terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes!









Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 > Um  sítio surpreendente que precisamos de conhecer melhor e usar mais... Já fiz o desafio ao régulo da Tabanca de Matosinhos...

Oxalá, caros leitores e leitoras, exemplos como este [, o da Tertúlia dos Camimheiros do Parque da Cidade]  frutifiquem e se multipliquem pelos belos parques das vilas e cidades que temos no nosso fantástico país. Não deixem os parques tristes, sós com as suas árvores e os seus passarinhos... Por favor, usem-nos, enchem-nos!... São os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos... livres e felizes!

Fotos  (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


A Galeria dos Meus Heróis >  Os caminheiros do Parque da Cidade (II e última Parte)(*)


por Luís Graça





(Continuação da Parte I) (*)

O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para liderar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol em Paços de Ferreira ou Penafiel, não sei ao certo. 

Era natural de Resende, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguiu formar-se.A “Poetisa”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…

− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Poetisa” e explicou:

− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha à minha frente uma eternidade de pasmaceira…

− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…

− Não me f… com essa! Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…

Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…

Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974… “Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade. Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conheceu as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração…

Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:

− Djubi, gosse, gosse!

− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?

− É crioulo, toca a andar que se faz tarde.

Juntara-se agora ao grupo da frente o “Coronel”, um DFA (Deficiente das Forças Armadas) que estivera em Angola, no fim da guerra colonial, em 1974/75, nos paraquedistas ou nos comandos, não sei ao certo. Foi ferido, com gravidade no leste, e teve direito a cruz de guerra.

Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que a “Poetisa” e o “Filósofo” embirravam solenemente.

− Guerra, só a das ideias!− defendia o “Filósofo” que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado o 1º ano da Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pôs os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)

Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, só no verão de 1974, matriculou-se ainda nesse ano no curso de filosofia, depois de fazer o “exame adhoc”, andou a sanear professores, ao mesmo tempo que se metia no negócio da edição de livros. Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima. Foi durante vinte anos também professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”.

− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!

− Olha, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada nota de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates,o que é que vocês querem mais ?!

− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…

− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do pequenino Portugal de 89 mil quilómetros quadrados a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Coronel”.

− “Jangada de pedra”, chamou-lhe o Saramago! – completou a “Poetisa”.

Desta feita era o “Coronel” a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Filósofo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de ir para a tropa…

E continuou o “Coronel”, que lidava mal com “faltosos, refratários e desertores”, agora com a autoridade do historiógrafo (, um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”,por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):

− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821. A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…

− Eh!, “Coronel”, nessa altura, até eu, com esta fraca figura,  pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Poetisa”…

− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.

E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país.

− Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos…

− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Poetisa”.

− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.

A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos s de batalha do "Mister" nos últimos tempos.

− O Facebook reproduziu a estrutura e ampliou a dimensão da aldeia, agora vivemos na aldeia virtual global. Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.

− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, namorar, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses…

− Pedimos amizade uns aos outros (, gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…

− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício… − contrapôs o “Filósofo”.


− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Coronel”.

− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”… − comentou o “Filósofo”.

Mais enfático, exclamou o “Mister”:

− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…

−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! – diz o “Filósofo”.

− Ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a “Poetisa”.

− E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais – diz o “Filósofo” –, é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.

E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário”:

− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…

−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… −interrompeu a ‘desbocada’ da “Poetisa”…


No meio disto tudo, eu, que por mais de uma vez tenho sido um intruso neste grupo, por convite da “Nucha”, e com um papel mais de observador do que ator, fiquei a saber que eles são já um “case study” académico: alguém da Universidade do Minho ter-se-á lembrado de pegar neste caso de alegado “sucesso de promoção do envelhecimento saudável e proactivo”… E eu julgo que houve aqui mão da “Nucha”, que é uma rapariga de Braga, de 67 anos de idade, solteirinha,   e que sempre se interessou pela promoção da saúde, esteve ligada à Rede Europeias das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis...

Enfim, posso dizer que tive a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de me chamarem “Mouro” na brincadeira. De vez em quando, quando estou no Porto, apareço com a “Nucha” e junto-me a eles, para para duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio…

Sei, por outro lado, que fazem alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal, e outro no solstício do verão", antes das “férias grandes”, imaginem!... É que ainda gostam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, são circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer um de nós…

A “Poetisa” costuma escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pude aparecer. Dizem-me que são versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adora pôr um pouco de picante no que escreve e diz... Neste último Natal, ela fez um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só aparecem nesta data para “dar ao dente”. Mas no fundo, é um homenagem a este pequeno grupo fantástico de pessoas do Norte que me surpreendem pela energia e alegria que põem todas as quintas-feiras nas sua "voltinha" pelo Parque da Cidade... 

A “Nucha” teve a gentileza de me mandar uma cópia do texto por email. Pensei duas vezes antes de o publicar, pensei em não fazê-lo para respeitar e preservar a sua intimidade, já que o grupo é avesso à publicidade e à devassa das "redes sociais"...

Mas sei que o grupo também precisa de partilhar estes momentos mais intimistas, em que se juntam caminheiros e ex-caminheiros, cerca de uns trinta, alguns dos quais infelizmente tiveram de arrumar as sapatilhas, por esta ou aquela razão, e nomeadamente de saúde…


Enfim, acho que ficava bem este o soneto, a rematar esta história dos caminheiros nortenhos a quem eu só posso desejar muita saúde e longa vida porque, eles e elas, merecem tudo…

Eis o texto que a "Nucha" me mandou, da autoria da talentosa "Poetisa" (e com a sua generosa permissão):

"Recapitulemos um pouco a história deste grupo, a 'Tertúlia dos Caminheiros da Quinta das Conchas', que é um mix de grupo convivial, e de ajuda mútua, de gente que gosta de caminhar e conviver, mas também de dar à língua e ao dente,e que até podia ser um clube, recreativo, cultural, desportivo,
e até prandial e excursionista:  faz um excursão e dois almoços… por ano, um no solstício do verão e outro no solstício do inverno!

"Quanto ao resto, todas as semanas, à quinta-feira, procuram acrescentar  mais vida à vida, mais saúde à saúde, mais amizade à amizade.

