quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1119: Um periquito no Saltinho, o ranger Eusébio (CCAÇ 3490, 1972/74)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Saltinho > Pel Caç Nat 53 > Finais de Março de 1972. O Alf Mil Paulo Santiago, comandante do Pel Caç Nat 53, ladeado por duas Kalash . O Paulo constesta algumas das afirmações constantes da página do ranger Eusébio, que terá pertencido à CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74).

Foto: © Paulo Santiago (2006)


Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > 1972 > Parada do quartel. O Pel Caç Nat 53, comandado pelo Alf Mil Paulo Santiago, estava aqui em reforço da unidade de quadrícula - originalmente a CCAÇ 2406, 1968/70, que pertencia ao BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca, depois a CCAÇ 2701 (1970/72) a que pertenceu o Alf Mil Martins Julião e a seguir a CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), a companhia do Cap Mil Lourenço (o famigerado capitão-proveta) e do Alf Mil Armandino, vítima da tragédia do Quirafo, em 17 de Abril de 1972.
Foto: © Paulo Santiago (2006)


Texto do editor do blogue, L.G.:

Reprodução de um dos nossos posts, o post XLIII (43, em numeração romana), com data de 4 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIII: Antologia (1): O que era ser periquito...

Na altura eu escrevi, premonitoriamente, o seguinte:

"Há páginas na Net que correm o risco de desaparecer... Miseravelmente. Como aconteceu com as páginas no Portal Terrávista. O maior portal, em língua portuguesa, da segunda década de 1990.

"Algumas das páginas que encontramos na Net têm um maior ou menor interesse documental para a história da guerra colonial na África Portuguesa. Por exemplo, mostram, com maior ou menor propriedade, rigor e talento, o que era a vida de um tuga na Guiné. Por isso merecem ser objecto de antologia.

"Hoje seleciono aqui a página de um ranger, que esteve na Guiné entre 1971 e 1974. É um ranger convicto, endoutrinado, disciplinado, como mandava a puta da sapatilha. A guerra acabou, não serei eu seguramente a alimentar as idiotas rivalidades que levaram a troca de insultos e até a confrontos físicos, em Bissau, entre a tropa de elite (paras, comandos, fuzileiros, operações especiais) e o resto: a tropa-macaca (como a CCAÇ 12 ou a CCAÇ 3) ou os cassanhos (como a CART 1690, do Alferes Lopes)"

Bom, na altura (Junho de 2005), essa página estava alojada num portal entretanto suspenso (Cidade Virtual). O seu endereço original era: http://sapo.telepac.pt/rangers/Guine/Guine1.htm

O sítio apresentava-se como a "página não-oficial" dos rangers, cuja associação (a Associação de Operações Especiais, criada em 1980, e com sede em Lamego) tem um sítio próprio.

A página do ranger Eusébio passou, entretanto, a ficar alojada no portal Planeta Clix (http://rangers.planetaclix.pt//). Ainda há uns tempos a (re)visitei. Estranhamente, voltou há dias a eclipsar-se... Daí o interesse em recuperar o seu conteúdo inicial, até por que o Paulo Santiago, ex-comandante do Pel Caç Nat 53, que esteve no Saltinho entre 1972 e 1973, contesta alguns dos factos aqui descritos (1).

Mas vejamos o que nos contava o periquito e ranger Eusébio, há um ano e tal atrás:

1. Começa por escrever o nosso ranger:

"A viagem durou aproximadamente cinco dias a bordo do navio Niassa e decorreu sem incidentes, com chegada ao largo do porto de Bissau ao anoitecer do dia 24 de Dezembro de 1971.

"Ali aguardámos, fizemos a nossa ceia da noite de Natal e desembarcámos nas primeiras horas da manhã do dia 25 de Dezembro. A excitação do jantar, a ansiedade do desembarque, de conhecer aquela terra tantas vezes falada (com apreensão!), aquelas gentes, não deixou que alguém pregasse olho. Bebemos, conversámos, cantámos até ao amanhecer cinzento, tórrido. Cansados, desembarcámos quase em silêncio".

2. "Uma vez desembarcados, fomos transportados para o aquartelamento do Cumeré que dista da cidade de Bissau uns 40 km por estrada e 12 km em linha recta, e onde permanecemos cerca de vinte dias.

"Este período foi destinado à habituação física, ao contacto com os naturais e, principalmente, ao primeiro encontro com a operacionalidade versus realidade da guerra. Daqui fomos transferidos para as localidades do interior do território (denominado mato).

"Pelo Rio Geba acima, em lanchas de desembarque da Marinha [LDG], fomos levados até ao Xime onde desembarcamos já ao fim da tarde".

3. E a viagem continua, pelas estradas da zona leste (Xime, Bambadinca, Galomaro, Saltinho):

"Ali, no Xime, esperava-nos um esquadrão de cavalaria com os blindados chaimite que nos iriam escoltar até á próxima paragem, Bambadinca.

"Já noite, pernoitámos e ganhámos forças para o dia seguinte que, segundo os velhos (aqueles que já lá estavam, na Guiné), seria bem mais difícil pois o risco de flagelação à distância ou emboscadas era muito grande, ou quase certo. Iríamos ter de atravessar o Rio Pulom onde fatidicamente algumas vidas já se tinham perdido. É um local de selva densa, temível.

"Dirigimo-nos então para Galomaro onde deixámos uma Companhia (CCS) e, de seguida, para o Saltinho, sempre acompanhados de perto pelos caças FIAT e bombardeiros T6 da Força Aérea. A tensão era muita, uma grande prova de nervos, mas, felizmente, não chegámos a ser presenteados pela hospitalidade do PAIGC.

"Chegámos finalmente ao local onde eu iria passar a maior parte do meu tempo de comissão" (2).

4. No Saltinho, "fomos recebidos pelos velhos como periquitos, com muita alegria e carinho. Estavam ansiosos pelo regresso às suas casas, e nós quase sentíamos inveja disso. Finalmente foram e assim ficámos entregues a nós próprios num misto de orgulho e saudade.

"Começámos então o nosso trabalho concentrados num objectivo: Havemos de fazer um grande ronco, estar cá para receber os nossos periquitos e regressar.

"Para isso passamos de imediato à acção que não se fez tardar,com algumas escaramuças com o PAIGC de Amílcar Cabral e de Nino Vieira.

"A vida ali não sofria grandes alterações para além das constantes incursões pelo mato, as operações de maior ou menor envergadura, as emboscadas, as flagelações nocturnas, os apoios a outras unidades em perigo, o bater à zona, a preparação no terreno de mais uma coluna de reabastecimento, o pedir apoio aéreo ou artilharia, o montar e desmontar de minas e armadilhas, fazer fornilhos, esticar arame farpado, abrir e restaurar abrigos, as noites sem dormir... os ataques de abelhas, os mosquitos e outros mais, o calor abrasador, a micose insustentável,... o whisky, a cerveja... e muita saudade!

"O aquartelamento do Saltinho era formado por abrigos em betão, capazes de resistir ao temível foguetão 122 mm, de origem soviética, cuja granada ao explodir produz cerca de 15.000 fragmentos mortais.

"Situava-se junto á fronteira com a Guiné-Conacri, na margem do Rio Corubal e constituía a defesa da ponte sobre o mesmo rio. Na outra margem tínhamos um destacamento. Mais para lá era terra de ninguém. Havia por perto, a Norte (a uns 30 km), uma das principais bases de ataque do PAIGC, a base de Kambera.

5. Prossegue o nosso ranger:

"A Sul, sensivelmente à mesma distância, a não menos importante base de Kandiafara que muitos e graves problemas causou aos nossos camaradas de Guileje e Gadamael Porto. A Sul do Saltinho, contavamos com o apoio dos obuses da eficaz artilharia do aquartelamento da Aldeia Formosa [hoje, Quebo].

"Água não faltava todo o ano (embora imprópria para consumo), de um rio que variava bruscamente o seu caudal conforme a época, seca ou das chuvas.

"Entretanto formei o meu grupo (GE) de nativos, por mim instruído e preparado para a execução de qualquer operação, reconhecimento ou acção irregular.

"Era um grupo constituído por naturais da etnia Fula e Futa Fula, homogéneo, com excelentes capacidades de combate, resistência física e grande camaradagem.

"Passámos juntos por situações de muito perigo como, por exemplo, em operações para além da nossa fronteira onde se tornava difícil qualquer apoio que não fosse o aéreo (quando possível!). Tomamos parte em grandes operações um pouco por toda a região de Bafatá, Galomaro, Bambadinca e Aldeia Formosa.

"Estávamos equipados com o tipo de armamento utilizado pelos guerrilheiros do PAIGC, desde a HK-47 (Kalashnikov) até ao temível lança granadas foguete RPG-7. Não havia dúvidas de que estas armas de origem soviética eram mais eficazes, tendo em conta as características da guerra que se travava (guerrilha), as acções a levar a cabo no terreno, assim como pela facilidade de manejo. No entanto o objectivo da utilização deste equipamento prendia-se sobretudo com a intenção de confundir o inimigo e obter daí as vantagens do efeito surpresa.

"Lamento sinceramente não saber qual o foi destino destes homens após a independência da Guiné. Pressuponho apenas que não terá sido o mais feliz, desgraçadamente.

"Terminado o tempo que a própria conjuntura determinou para a minha comissão (teoricamente 18 meses mas na prática dois anos e 94 dias), regressei à Metrópole novamente embarcado no navio Niassa cuja tripulação, pelo carinho e atenção que nos dispensaram, merece todo o apreço.

"A reintegração para mim não foi difícil. Com traumas da guerra não fiquei, caso contrário não me teria servido para nada a forte acção psicológica a que fui submetido durante a instrução do meu curso de Operações Especiais. Lá, no CIOE, formam-se Rangers, de Firme Vontade e Indómito Valor".
__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post a seguir.

(2) Tudo indica que o ranger Eusébio pertencia à unidade de quadrícula, sedeada no Saltinho, a CCAÇ 3490, pertencente ao BCAÇ 3872, com sede em Galomaro.

Vd. post de 15 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXI: Saltinho, 1971/74... United States of America, 2005

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1118: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (13): Rebelo, meu rapaz, ninguém nasce soldado!


