1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Dezembro de 2010:
Meus queridos amigos,
Se bem que eu tivesse preparado para as emoções, foi um dia tumultuoso, ninguém regressa às origens sem um estremeção.
Falei com os professores de Bambadinca, visitei a escola da missão, encontrei gente que fez questão de se anunciar: “Chamo-me João Coré Baldé, do Pel Caç Nat 54". Quando acabei esta visita a Bambadinca, estava sem fala.
Da parte da tarde, foi tudo muito mais ameno, estive em Samba Juli e em Fá.
Depois eu vou contar. Um abraço do
Mário [, foto em cima, à direita, Bambadinca, 1970]
DIA 22 DE NOVEMBRO DE 2010
Antes de pedir autorização para entrar no quartel a visita que o Tangomau efectuou na companhia do tenente-coronel Seco Mané, decidiu ir ver a rampa que dá acesso à tabanca de Bambadinca. Imprevistamente, desatou a chorar, a rampa da sua vida transformara-se numa inclinação de terra, com gretas que se aprofundam na época das chuvas.
A nova estrada que vem da Bantajã, que flanqueia a bolanha de Finete, alterou profundamente a relação espacial de Bambadinca e o Bambadincazinho. Agora a estrada alcatroada sobe em paralelo a esta rampa em vias de extinção, só frequentada pelas crianças que vão para a escola, junto ao rio, ou outros passantes que habitam perto, por exemplo junto da antiga casa do comerciante Rendeiro.
A rua principal de Bambadinca vai-se desmoronando, já caíram a loja do José Maria Tavares, os armazéns da Casa Gouveia e Ultramarina. Veremos noutra fotografia um outro interior de armazém em derrocada. Questiona-se, em todas as circunstâncias, o que é que leva um país paupérrimo a não reaproveitar edifícios que tinham solidez, que podiam ter sido aproveitados para habitação, por exemplo. O Tangomau subiu e desceu esta rampa vezes sem conta. Em sinal de penitência, desceu até ao edifico dos CTT que também fotografou, e a seguir dirigiu-se ao quartel. De facto, o Exército guineense tem aqui o seu quartel .
Trata-se de um local mágico para o Tangomau. Era aqui que se tentava falar para Lisboa. A porta e as janelas estavam sempre abertas. Atendia a D. Leontina, uma gentil senhora com quem se apalavrara o dia e a hora para telefonar para Lisboa. De todos os edifícios em derrocada, este é o que ainda está em melhor estado.
Aqui o Tangomau foi-se definitivamente abaixo, começou a uivar, primeiro um choro morno, umas lágrimas de fel e saudade. Há fotografias suas nesta sala, não havia luxos, havia o indispensável para se estar sentado, uns sofás com napa, cadeiras e bancos. Havia um balcão e bancos. O que se vê é o aviltamento.
O tenente-coronel Seco Mané pedia: “Não chora, não chora, senão eu também chora!”. O Tangomau justificou-se: “Deixe-me chorar, o meu choro chama-se melancolia, tristeza e aflição pela maneira como os senhores tratam o património. Nesta porta entrei em dias de tormento e aflição, por esta porta vi matar a fome e a sede. Este espaço é um lugar importante da minha vida. O que mais me dói é estar irreconhecível, aos meus olhos e aos seus olhos. Choro não pelo passado mas pelo presente, Sr. tenente-coronel”. E continuei a cirandar pela messe.
É o que resta da messe de oficiais. Oxalá tivesse sido um tornado, uma fúria da natureza que os homens não pudessem suster. Mas não, o que se avista é pura destruição, o abandono de equipamento que podia estar ao serviço daquela comunidade. Aqui se comia, se jogava às cartas, havia quem se sentasse a escrever e a conversar. Não se faz esta maldade a um aprazível espaço de convívio. E o Tangomau continuava a chorar e o Sr. tenente-coronel replicava: “Não chora, não chora, senão eu também chora!”.
Era aqui que o soldado Simões dava a última demão à comida, antes de a trazer para a sala de jantar. Aqui se faziam ovos estrelados e alguns acepipes. Aqui a Sr.ª D. Maria Alzira Pimentel Bastos frigiu rissóis, dando um pontapé na rotina da chamadas ementas da tropa. Resta este buraco, este abandono. O Tangomau só se interrogava para onde fora o equipamento de cozinha onde, outrora, se tinham operado milagres de improvisada culinária.