"Para os que chegaram ontem, é bom que se saiba que estão aqui duas mães-fundadoras,
a 'Nucha' e a 'Rosa Mota', como carinhosamente as tratamos.

"Há cerca de 10 anos,  faziam então parte de um grupo de professoras, da escola de X... Quando se reformaram, olharam umas para as outras e houve alguém que perguntou: 'Ouçam lá, e agora ? O que é que vamos fazer amanhã,
o primeiro dia do resto das nossas vidas,
em que deixamos de vir à escola, por dever e obrigação ?!'

"Foi assim que nasceu a nossa tertúlia, como sabem... Entraram uns, saíram outros, vêm uns mais regularmente, outros menos… E é para todos os caminheiros que eu fiz este soneto ou 'sorneto', como lhe chama o nosso 'Mister' que vai mantendo a nossa chama viva...

"Começo, na 1ª quadra, por me dirigir, em tom de saudável brincadeira, aos menos assíduos… Peço a vossa colaboração para adivinharem ou completarem, em voz alta, a última palavra de cada uma das duas quadras e dos dois tercetos.


"Boas festas de 2018, caminheiras e caminheiros!

"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos compa…nheiros.



"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, e não tem desconto,
Que a quota é só a da ami...zade.

"Sempre com as malas feitas p’ra viajar.
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas sempre com medo do mundo aca…bar.

"Filhos e netos são outras preocupações;
De saúde, vão indo, menos... mal;
P’ra todos, Bom Ano… e Xico...rações!

"Parque da Cidade, 20 de dezembro de 2018"...



Oxalá, caros leitores e leitoras, que exemplos como este frutifiquem e se multipliquem pelos belos parques das vilas e cidades que temos no nosso fantástico país. Não deixem os parques tristes, sós com as suas árvores e os seus passarinhos... Por favor, usem-nos, enchem-nos!... São os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos... livres e felizes!


Luís Graça
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis >  Os caminheiros do Parque da Cidade (Parte I)

por Luís Graça





Às quintas-feiras encontram-se no Parque da Cidade, têm lá um grupo e amigos e conhecidos que gostam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas.

“Duas voltas ao bilhar grande”, dizem eles e elas. Desenferruja-se as pernas, desentaramela-se a língua, massaja-se os neurónios, tonifica-se o coração, estreita-se os laços sociais e afetivos, limpa-se a vista (com o azul do mar, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultiva-se a boa disposição e o humor, desliga-se o malfadado telemóvel…

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dizas, é quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, reformados, gente com tempo e vagar, e algumas economias no banco. No essencial, e em comum, têm o gosto por conviver, conversar e andar a pé. É a “tertúlia dos caminheiros do Parque da Cidade”… Já são populares entre os demais utentes e os trabalhadores do Parque e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona.

Há de tudo um pouco: professores, talvez a maioria, engenheiros, bancários, magistrados, advogados, secretárias, domésticas, uma médica, uma enfermeira, uma jornalista, e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vêm do Porto e de Matosinhos, e até de mais longe.

É a primeira geração de portugueses de que se pode dizer que são filhos da abundância, do Estado-Providência, e que podem aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (, contrariamente ao que se passou com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número , variável, dos que vão aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acaba por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não há solidariedade com os fracos que vêm na cauda do pelotão. A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, faz-se uma pausa, de dez minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. É então que o pelotão se reagrupa, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa são os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (, há gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas, das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se divorciam e os netos que vão para a escola…

Vêm também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos e parentes)… Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se fala em sexo nem em dinheiro”, segundo me confidenciou a minha amiga “Nucha”. Percebe-se: muitos tiveram uma formação puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor…

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejei eu.

O telemóvel e o tabaco são, agora, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” é uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores são, nesse ponto, os mais intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel é “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”. E, tanto quanto me apercebo, quando por lá ando, não há fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” vai, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes, o liceu, a mocidade portuguesa, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império… Alguns passaram por África e têm memórias desse tempo, umas boas, outras más. Há retornados e ex-combatentes…

Chegam por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que é o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino”, do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim nascida no Estado Novo.

No caso de alguns, os mais velhos, quando nasceram, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

São quase todos portistas, mas também não se fala de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficam lá fora as “redes sociais, a par da “política partidária”. São quase todos “desalinhados”, à esquerda e à direita, mas alguns/algumas têm um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até é compreensível.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidencia-me a “Nucha”, uma mulher nortenha de grande generosidade.

Quando chove (e aqui chove mais do que no Sul…), ficam a cavaquear no café até próximo do meio-dia, altura em que cada um vai às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ?

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa o “Filósofo”, a caminhar ao lado do “Mister” e da “Poetisa”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio dos dois:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Focinho de Porco”,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Poetisa”.

Transmontana, a “Poetisa” é uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade é um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamam-lhe a “Poetisa” porque dá ares da Natália Correia… e também escreve… “versos”. Tanto quanto julgo saber, foi professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciam e toleram o seu “génio”. Tem fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gosta de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"...

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?! – acrescentou o “Filósofo”.

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as estafadíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… – interveio o “Mister”.

− Ah!, o Portugal plural no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e branco – lembrou a “Poetisa”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e a censura – acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje são “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar mais um exemplo:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, ó “Mister”, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Poetisa”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu 1º marido… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

− E sem “airbag”, que era coisa que, nesse tempo, os carros ainda não tinham! – galhofou o “Filósofo”.

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar os três amigos.

Na Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade quase toda a gente parece ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que me disseram, faz parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratam por tu, o que ajuda a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores.

E também me parece que, pelo convívio que vou tendo(, irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém leva a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, é mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da(s) história(s) de vida.  Enfim, um ou outro, no início, pode não ter gostado lá muito ou ter até rangido os dentes. Os novatos, que têm sido poucos nos últimos dois ou três anos, são sujeitos, como eu, à incontornável praxe de integração.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-me a “Nucha”, uma velha amiga de há, pelo menos uns 20 anos.

Em rigor, não há regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, vai criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo trabalho de um grupo de mulheres, de que restam duas ou três, a quem chamam carinhosamente as “abelhas mestras”. São uma espécie de “mães fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas, e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?!

