou na miséria, com a sua numerosa família. Faleceu pobre, em 3 de abril de 1954, no hospital dos franciscanos, em Lisboa.
Em 1966, foi reconhecido pelo instituto Yad Vashem, memorial dos mártires e heróis do Holocausto, como um "Justo entre as nações".

Em 1998, foi condecorado a título póstumo com a Cruz de Mérito pela República Portuguesa, por suas ações em Bordeaux."


É gratificante verificar o respeito e o reconhecimento finalmente dado a Aristides de Sousa Mendes também no nosso país, com a sua introdução no Panteão Nacional.

Para o caso de alguém ficar admirado de eu dizer "também no nosso país", permito-me recordar que durante muito tempo Aristides de Sousa Mendes foi propositadamente ignorado no nosso país e o seu reconhecimento só sucedeu depois de pressão por parte dos Estados Unidos onde Aristides foi reconhecido e homenageado anos antes.

Bem hajam todos os que estiveram envolvidos nesta entrada de Aristides no Panteão Nacional.
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Luís: Abraço meu e da Vilma (que acaba de acordar e, quando soube que te estava escrever,   berrou que mandasse um beijinho dela para ti e para a Alice.) 

João e Vilma
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21066: Efemérides (327): o 10 de junho de 2020, que não houve, por causa da COVID-19, na Lourinhã...