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 1968 ou 1969 > O destacamento do Missirá (aspecto parcial) num fim de tarde calma.

Foto: © Beja Santos (2006)



Distintivo do Pel Caç Nat 52, no tempo em que era comandando pelo Alf Mil Joaquim Mexia Alves (1972/73), que sucedeu ao Wahnon Reis e ao Beja Santos.


Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Texto enviado em 22 de Setembro último, pelo nosso tertuliano Beja Santos que, como ele confessa, está a viver um sonho, ou seja, a reviver o seu dia-a-dia de há quase 40 anos em terras do Cuor. Recorde-se que ele foi alferes miliciano e comandante do Pel Cac Nat 52 (em Missirá), tendo ainda sob a sua liderança a milícia de Finete e à sua guarda as respectivas populações. Sob o título Operação Macaréu à Vista, estamos a publicar as suas memórias de homem, de combatente e de condutor de homens no teatro de operações da Guiné (1).

Nota - Os títulos dos posts são, em geral, da responsabilidade do editor do blogue.


Caro Luís, para a semana serei mais parcimonioso pois vou preparar 20 horas de aulas que darei em breve em Carregal do Sal. Não vou comentar a questão dos cemitérios que ao contrário do que alguns dizem está devidamente repertoriada. Convém não esquecer que muitos mortos são deixados no campo de batalha ou bastante perto. Os norte-americanos que combateram no dia D e depois jazem em cemitérios que são campos de serenidade que apetece visitar. Na Líbia, visitei cemitérios onde estão sepultados alemães, italianos e britânicos. O que verdadeiramente me magoa são a incúria dos símbolos externos e da manutenção que lhes é devida, nos cemitérios espalhados por África. Na parte simbólica, destaco as homenagens aos mortos.

Seria bom que os autarcas do nosso país tivessem uma lista daqueles que morreram ao serviço da Pátria e naturais daquele concelho. Sempre que os Presidentes da República se deslocam às três ex-colónias onde combatemos devem dar sinais de preito, pois tais sinais são indispensáveis para as novas gerações. Mário Soares fez isso na Guiné, contrariando o chamado bom senso e a ira de Nino Vieira, e visitou o cemitério de Bissau.

Quanto à manutenção, os diplomatas deverão cooperar nas situações como a de Bambadinca, protestando mas dando sinais de que estão atentos à manutenção que, ao que parece, a Liga dos Combatentes pretende zelar. Aliás, prestamos-lhes bom serviço direccionando as nossas mensagens acerca dos desaparecidos.

Recebe um abraço do Mário.
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Os antepenúltimos preparativos

por Beja Santos


Há cerca de 10 anos tive um reencontro festivo com o Rebelo. Festivo e surpreendente. Bambadinca [, sede do Sector L1, Zona Leste], a pretexto de um estágio, enviou-nos o Rebelo das transmissões que trabalhou connosco desde os finais de Agosto [de 1968] até Fevereiro de 69. Depois partiu e não deu sinal de vida (2).

Se é verdade que a nossa colaboração nas operações se iniciou em Outubro, foi nos últimos dias de Agosto que recebemos ordens para partir para o Xime com o objectivo de patrulhar a Ponta do Inglês e regressar ficando dois dias no aquartelamento, enquanto a companhia local (talvez a CART 1746, já não sei) partia numa operação na região de Massambo.

Foi nessa época que me apercebi que os nomes das operações deviam ser decalcados de dicionários dos provérbios, dos cancioneiros populares e dos adágios: Fado Hilário, Vê Se Apanhas, Cabeça Rapada, Pato Rufia... A minha operação de estreia chamava-se Meia Onça, visava ir ao acampamento do Buruntoni, na mata do Baio. Dessa recordo que não percebi nem me foram comunicados os objectivos, puseram-nos à frente da coluna que saiu do Xime, andámos dois dias às voltas e ao que parece não encontrámos trilhos e os guias-picadores andaram sempre confusos.

Creio que todos nós vivemos situações caricaturais semelhantes. O que interessa é que partimos de Missirá, e não tínhamos ainda feito 2 Km quando ouvi uma imensa berrata na caixa do Unimog 404. Os soldados gritavam furiosos com o Rebelo que chorava, agarrado ao seu RACAL. Chamavam-lhe cobarde, que estava a fazer mal ao moral das tropas, que não era homem. Pedi ao Setúbal para parar imediatamente a viatura e seguiu-se um sermão violento em que fiquei convencido que eles estavam mais petrificados pelo meu gesticular do que pelo conteúdo do sermão. Em resumo, lembrei àqueles bravos que não se nasce soldado nem mesmo para herói. O Rebelo iria ter a sua oportunidade e mesmo ao meu lado. E ponto final, quem voltasse a barafustar ia ver-me virado do avesso.

Do Xime fomos à Ponta do Inglês, nessa altura já quartel abandonado. Fiquei com a recordação que o Rio Corubal era muito belo. Pois bem, há cerca de 10 anos, apanhei no Marquês de Pombal o autocarro 44 (Moscavide-Cais do Sodré), ao fim da tarde, ia eu com destino dos Restauradores. Então não é que quando me dirijo ao motorista, ele olha para mim, fixa-me esbugalhado, salta do banco, abre a cabine e entra-me no autocarro aos gritos:
- Ó meu alferes, eu sou o Rebelo e andei consigo na guerra!

Abraçamo-nos perante uma plateia atónita até que uma velhota pôs ordem na festa: `
- Ó Sr. motorista, acabe lá com essas expansões e leve-nos ao destino!.

Ganhei muito por reencontrar o Rebelo e por ele ter vencido aquela prova de fogo. Em Missirá aprendo novos misteres. Por exemplo, já descodifico rapidamente as mensagens. Será que vocês se lembram? As coisas passavam-se assim:

De LVO
Para DKO
INFO

EDITE NOITE GUITA BERRO LUIS
GRETA GOZO DENTE GINA CEDRO
GUITA GRETA MANGA SOLAR AFINO
GRETA BABEL BUDA GUITA HORTA

Pode ser que alguém tenha guardado desse tempo os manuais do cripto. Decifrada esta mensagem, quebra-se o enigma e fica-se a saber o que Bambadinca me comunica: "Ida hoje mecânico esse. Seguirá esse com pessoal desse que tiverem este fim reabastecimento".

Para quem quer sorrir lembro aquela famosa mensagem: "Info Vexa Sexa Passou Aqui Toda Mexa".

É manhã cedo e hoje Missirá terá o meu olhar frívolo e mundano. À porta da sua morança, Binta Sambu medita, acocorada. Cumprimento-a (corpo s'tá bom?) e pergunto-lhe se tem notícias do Uam. Ele ficara ferido semanas antes de eu chegar. Ao que creio numa desactivação de mina. É um mansoanque, uma figura original. Quando ele morrer nos meus braços, no amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, direi dele: "Canhoto chupado, preto de mansoanque, manto de Navarra, um gamo antigo. Trouxe-o moribundo, a laquear toda a esperança que a guerra aspira fundo. Um anjo lhe acobertou a nudeza de tiros imprevistos, no lento rio, a todos irmanado. E houve batuque no céu.".

Cumprimentei depois o Campino, o bazuqueiro. Estou em crer que ele se conferia ao direito de ser o galã da companhia e para dar mais intensidade à pose tinha mesmo um barrete de campino. Em Fevereiro [de 1969], quando o Comandante-Chefe, nos visitar, perante a minha aceitação de todo este multiculturalismo, o brigadeiro vociferará:
- Tenho impressão que você comanda um quartel disfarçado de circo!

Depois de Campino, falo com Mamadu Silá, um gigante futa-fula que tem um fio de voz de criança. Silá aproveita para me pedir uns dias de férias, tem um choro à espera dele. Eu pareço que ando a despachar serviço enquanto deambulo sem direcção.

Missirá enche-se de vida, as mulheres seguem dengosas para a fonte, as crianças chilreiam, os civis partem para os trabalhos agrícolas. Sinto que a minha relação se aprofundou com aquele lugar que continua espesso, e mesmo opaco, à minha compreensão. Nessa noite, depois de ler, rememorando aquelas primeiras horas da manhã em que conversei, fiz perguntas ociosas, bebi chá com Lânsana, com o Saiegh a olhar-me desconfiado não estivesse eu doente com tanta despreocupação, folheei alguma lírica camoneana. E depois de visitar os postos de sentinela, escrevi:

A Luis Vaz de Camões

1 Adamastor. Passamos o limite onde chega/
O Sol, que para o Norte os carros guia. Para lá de as Dorcadas /
a bolanha de Finete sobe um elevado morro.
É no anoitecer súbito, tropical, com piares lúgubres de pássaros desconhecidos/
Um Unimog embrenha-se na floresta de galeria, e suspiro por Missirá/
Cuidado com os perigos, grita-me o Adamastor

2 Camões convivial. Acima de Galileu, depois de Calecute, Alexandria e Parnaso, sextina ou redondilha, Jau ou Gama, canto de moço, de velho do Restelo, de trança, tu és o Camões da peregrinação, mendicante da prisão, mas também Inês sem razão. Camões, máquina lusíada, de ti recebemos a vida frugal e exuberante. Tu és a tuba da ditosa Pátria e explica-me porque é que na guerra fui lançado
.

Venho ver o mundo fora do abrigo, o céu estrelado. Missirá dorme. Mal sabia eu que amanhã vou ser posto à prova perante um tema desconhecido de sensibilidade e sexo secreto. Eu vou contar. E depois Missirá vai ser flagelada.

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

(2) Sobre os nossos homens de transmissões (trms), vd. posts de:

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIV: Um alfa bravo para os nossos Op TRMS (1)

9 de Julho de 2006 > Guiné 69/71 - XCVIII: Um Alfa Bravo para os nossos Op TRMS (2)

Guiné 63/74 - P1117: Reabilitação de talhões e cemitérios militares nas antigas colónias (Jorge Santos)

Mensagem do nosso amigo e camarada Jorge Santos, o nosso ex-fuzileiro que esteve em Moçambique e que anima a página A Guerra Colonial, a mais antiga de todas:


Luís:

Segundo notícia publicada no Correio da Manhã de 9 de Janeiro de 2005, que anexo, estão sepultados em vários talhões e cemitérios das antigas colónias os seguintes combatentes: na Guiné, 630; em Moçambique, 1053; e emAngola, 1346.