Foi assim que nasceu a Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade, com a intenção mais ou menos explícita (mas não expressa) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo me contou a minha amiga “Nucha”, que foi professora de biologia… São mais as mulheres do que os homens, o que até é natural neste grupo etário de gente sexagenária e septuagenária… Em dez anos, o grupo sobreviveu e renovou-se. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também há a “Viúva Alegre” (que já despachou para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos…), a “Papa-Léguas” (também conhecida por “Rosa Mota”, por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva…), a “Facebook…eira” (que se vangloria de ter “cinco mil amigos”), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, sempre muito calado), o “Morcão” (ex-autarca, que vem de Gondomar), a “Dina” (ou “Adrenalina”, por ser uma das mais “stressadas” do grupo…) e o “Coronel”, enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequenta o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos arrelvados que, no passado, devem ter dado muitos carros de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister” – retomou o “Filósofo” o fio à meada.

E continuou:

− Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – ironizou a “Poetisa”, que gosta de “picar” tanto o “Mister” como o “Filósofo”.

Prosseguiu este, que tem sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha teoria… 


− Então, avança lá!...Somos todos ouvidos.

− Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou o “Mister”.

− Há uma economia de meios, de energia, de recursos ! – concorda o “Filósofo”. – Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como alguém disse – continuou o “Mister” – somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade… − interrompeu o “Filósofo”.

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do criador – comentou, com sarcasmo, a “Poetisa”.

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Ou então são confrangedoras! – ripostou a “Poetisa”.

− Sim, repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nas sextas-feiras treze, ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

− A minha teoria – volta à carga o “Filósofo – é a seguinte: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Poetisa”− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças… Aponta aí, ó “Filósofo”.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – diz a “Poetisa”.

− E quanto mais velhos, pior! – sentenciou o “Mister”. − Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Poetisa” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.


(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19351: Blogpoesia (601): "Fantasias", "Sementeira" e "Tédio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Fantasias

Nosso refúgio é o reino das fantasias.
Onde buscamos o que não temos e criamos o que não nos é preciso.
À margem da nossa vida real nos surgem no horizonte alucinações e ilusões.
Nos seduzem. Atraem nossa vontade e imaginação com promessas de realidade.
Tudo se desvanece ao raiar da aurora.
Basta a claridade do sol e tudo se vai.

Sua fonte é nossa ambição. Nossa vontade de querer mais.
O que temos é sempre pouco.

A felicidade está na contenção.
Pouco e bom é o segredo...

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 24 de Dezembro de 2018
7h21m
Jlmg

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Sementeira

É verde a sementeira depois de despontar.
Traz a esperança na algibeira e a fé no coração.
Se multiplica em frutos bons.
Sacia a fome e dá o pão.

Cumpre a lei,
Na sombra da terra oculta.
Desperta à hora.
Cresce ao sol.

A ninguém escolhe.
Nem ela sabe,
Sua arte é dar.
Sem olhar a quem.

Não tem pai nem mãe.
Tem tudo em si.
Sua sorte é o sol e a chuva.
Sem eles não…

Ouvindo A sinfonia “Novo mundo” de Dworak
Berlim, 27 de Dezembro de 2018
7h59m
Jlmg

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Tédio

Quando o tédio me ronda a mente,
subo ao monte e busco um poema.
Risonho aparece ao longe.

Vem sorrindo como um amigo que já não via há muito.

Nos abraçamos. Saudosos.
Fervem nossos corações.
Novidades. Dum ao outro.
São tantas as novidades.

Tantas primaveras floridas.
Verões de fogo ao pé do mar.
Que a distância nos tirou à gente.
Aquelas tardes calmas do recolher.
As estrelas que se acendiam diante de nossos olhos na aldeia que nos viu nascer.

Que nos queriam dizer as constelações de estrelas ordenadas,

segundo uma linha de pensamento que alguém escreveu?
Os mistérios que sombreavam nossa mente sobre o mistério do viver.

Aquelas conversas enlevadas que se prolongavam pelas madrugadas.
O encanto das amizades da vizinhança.
Um sabor que, de só o lembrar, nos adoça e extingue o tédio que nos assoma de vez em quando...

Berlim, 28 de Dezembro de 2018
17h46m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19346: Blogpoesia (600): "Horas serenas...", "Adro de areia" e "Ventania e tempestade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19350: Parabéns a você (1551): Margarida Peixoto, Amiga Grã-Tabanqueira - Penafiel

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19347: Parabéns a você (1550): Adelaide Barata Carrelo, Amiga Grã-Tabanqueira

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19349: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (13): Renato Monteiro, fotógrafo, ex-fur mil, CART 2439 / CART 11 (Nova Lamego e Piche) e CART 2520 (Xime e Enxalé, 1969/70)



Foto de Renato Monteiro, nosso grã-tabanqueiro, 


Foto  (e legenda): © Renato Monteiro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Foto: LG
1. Mensagem de Renato Monteiro [, "o homem da piroga", aqui na foto, à direita, com Luís Graça, no rio Geba, em Contuboel, c. jun/jul 1969]

Data: 30/12/2018, 13:41




Feliz 2019 !

Renato Monteiro

(i) Tem 45 referências no nosso blogue;

(ii) Foi fur mil at art CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969; e CART 2520, Xime e Enxalé, 1969/70):

(iii) É autor dos blogues Fotografares e A Minha Cave, entre outros;

(iv) Publicações: Monteiro, R.; Farinha, L. - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: Círculo de Leitores / D. Quixote. 1990.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P19348: Notas de leitura (1136): “Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira; Editora UFPE, Recife, 2015 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Este sociólogo guineense, professor no Brasil, com pergaminhos da sociologia política de há muito que estuda o papel da sociedade civil na Guiné-Bissau e decidiu para tema do seu doutoramento estudar as relações entre a sociedade civil e o Estado entre os dois países, tendo como balizas o arranque do multipartidarismo e até 2008.
Dá-nos um quadro das conceções teóricas que modelam a transição de políticas autoritárias para liberais, analisa os pontos de convergência e divergência gerados pela história na afirmação dos dois Estados, procede a trabalho de campo junto das célula da sociedade civil, confirma a identidade de duas culturas e um processo de desenvolvimento em que há inúmeras aspirações afins, desde o combate ao desemprego e à pobreza até à incessante procura de independência face ao apetites dos partidos políticos.
De leitura obrigatória, para quem queira conhecer estas duas sociedades civis em movimento.