Na companhia do tenente-coronel Seco Mané, o Tangomau foi percorrendo o corredor do edifício dos oficiais, porta a porta: indicava o quarto do tenente da secretaria, do médico, dos oficiais de transmissões e das viaturas, ali era a casa de banho, logo a seguir o seu quarto. O que ia vendo era, pura e simplesmente, falta de manutenção, desleixo. Mas quando chegou à casa de banho foi-se abaixo…
Arrancaram os lavatórios e as sanitas, os duches estão imprestáveis. Isto não é uma casa de banho, é uma habitação assombrada, andou por aqui um demente com sanha destruidora. Esta casa de banho era funcional, tinha conforto e comodidade. O Tangomau voltou 40 anos atrás, reviu mentalmente tudo quanto ali existia, o descalabro actual, tal como ele o entendeu, era um insulto à civilização e não aos militares portugueses que usavam este espaço de higiene e asseio. A comoção maior sobreveio na visita seguinte, à messe de oficiais.
É o que resta da porta de armas virada para os dois itinerários principais, Xime à direita e Xitoli à esquerda. A pista de aviação desapareceu, foi ocupada com a extensão do Bambadincazinho. Neste ângulo, é como se nos dirigíssemos para o quartel, para a escola, para a casa do chefe de posto, para a mãe de água, para a capela. Ao fundo, mesmo ao fundo, desapareceu a porta de armas que dava acesso à rampa.
Uma boa parte das instalações militares estão ainda de pé. Quem jogou à bola pode recordar as instalações por detrás. Entretanto, o Bambadincazinho vai investindo, na mais perfeita anarquia.
As irmãs franciscanas recuperaram a capela. Aqui entrei, com o pulso acelerado. Foi quando vi a fotografia que o Humberto Reis tirou, há mais de 10 anos, que me decidi a voltar à Guiné, como aconteceu, escrevendo a história da minha comissão militar. Sempre que podia, vinha aqui à missa, aqui depositei os nossos mortos. Não se chegava nem se partia de Bambadinca sem olhar a capela, até mesmo em frente se formavam as colunas de abastecimento que iam até ao Xitole.
A antiga escola de Bambadinca, hoje inoperacional. Vim aqui visitar a professora, que me emprestava livros e documentos. Era muito agradável ouvir o gralhar das crianças no interior do quartel. Ali ao pé, a mãe de água apareceu. A casa do chefe de posto está recuperada, vive lá a autoridade política.
Outro local mítico para o Tangomau e a sua equipa. Havia aqui um cais tosco, duas canoas e um canoeiro muito amigo, Mufali Iafai. Do outro lado, o princípio ou o termo da bolanha de Finete. O Tangomau ficou especado a olhar para o tempo parado, removida a importância do lugar, a própria bolanha de Finete já não é o que era. Amanhã vai recomeçar o seu dia neste ponto, rever o porto que teve uma actividade febril, vai procurar os seus últimos vestígios. Foi tal a comoção do dia que até irá conversar com um pescador vindo do Mali quanto custa levá-lo de canoa até Mato de Cão. Discutiu-se o preço, mas a viagem não se fez. Só que a viagem nunca acaba – e o entusiasmo do viajante também não.
Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)
Reconstituição feita, de memória, por Humberto Reis, Luís Graça e Gabriel Gonçalves (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71):
(i) Do lado esquerdo da imagem, para sul, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste);
(ii) Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3);
(iii) A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole;
(iv) De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9);
(v) Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19);
(vi) Do lado direito, ao fundo, para norte, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá;
(vii) O aquartelamento de Bambadinca (e posto administrativo do concelho de Bafatá) situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste); são visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24); a luz eléctrica era produzida por gerador...
(viii) Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25); em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14);
(ix) A caserna das praças da CCS/BCAÇ 2852 (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3);
(x) Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U;
(xi) Mais à direita, situava-se a capela (13) - que funcionava também como casa mortuária - e, ao lado, a secretaria da CCAÇ 12 (14);
(xii) Creio que por detrás ficava o refeitório das praças; em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17);
(xiii) Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e o depósito da água (de que se vê apenas uma nesga);
(xiv) Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto (que era um caboverdiano, na altura), e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12);
(xv) Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis (HR), completada por mim (LG) e, mais recentemente, pelo Gabriel Gonçalves (GG), que identificou novos sítios: cantina (27), posto de rádio (28), refeitório das praças (29) e centro cripto (no topo do edifício 5)...
Ficamos à espera de novos contributos, nomeademente por parte do pessoal das CCS do BCAÇ 2852 (1968/0) e do BART 2719 (1970/72) que privaram connosco, bem como as unidades adidas (Morteiros, Daimler, Intendência, Engenharia, Pelotões Caçadores Nativos...).
Foto: © Humberto Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010