O Ministério da Defesa fez na altura um protocolo com a Liga dos Combatentes. Seria interessante saber o que se fez, o que se faz e o que se vai fazer. E convém ter em atenção e lembrar que este processo já se arrasta desde 5 de Fevereiro de 2003. Mas creio que não é só à Liga dos Combatentes que se devem colocar questões: e então o que fazem as outras Associações de Ex-Combatentes? Qual tem sido o papel delas neste processo todo?

E os associados das várias Associações também têm uma palavra importante adizer. Basta que nas Assembleias Gerais façam aprovar uma moção a exigir dasDirecções uma intervenção junto de quem de direito sobre o caso dos camaradas que se encontram sepultados nos vários talhões e cemitérios das antigas colónias. Honra e respeito aos que tombaram nas várias frentes de combate.
Abraço,

Jorge Santos
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Notícia publicada no Correio da Manhã, de 9 de Janeiro de 2005

Defesa: Ministro assina protocolo com Liga dos Combatentes
Portas vai recuperar cemitérios do Ultramar


A poucos dias da pré-campanha eleitoral, o ministro da Defesa não quer deixar pendentes dossiês no seu Ministério. O último foi assinado ontem no Porto e estabelece um protocolo com a Liga dos Combatentes, tendo em vista recuperar talhões e cemitérios nas antigas colónias onde ficaram sepultados milhares de combatentes.

Paulo Portas assinou, por isso, um documento que prevê uma verba de 600 mil euros a distribuir por tranches até 2008. O ministro justificou a iniciativa com a frase: “Só merece respeito dos vivos quem honra os seus mortos”.

Os alvos são, por exemplo, as sepulturas sem nome ou os talhões votados ao abandono. Segundo o Ministério, pelo menos 3000 militares portugueses foram sepultados nas ex-colónias em mais de 300 locais diferentes. O processo que deu origem a este protocolo, iniciado a 5 de Fevereiro de 2003 e ontem concluído. Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo-Verde e até Timor-Leste são os países de acção do programa. No território nacional também está contemplada a recuperação da Cripta, no Alto de São João, em Lisboa, mas só deverá ser abrangida em 2006.

Já este ano, o protocolo com a Liga dos Combatentes prevê a recuperação do talhão no cemitério de Santana, em Luanda, Angola, os cemitério do Alto das Cruzes, na mesma cidade e o de São José de Lhanguene, em Maputo, Moçambique .

Em 2007 está ainda prevista a recuperações de talhões em Timor-Leste num processo coordenado pela tutela, pela pasta da Diplomacia – através dos consulados, embaixadas e adidos militares – bem como da Liga dos Combatentes, liderada pelo general Chito Rodrigues.

NOTAS DE UM PROTOCOLO

MILITARES

Segundo um levantamento feito pelo Ministério da Defesa, em Angola estão sepultados 1346 combatentes em 163 locais diferentes. Em Moçambique são 1053 e na Guiné são 630.

PAGAMENTOS

Só este ano, o Ministério compromete-se a pagar à Liga dos Combatentes 37 500 mil euros até 28 de Fevereiro, a mesma soma até 30 de Abril, 31 de Julho e 31 de Outubro.

SONDAGENS

O momento de pré-campanha levou Portas a comentar a sondagem do Expresso que dá ao seu partido 6,3 por cento: “Para mim é ouro”. Hoje tem um almoço em Santa Maria da Feira.

Cristina Rita / José Rodrigues

Guiné 63/74 - P1116: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A guerra acabou?


O Torcato Mendonça, ontem e hoje... Ontem, em Mansambo (1968/69), hoje no Fundão (onde vive), ou melhor, de férias, no Algarve (donde é natural)... 

Há em tempos, em Maio último, ele escreveu-me o seguinte (dizendo-me que não era para publicar e, por isso, vou-lhe pedir desculpa pela pequena inconfidência e quiçá abuso...): "Não sou do Fundão. Sou meio algarvio e alentejano. A outra metade é de cá – muito – e do mundo. Agora estou cá exilado há muito tempo. É relaxante. Se vieres até cá, facilmente me encontras. Será um prazer. Não conheço, melhor talvez conheça, tua irmã [, enfermeira no centro de saúde local]. Se tiver oportunidade, fá-lo-ei". 
Já falei com o Torcato duas vezes ao telefone. Quando for ao Fundão, visitar a minha irmã, irei também dar-lhe um abraço. Espero poder revê-lo, um dia destes, a este velho camarada que andou, tal como o Carlos Marques dos Santos, pelos mesmos sítios do que eu, na zona leste da Guiné. Até lá, espero que o seu coração de andarilho e de cidadão do mundo se porte bem. 
Que a guerra, de facto, ainda não acabou: temos as nossas memórias por (d)escrever...(LG)

Fotos e texto: © Torcato Mendonça (2006) (1)

Início da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Chamou-lhe fotos falantes, o que é uma expressão curiosa que vamos manter, e que faz jus à ideia de senso comum de que vale mais uma imagem do que mil palavras... Eu concordo, em parte, porque acho que uma boa fotografia exige sempre uma boa legenda...

O Torcato foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), ou seja, da mesma companhia do António Santos Almeida, do Carlos Marques dos Santos, do Ernesto Ribeiro e do Saagum. Mansambo pertencia à Zona Leste, Sector L1, Bambadinca. Nessa época, o Batalhão que estava sediado em Bambadinca era o BCAÇ 2852, comandado inicialmente por ten cor Pimentel Bastos, o Pimbas, substituído em meados de 1969 pelo ten cor Pamplona Corte-Real. Mas, ainda "antes do 2852 estava lá o 1904 e depois… te contarei", diz o Torcato. Vamos falar aqui (e mostrar) alguns destes personagens que comandaram a nossa guerra, e sobretudo daqueles, bravos e humildes soldados, que a fizeram... (LG)

Texto do Torcato Mendonça:

FOTOS FALANTES

São fotos de uma primeira escolha feita num Álbum e em vários arquivadores de Slides. Desapareceram-me muitos e tenho pena.

1 - Fotos do passado (1968/69) e actuais.
Podem ser colocadas na listagem da Tertúlia (2), se esse for o teu entendimento. Dois pares a serem colocados por qualquer ordem – uma do passado, outra do presente.

(Continua)
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores de (ou sobre) o Torcato Mendonça:

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)

16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLX: Bem vindo, alferes Torcato da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) (Carlos Marques dos Santos)

(...) "É com satisfação que vejo entrar na tertúlia o nosso Alferes Torcato.

"A propósito do almoço da CART 2339, no próximo dia 20, no Gerês, enviei a nossa morada tertuliana e o Torcato ligou-me de imediato. Estivemos meia hora ao telefone, recordando factos da nossa experiência vivida na Guiné" (...).

(2) O Torcato entrou para a nossa tertúlia em meados de Maio de 2006. Eis um excerto de um e-mail que ele me mandou em 14 de Maio:

"O Marques dos Santos deu-me a conhecer este Blogue. Há muito que a 'guerra' acabou para mim, só que quase diariamente ela aparece…! Não resisti, fui à Net e tenho navegado pelo blogue. Fui alferes miliciano na 2339. Li certos eventos que os vivi – o Malan Mané estava vivo em Novembro de 69 e recebia tratamento no Hospital de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido …Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama…

"Meu caro, há escritos que não tinha deles essa recordação. Vou ter que ir à História da Companhia. Agradeço-lhe este blogue, o fazer-me relembrar certas vivências e questionar-me sobre outras. Mansambo da foto não era a do meu tempo. O Zacarias Saiegh foi meu amigo. Era um Homem extraordinário, ele e outros que foram meus camaradas e foram fuzilados. Nunca os esqueço e não sei perdoar.

"Vou reler a história da 2339 e talvez um dia faça um escrito e lho envie. Madina Xaquili, o meu Gr Comb fez escolta a uma CCAÇ… seria a 12? Estávamos no Cop 7 em Galomaro É a memória a abrir-se. Paro aqui" (...)

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1115: O Destacamento do Mato Cão, no tempo em que comandei o Pel Caç Nat 52 (1972/73) (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Destacamento de Mato Cão > 1973 > Pel Caç Nat 52 > A travessia do Rio Geba fazia-se de Sintex, a remos. Na foto, o Alf Mil Joaquim Mexia Alves, de pé, empunhando uma G3.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Destacamento de Mato Cão > 1973 > Pel Caç Nat 52 > O Alferes Mil Joaquim Mexia Alves, com o Tomango Baldé, um dos mais antigos soldados do Pelotão, segurando um macaco-cão.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Destacamento de Mato Cão > 1973 > Pel Caç Nat 52 > Os precários abrigos existentes no tempo do Alf Mil Joaquim Mexia Alves, aqui na sua residência.

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Caros Luís e Mário:

Do que me lembro, não cheguei a conhecer o Alf Wanhon Reis, pois quando cheguei ao Pelotão ele estava sem Oficial.

Ao que sei, o 52 esteve em Fá [Mandinga] , tendo vindo depois para a Ponte de Udunduma, na estrada Bambadinca/Xime. Foi lá que tomei o comando do Pelotão, em meados de 72.

Penso, pois não me consigo lembrar com clareza, que uma das secções do Pelotão poderia estar no reordenamento dos Nhabijões, junto a Bambadinca, tendo sido depois reentegrada no Pelotão quando em Setembro/Outubro (?) de 72 fomos colocados no Mato Cão (1).

No Mato Cão estava, salvo o erro o [Pel Caç Nat] 63, por isso o Jorge Cabral deverá estar certo quanto à inauguração do Destacamento de Mato Cão, que depois foi colocado em Fá.

Penso que o Mato Cão foi instalado para dar mais segurança àquele troço do Rio Geba e sobretudo para defender o ordenamento dos Nhabijões, entretanto construído do outro lado do Rio Geba (2).

Se as condições no Mato Cão eram péssimas, sem luz nem água, tomávamos banho num poço junto ao rio com latas de conservas de fruta, na Ponte de Udunduma ainda eram piores, tendo apenas a vantagem de estarmos mais perto de Bambadinca, o que me permitia de vez em quando tomar um banho mais decente.