Um abraço do
Mário


Cabo Verde e Guiné-Bissau: sociedade civil e Estado

Beja Santos

“Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira, Editora UFPE, Recife, 2015, é o produto de uma tese de doutoramento de um professor universitário guineense que ganhou o seu título na Universidade Federal de Pernambuco. A sua investigação emerge na trajetória distinta e num relacionamento comum entre dois países que têm um denso cruzamento histórico. Por força de uma conceção ideológica montada por Amílcar Cabral, o termo unidade utilizado exaustivamente na luta armada pela libertação nacional apelava para dois países que devido a uma história comum deviam caminhar de braço dado, da guerrilha à fusão do Estado. Esse sonho desmantelou-se em 1980, os dois países mantiveram-se numa linha de partido-Estado até que o mundo deixou de ser bipolar, o comunismo afundou-se e as correntes liberais pareciam tomar conta de tudo. Da década de 1980 para a década de 1990 a estes países africanos acenou-se com a democracia multipartidária e a economia de mercado. Com as transformações políticas sociais e económicas, entrou-se numa era de democracia representativa e participativa, com grandes altos e baixos. É nessa fase que se dá um processo político distinto entre Cabo Verde, insular, sociedade crioula, com elevada diáspora, onde o sentimento de cabo-verdianidade é poderoso e a Guiné onde se acena com o fantasma militar, onde se manifestou o caudilhismo, a guerra civil e a permanente instabilidade política. As sociedades civis dos dois países têm recortes distintos mas também posições afins.

Tratando-se de uma investigação doutoral, Ricardino Teixeira inicia a sua investigação com quadro apurado de contornos teóricos-metodológicos e a análise comparada das relações entre a sociedade civil e o Estado tendo como referência o processo democrático em construção nos dois países entre 1994 e 2008, no fundo o investigador procura o grande ecrã da ciência política para enquadrar a democracia representativa, o triunfo nos princípios liberais e como a sociedade civil e o Estado se vão confrontar na vida quotidiana.

O segundo capítulo desvela os dois países em termos de história e organização, de sociedade e cultura. Cabo Verde foi descoberto, povoado por brancos e populações da Senegâmbia, a Guiné teve vida pré-colonial, a ocupação portuguesa foi radicalmente diferente da criação de uma sociedade crioula, encontraram-se na miscigenação e no comércio negreiro, em Cabo Verde expandiu-se o catolicismo, uma forma de organização agrária decalcada de modelos europeus, todas as localidades possuem nomes portugueses; a Guiné caracterizou-se por uma presença no Litoral, montaram-se praças e presídios, pagava-se aos régulos uma tributação para ocupar território e quando se avançou para uma ocupação efetiva contou-se sobretudo com o cabo-verdiano, culto e disciplinado, motivado para os negócios, na segunda metade do século XIX lançaram-se na criação de colónias agrícolas, nomeadamente no Sul. Ricardino Teixeira recorda a resistência oferecida pelas etnias guineenses contra a presença portuguesa, sublevações permanentes, só com o Capitão João Teixeira Pinto, a partir de 1913, com campanhas de pacificação, um hábil aproveitamento de tropas auxiliares conjuntamente com mercenários de outras regiões é que se conseguiu a capitulação dos revoltosos, entrou-se numa fase de interiorização da presença colonial a despeito de as comunidades rurais terem mantido um elevado grau de autonomia. Como é óbvio, Ricardino Teixeira vai traçar os aspetos relevantes da tese da unidade Guiné-Cabo Verde forjada por Amílcar Cabral. A primeira mão-de-obra militar foi oferecida por jovens guineenses que terão um papel determinante nas sublevações a partir de 1962, no Sul da Guiné, esses homens estarão à frente das forças sublevadas em toda a região Sul, no Oio e no Corubal, partir de 1963.
Mobiliza-se o apoio popular guineense e os quadros cabo-verdianos vão se espalhar pelas zonas de luta, Conacri, Dakar e Ziguinchor. Iludiram-se contenciosos seculares entre guineenses e cabo-verdianos, Amílcar Cabral será assassinado fruto dessas discórdias. O golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 clarifica a profunda dissensão e o fim da fórmula de unidade Guiné-Cabo Verde. Perante dois países tão distintos, no ADN, na espiritualidade, no conceito identitário, Ricardino Teixeira vai investigar as relações entre a sociedade civil e o Estado, num momento em que se enveredou pelo reconhecimento e se legitimou a democracia representativa e participativa.

Foi este o trabalho de campo que ele desenvolveu, junto de organizações cabo-verdianas e guineenses. No final, não subsistem dúvidas que há pontos de aproximação, embora, em muitíssimos casos, o quadro de aspirações é radicalmente distinto. Cabo Verde entrou no multipartidarismo sem dramas nem golpes militares, o PAIGV deu lugar ao Movimento para a Democracia, aceitaram-se as regras do jogo. Os inquéritos destacam inúmeras contradições no que é a fragilidade da sociedade civil, o seu grau de dependência dos humores dos poderes do dia e, inevitavelmente, da cooperação e dos apoios da diáspora. As perceções do Estado na Guiné-Bissau recordam os abusos de poder, o poder real na mão dos militares, a pulverização partidária e a ascensão da etnia Balanta, a especificidade dos grupos de mandjuandades, uma mobilização de solidariedade e cultura. A perceção da sociedade civil em Cabo Verde tem outros matizes, basta pensar nas manifestações culturais da Tabanka, do Batuko e do Funana, tem demorado a que as organizações da sociedade civil se dissociem dos interesses partidários em contenda, o PAIGV e o MpD.

E afinidades? É o combate à pobreza, a procura da satisfação das necessidades elementares da população, o uso do microcrédito num esforço de criar empresas que contrariem a elevada percentagem de desemprego; há a promoção dos valores ambientais, as lutas pela igualdade de género, a valorização da expressão musical, os direitos humanos, a procura de participação de jovens e mulheres nas decisões políticas.

E assim chegamos às relações entre a sociedade civil e o Estado, os inquiridos não se cansam de relevar a falta de recursos, a pressão dos partidos políticos, as sequelas do partido-Estado, o desapontamento face ao oportunismo político dos partidos no uso da sociedade civil. O autor sumula estas queixas dizendo “observa-se em todas as colocações que a defesa da democracia e criação de novos espaços públicos, voltados para a revitalização das organizações da sociedade civil é colocada como uma falta na relação com o Estado”. Vários inquiridos na Guiné-Bissau lembram que este relacionamento estará sempre profundamente inquinado enquanto não houver reforma do Estado. Já nas considerações finais, o autor lembra que há aproximações entre as organizações de massas e grupos de base dos dois países no que tange ao aumento de desigualdades, às questões de género, ao desemprego, aos riscos ambientais e ao imperativo de que as organizações e grupos da sociedade civil devem permanecer equidistantes dos partidos. O investigador deixa diferentes questões em aberto que cabe aos outros responder, como é o caso das necessidades locais e como elas são perspetivadas pelas agências de financiamento e pelos grandes centros de cooperação internacional.

Temos aqui uma estimulante base de trabalho para conhecer na atualidade o grau de mobilização nas relações entre a sociedade civil e o Estado nos dois países, geograficamente próximos e com identidades tão distintas.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19341: Notas de leitura (1135): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19347: Parabéns a você (1550): Adelaide Barata Carrelo, Amiga Grã-Tabanqueira

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19337: Parabéns a você (1549): José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745/73 (Guiné, 1973/74)

domingo, 30 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19346: Blogpoesia (600): "Horas serenas...", "Adro de areia" e "Ventania e tempestade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Horas serenas...

Horas serenas deste Domingo frio de Dezembro.
Um bar quentinho, repleto de famintos.
São motocas vivos em digressão.
Aqui páram. Dão ao dente, como leões.
Saboreiam viver. Em fraternidade.

Há sorrisos e gargalhadas.
As mesas cheias.
Há chilreios da pequenada.
Dá gosto vê-los.
Não sou um deles.
Minha origem é outra.
Àparte a língua,
Nos acolhem bem.

Olho lá fora.
Aquele céu cinzento,
Quase gelado.
O que ele esconde.
Do que passou,
Há dezenas de anos,
Ainda cheira a pólvora.
Tantas tragédias
Que o tempo apagou.
Só ele o sabe...

Bar dos Motocas, arredores de Berlim, Potsdam
16 de Dezembro de 2018,
11h10m
JLMG

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Adro de areia

Uma ermida de pedra,

com adro de areia, na borda do mar,
Nasce e morre ao tom das marés.

Lá mora o Senhor, realeza do mar.
Recebe quem vem, de barco ou a pé.

Serve o que tem e não cobra vintém.
Chora e ri conforme o que vê.
Por vezes, se zanga com quem promete e não vem.

Habituei-me a vê-lO, quando vou de comboio.
Digo-Lhe adeus, até outra vez.
É o Senhor em cima da pedra,

às vezes, adro de areia, no meio do mar...

Berlim, 17 de Dezembro de 2018
13h12m
Jlmg

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Ventania e tempestade

Sopra a ventania sobre os telhados e as colinas da cidade.
Chove impiedosamente.
Parece o fim do mundo.
Não há guarda-chuva que resista.

As aves recolhidas nos seus ninhos,
Aguardam orando venha depressa, de novo, a calma.
Têm fome os seus filhotes.

O Tejo ruge em fúria, contra os cascos das embarcações, ameaçando-lhes a integridade.

De ambos os lados, se acumularam multidões de gente que quer voltar à sua vida de trabalho.

Inclemente, o vento uiva contra os mastros e postes da iluminação.

Raios fulgurantes de trovões rasgam o céu, amedrontando os mais arrojados e indiferentes.
Já há quem reze, em surdina, à Santa Bárbara...

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 9h23m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19297: Blogpoesia (599): "Esquecidos no mundo", "Escuro de breu..." e "Nevoeiro de Lisboa", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19345: In Memoriam (332): Armando Duarte Lopes (1920-2018): antiga glória do futebol guineense, morreu no passado dia 18 o "Búfalo Bill"; foi a enterrar na sua terra natal, o Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde (Nelson Herbert Lopes, EUA)



Gâmbia > Bathurst > 1953 > Comemorações da entronização da Rainha Isabel II, de Inglaterra > Foto da seleção de futebol da Província Portuguesa da Guiné > De pé, da esquerda para a direita, Antero Bubu (Sport Bissau e Benfica; capitão), Douglas (Sport Bissau e Benfica), Armando Lopes (UDIB), Theca (Sport Bissau e Benfica), Epifânio (UDIB) e Nanduco (UDIB); de joelhos, também da esquerda para a direita: Mário Silva (Sport Bissau e Benfica), Miguel Pérola (Sporting Club de Bissau), Júlio Almeida (UDIB), Emílio Sinais (Sport Bissau e Benfica, Joãozinho Burgo ( Sport Bissau e Benfica) e João Coronel (Sport Bissau e Benfica).

No 1º jogo, a seleção da Guiné ganhou à seleção da Gâmbia por 2-0, com golos de Joãozinho Burgo; no 2º jogo, as duas seleções empataram 2-2 (com golos, pela Guiné, de Mário Silva e Joãozinho Burgo). Antiga colónia inglesa, a Gâmbia acedeu à independência em 1965.

Legenda de João Burgo Correia Tavares: vd. livro Noberto Tavares de Carvalho -  "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita", Porto, edição de autor,  2011, p. 41.

Caboverdiano, da Ilha do Fogo, onde nasceu em 1929, Joãozinho Burgo era mais novo do que o Armando Lopes (n. 1920) mas dez anos  mais velho que o Bobo Keita (n. 1939). O auge da sua carreira é em 1960, com o apuramento da seleção de futebol da Guiné para a fase de qualificação para a disputa da taça Kwame Nkrumah.