Ao Mato Cão chegava-se apenas de Sintex, a remos, e a ida a Bambadinca, para além do cruzeiro de barco, tinha depois uma caminhada a pé até ao quartel.

Estivemos ali, ao que me lembro até meados de 73, quando fui colocado na CCAÇ15, [em Mansoa,]um pouco a meu pedido em Bissau, pois queria sair das ordens daquele comando de Batalhão [o BART 3873, Bambadinca, 1972/74]. Um dia conto a história.

Ao que sei antes do Natal de 73 o [Pel Caç Nat ] 52 voltou para Fá. A partir daí já nada sei.

Junto várias fotografias do Mato Cão, numa delas está o mesmo macaco-cão, e o Tomango Baldé, que penso seria um dos mais antigos do Pelotão.

A 24 retrata a minha residência, a 32 é o Tomango Baldé que penso seria um dos mais antigos do Pelotão.

Abraço
Joaquim Mexia Alves
___________

Notas de L.G.

(1) Sobre este destacamento, ver ainda os posts de:
22 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VI: Memórias do Xime, do Rio Geba e do Mato Cão (Sousa de Castro)

28 nde Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)

(...) "Possibilidades do IN:
" (i) No plano militar:
" (i) Manter as acções de fogo sobre os aquartelanentos das NT; (ii) Intensificar as acções de guerrilha preferencialnente sobre as tabancas em autodefesa, pelotões de milícia e seus itinerários de socorro; (iii) Realizar acções de reconhecimento nos regulados de Badora e Cossé, a partir dos regulados de Xime, Bissari e Corubal; (iv) Utilizar as linhas de infiltração que do Boé conduzem aos regulados de Xime e Bissari através da faixa norte do regulado do Corubal, e que da área Xime-Mansambo conduzem à estrada Bambadinca-Mansambo; (v) Efectuar acções de barragem á navegação no RGeba, em especial nas áreas de Ponta Varela e Mato Cão; (vi) Reagir à acção de contrapenetração das NT" (...).

28 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCVIII: 'turras brancos' em Bissaque, uma ficcção cabraliana (Luís Graça)

30 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)


(2) Sobre o reordenameno de Nhabijões, vd. posts de:

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça);

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça) ;

21 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) (Luís Graça);

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça).


Guiné 63/74 - P1114: Pensamento do dia (8): Matar ou morrer ? ... Morrer, não, que não tenho tempo! (Joaquim Mexia Alves)



Os emblemas das três unidades por onde passou, de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, o nosso camarada Joaquim Mexias Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Mensagem do Joaquim Mexia Alves , de 18 de Setembro último:

Caro Luis Graça

Ao ler o último post escrito pelo Mário Beja Santos (1), chego à conclusão que apesar de tudo o tal emblema [com a ínsígnia Matar ou Morrer] vingou, porque quando eu cheguei ao [Pel Caç Nat] 52, era esse emblema que se usava.

Lembro-me que o achei mauzinho e até um pouco incomodativo, mas não sabendo a génese da coisa achei por bem deixar ficar o que já estava.

Lembro-me ainda de ter ironizado com a frase e de ter dito qualquer coisa como:
- Matar ainda vá que não vá, para me defender, mas morrer... não tenho tempo!!!

Enfim, pensamentos da época!!!

Já tens esse emblema, que te mandei há tempos numa mensagem, bem como o da CART 3492 [Xitole] e CCAÇ 15 [Mansoa] [vd fotso acima].

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(...) "Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha?" (...)

Guiné 63/74 - P1113: Notas de leitura (1): Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)

Recensão bibliográfica do livro Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005.192 pp. (Prefácio de Francisco Seixas da Costa).


Em tempos de inocência

por Beja Santos


De 1977 a 1979, António Pinto da França (1) foi embaixador de Portugal acreditado na Guiné-Bissau. Ele regista em forma de diário estes primeiros anos da independência, descrevendo com simplicidade e por vezes uma atmosfera quase mágica a vida da Embaixada, os membros do corpo diplomático, as compras, os passeios, os encontros, os ambientes múltiplos, alguns momentos históricos. Há pitoresco, desabafo íntimo, melancolia, registo meticuloso daquilo que não mudou no tempo africano.

"Em Tempos de Inocência, um diário da Guiné-Bissau", por António Pinto da França (Lisboa, Prefácio, 2005) é uma obra de indiscutível interesse para conhecer os tempos ingénuos e tumultuosos que se seguiram à nossa passagem na guerra colonial. Um diário que tem total cabimento ser conhecido por todos. Como vou procurar demonstrar.

Primeiro, a saborosa observação do quotidiano íntimo, anotando ambiguidades, vaidades de políticos e diplomatas, cooperantes idiotas, populações aderentes à independência do País e ao amor a Portugal. Naquele tempo Bissau era uma cidade limpa, com a sua atmosfera extravagante dada pelos sons, as cores das gentes, o fervilhar de um cosmopolitismo pobre mas divertido.

Segundo, as notas sobre a classe política têm uma importância primordial, registando o poder mestiço de gente muitas vezes proprietária e convicta de mudanças prodigiosas em curto espaço de tempo.

Terceiro, a compreensão do grande vulto que foi Amílcar Cabral.

Quarto, a crítica poderosa à incompreensão dos diplomatas acreditados sobre a realidade da Guiné-Bissau.

Quinto, uma água-forte da cooperação portuguesa, dividida entre a dedicação pura, os interesses materiais e os partidários.

Sexto, um registo do espaço e do lugar que certamente os historiadores irão um dia a visitar. Oiçamo-lo a falar das suas visitas por Bissau nas compras: "Hoje, não tem papel higiénico, mas tem, por uma pechincha, uma travessa de prata alemã, miragem impossível em Lisboa. Ontem não tem pasta de dentes, mas está ali a Enciclopédia do Humor português esgotado em Portugal. Anteontem, não tem cola, mas encontra-se por acaso um motor para a central da Embaixada que, há semanas, se pede inutilmente ao Ministério, ou um álbum para fotografias que há meses aguardo ansioso de Nova Iorque... Nas lojas, paira no ar, não sei porquê, um cheiro asiático a especiarias. As mercas saem poeirentas de recantos insuspeitos e assalta-me a sensação de um mundo escondido inacessível e uma saudade como daquelas coisas que se finam e não voltarão jamais".

Sétimo, lança um olhar feliz e comprometido sobre a cimeira de Bissau, que reuniu Ramalho Eanes e Agostinho Neto e depois a visita oficial de Ramalho Eanes ao país.

Oitavo, sente-se o prazer pela comunicação escrita, a vontade irreprimível de por no papel aquilo que não cabe na viva voz. Assim: "Gosto cada vez mais de escrever e menos de conversar. No papel as ideias alinham-se serenas, direitinhas, e as palavras encadeiam-se escolhidas, apropriadas umas às outras. Enquanto se escreve nada nos distrai de nós próprios e descobrimos, de repente, que uma charada nossa, por longo tempo indecifrável, surge no papel resolvida, clara e evidente. A palavra, a conversa, é sempre desde o início um duelo. Mais que chegar a uma conclusão, importa marcar pontos no jogo do diálogo. As ideias entram no jogo e vão traindo a fonte, para se ajustarem ao fim primordial de se sobreporem às palavras dos outros".

Nono, o registo daquela direcção do PAIGC, que depois se veio a descobrir que depositava os seus adversários na vala comum e que escondia irresponsavelmente a questão fundamental do contencioso Guiné/Cabo Verde pela presença portuguesa. Obviamente que o pensamento de Amílcar Cabral ainda era omnipresente e a nova classe política apercebeu-se do significado de falar português e de cultivar memórias como enclave no meio da cultura francesa.

Décimo, o orgulho pela obra feita, o Centro Cultural Português, inaugurado durante a visita de Estado, em Fevereiro de 79 (2).

Ao despedir-se do leitor, Pinto da França diz-nos: "Achei emocionante ser testemunha dos primeiros passos de um novo país em condições tão desastrosas. Por vezes tive a sensação de assistir a um parto dramático... Vai comigo uma suave recordação do povo guineense, da sua nobreza, da sua afabilidade, da sua hospitalidade, da sua sensibilidade da sua resignação ao sofrimento, da sua inocência. Ensinaram-me algumas coisas importantes".

A História, com efeito, preparava-se para um grande salto. Em breve a Guiné vai conhecer mais esperanças e novos sofrimentos. Mas isso será a História para outro diário de embaixador...

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Nota de L.G.

(1) Segundo a Lusa (9 de Março de 2006), António Pinto da França iniciou a sua carreira diplomática em Jacarta, Indonésia, como Encarregado de Negócios (1965-1970), tendo depois passado pela Embaixada da Delegação Portuguesa junto do Conselho da NATO, em Bruxelas. Foi na Guiné-Bissau que, pela primeira vez, exerceu funções de embaixador de Portugal. Angola, Alemanha, Santa Sé e Malta foram outras representações diplomáticas portuguesas que chefiou posteriormente.

(2) Informação constante do sítio do Instituto Camões: Abertura: 1994. Responsável: Frederico Silva . Localização: Av. Cidade de Lisboa, CP 76, Bissau. Tel +245 203 395 / 212 741; fax +245 201514; e-mail: ica.ccpbissau@sapo.pt

De entre as obras já publicadas pelo Centro Cultural Português, cite-se a título de exemplo o livro Poemas, de Artur Augusto da Silva (Bissau, Centro Cultural Português, 1997, 77 pp.). O autor, já falecido, era o pai do nosso amigo, camarada e irmão Pepito (ou Carlos Schwarz). Artur Augusto da Silva é também autor do delicioso livro de contos O Cativeiro dos Bichos (Bissau, 2006): vd. posts de

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

Guiné 63/74 - P1112: Os mortos do Talhão do Ministério do Exército: o caso do Agostinho, da CCAÇ 4150, Guidaje (Albano Costa)


Excerto da carta enviada pelo ex-capitão miliciano Armando Figueiras ao Albano Costa, em 7 de Maio de 2006 sobre os restos mortais do soldado Manuel Agostinho Mendonça Oliveira, da CCAÇ 4150 (Guidaje, 1973/74).