Vencedora da Série D, a seleção guineense foi disputar a final em Acra, capital do Gana: além de Joãozinho Burgo, fizeram parte dessa equipa Bobo Keita, Júlio Semedo (Swift, guarda-redes), Antero 'Bubu', Vitor Mendes ('Penicilina'), 'Djinha', João de Deus, 'Chito', Luís 'Djató', 'Nhartanga' (que jogará depois em Portugal), entre outros...

O Joãozinho Burgo deixou de jogar na época de 1966/67, para de seguida ir tirar o curso de treinador, ainda em 1967, em Setúbal (onde teve como colegas de curso o José Augusto, o Coluna e o Cavém)

O Bobo Keita  (1939-2009), embora sportinguista de coração, assinou e jogou pelo Sport Bissau e Benfica, clube do seu pai, alfaiate... O mais interessante era verificar a grande popularidade que tinha o futebol nessa época, nomeadamente em Bissau, mas também no interior (Mansoa e Bafatá, por ex.).

O futebol, tal como o exército,  também foi um viveiro de militantes, combatentes e dirigentes ao PAIGC (Júlio Almeida, Júlio Semedo, Bobo Keita, Lino Correia...). Era interessante saber porquê...

O pai do nosso amigo e grã-tabanqueiro Nelson Lopes Herbert, de seu nome Armando Duarte Lopes, foi também, pois, uma antiga glória do futebol cabo-verdiano e guineense ("Armando Bufallo Bill, seu nome de guerra, o melhor futebolista da UDIB - União Desportiva e Internacional de Bissau. Também jogou no Sport Bissau e Benfica, de longe a melhor equipa de futebol da província,  e foi internacional pela selecção guineense.

Trabalhou depois na administração de portos da Guiné, e inclusive na   porto fluvial de Bambadinca, entre 1969 e 1971, na altura em que eu estive em Bambadinca, na CCAÇ 12 (julho de 1969/março de 1971). Tenho pena de o não ter conhecido pessoalmente, mas seguramente que nos cruzámos algumas vezes....


Foto: © Armando Lopes / Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Armando Duarte Lopes (Mindelo, 1920 - Mindelo, 2018),antiga glória do futebol de Cabo Verde e da Guiné


Fotos: © Nelson Herbert Lopes  (2018. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Monte Cara, Mindelo, S Vicente, Cabo Verde  >  Monte Cara é uma montanha na parte ocidental da ilha de São Vicente, Cabo Verde. Assemelha-se a um rosto humano olhando para o céu, daí o seu nome, o que significa 'Montanha do rosto'. Foto (e legenda) de cronologia da página do Facebook do nosso amigo Nelson Herbert. (Reproduzida aqui com a devida vénia).


1. Mensagem, com data de 26 do corrente, nosso amigo e grã-tabanqueiro Nelson Herbert Lopes [jornalista, nascido em Bissau, filho da antiga glória do futebol cabo-verdiano e  guineense, Armando Duarte Lopes, o "Búfalo Bill; vive nos EUA, onde trabalha ou trabalhou na VOA - Voice of America):

Meu Caro Luis

Espero que tenha tido um bom Natal cheio de surpresas agradaveis.

Estas linhas apenas para lhe deixar saber que infelizmente o meu “Velho” Armando Duarte Lopes faleceu no passado dia 18 de Dezembro com 98 anos de idade... e foi a enterrar na última sexta feira no seu Mindelo natal. Não resistiu a uma paragem cardíaca...

Um abrço e um Feliz Ano Novo.

Nelson Herbert

2. Comentário do nosso editor Luís Graça:

Tínhamos até agora uma meia dúzia de referências ao pai do nosso amigo Nelson Herbert Lopes (*). Chega agora ao fim da sua viagem terrena. 

Cabo-verdiano do Mindelo, nasceu em 1920 (ou em 1922 ?)  fez o serviço militar na sua terra natal, no RI 23. em 1943, na altura em que também lá estava, como expedicionário, o meu pai, meu velho e meu camarada, Luís Henriques (1920-2012):  ambos tinham uma paixão pelo futebol, e ainda é possível que se tenham conhecido...(**)

O RI 23 foi também a unidade onde prestaram serviço, como expedicionários durante a II Guerra Mundial,  o Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, e o Porfírio Dias (1919-1988), pai do nosso  camarada Luís Dias. (*)

Ao filho Nelson Herbert e demais família e amigos, ficam aqui registadas as condolências dos amigos e camaradas da Guiné que se sentam sob o poilão da Tabanca Grande. (***)

3. Mensagem de Nelson Herbert, de 20 de outubro de 2011,  21:05 (***)

Assunto: Futebol e Nacionalismo

Caro Luis

"As equipas de futebol deram bastantes militantes ao PAIGC... Era interessante saber porquê...No caso do Bobo Keita, foram decisivas as viagens ao estrangeiro (Ghana, Nigéria...) com a seleção nacional, até 1960, ano em que ele passou à clandestinidade"... E eis (mais) um capítulo da história da Guiné ainda por aprofundar !!!

Repare que a seleção de que Bobo Keita fazia parte, contava igualmente com um dos elementos fundadores do PAIGC, refiro-me pois ao cabo-verdiano Júlio Almeida (guarda redes, que deduzo estar na foto a que fez referência) , então técnico agrário da Granja de Pessubé, [onde trabalhou com] Amílcar Cabral !!!

A indicação e a consequente transferência de Júlio Almeida do futebol mindelense para a UDIB de Bissau foi iniciada, a pedido do clube guineense - creio que [no ínício dos] anos 50- pelo meu pai [ Armadndo Lopes], na altura de férias em S. Vicente, a ilha de natal de ambos.

Convém não perder de vista que, ante a então apertada vigilância da PIDE, a "bola" foi por sinal a via encontrada por Amílcar Cabral para a conglomeração, na periferia de Bissau, de guineenses e cabo-verdianos em redor de ideais nacionalistas.

E falando ainda de futebol, recordo ter lido em tempos no blogue um poste que fazia referência ao papel dos soldados portugueses na Guiné, na "massificação" do futebol naquela antiga província ultramarina.

Obrigado por partilhar!

Mantenhas

Nelson Herbert
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Notas do editor:

(*) Vd. por exemplo postes de;



sábado, 29 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19344: Os nossos seres, saberes e lazeres (300): Viagem à Holanda acima das águas (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O genial holandês é o mais transversal dos pintores europeus, admirado por gente de todas as idades, os seus bosques, troncos de árvore, moinhos, cenas campestres, molhos de feno, cafés iluminados, seres humanos serenamente retratados, naturezas mortas, arvoredo retorcido... E também os autorretratos, os mais novos assombram-se com a vocação tardia, a adesão entusiástica a vários movimentos até atingir a especificidade do génio, aquela textura que nos permite identificar prontamente o atormentado Van Gogh, desde os tons escuros do mundo campestre onde iniciou a sua aventura até aos céus estrelados e aos seus amarelos fulgurantes da Provença, onde ele procurava tranquilidade.
O viandante vibra com Van Gogh e partilha exclusivamente convosco as alegrias que viveu na visita ao Museu Kröller-Müller, onde Van Gogh é o artista mais visitado, o que se compreende.

Um abraço do
Mário


Viagem à Holanda acima das águas (5)

Beja Santos

Permita-se ao viandante abonar um lugar-comum sobre a obra de Van Gogh: toda ela está marcada por uma abordagem emotiva muito especial e por uma enorme carga visionária, fez da realidade reelaborada o testemunho da sua vida e do seu pensamento, parece um mano-a-mano da correspondência que trocou com o seu irmão Theo, de valor excecional para entender o homem e o artista. Van Gogh foi uma vocação tardia, mas a arte e a religião foram fatores determinantes na sua existência. Começará empolgado pelas atividades campestres, era admirador das gravuras inglesas, observava atentamente a solidão das paisagens, as condições de vida difíceis dos proprietários agrícolas. Na sua correspondência com Theo ele descreve detalhadamente a atmosfera específica destas paisagens, poucos artistas fizeram tantos autorretratos como ele e dedicaram atenção a figuras da vida quotidiana, caso do tecelão ou deste funcionário ferroviário, tudo suavizado por um fundo floral e humanizado numa barba imensa, encaracolada, sobressai o seu génio no contraste entre o azul e o verde, tudo mais é harmonia e tranquilidade.




Foi durante os seus dois anos de estadia em Paris que Van Gogh pintou a maioria dos cerca de 20 autorretratos conhecidos. A representação humana foi o assunto favorito de Van Gogh antes da paisagem. Terá sido por falta de modelos que Van Gogh se autorretratou mas é óbvio que ele procurava uma resposta para a sua permanente preocupação analítica. Na correspondência para Theo ele descreve muitas vezes o seu aspeto físico. Iremos encontrar nestes autorretratos as mudanças fisionómicas. A cor vai-se aclarando, o seu olhar é cada vez mais frontal, de uma franqueza que nos cativa, porque não há ali rodriguinhos nem postiços, é uma pintura implacável: olhar penetrante. Fica-se agarrado a vê-lo, o tempo deixa de ter importância, é o contraste das cores, a sobriedade das pinceladas que lhe dão a indumentária, aquele fundo esverdeado que põe o pintor face a face com o seu interlocutor.



Tudo na Natureza o empolga, os ninhos de pássaros, as folhas mortas, as ervas secas, a cor da terra, as tonalidades do musgo. O interesse do genial pintor pela Natureza vem da juventude, ele vivia em comunhão com a terra, sente-se a sua forte atração pelo poder da germinação, pelo trabalhador que lança a semente à terra, é uma Natureza que vibra. Um dos pontos altos desta exaltação passará pela Provença, aí os seus tons amarelados tornam a Natureza mais vibrátil do que nunca.




Se pinta bosques, o ofício da tecelagem, interiores de restaurantes, prados, perspetivas de povoações com uma fortíssima dimensão campestre, Van Gogh nunca perdeu de vista o património edificado. É célebre o seu quadro “O Moinho de la Galette”. Van Gogh queria estudar na Academia de Antuérpia, entusiasmou-se com os quadros de Rubens, descobriu e entusiasmou-se com as estampas japonesas. Em 1886, ei-lo em Paris, conhece a arte de Delacroix, Millet, Daumier e outros. É a descoberta também dos impressionistas como Cézanne, Seurat e Gauguin, este será mesmo convidado a visitá-lo em Arles. A sua arte vai perdendo peso e ganhando em luminosidade com acentos coloridos. A ponte é só luminosidade, o fio de água é de um azul deslumbrante. Sempre a Natureza em hossana!




O mundo camponês, os eriçados troncos de árvore, as casinhas que parecem andar para as nuvens, a sobriedade de uma refeição com batatas… É o Van Gogh da terra ao céu constelado de estrelas, o que é escuro é para mostrar labor, o trabalho silencioso. Van Gogh conhecerá crises, adensará o seu caráter insociável, mas quando lemos a sua correspondência para Theo sente-se que ele é cada vez mais exigente, apesar do seu estado psíquico instável, das alucinações e do comportamento agressivo. Estes casos, pinta no quarto com a janela aberta, deixou-nos campos de trigo, prados, paisagens com árvores. Os comedores de batata é uma tela de 1885, para muitos críticos um dos expoentes máximos deste génio holandês. O seu modelo foi o pintor Millet, o pintor que partilhava a vida com a população campesina. Van Gogh pinta voluntariamente estes comedores de batata “em estado bruto”, abstém-se de qualquer refinamento técnico, é muito estrito à escolha das cores, não quer esconder o que há de grisalho na vida sombria destes rurais. O tema foi recorrente, este é o seu último estudo para a tela definitiva que está no Museu Van Gogh em Amesterdão. Aquela lâmpada acesa parece iluminar um fim de dia laborioso, come-se aquilo que se tira da terra, graças ao bom Deus. É com pesar que o viandante se despede de Van Gogh, ainda tem pela frente duas visitas a dois gigantes, Odilon Redon e Barbara Hepworth. Vamos continuar a visita, no interior e exterior do Museu Kröller-Müller.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19318: Os nossos seres, saberes e lazeres (299): Viagem à Holanda acima das águas (4) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19343: Memórias de Gabú (José Saúde) (76): As habituais mensagens Natalícias de antigos combatentes. Realidades de guerra (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

     Gabu em memórias 

As habituais mensagens Natalícias de antigos combatentes

Realidades de guerra

O tempo foi, é e será de uma Paz que a humanidade expressamente muito considera.