Imagem gentilmente cedida pelo Albano Costa (2006)



Guiné > Região de Cacheu > Guidage > CCAÇ 4150 (1973/74) > Vista panorâmica do quartel de Guidage. Dezembro de 1973

Foto: © Albano Costa (2005)


Texto Albano Costa (ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidage, 1973/74):

Caro Luís Graça

Sobre a reportagem [da RTP1] dos mortos que ficaram na Guiné, eu sempre o soube... Aliás em Guidage, zona aonde eu cumpri parte do meu serviço militar, foi com uma certa tristeza que, quando viemos embora de Guidage, eu tinha a consciência que lá tinham ficado colegas nossos que foram obrigados a ir para a guerra e que o nosso Estado não se achou com a obrigação de os devolver às famílias. Isso, todos os governos antes e depois do 25 de Abril devem assumir que falharam e muito, porque não venham dizer agora que não têm dinheiro, ou que é muito difícil. Não, não era, porque nós ficámos sempre com muitas boas relações com o povo guineense.

Faço, pois, um alerta ao actual e futuros governos: tragam os nosso mortos para as suas terras, e entreguem às suas famílias.

Mas eu já nada me surpreende!... Fomos carne para canhão, e salve-se quem puder, foi o lema do regime da altura. E esta democracia, o lema foi e é sempre, não é nada com nós, eles (os familiares) que resolvam!...

Agora vou contar como foi o tratamento que o Estado deu ao colega da minha companhia [CCAÇ 4150] que morreu em Guidajge: fez-se o funeral, um funeral digno, de Guidage para Bissau, e julgando que ele iria continuar a ter um funeral digno até ser entregue aos seus familiares, para minha tristeza venho a saber, ao fim de quase trinta anos (!), que o enviaram para Portugal e aí sepultaram-no no cemitério do Lumiar, em Lisboa - Sepultura nº14, do Talhão do Ministério do Exército.

Eu aí contactei o ex-capitão da minha companhia, que ficou admirado, e entrou em contacto com a familia. Os familiares também ficaram admirados, já que na altura foram informados que o corpo tinha ficado sepultado em Bissau. Por sua vez, os pais faleceram com a mágoa de não ter o filho por perto... Por isso, hoje nada me surpreende.

Envio parte da carta (1) da conversa tida pelo meu ex-capitão com os familiares, para que fique resistado para a história. Realmente é preciso que não se deixe que os historiadores amanhã queiram fazer a história à maneira deles.

Um abraço,
Albano Costa
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Nota de L.G.:
(1) Transcrição do excerto da carta, reproduzida acima, da autoria de Armando Figueiras:
Faro, 07.05.06

Caro Albano:

Espero que esteja tudo bem contigo e teus familiares.

Pois bem, sobre aquela informação que me deste sobre o Manuel Agostinho Oliveira Mendonça, consegui por intermédio da C.M. de V. Pouca de Aguiar o nº de telemóvel do Presidente da Junta de Freguesia de Soutelo de Matos, de onde ele era natural. Foi muito simpático e receptivo. Falámos um pouco.

Escrevi depois a um dos irmãos dele que vive ainda na freguesia, e mais tarde a esposa telefonou. São pessoas muito humildes, trabalhadoras. Disse-me que os pais já faleceram, mas disseram-lhes na altura que os restos mortais tinham ficado em Bissau.

O Agostinho tem 2 irmãos que vivem no Porto e mais um irmão que está em França. Não manifestaram interesse em que os restos mortais fossem transladados para a freguesia, e eu compreendo, já passaram 32 anos, e os pais em vida não tinham meios nem conhecimentos para tratar do assunto. Os pais, pelo que a cunhada do Agostinho me disse, nunca recusaram o corpo, e sofreram muito por não poderem tê-lo perto deles.
(...)

domingo, 24 de setembro de 2006

Guiné 63/74: P1111: A primeira mina, os primeiros suores (Joaquim Mexia Alves)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > CART 3492 (1972/74) > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves ostentando o seu ronco, a primeira mina que levantou na estrada Bambadinca-Xitole. O Mexia Alves era de operações especiais e esteva na Guiné, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973: pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)

Caro Luis Graça:

No início da nossa estadia no Xitole e salvo o erro, logo na primeira coluna vinda de Bambadinca à qual a nossa Companhia montou segurança, calhou-me, a mim, e ao meu pelotão, como não podia deixar de ser, o ponto mais afastado do Xitole para montar segurança à dita cuja.

Se bem me lembro era junto a um pequeno pontão, pois a partir daí era terreno da Companhia de Mansambo [, a CART 3493, 1972/73].

Aí chegados enquanto colocava o pessoal na mata, os guias e picadores foram picando a estrada junto ao pontão e chamaram-me porque detectaram uma mina.

As penas de periquito ainda esvoaçavam por todo o lado e, cheio de sangue na guelra, decidi levantar a mina.

Mandei afastar os que estavam mais perto e lançei-me ao trabalho, não me lembrando agora se tive alguma ajuda no início.

Depois de escavar a coisa,passou-se à parte mais dificil que era desarmar o detonador, para depois, pelo sim pelo não, puxar a dita mina com uma corda, não fosse o diabo tecê-las.

A mim pareceu-me que tudo isto demorou uma eternidade, mas segundo me disseram até foi rápido. Sei que suei rios de água e não era por causa do calor.

Lembro-me de pensar em desistir a meio e rebentar com aquilo, mas o orgulho e o pensar o que é que o pessoal vai dizer, levaram-me a continuar e acabar o trabalho.

Ao que sei, foi a primeira mina levantada no Batalhão [BART 3873, Bambadinca,1972/1974).

Na minha fraca memória, vem-me à ideia que deixámos uma qualquer mensagem de ronco no sítio da mina. Enfim, gabarolices.

Diziam que pagavam não sei o quê pelas minas levantadas, mas não me lembro de ter recebido nada.

Mais tarde e já no Pel Caç Nat 52, com o clima e outras coisas, cometia a rematada estupidez louca de ir pisando o caminho à frente do Pelotão, o que os soldados africanos muito apreciavam, só me valendo o facto de Deus nunca estar distraído.

Envio prova fotografica do feliz evento, chamando a atenção para a qualidade da revelação da fotografia, feita num estúdio de um qualquer curioso militar no Xitole, de qual não lembro a identificação.

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

sábado, 23 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim


Guiné > Região do Oio > Guiné > Região do Oio > Mansaba > CART 2732 (Mansabá, 1970/72) > 3.º Pelotão, Secção do Fur Mil Vinhal (primeira fila, à direita, ladeado pelo seu amigo Ornelas). Embora mais velhos, os madeirenses estavam afectos ao COP 6 (Mansabá), e cruzaram-se em operações com os açorianos da CCAÇ 2753, a que pertencia o Alf Mil Vitor Junqueira.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)


Post do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Hoje é médico e vive no Pombal. Infelizmente ainda não temos nenhuma foto deste nosso estimado camarada (1).


Camarada e amigo Luís Graça,

Num simpático email teu que recebi há dias, falavas da possibilidade de a minha Companhia (a açoriana CCAÇ 2753) e a do Carlos Vinhal (a madeirense CART 2732) (2), se terem cruzado algures na região de Farim. É verdade, só que eles atingiram a veterania muito primeiro do que nós, mas ainda fizemos algumas operações em conjunto com outras forças.

Como aqui há uns tempos, alguém do nosso grupo de amigos disse que não havia muita informação sobre esta zona e as unidades que por lá passaram, e querendo enviar um sinal de grande apreço e respeito àqueles que em qualquer ponto da Guiné, com ou sem armas, voluntariamente ou por imposição, cumpriram com o que na altura... teve de ser (!), a todos dedico este pedaço de prosa. Sem pretensões, mas em todo o caso na expectativa de conseguir reavivar as emoções fortes, porventura traumáticas para alguns, de uma guerra que nos foi imposta quando tínhamos vinte e poucos anos. Podemos hoje, assim o espero, vivenciá-las com a tranquilidade que a idade, a paz e o tempo passado nos concedem.

Peguei num pequeno relato que anteriormente tinha feito circular pela tertúlia (1), editei-o e acrescentei umas coisas. Procurei fazer coincidir datas, factos e até nomes com a realidade. Ficou um bocado longo... se calhar maçador. Podes passá-lo ao news group?

Conto poder estar no encontro da Ameira [dia 14 de Outubro próximo].

Um abraço,
Vitor Junqueira


Um dia no mato, na região de Farim

Texto dedicado a todos os camaradas tertulianos
com um abraço do
Vitor Junqueira

Guiné, Fevereiro de 1971.

Estamos quase lá...

A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T tendo-lhe sido atribuída a missão a seguinte missão - passo a transcrever dos registos oficiais (História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):

Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados. Na segurança dos trabalhos, as forças adoptam o dispositivo com as seguintes missões:

- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída;

- Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração;

- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá – Farim
.

Havia anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário a partir de, e para norte de Mansabá até ao K3 [antiga Saliquinhedim].

A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via que, uma vez interditada às NT, se tornara estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, através dos quais as forças do PAIGC dispunham de uma ligação fácil e rápida entre as suas bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares). Movimentação de tropas e operações de natureza logística por parte do IN decorreram com toda a facilidade e segurança ao longo deste eixo numa base praticamente diária, durante anos.


O impressionante dispositivo das NT afecto à segurança da construção da estrada Mansabá-Farim

Até que alguém decidiu que aquela via tinha de ser recuperada. Para esse efeito é então criado um importante dispositivo, notável pelo significativo conjunto de meios envolvidos e, a meu ver, pelo enorme sucesso alcançado face aos objectivos atrás enunciados. Penso que é uma fase pouco conhecida da guerra da Guiné à qual nunca foi dado o devido relevo político-militar.

Constituído pelos Agrupamentos F1 e T do COP 6 (Comando Operacional Nº 6 – Mansabá) envolvia no seu conjunto forças das seguintes unidades:

CART 2732 (bém conhecida como a Companhia dos Madeirenses do nosso amigo e camarada Carlos Vinhal)(2)
CCP 121
CCP 122
Esq Rec AML 2641
27.ª CComds
CCAV 1/ 286.º Pel Milícia
1 Pel Art 8,8
1 Pel Art 14
1 Pel Art 10,5
3 Sec Mort 81
1 Sec Sapadores
1 Dest Engenharia
Pelotão de Milícia 253
57.º Pel Caç Nat
CCAÇ 2549 / Pel Milícia 282

E bem cá no fundo, mas apenas por modéstia (!), a Companhia dos Açorianos, CCAÇ 2753 da qual esta praça fazia parte ...


Baptismo de fogo em Bironque

A primeira aproximação que tivemos com a guerra a sério e àquilo que iria ser o nosso estilo de vida nos meses vindouros, ocorreu a partir de um ponto localizado no mapa entre Mansabá e o K3, onde antes da guerra existira uma pequena povoação, chamada Bironque.

Para o Destacamento Temporário do Bironque segue em 1 de Dezembro de 1970 um GC da CCAÇ 2753, tendo os restantes chegado a intervalos de uma semana ficando a operação concluída em 21 de Dezembro de 1970. Com a chegada da CCAÇ 2753, a CCAÇ 17 retirou!

Algum tempo antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que a terem de levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão. O general Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.

De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada, bem montada (vários jipes!) e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa arre-macho.

Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais experientes, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à sua custa os rudimentos da arte de safar o próprio coiro. Certo é que vieram a provar ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats Noblessse Oblige!

Na minha memória preservo ainda em imagens technicolor as principais cenas do meu primeiro dia de mato.

Tínhamos partido de Bissau muito cedo em coluna militar, com armas e bagagens. Arribámos ao Bironque seriam par aí umas dez da manhã. Enquanto alguns dos recém chegados descarregavam para o meio do nada os caixotes com as batatas e cebolas por entre os quais se escapuliam ratazanas que, ninguém sabe como, tinham apanhado boleia, já outros desfechavam os dentes preparando-se para alinhar nas diversas tarefas para que estavam escalados. O cacimbo pesado da madrugada dera lugar a uma manhã linda, luminosa. O silêncio e a paisagem, magnífica, eram avassaladores!

Com um pé apoiado sobre um cunhete de munições e um púcaro de aço inox na mão de onde ia sorvendo uma mistela (nunca gramei leite em pó nem café de cevada), contemplava aquele paraíso quando de repente...

Parecia o fim do mundo! Não vou poupar em adjectivos. Grandioso, empolgante e... aterrador, nem em imaginação conseguiria conjecturar um tal espectáculo. À distância de um quilómetro ou dois do acampamento, irrompe um fogachal tão intenso que até os passarinhos das redondezas levantaram voo procurando refúgio noutras paragens. O ruído das explosões acompanhado pelo matraquear das armas ligeiras e aqueles balões de fumo negro no ar, ofereceram-me o primeiro vislumbre, uma espécie de iniciação visual e auditiva, música e letra de um fado a que teria de me habituar! Naquela manhã a rifa premiada tinha calhado a um GComb dos madeirenses.

Por aqui, as escaramuças eram frequentes. Durante o dia, emboscadas às forças empenhadas na segurança próxima e imediata e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre operários e danos nas máquinas, após o pôr-do-sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR, MORT 82 e RPG que, vindo do interior da mata adjacente, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do improvisado aquartelamento.


Transferência para Madina Fula

Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com toda a traquitana em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior qualquer protecção contra a chuva de aço, pelo que toda a gente preferia cochilar nos abrigos. Tratava-se em rigor de locais de pernoita que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:

Sobre uma das faixas desmatadas com cerca de 200 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado. No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens. Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas, que no final do dia de trabalho recolhiam ao seu interior. Como vizinhança, muita força de mosquitos e pulga matacanha!

Logo nos primeiros passeios pelas redondezas, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam nos primeiros anos da guerra. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de, e volto a citar dos registos: Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.

Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que em melhores dias tinham sido as bermas e valetas desta excelente rodovia que ligava Bissau ao Senegal, agora reduzida à condição de simples trilho, as cápsulas de munições de armas ligeiras apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido dos vestígios abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que me disseram tratar-se de Panzerovkas (?). Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas.

Por ali confiscámos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens tão antigos e obsoletos como canhangulos, até novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20mm com tripé (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Esping. M 44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda e Dreyses , por certo gamadas ao glorioso Exército Português. Também fizeram parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o selo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?


Um dia mais perto ...

O normal dia de trabalho começa bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Hoje, dia 2 de Fevereiro de 1971, ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3.º Grupo de Combate que, por imperativo de escala, vão emboscar em Farim 2 C6 97. Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata comem mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que serve de refeitório, “a parelha dos tachos” aguarda impaciente. Querem voltar para o choco!

Os homens vão assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentam-se praticamente em estado de prontidão isto é, devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico variado. GMD penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK. Todo o material se encontra limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, têm autênticos desvelos amorosos tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas! Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3, próprios e alheios, a que puderam deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consiste em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva.

E não se disse ataviados, como impõe o aprumo e a gíria militar. Porque fardas são coisa que já não existe faz tempo. Mergulhos forçados no lodo das bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, decretaram o seu desgaste precoce. Foram à vida! Por esta altura, vão-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no couro, umas já sem rasto, outras com buracos ventiladores nas biqueiras, alternam com as de lona, a dar as últimas. Há pessoal a sair para o mato levando nos pés uma espécie de chanatos adquiridos pelos próprios. É a crise a instalar-se!

Um quarto de casqueiro nas unhas, besuntado com margarina rançosa ou em dia de sorte com um cubo de marmelada em cima, um púcaro de água chilra tingida de café engolido de um trago e está a andar! Num bolso, arranja-se espaço para mais um quarto de pão com duas belicas* de cachorro nas entranhas. Um simples pacote de leite achocolatado ou um daqueles tubos de leite condensado Martins e Rebelo das rações de combate, fazem as delícias da maralha. Verdadeiros mimos para esta tropa arre-macho, generosa e humilde que sem reclamações ou reivindicações se prepara para enfrentar mais um dia, com porrada garantida.

Pequeno almoço no bucho e ala que se faz tarde. O dispositivo da segurança próxima tem que estar montado, com a força na respectiva posição, ainda antes dos trabalhadores da reconstrução da estrada voltarem o serviço.

Para aquele tipo de acção já todos conhecem e ocupam os respectivos lugares na bicha de pirilau. Uma piada em código, um riso abafado e as últimas recomendações dos furriéis em voz baixa, misturam-se com o tinir metálico do equipamento, criando aquela atmosfera pretensamente descontraída que precede todas as saídas. São rituais que só os que foram agraciados com uma comissão no ultramar podem entender!

A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi à tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares para a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de GMD, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada:
- Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho! - São as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda "seguir a marinha".

Deixámos Madina Fula ainda o nosso gerador ronronava placidamente naquele timbre surdo e tranquilizador que nos acompanharia durante as primeiras centenas de metros. É noite cerrada. O pessoal caminha em silêncio, paralelamente ao trilho. Comunicações, só por gestos ou em surdina e até o ruído de fundo dos ERET e AVP em AS é reduzido ao mínimo.

Este é um santo pelotão ! Dele fazem parte nada menos que dois meninos Jesus, por alcunha: O básico Aguiar, açoriano da Praia da Vitória, que é meio tótó. E o furriel Tavares, de Freixo de Espada-à-Cinta. Reina na segunda secção. É afinado da cabeça mas a sua pacholice granjeou-lhe igual cognome! Há ainda um Sto. António, virtuoso da HK.

Cunha, o pica, abre caminho percutindo o solo com a vareta de aço. Apesar de analfabeto, tem um dom extraordinário para a orientação no mato. Basta-lhe memorizar um certo trecho da carta cuja simbologia se habituou a reconhecer por comparação com aquilo que os seus olhos observam no terreno e, aí vai ele em piloto automático, com a macacada toda atrás. Direitinho ao objectivo, parece teleguiado! Auxiliado pelas diferentes tonalidades do som emitido pelo seu sofisticado aparelho, detecta com segurança todo o tipo de perigo superficial ou subterrâneo. Sabe por intuição quais são os caminhos com menos obstáculos e mais seguros. Caminho sondado pelo Cunha é caminho seguro, à confiança!

A seguir, vem o Santos, Stº António para os amigos com a sua HK, depois o alfero, o Assis da bazuca e outra HK, a do Cabecinha. Segue-se o Dutra grande do Morteirete, que dispara em andamento apoiando-o no bíceps. Moniz, Vicente, Melo e Reis são especialistas em Dilagramas. Na secção central, além do Raposo portador de mais uma HK, alinham os homens da G3: Azevedo, Amorim, Bettencourt, Martins, Aguiar e Dutra pequeno. Cartucho propulsor na câmara e, mesmo até estes, ao primeiro disparo expedem um ananás. O resto da cambada vem lá para trás sob orientação do outro Furriel, também ele Tavares de nome, mas açoriano de nascença. Manobram um Mort 60, duas HK, um LGF 10.7 e umas tantas G3.

Avançamos mastigando o cacimbo pesado e grosso da manhã que se agarra à pele, tornando-a viscosa e fria como a barriga de um sapo. Envolve-nos o cheiro a capim queimado e a fuligem negra, impregnando as roupas e as narinas. É natural, pois estamos em plena época das queimadas e as NT vão ateando fogos por onde passam, procurando limpar áreas tão vastas quanto possível por forma a evitar que o IN utilize a vegetação como máscara para possíveis emboscadas.

Lutando com arbustos e lianas que teimam em enrolar-se aos corpos e equipamento como se quisessem impedir-nos de progredir, anima-nos a alma saber que em breve estaremos de volta à civilização. O K3 está praticamente à vista! Falta apenas acrescentar uma meia dúzia de quilómetros àquela serpente de asfalto que protegemos e vemos crescer todos os dias. Trata-se de uma tabanca situada a cerca de três quilómetros da margem esquerda do Cacheu, muito próximo do ponto de origem de um troço de estrada que conduz ao Olossato, capital do Oio. O nome verdadeiro, aquele que consta dos mapas é Saliquinhédim. No entanto, a população local assumiu o novo topónimo aparentando desconhecer ou ter esquecido completamente o original.

Atingir o K3, representa o final de uma campanha até agora bem sucedida do ponto de vista militar, apesar de particularmente desgastante, não só pelas flagelações e contactos quase diários, mas sobretudo pela dureza das condições de vida a que todos temos estado sujeitos. Significa também que em breve, a 27.ª de Comandos vai ser despejada pela CCaç 2753, ficando esta na situação de força de quadrícula com direito a um verdadeiro quartel. Com dormitórios, instalações sanitárias, secretaria, messes, cozinha ... tudo!

E sobretudo, vamos avistar gajas! Sim, tem de haver por lá mulheres, esses seres intangíveis, de que perdemos o rasto há meses e de cuja existência já começamos a duvidar! Sejam elas brancas, pretas ou verdianinhas. De preferência bajudas, mas na sua falta que avancem as mulheres grandes. Mobilizemo-las se for necessário, porque a rapaziada não aguenta mais esta lei seca tão prolongada ...

Mortos de cansaço, com o ornamento do escalpe a desaparecer a olhos vistos devido ao stress e deficiente alimentação, exauridos pela punheta, este devaneio com putas ocupa-nos o pensamento por fugazes instantes, nesta madrugada particularmente enervante. Aqui e além, a silhueta fantasmagórica de um baga-baga chama-nos à realidade. Escondido pelo capim da altura de um homem, levanta algumas suspeitas... e muitos receios! Os restos de luar reflectido nos olhos de uma família de babuínos produzem um efeito chamado cagaço. Não se tratando um bando de almas penadas, (os açorianos são muito supersticiosos!), só poderá ser o IN a espiar-nos com flash-lights para mais certeiramente nos alvejar, comentam entre si!

Na floresta, o amanhecer é pleno de actividade. O pio de uma ave ou o restolhar de um bicharoco qualquer podem tornar-se inquietantes sinais de alarme. Por vezes, é o encontro fortuito com um carreiro de formigas de grande cabeça negra e tenazes monstruosas que obriga a passar a palavra e... a passar ao lado! Incomodadas, têm o péssimo hábito de trepar silenciosamente pelas pernas acima. Fazem-se anunciar quando já estão ferradas na pele dos tomates, de onde só saem arrancadas a bico de navalha depois de decapitadas. Há umas semanas, um pelotão da Companhia passou por essa excruciante experiência durante uma operação nocturna, que terminou antes de ter começado. Menos de meia hora após a largada, ei-los que regressam num tropel, aos pinotes e completamente nus quais isabelinhas (**), berrando que nem cabritos desmamados, agarrados às respectivas partes. Que espectáculo soberbo, hilariante e inesquecível!

Amanheceu. Ao longe, no silêncio desta floresta tão bela só comparável à mata do Cantanhês, já se ouve o roncar da maquinaria e o estrondo provocado pela queda das árvores abatidas. A tensão vai aumentando, os nervos estão numa lástima. Parafraseando autor desconhecido, cada passada cada cagada! Os olhos já doem de tanto perscrutarem o inimigo através da folhagem. Todo o cuidado é pouco. O silêncio torna-se esmagador, nada bole. É a bonança antes da tempestade e, todos sabem por experiência e por instinto que vem aí bernarda da grossa. Até já cheira a turra!

Da frente vem a ordem preparar para instalar. Mil olhos lançam-se então numa busca apressada e ansiosa de qualquer acidente do terreno que possa oferecer alguma protecção, por mínima que seja. A cratera deixada pela raiz de uma palmeira caída, o tronco de uma árvore corpulenta ou o castelo de uma colónia de térmitas, tudo serve para abrigar um pouco o canastro. Mas cuidado antes de mandar com ele para o chão! É preciso inspeccionar muito bem o local, não vá estar por ali alguma artimanha escondida. É um pequeno alívio, pois uma vez instalados o conforto é outro. Se o IN tiver o desplante de se aproximar da nossa posição, somos nós quem terá a iniciativa. No entanto, o mais provável é que sejamos alvejados com umas morteiradas de 82mm a partir de uma bolanha situada a cerca de trezentos metros à nossa esquerda. E a seguir emboscados, quando fizermos a perseguição.

Esta é a táctica habitual, mas ultimamente têm vindo ao trilho com frequência. E desfaçatez. Mandam-nos com umas roquetadas para cima e desaparecem como sombras, disparando furiosamente as Kalash apoiadas sobre o ombro, mas viradas para a rectaguarda sempre em passo de corrida.

Desta vez não houve tempo! Os bandidos ou seguiram os nossos movimentos, ou conseguiram adivinhar as nossas intenções quanto ao local onde iríamos abancar. O facto é que chegaram primeiro do que nós. Ainda não tínhamos amochado e já o apocalipse se abatia em cima das nossas cabeças. Nos primeiros instantes nem deu para perceber de onde é que chovia tanta metralha. Um número indeterminado de roquetes estoura à nossa volta e nas copas das árvores, semeando farpas de aço que cortam o ar assobiando em todas as direcções. No ar há uma poeirada enorme e uma confusão de galhos partidos. Pequenas bolas de fumo negro pairam sobre a nossa vertical. Cheira a enxofre e a pólvora queimada, o cheiro da guerra. As kalashnikov, costureirinhas, Degtaryev e outro instrumental a que chamam ligeiro entra em acção como uma orquestra, produzindo um matraquear muito rápido mas sem a alma das nossas G3. Estalidos secos junto aos ouvidos indicam-nos que uma chuva de balas nos procura atingir sem piedade. A malta reage automaticamente. Numa fracção de segundo as metralhadoras iniciam uma sequência de tan, tan tans. É uma canção em tom mais grave e ritmo lento comparado com os réc-téc-téc que vêm do outro lado. Mas reconfortante. A equipa da esterilização (dilagramas) não pode fazer nada, o In está demasiado perto. Poderíamos atingir-nos a nós próprios. Os morteiros e LGF idem. Só há uma saída: pessoal em linha, curvado para a frente, armas automáticas à anca com patilha de segurança em posição de rajada, avançamos em lanços sucessivos de cinco a dez metros galgando o mato. Passam dois, três minutos no máximo. Subitamente, o silêncio.

A guerra de hoje está semi decidida, mas a coisa não pode ficar assim! Os gajos têm que levar para tabaco. Continuamos a avançar até alcançar uma zona com tecto livre que batemos generosamente num ângulo de 180 graus, antes de iniciar a perseguição. Atingimos a orla da bolanha. Pelo caminho constatámos a existência de alguns espojeiros. Confirma-se a suspeita de que afinal já estavam à nossa espera. Terão passado lá a noite? Recolhemos também algum material que abandonaram na precipitação da retirada.

Do lado oposto, longe mas ainda à distância de tiro efectivo avistamos vários elementos do IN em fila. Terão sido estes os tipos que nos atacaram? Serão carregadores? Não vale a pena persegui-los. Não conseguiríamos alcançá-los e não é essa a nossa missão. Além disso, corremos o risco de ser atingidos pela nossa própria artilharia de 14cm ou pelo fogo aéreo, ad hoc ou a pedido dos nossos camaradas que estão a fazer a segurança afastada. Estes já levam o que contar, deixá-los ir! Mas não sem antes levarem mais umas morteiradas nos cornos para acelerar o passo.

No Destacamento é o alvoroço. Ouviram o estardalhaço e querem saber o que é que se passa, se temos feridos, se fizemos baixas... Sim temos um ferido que apanhou com um estilhaço na peida, coisa sem importância de que o maqueiro Melo se encarregará. Não é necessária a evacuação, há-de regressar pelo seu pé.

Ainda não são dez horas e já temos o dia ganho! Hoje, em princípio, não nos vão chatear mais. Agora há apenas que cumprir horário. Voltamos à posição que nos foi destinada e instalamos. Daqui a nada vamos almoçar porque o raio da sarrafusca abriu-nos o apetite. Já se fala em voz alta comentando toda a acção com uma espécie de nervoso miudinho residual. Alguns aproveitam o momento de descontracção e vão aliviar-se atrás de qualquer coisa. É que a vinda, nem houve tempo para fazer o habitual alto para cagar.

Quando forem umas quatro da tarde havemos de pôr-nos a caminho. Convém que o regresso se faça ainda com luz do dia. À chegada, teremos um relaxante banho debaixo de um bidão instalado sobre um palanque constituído por quatro cibos ao alto, com água aquecida pelo sol. A seguir, o jantar. Prato à escolha: batata cozida com cavala de conserva. Amanhã também poderemos escolher dobrada seca, demolhada, com arroz e feijão. No dia seguinte voltaremos à cavalinha! Se tudo correr bem, talvez a hora do jantar decorra sem sobressalto. O pessoal, sempre em pequenos grupos, recebe a comida nas marmitas e vai comer para os abrigos onde fica alerta até tarde. Depois, serão umas horas de sono entremeado de saudades e pesadelos, que apesar do cansaço nunca será profundo nem repousante. Amanhã tudo recomeçará de novo. Mas estaremos um dia mais perto!

Volto aos registos da Companhia:

Fascículo IV – Período de 01 FEV71 a 28 FEV71.

“Em 02FEV na região de Farim 2 C6 97, um grupo IN com efectivo de 15 a 20 elementos, emboscou à distância de 5 a 6 metros com armas ligeiras e LGF um grupo da CCaç que progredia para emboscar. As NT sofreram um ferido ligeiro. Feita a batida foi encontrada uma fita de munições de metralhadora ligeira”.
____________

(*) Equivalente em açorianês para piça, pixota, pila, etç.

(**) Idem, para mariazinha, mariconço...

Notas de L.G.

(1) Vd. postes da série de

18 de Setembro de 2006 Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

(2) Vd. post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P1109: O Manuel Castro, ex-furriel miliciano da CART 6254 (Olossato, 1973/74) (Sousa de Castro)

1. Mensagem do nosso camarada, e tertuliano n.º 2, Sousa de Castro, (foto à direita), ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74: 

O Eng Manuel Castro foi furriel e pertenceu à CART 6254 - Os Presentes do Olossato, desde Março 1973 a Agosto 1974.
Já faz parte da nossa tertúlia, quase desde o início (Maio de 2005). Lembro-me que em tempos fez apontamento neste blogue, evocando o facto de ter sido ferido na Guiné. Foi também através deste blogue que veio a encontrar um camarada de armas (*).
Quanto ao episódio em que foi ferido, quero convidá-lo a partilhar a sua estória, essa e outras, com toda a nossa tertúlia.

Em tempos, logo no início do nosso blogue, eu próprio já tinha escrito o seguinte:

Fui eu que o meti [, ao Manuel Castro,] nestas andanças, trabalhamos ambos na mesma empresa, a ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo), e o facto é que ele já conseguiu encontrar alguns colegas da CART 6254 a que pertenceu.

Eu ando há muito tempo nisto, tenho feito alguns apelos e ainda não apareceu na Net ninguém da minha CART 3494, "Os Fantasmas do Xime" (Dezembro de 1971/Abril de 1974) (...)



Saudações tertulianas,
Sousa de Castro

PS - Confirmo, que a campa que apareceu em Bambadinca, [no programa Em Reportagem, da RTP1, de 19 de Setembro, ] pertence a um soldado da minha CART 3494 e creio, se não me falha a memória, que esse soldado era natural de Famalicão.
____________

Nota do editor:

(*) Vd. post de 25 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXV: Aerogramas de amigos e camaradas (1)

25 de Maio de 2005:
Amigos, algum de vocês conhece alguém que tenha feito parte da CART 6254 "Os presentes de Olossato", Março de 73/Agosto 74? Se, por acaso, conhecerem alguém, agradecia contacto.
Manuel Castro
(Viana do Castelo)

25 de Maio de 2005:
Manuel Castro, indico-lhe dois contactos:(i) António Pedras (seripbar@sapo.pt); e (ii) o ex-furriel miliciano João Ferreira (ilferreira@net.sapo.pt).
Certamente que os conhecerá. Eram seus ex-camaradas da CART 6254.
Afonso M. F. Sousa

Guiné 63/74 - P1108: Cemitérios militares: chocado com o programa da RTP1 (Paulo Santiago)

Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > O Paulo Santiago na ponte do Saltinho em Fevereiro de 2005 na viagem de regresso de todas as emoções.

Foto.s: © Paulo Santiago (2006)

França > Normandia > Cemitério dos militares norte-americanas, em Colleville, mortos na sequência do desembarque dos Aliados, na Normândia,, em 1944.

Foto: © Deutsche Welle (2006)


Luís:

Fiquei chocado com a mini-reportagem apresentada ontem [dia 19 de Setembro] pela RTP1.

Foi uma reportagem envergonhada para não ferir a consciência dos nossos políticos. Se não querem, ou não podem, trazer as ossadas para as famílias, que as aguardam, como ontem se viu, contribuam para dignificar os locais onde elas repousam. É o minimo que se exije.

Recordei as imagens do cemitério na Normandia, início do filme O Resgate do Soldado Ryan [EUA, 1998].

Recordei-me também, como Aspirante Miliciano no RI3 em Beja, quando fui a Almodôvar, em Agosto de 1970, entregar à familia as ossadas de um soldado morto há mais de um ano em Moçambique. Lembro o luto da família mas também o contentamento do pai por ao fim de tantos meses poder dar uma sepultura aos restos mortais do seu filho, na terra que o viu nascer.

Até breve
Paulo Santiago

Guiné 63/74 - P1107: O álbum do PAIGC (1): 'roncos' da CART 1525 (Rogério Freire)




Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 1525 (1966/67) > Diverso armamento apreendido ao PAIGC.
Fotos: © Rogério Freire (2006)


Texto e notas de L.G.

A CART 1525 - Os Falcões (Bissorã, 1966/67) (1) têm uma excelente página dedicada à sua história, mantida pelo nosso amigo e camarada Rogério Freire (ex-alf mil). Em tempos ele mandou-me três fotos com armamento apreendido pelos Falcões ao PAIGC. É altura de as divulgar, pedindo ao mesmo tempo a colaboração dos especialistas da nossa tertúlia para a legendagem das fotos.

É também um exercício de memória e um passatempo... Aqui fica o rol dos roncos, feitos pelos Falcões, e que abrem este álbum de fotografias dedicadas ao PAIGC (vd. com mais detalhe o resumo do material capturado pela CART 1525).
Já em tempos escrevi que fiquei impressionado com o curriclum vitae dos Falcões: nada menos do que 10 (dez) cruzes de guerra!... E manga de ronco, pessoal, lá para os lados do Morés (mítico, no nosso tempo, 1969/71), Iracunda, Cambajo, Jugudul, Iarom, Bará, Quéré, Biambe, Conjogude, Uenquen, Tiligi, Rua...

Os Falcões eram mesmo uns verdadeiros... predadores, a avaliar pelo material capturado por eles naquele tempo (o que para uma companhia de artilharia era obra, embora o PAIGC ainda estivesse longe do seu auge, em termos de sofisticação do seu armamento e experiência dos seus combatentes ):

52 armas (incluindo metralhadores, ligeiras e pesadas);

39 granadas de morteiro;

33 granadas de canhão s/r;

14 granadas de LGF

10 minas (a/c e a/p)

15 granada de mão,

7000 munições, mais documentos, medicamentos, etc.
__________

(1) Sobre os Falcões, vd. ainda os seguintes posts:

16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1080: Uma nota de tristeza, nostalgia, desencanto e revolta (Rogério Freire, CART 1525)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)

Guiné 63/74 - P1106: A ubiquidade dos nossos mortos (Zélia)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Este foto já correu mundo... ou, pelo menos, já deu a volta à nossa caserna...Chegou-nos por mão do Albano Costa, com a seguinte legenda: “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia a puxar o burro, mulher de armas!"...

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Texto da nossa amiga Zélia Neno, ex-companheira do Xico Allen (1).

Olá, Luís

Com certeza admirado por este meu reaparecimento, após alguns meses de silêncio, julgo que desde aquela noite de cavaqueira em casa dos teus cunhados, [na Madalena, Vila Nova de Gaia,]com o Albano. Os motivos julgam que serão já do teu conhecimento. Contudo e apesar de, continuo a acompanhar a evolução do blogue e as estórias que lá vão sendo contadas quase diariamente e só posso dar-te uns enormes parabéns, pois sabendo como é atribulada a tua vida profissional ainda consegues ter tempo e disposição para manter em dia esta enorme obra.

Se hoje decidi escrever foi devido ao assunto que despertou alguns tertulianos, ou seja, a reportagem transmitida pela RTP1, 3ª feira, dia 19, e que ficou aquém das minhas expectativas mas que compreendo pois é um assunto delicado e de certo ainda magoa os corações de muitos familiares de todos aqueles jovens que lá longe e a troco de Nada foram roubados à Vida.

Como se isso não bastasse, os inicialmente mortos, por lá tiveram que ficar depositados num pedaço de chão ao qual nenhuma afinidade tinha pois aquela não era a sua terra embora fosse então seu país. Quanto às famílias tiveram que os velar e chorar à distância e na ausência da sua presença, mesmo que numa tumba, mantêm a incerteza de como e onde estarão seus restos mortais.

Mas se a grande parte desses mortos foi isso que aconteceu, casos houve que julgo serem mais gravosos e até cruéis, de militares mortos e enterrados em dois lados, ou seja, lá e cá. Como é isso possível se pela lei da física o mesmo corpo ou objecto não pode ocupar dois espaços simultaneamente?

Em 1998, eu, o Xico e quem nos acompanhou numa visita ao cemitério militar português em Bissau, encontrámos (e fotografámos) duas sepulturas onde, segundo informação convicta do coveiro local, estão inscritos os nomes e mesmo sepultados os corpos de dois jovens aqui do norte (zona do Marão) e em cujos cemitérios da sua terra natal têm dupla residência, sabendo-se que na ocasião tiveram um funeral tradicional e ainda hoje os familiares devotam atenção e carinho àqueles quatro palmos de terra. Mas afinal o que estará debaixo deles?

À data, este facto não foi transmitido a nenhum familiar pois iria causar um impacto inquietante – hoje não sei se entretanto lhes chegou ao conhecimento. Na época e na sequência de um filme produzido e passado pela SIC, seu nome Monsanto [ , realizado em 2000 por Ruy Guerra], cujo enredo era baseado no stress do pós guerra vivido pelo protagonista, enviei para lá uma apreciação sobre o dito filme e no contexto do assunto falava da triste constatação que havíamos verificado e posteriormente agravada quando, numa ida a Lisboa, o Xico verificou que no Memorial aos Combatentes do Ultramar em Belém não estavam mencionados os nomes daqueles militares, mortos em defesa duma pátria que concedeu a cada um deles duas sepulturas mas nenhum destaque no monumento que foi construído em seu louvor – terá sido ironia do destino?....

Perante estes dois casos de dupla sepultura que casualmente vi que existem, julgo que devem existir mais nestas circunstâncias entre as centenas que por lá ficaram, sem direito a um trato condigno mesmo que seja na morte, porque, como se viu na reportagem, a maioria dos cemitérios estão degradados pelo abandono. Mas para além do respeito devido aos mortos também se deve pensar nos vivos, no sofrimento que pode ser provocado aos familiares se algo de anormal se verificar quando do levantamento dos restos mortais para a transladação, pois além de só por teste de ADN, nenhuma garantia têm de que o ainda restante em qualquer uma daquelas covas corresponde ao nome inscrito nas mísera lápide assente sobre ela pois não nos esqueçamos que ali foram enterrados sob um cenário de guerra e a turbulência que tal implicava.

Não é pessimismo. É que na década de sessenta, início da guerra, era eu ainda menina e ouvia ler cartas que chegavam de Angola, escritas por quem vivia em pleno seio da rebelião e em frente a um cemitério onde os enterros eram constantes, realizados de qualquer forma e feitio, e nunca esqueci o relato de um que se efectuava quando houve um ataque, provocando a debandada geral, inclusive de quem transportava o caixão, deixando-o cair ao chão permitindo ver que o seu conteúdo não era um corpo mas sim... pedras. Isto porque corpos apanhados por minas davam muito trabalho a resgatar e o tempo era de guerra!

A todos que morreram, enterrados cá ou lá, com ou sem as devidas exéquias fúnebres, honremos a sua Memória.

Paz às suas almas.

Luís até um qualquer dia.
Um xicoração.
ZÉLIA
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVI: A viagem do Xico e da Zélia em 1998