Uns acreditam piamente no solene momento espiritual; outros, guiam-se pela inatingível
“estrada de Santiago” mostrada no infatigável horizonte boreal que os conduzem ao
mundo das utopias.

Prezo a quadra mágica do Natal e do Novo Ano. Considero e respeito todas as opiniões,
volto a referir com ênfase. Recordo, com um inabalável e contemplativo sentimento
nostálgico, as mensagens que os soldados fixados então nas três frentes de guerra –
Angola, Moçambique e Guiné - transmitiam aos seus familiares e amigos nestas épocas
festivas.

“Daqui fala o soldado…” um combatente que transmitia à plebe que se “encontrava
bem” e lá ficavam os beijos e os abraços para que o povo, carente de sensível saudade,
descansasse a sua alma que se inseria num manto salpicado de tristeza. “O meu rapaz
está bem”, comentava uma desconhecida mãe que entretanto se mostrava refeita de uma
desmedida mágoa pela ausência do caridoso fruto que colocara no mundo. Via-o na
televisão e logo o seu ânimo ressuscitava.

Nesta panóplia de infindáveis mensagens lá surgia um camarada que enviava beijinhos
para o seu recém nascido filho, ou filha, que por ora não conhecia. Partiu para a guerra
com o embrião aconchegado na barriga da sua amorosa companheira.

As imagens televisivas, onde o cenário de guerra mostrava jovens envergando os seus
camuflados e normalmente inseridos numa paisagem onde a vegetação de fundo
apontava para os gigantescos planos de uma África no seu melhor, eram escolhidas a
dedo, sendo que o repórter de imagem não corria um alegado risco que interferisse com
o bem-estar pessoal.

Em Gabu ocorreram reportagens “encaixadas” em tempos de pleno conflito. Todavia, as
realidades da guerra eclipsavam-se por esses momentos de lazer. O combatente sentia
que o seu dever era transmitir que “estava bem” e tudo se confinava a uma auréola de
fértil esperança.

Da então Nova Lamego, hoje Gabu, guardo réstias de memórias dos tempos em que a
televisão, a preto e branco, transmitia “Mensagens de Natal e de um Feliz Ano Novo”
de camaradas que se entregavam ao elevo de uma fantástica “máquina” de filmar que
lançava depois para o ar imagens de sonho e carregadas de confiança.

Mas, tudo o que tem princípio tem fim. Revejo, em lembrança, o período das nossas
comissões militares na Guiné, e das “escarpas” que tivemos de ultrapassar, sendo
algumas delas rotuladas de extrema dificuldade.

Uns partiram rumo a solo guineense e chegaram isentos de mazelas; outros,
infelizmente, morreram em combate, ou numa outra inusitada situação; mas existem
aqueles que revelam danos corporais que um dia levarão para a sua derradeira morada,
cuja consequência direta teve como origem uma mina antipessoal, uma bala que lhe
perfurou o corpo numa maldita emboscada, ou como efeito uma improvável causa que
entrementes lhe causou o desespero.

E com estas indesmentíveis realidades de guerra, sempre merecedoras de reparo, me
despeço dos camaradas que fizeram o favor de me “aturar” ao longo desta minha
“comissão” no blogue em que partilhei convosco escritos sobre o conflito na Guiné,
onde fomos evidentes protagonistas, uns como “heróis” no momento exato em que o
combate acontecera, admitindo, com convicção, que todos foram substancialmente
“heróis”, alguns deles vistos depois como “vilões” por força de um regime que
entretanto libertou soldados entregues à sorte nas antigas províncias ultramarinas.

Desculpem a utilização proibitiva neste espaço dos termos “herói” e “vilão” que, ao que
sei agora, não se compadecem com as regras implícitas no nosso blogue, admitindo
desde logo que esta “obscenidade” era-me totalmente desconhecida. Peço, obviamente,
perdão pelo lapso. Sou humano e como tal reconheço o erro.

Mas permitam-me regressar ao tempo em que Portugal assumia a democracia e nos
deparávamos na rua com militares de cabelos compridos, barbas cerradas, cigarro ao
canto da boca, mal fardados, exibindo vaidosamente uma G3 que pressupostamente não
saberiam a razão do porquê factual da sua existência e, bem pior, maltratando
combatentes que além-mar serviram a Pátria, desconhecendo, ou talvez não, que a
pessoa “torturada” fora alguém que combatera com garra ao lado das NT.

Da Guiné, aquela em que todos nós combatemos, ficarão fundamentais retratos de
homens que para além das suas mensagens natalícias, guardam, embora escassamente,
sinais de literais maus tratos praticados por gentes que jamais saberão o que foram
cenários de uma coerciva guerra a que fomos forçados, engrossando, sem rei nem roque,
as frentes de combate.

Mitigando em temáticas que entendo usufruírem de uma cabal audição, provocando
“ronco” numa Tabanca aberta a todas as opiniões, vejo-me entretanto débil para
transportar jocosamente um tambor cuja emissão de “ruídos” não consegue porventura
ultrapassar a barreira do som. Neste contexto, a batalha ter-se-á ajustado ao copioso
parecer que aqui não houve vencidos e nem tão-pouco vencedores.

Imaginariamente continuarei a palmilhar um trilho que se aperta em cada dia que passa,
mas, por outro lado, isento de minas antipessoais que ferem sensibilidades. Aliás, será
inserido neste pausado caminhar que me deparo com o motivo de tristeza por parte de
quê de direito em não considerar os antigos combatentes como “heróis”, compensando-
os estoicamente pela sua bravura, e não como meras peças descartáveis onde os
“vilões”, ou seja, “plebeus comuns de um universo onde se cruzam opiniões adversas”,
jamais terão cabimento. 


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: